Arquivo da tag: Samarco

Fundação Renova deve ser extinta e Vale, BHP e Samarco precisam pagar R$ 10 bilhões em danos morais, pede o MPMG (Observatório da Mineração)

Maurício Angelo, 25 de fevereiro de 2021

A Fundação Renova não pode mais existir por representar os interesses das mineradoras – Vale, BHP e Samarco – que a mantém e ser incapaz de cumprir de forma independente com as ações de reparação do maior desastre ambiental da história do Brasil, o rompimento da barragem de Mariana.

Por isso, o MPMG acaba de ajuizar ação civil pública pedindo a extinção da Fundação Renova, a nomeação de uma junta interventora para exercer a função de conselho curador, incluindo um desenho institucional de transição e a condenação por danos morais no valor de R$10 bilhões.

O modelo atual da Fundação Renova, que teve as suas contas rejeitas pela quarta vez pelo MPMG, que apontou diversas ilicitudes na gestão da Fundação e a interferência direta das mineradoras, “é como se fosse autorizado que os acusados no processo penal e nos processos coletivos em geral pudessem decidir e gerir os direitos e as garantias fundamentais das suas próprias vítimas”, diz a ação.

Segundo o MPMG, é evidente a ilicitude constitucional e legal da Fundação Renova e impossível a sua manutenção, pois “não é razoável, diante dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, da dignidade humana, ambiental e do próprio devido processo legal” que a Renova siga sendo responsável pela reparação do desastre de Mariana.

Esse pedido, que deverá ser analisado pela justiça estadual de Minas Gerais, mexe com todo o modelo fechado em acordos anteriores que definiram os programas executados e que se provaram insuficientes diante da gravidade e a complexidade do caso, que completou 5 anos em novembro último.

Foto de capa: Ismael dos Anjos

Extinção é consequência de anos de irregularidades

A extinção da Renova é a consequência de uma série de irregularidades e investigações que tenho denunciado no Observatório desde a criação da Fundação, em 2016.

a suspeita de que a Renova esteja sendo usada em manobras fiscais por Vale, Samarco e BHP para reembolsar parte dos bilhões gastos até hoje. Em 2020, a Renova também decidiu cortar o auxílio financeiro a sete mil pessoas em Minas Gerais e no Espírito Santo, foi denunciada por uma “possível violação em massa de direitos humanos” e obrigada pela justiça a voltar atrás.

As propagandas veiculadas pela Renova em alguns dos principais jornais e veículos do país ao custo de R$ 17 milhões foram consideradas enganosas e irregulares pelo Ministério Público Federal e defensorias públicas. A Renova foi usada para pressionar prefeitos da bacia do Rio Doce a abrir mão de ações judiciais no Brasil e no exterior.

Dezenas de milhares de pessoas sequer foram reconhecidas como atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana até hoje e os distritos destruídos pela lama ainda não foram reconstruídos. Alguns, como Paracatu de Baixo e Gesteira, estão em fase prévia de estudos ou aguardam os projetos serem homologados pela justiça.

Falta de participação dos atingidos

Um ponto crítico de toda a história é a falta da participação dos atingidos, o que motivou inclusive uma repactuação do acordo original feito em 2016, reformado em 2018 para tentar garantir que as pessoas afetadas tivessem realmente voz no processo.

Não funcionou.

É o que afirma o MPMG na ação, destacando que ao longo desses mais de cinco anos, diversas foram as falhas dos programas da Fundação Renova apontados no âmbito do sistema do Comitê Interfederativo (CIF), no processo judicial, nos relatórios técnicos dos experts do Ministério Público e trabalhos e manifestações realizadas pelas representações dos atingidos.

“A resistência da Fundação Renova” em resolver os problemas, dizem os promotores, “decorre, em grande medida, da falta de participação dos atingidos na concepção, implementação e execução das medidas reparatórias”.

Outro fator relevante, continua o MPMG, é o fato de que a Fundação Renova insiste em desconsiderar estudos técnicos elaborados e/ou validados no âmbito do sistema CIF, bem como a produção técnica dos experts no diagnóstico socioeconômico e socioambiental e no monitoramento dos programas.

Para os promotores Gregório de Almeida e Valma Cunha, “é urgente que estes ilícitos e desvios de finalidade sejam imediatamente cessados como forma de restabelecer a incidência da ordem jurídica, dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais e de próprio devido processo legal”.

Modelo de transição complexo

Segundo a ação, o regime de transição deverá assegurar tudo o que foi negociado até aqui, um caso complexo que envolve a manutenção do sistema de governança, com suas respectivas atribuições, incluindo o Comitê Interfederativo (CIF) e instâncias internas (Câmaras Técnicas, Comitês de Assessoramento), as Comissões Locais de Pessoas Atingidas e Assessorias Técnicas contratadas, Auditoria Externa Independente, experts e contratações específicas dedicadas ao monitoramento dos programas mediante Acordos de Cooperação Técnica-Científica.

O objetivo é realizar o processo de repactuação mediante plano de ação e cronograma a ser estabelecido em comum acordo pelo Ministério Público, Defensoria Pública, Empresas, a União, o Estado De Minas Gerais, o Estado Do Espírito Santo, com a participação dos atingidos, conforme os princípios e cláusula do TAC-Gov (acordo reformulado de 2018).

O Plano de Ação e o Cronograma deverão considerar duas frentes de atuação a serem trabalhadas no Processo de Repactuação, destacam, uma voltada à própria repactuação dos programas de reparação hoje em curso, considerando o respeito aos direitos humanos e a participação dos atingidos e outra relativa à nova governança voltada à condução dos Programas Socioambientais e Socioeconômicos, “garantindo-se que essa venha se dar por meio de processos e fluxos que assegurem imparcialidade, legitimidade, participação, transparência, preservando-se os objetivos e premissas estabelecidos nos acordos pelas partes e assumidos como compromissos pelas empresas envolvidas com o desastre”, destacam.

Durante a transição, as mineradoras devem garantir que nenhuma medida de reparação tenha seu cronograma suspenso ou atrasado. “Seria incoerência aceitar que as irregularidades da Fundação Renova possam justificar qualquer atraso ou não realização da reparação de todos os danos causados pelas empresas envolvidas no desastre, sobretudo considerando que já se passaram 5 anos e ainda há muito a ser feito para garantir a reparação integral”, afirmam os promotores.

O MPMG pede que seja contemplado pela decisão liminar de intervenção a nomeação de uma junta interventora judicial, que exercerá a função de conselho curador, composta por membros indicados pelo MPF, MPMG, MPES, o presidente do CIF, o estado de MG e do ES e as defensorias públicas da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo.

Pedidos finais

Nesse caso, é importante conhecer os detalhes dos pedidos finais do Ministério Público de Minas Gerais, que mostram a responsabilidade das mineradoras e como será feita, na prática, a extinção da Renova, sem que isso acarrete mais prejuízos aos atingidos e sem que os dirigentes que eventualmente respondam por medias cíveis e criminais saiam impunes. São eles:

1- Extinguir a FUNDAÇÃO RENOVA, com a consequente averbação da sentença junto ao serviço de registro civil de pessoas jurídicas de Belo Horizonte e cancelamento da inscrição junto ao Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ);

2 – Condenar as instituidoras e mantenedoras SAMARCO MINERAÇÃO S.A, VALE S.A. e BHP BILLITON BRASIL LTDA, em responsabilidade solidária, à reparação dos danos materiais causados no desvio de finalidade e nos ilícitos praticados dentro e por intermédio da FUNDAÇÃO RENOVA, com a frustração dos Programas Acordados no TTAC e nos seus objetivos estatutários, com desvios de finalidade, sem prejuízo das medidas cíveis e criminais a serem adotadas posteriormente em face dos dirigentes que concorreram para a prática dos ilícitos, danos esses a serem apurados em liquidação de sentença, conforme admite o art. 324, §1º, inciso II, do CPC;

3 – Condenar as instituidoras e mantenedoras SAMARCO MINERAÇÃO S.A, VALE S.A. e BHP BILLITON BRASIL LTDA, em responsabilidade solidária, à reparação dos danos morais no valor de R$ 10 dez bilhões de reais, que corresponde aproximadamente aos valores gastos, com ineficiência dos Programas, até o presente momento por intermédio da FUNDAÇÃO RENOVA, revertendo o valor da condenação ao desenvolvimento de políticas públicas de direitos humanos e ambientais nas regiões atingidas pelos rejeitos decorrentes do rompimento da Barragem do FUNDÃO.

4 – Expedir ofício ao Ministério da Previdência e Assistência Social, para que informe se há débitos pendentes junto ao INSS; à Caixa Econômica Federal, referentemente aos débitos junto ao FGTS; às Fazendas Federal, Estadual e Municipal;

5 – expedir ofício aos Serviços de Registro Imobiliário de Belo Horizonte, a fim de levantar eventual patrimônio imobiliário da FUNDAÇÃO RENOVA; expedir ofício ao Banco Central do Brasil, requisitando informações sobre contas bancárias de qualquer natureza em nome da FUNDAÇÃO RENOVA; proceder à liquidação do patrimônio fundacional (inclusive com a publicação de edital para conhecimento de terceiros interessados) e à reversão dos bens residuais, com a nomeação de liquidante, nos termos do Estatuto e do artigo 69 do Código Civil.

“Faltam resultados, falta reparação, falta boa vontade das empresas: falta empatia e humanidade para com as pessoas atingidas. Cinco anos depois, as duas maiores empresas de mineração em todo o mundo não conseguiram reconstruir um único distrito”, conclui a ação.

Procurada para comentar, a Renova não se manifestou até a publicação desta reportagem.

Atualização: leia na íntegra a resposta enviada pela Renova após a publicação da matéria.

A Fundação Renova discorda das alegações feitas pelo Ministério Público de Minas Gerais relacionadas às contas da instituição e informa que irá contestar nas instâncias cabíveis o pedido de intervenção proposto em Ação Civil Pública nesta quarta-feira (24).  

Além das prestações de contas realizadas anualmente, a Fundação também encaminha ao MPMG as respectivas aprovações de suas contas feitas pelo Conselho Curador, pelo Conselho Fiscal e pela empresa independente responsável pela auditoria das demonstrações financeiras, conforme prevê a Cláusula 53 do TTAC. 

As contas da Fundação Renova são ainda verificadas por auditorias externas independentes, que garantem transparência no acompanhamento e fiscalização dos investimentos realizados e dos resultados alcançados. As contas da Fundação foram aprovadas por essas auditorias. 

A respeito do questionamento do MP relacionado ao superávit da Fundação Renova em 2019, é importante esclarecer que é recomendável que instituições do terceiro setor trabalhem com superávit, indicador de que o trabalho está sendo realizado de forma qualificada e técnica. No caso da Fundação Renova, o valor relativo ao superávit é reaplicado nas ações de reparação do ano seguinte. 

Sobre a remuneração de seus executivos, a Fundação Renova esclarece que adota uma política de mercado, com valores compatíveis com as responsabilidades assumidas. Importante esclarecer que os valores aportados pelas mantenedoras para o custeio da fundação (salários e custos administrativos) não comprometem e não são contabilizados nos valores destinados à reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento de Fundão.  

Cabe ressaltar que a Fundação Renova é responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, cujo escopo engloba 42 programas que se desdobram nos projetos que estão sendo implementados nos 670 quilômetros de área impactada ao longo do rio Doce e afluentes e em ações de longo prazo. Cerca de R$ 11,8 bilhões foram desembolsados pela Fundação Renova até o momento, tendo sido pagos R$ 3,26 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para 320 mil pessoas até janeiro deste ano. 

A indenizações ganharam novo impulso com o Sistema Indenizatório Simplificado, implementado pela Fundação Renova a partir de decisão da 12ª Vara Federal em ações apresentadas por Comissões de Atingidos dos municípios impactados. Ele tem possibilitado o pagamento de indenização a categorias com dificuldade de comprovação de danos. O primeiro pagamento por meio do sistema foi realizado em setembro. Até o início de fevereiro de 2021, mais de 5 mil pessoas foram pagas pelo Sistema Indenizatório Simplificado. O valor ultrapassou R$ 450 milhões. 

Reparação 

A Fundação Renova permanece dedicada ao trabalho de reparação dos danos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), propósito para o qual foi criada.  

As obras dos reassentamentos têm previsão de desembolso de R$ 1 bilhão para 2021, um aumento de 14% em relação ao ano anterior. O valor refere-se a todas as modalidades de reassentamento, englobando as construções dos novos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, e, também, a modalidade de reassentamento Familiar e a reconstrução de residências em comunidades rurais. O avanço da infraestrutura, priorizado dentro do plano estratégico de prevenção contra a Covid-19, permitirá a aceleração da construção das residências das famílias atingidas. Assim, os reassentamentos coletivos ganham desenhos de cidades planejadas.  

A questão do prazo de entrega dos reassentamentos está sendo discutida em um Ação Civil Pública (ACP) em curso na Comarca de Mariana, tendo sido submetido recurso para análise em segunda instância (TJMG), o qual ainda aguarda apreciação e julgamento. Nesse contexto, foram expostos os protocolos sanitários aplicáveis em razão da Covid-19, que obrigaram a Fundação a desmobilizar parte do efetivo e a trabalhar com equipes reduzidas, o que provocou a necessidade de reprogramação das atividades. 

A água do rio Doce pode ser consumida após passar por tratamento convencional em sistemas municipais de abastecimento. Além disso, foram recuperados 113 afluentes, pequenos rios que alimentam o alto rio Doce. Cerca de 888 nascentes estão com o processo de recuperação iniciado. Até o momento, as ações de restauração florestal alcançam mais de 1.000 hectares em Minas Gerais e no Espírito Santo, uma área equivalente a 1.000 campos de futebol. 

Na área de saneamento, 9 municípios iniciaram obras para tratamento de esgoto e resíduos sólidos com recursos repassados pela Fundação Renova. Estão previstos R$ 600 milhões para projetos nos 39 municípios impactados. 

Em 2020, a Fundação iniciou um repasse de R$ 830 milhões aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e prefeituras da bacia do rio Doce, para investimentos em infraestrutura, saúde e educação. Esses recursos promoverão a reestruturação de mais de 150 quilômetros de estradas, de cerca de 900 escolas em 39 municípios e do Hospital Regional de Governador Valadares (MG), além de possibilitar a implantação do Distrito Industrial de Rio Doce (MG). 

Open Science: o futuro da ciência e o desastre de Mariana (Pesquisa Fapesp)

12.08.2016

O Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental (Giaia) realiza expedições com o objetivo de coletar e analisar amostras da lama com rejeitos de mineração que atingiu o rio Doce após o rompimento da barragem da Samarco, em novembro de 2015, e estimula não cientistas a contribuírem com amostras. Apostando no conceito de ciência aberta, os resultados das viagens são divulgados em tempo real nas redes sociais e no site da organização, permitindo que a população acompanhe o avanço das análises. No vídeo, pesquisadores comentam como o grupo surgiu e algumas consequências do desastre.

Impactos visíveis no mar (Pesquisa Fapesp)

Poluentes chegam a 200 km ao norte e ao sul da foz do rio Doce, atingem unidades de conservação, alteram equilíbrio ecológico e se acumulam no assoalho marinho

CARLOS FIORAVANTI | ED. 242 | ABRIL 2016

Poluição à vista: os resíduos que vazaram do reservatório de Mariana formam mancha acastanhada na foz do rio DocePoluição à vista: os resíduos que vazaram do reservatório de Mariana formam mancha acastanhada na foz do rio Doce.

Em janeiro deste ano, ao sobrevoarem o litoral do Espírito Santo e do sul da Bahia, biólogos, oceanógrafos e técnicos de órgãos ambientais do governo federal reconheceram os borrões escuros na superfície do mar formados pelo acúmulo de resíduos metálicos que vazaram do reservatório da mineradora Samarco em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015. A mancha de resíduos, também chamada de pluma, aproximava-se do arquipélago de Abrolhos, uma das principais reservas de vida silvestre marinha da costa brasileira.

Os borrões não eram apenas os indesejados resquícios da extração de minério de ferro de Minas Gerais, mas uma de suas consequências, como se verificou logo depois. Em meio às manchas verde-escuro havia colônias de algas e outros organismos marinhos microscópicos – o fitoplâncton – com dezenas de quilômetros de extensão, muito maiores que as observadas nos anos anteriores, de acordo com as análises de pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Outra peculiaridade é que os organismos cresciam e se multiplicavam rapidamente, em decorrência do excesso de ferro dos rejeitos da mineradora de Mariana que se espalham pelo mar a partir da foz do rio Doce, onde chegaram no final de novembro. Desde então, levados continuamente ao mar pelo rio, os resíduos formam uma mancha móvel que oscila ao longo de 200 quilômetros (km) ao norte e ao sul da foz do rio Doce, que alterou o equilíbrio marinho, como indicado pela massa de fitoplâncton, e atingiu pelo menos três unidades de conservação de organismos marinhos.

“As manchas de fitoplâncton são comuns no verão, mas não desse modo”, explica Alex Bastos, professor de oceanografia da Ufes, no final de fevereiro. Análises preliminares indicaram que as colônias de algas são constituídas por organismos que se formam e morrem em poucos dias, mais rapidamente que o habitual. A decomposição acelerada dos organismos consome oxigênio da água do mar, com consequências imprevisíveis sobre as comunidades de organismos marinhos.

Além disso, a diversidade de espécies havia sido reduzida quase à metade. Camilo Dias Júnior, com sua equipe de oceanografia da Ufes, encontrou no máximo 40 espécies de fitoplâncton por amostra analisada; antes da chegada dos resíduos os pesquisadores reconheciam de 50 a 70 espécies. A hipótese dos pesquisadores e técnicos é de que já poderia ter ocorrido uma seleção de variedades mais adaptadas ao excesso de ferro trazido com a descarga dos resíduos no mar.

Nos sobrevoos do litoral do Espírito Santo e da Bahia, Claudio Dupas, coordenador do Núcleo de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental da Superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em São Paulo, observou muitos barcos de pesca próximos às manchas de fitoplâncton na foz do rio Doce. Atraídos pela abundância de alimento, o grande número de peixes chamou a atenção dos pescadores.

Em Governador Valadares, MG: a lama ocupou o rio Doce em novembro, prejudicando o abastecimento de água para os moradores da cidade

Com base nas análises preliminares da qualidade de água e na observação do cenário, a equipe do Ibama elaborou um relatório técnico alertando sobre alterações na qualidade da água, prejudicada com a descarga de resíduos no mar. Com base no documento e no princípio da precaução – para evitar que a população seja prejudicada pelo consumo de peixes contaminados –, no dia 22 de fevereiro um juiz federal de Vitória proibiu por tempo indeterminado a pesca na região da foz do rio Doce. “Assim que saiu a decisão do juiz, o superintendente do Ibama em Vitória, Guanadir Gonçalves, pediu-me para fazer um mapa com a delimitação da área de proibição, que foi para a internet e para os celulares dos fiscais em campo no mesmo dia”, diz Dupas.

Desde janeiro os movimentos da mancha de resíduos podem ser acompanhados por meio de mapas gerados pelo Ibama a partir de imagens de satélites no site governancapelodoce.com.br, mantido pela Samarco. Já o site siscom.ibama.gov.br/mariana contém imagens de satélite de alta resolução de antes e depois do incidente, da barragem à foz. Os mapas indicam que os resíduos já chegaram a 50 km ao sul de Vitória, capital do Espírito Santo, e atingiram três unidades de conservação do ambiente marinho, o Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz, a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas e uma das principais áreas de desova da tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), uma faixa de 37 km de praias conhecida como Reserva Biológica Comboios. “Ainda não é possível avaliar o impacto sobre o ambiente, a vida dos organismos marinhos e dos moradores da região”, diz Dupas.

Desde que vazou da barragem de Fundão, em 5 de novembro, até chegar ao mar, a enorme massa de resíduos da extração de minério de ferro causou uma transformação profunda. Destruiu casas e matas às margens do rio Doce, provocando a morte de 18 pessoas e de toneladas de peixes e outros organismos aquáticos. A bióloga Flávia Bottino participou das expedições do Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental (Giaia) ao longo do rio Doce em novembro e observou uma intensa turbidez da água, que dificultava a penetração da luz e a sobrevivência dos organismos. Os biólogos encontraram camarões de água doce que sobreviveram ao desastre, mas os organismos bentônicos, que viviam no fundo do rio, tinham sido soterrados.

Limites incertos 
A alta concentração de partículas sólidas que absorvem calor pode ter causado o aumento da temperatura da água para cerca de 30º Celsius. “A água do rio estava quente”, ela notou. As análises das amostras de água coletadas em dezembro ao longo de um trecho de cerca de 800 km do rio, realizadas nas unidades das universidades de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Federal de São Carlos (UFSCar) em São Carlos e Sorocaba, Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente, e na de Brasília (UnB), indicaram concentrações elevadas de manganês, ferro, arsênio e chumbo. As chuvas podem agravar a situação ao lavar as margens dos rios, cobertas de resíduos, e transportá-los ao mar.

Por meio de coletas realizadas com o navio Vital de Oliveira Moura, da Marinha, a equipe da Ufes verificou que 25 km a leste da foz do Rio Doce os resíduos formam uma camada de 1 a 2 centímetros sobre a lama do fundo do mar, a 25 metros de profundidade. “Está havendo um acúmulo rápido do rejeito no assoalho marinho”, diz Bastos, da Ufes, com base em coletas realizadas desde novembro, logo após o rompimento da barragem (ver Pesquisa FAPESP no 239). “Nem nas maiores cheias o acúmulo de sedimentos no rio no fundo do mar foi tão alto.”

042-047_Poluentes_242No início de fevereiro, em uma reunião dos pesquisadores da Ufes com representantes do Ibama, Instituto Estadual do Meio Ambiente (Iema) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Bastos comentou que a concentração de ferro no fundo do mar havia aumentado 20 vezes, em comparação com os níveis de antes do acidente, a de alumínio 10 vezes e a de cromo e manganês, cinco. Outro professor da Ufes, Renato Rodrigues Neto, observou que a vazão do rio passou de 300 metros cúbicos por segundo (m³/s), antes do rompimento da barragem, para cerca de 4.000 m³/s, aumentando a quantidade de lama com resíduos metálicos despejada no mar.

As imagens de satélite indicam que os resíduos metálicos podem ter chegado até o arquipélago de Abrolhos no início de janeiro, embora, ressalta Dupas, ainda não seja possível diferenciar os sedimentos vindos do rio Doce, a cerca de 200 km de distância, dos do rio Caravelas, que deságua na região. Segundo ele, os resultados das análises em andamento devem ser anunciados em abril.

Vários estudos em outras áreas marinhas têm indicado que os resíduos industriais podem ir muito além dos lugares onde foram produzidos, misturar-se com os sedimentos do fundo do mar, aflorando se revolvidos por redes de pesca, ou ser absorvidos por organismos marinhos. Uma equipe do Instituto Oceanográfico (IO) da USP identificou metais pesados (chumbo, cobre e zinco) e compostos orgânicos derivados de petróleo produzidos na zona industrial de Santos e do polo industrial de Cubatão, a 15 km do mar, misturados com a lama do assoalho marinho a uma profundidade de 100 metros e a uma distância de 200 km da costa. Não se pensava que a poluição gerada em terra pudesse chegar tão longe.

Condições ambientais 
As conclusões ajudam a pensar o que poderia se passar no litoral do Espírito Santo e dos estados vizinhos, à medida que a lama da mineradora se espalha. “Os eventos, a rigor, não têm conexão à primeira vista”, disse Michel Mahiques, professor de oceanografia do IO-USP que coordenou os estudos em Santos. O vazamento da Samarco em Mariana foi um fenômeno agudo, com uma descarga intensa de resíduos, enquanto Santos e outros, como a baía da Guanabara, são casos crônicos, de décadas de liberação contínua de poluentes. “O fato comum”, ele diz, “é que existem porções do fundo marinho nas quais as condições ambientais permitem a deposição de materiais gerados pela atividade humana, ainda que a grandes distâncias”.

Em um estudo anterior no litoral de Santos, seu grupo identificou isótopos de césio 137 originários de explosões atômicas ou de usinas nucleares, nas quais esse tipo de material é gerado. “O césio foi transportado pela atmosfera e aderiu a partículas muito pequenas do fundo do mar”, conta. “Podemos chamar esses casos de teleconexões, em que um evento em um determinado ponto do planeta pode afetar regiões muito distantes.” Segundo ele, os casos clássicos são os acidentes das usinas nucleares de Chernobyl em 1986 e de Fukushima em 2011.

Vila de Mariana devastada pela lama da barragem de Fundão: efeito a mais de 800 km de distância na terra, no rio e no mar

“Precisamos lançar outro olhar para o potencial de acumulação de material no meio marinho”, comenta Mahiques. Seus estudos indicaram que os poluentes se acumulam principalmente nos cinturões de lama, faixas em geral com 3 a 4 km de largura e dezenas de quilômetros de extensão, na chamada plataforma continental, sobre estruturas antigas de relevo. “Há um efeito a distância. Os sedimentos permanecem em pontos bem distantes da origem. Duzentos quilômetros foi o limite a que chegamos, mas ainda não sabemos se poderiam ir mais longe.” Mahiques argumenta que dois conceitos básicos sobre o funcionamento da plataforma continental deveriam ser revistos. O primeiro é que a quantidade de materiais do continente que chega ao mar seria pequena. O segundo é que os ambientes costeiros retêm a sujeira. “A quantidade não é pequena, nem os estuários são um filtro perfeito dos resíduos gerados no continente.”

Os pesquisadores analisaram 21 amostras de sedimentos coletadas em 2005 e outras, mais recentes, reunidas por meio do navio oceanográfico Alpha Crucis. Os resultados indicaram que os níveis de chumbo, zinco e cobre a 100 metros de profundidade a mais de 100 km da costa eram próximos aos encontrados na baía de Santos, embora mais baixos que os limites mais altos do estuário santista, um ambiente próximo à terra que mistura água de rios e do mar. No estuário, a concentração de chumbo no sedimento marinho variava de 9 miligramas por quilograma (mg/kg) em áreas não contaminadas a 59 mg/kg em amostras do fundo do porto, indicando um aumento de cinco a 10 vezes em comparação com os valores anteriores ao processo de industrialização. Os autores desse trabalho afirmaram que os poluentes industriais misturados com a lama no fundo do mar poderiam facilmente voltar à circulação, como resultado de movimentos intensos da água ou de atividade humana como a dragagem para a ampliação de portos ou a pesca com redes pesadas que revolvem o fundo do mar.

Estudos anteriores de pesquisadores do IO-USP já haviam mostrado que a descarga contínua de esgotos domésticos e de poluentes industriais na baía de Santos era provavelmente uma das causas da reduzida diversidade de organismos marinhos na região, em comparação com áreas menos poluídas.

Em paralelo, uma equipe da Unesp em São Vicente encontrou níveis acima dos permitidos em lei de quatro metais pesados – cádmio, cobre, chumbo e mercúrio – em amostras de água, sedimento e em caranguejos-uçá dos manguezais dos municípios de Cubatão, Bertioga, Iguape, São Vicente e Cananeia. Nas regiões com maior concentração desses metais, os caranguejos apresentavam uma proporção maior de células com alterações genéticas associadas à ocorrência de malformações (verPesquisa FAPESP no 225). Estudo de uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande publicado em novembro de 2015 associou a contaminação por metal como possível causa da fibropapilomatose, uma doença específica de tartarugas marinhas, caracterizada pela formação de tumores benignos sobre a pele, em tartarugas-verde (Chelonia mydas) de Ubatuba, SP, já que os animais examinados apresentavam um nível acima do normal de cobre, ferro e chumbo, em comparação com animais saudáveis.

“Quando pensarmos em legislação e políticas públicas, para fazer uma projeção do impacto de eventuais acidentes ambientais, temos de olhar mais longe e rever o conceito de área de influência, já que o efeito pode ser muito maior do que o imaginado”, disse Mahiques. Bastos, da Ufes, observou que os danos ambientais podem ser intensos em consequência de pequenas alterações na concentração de metais na água do mar, mesmo que os limites ainda estejam abaixo dos máximos estabelecidos pela legislação ambiental.

Artigos científicos
FIGUEIRA, R.C.L. et alDistribution of 137Cs, 238Pu and 239 + 240Pu in sediments of the southeastern Brazilian shelf – SW Atlantic marginScience of the Total Environment. v. 357, p. 146-59. 2006.
MAHIQUES, M.M. et alMud depocentres on the continental shelf: a neglected sink for anthropogenic contaminants from the coastal zone. EnvironmentalEarth Sciences. v. 75, n. 1, p. 44-55. 2016.
SILVA, C.C. da et alMetal contamination as a possible etiology of fibropapillomatosis in juvenile female green sea turtles Chelonia mydas from the southern Atlantic OceanAquatic Toxicology. v. 170, p. 42-51. 2016.