Arquivo mensal: julho 2017

Estamos todos doentes? (JC)

JC, 5707, 25 de julho de 2017

Pesquisadora da Unicamp alerta para influência da indústria farmacêutica no crescimento do número de diagnósticos de transtornos mentais

Dados do National Institute of Mental Health (NIMH, 2012) apontam que 46% dos norte-americanos preenchem os critérios de diagnóstico de um transtorno mental. Na Europa essa porcentagem corresponde a 38%. Nos Estados Unidos, o diagnóstico de transtorno bipolar em crianças e adolescentes aumentou 40 vezes, entre 1994 e 2003, e uma entre cinco crianças tem um surto de transtorno mental por ano, de acordo com dados do Centro de Controle de Doenças, daquele país (CDC, 2013).

Há pesquisas que indicam que 10% da população mundial teria algum tipo de transtorno, um número que segundo a médica pediatra, Maria Aparecida Affonso Moysés, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), inviabiliza qualquer esforço de política pública. “Temos que começar a questionar como esses números são construídos. Na verdade, mudanças nos critérios do diagnóstico se tornaram muito frouxos nos últimos anos”, afirmou a médica, em sua conferência na Reunião Anual da SBPC. “É muito difícil qualquer um de nós não se encaixar nos critérios. Os testes que detectam algumas dessas doenças são verdadeiras armadilhas”, alertou.

Ela refutou a ideia de que vivemos uma epidemia de doenças mentais. “O que temos é uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais”, disse. Na primeira vez em que foi publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, em 1952, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), tinha 106 categorias de transtornos mentais. Em sua última edição, em 2013, foram listadas 300 categorias. “Alterar as normas para caracterização de um transtorno e criar doenças novas contribuíram para essa epidemia amplamente patrocinada pela indústria farmacêutica”, declarou Moysés. “Antes de vender remédios, o departamento de marketing da indústria de fármacos trabalha para vender doenças”, diz. Déficit de atenção, transtorno de descontrole de humor, transtorno de aprendizagem, depressão, transtorno opositor desafiante, hiperatividade, são algumas dessas doenças fabricadas para vender medicamentos. “Onde está a ciência e ética nesse campo?”, questionou a médica. Segundo ela, esses medicamentos são largamente receitados para crianças e adultos, como se fossem 100% seguros, mas boa parte deles provoca dependência química.

Um exemplo é o metilfenidato, base de uma classe de estimulantes do sistema nervoso central, vendido entre outras, com a marca “Ritalina”. O medicamento age inibindo a receptação de dopamina na sinapse, o que teria como resultado o aumento do nível de concentração. Conforme explicou Moysés, ele é receitado para crianças com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), não pelo seu efeito terapêutico, mas pelas reações adversas. No sistema nervoso central o metilfenidato provoca o efeito “zombie like”, quando a pessoa fica contida em si mesma. “Eu comparo esse fármaco a uma droga da obediência porque o indivíduo perde a capacidade de questionar, de sentir. É um tipo de contenção química. O aumento de concentração, tão propagado, é, na verdade, uma redução do foco da atenção, isto é, a pessoa presta atenção em uma coisa de cada vez”, afirmou. “Não existe uma pílula que nos faça prestar atenção. Para isso, precisamos de bons professores com boas condições de trabalho”.

Na opinião da pesquisadora da Unicamp, vivemos em um projeto de sociedade que estimula e premia comportamentos homogêneos, punindo as singularidades. “Não é à toa que assistimos cortes significativos nos orçamentos da ciência e da educação. Temos que ser iguais porque as diferenças incomodam cada vez mais. Entretanto, neutralizar os sonhadores, os que pensam diferente é um genocídio do futuro”, disse.

O combate ao que a médica chama de patologização da sociedade passa pelos campos da saúde, da educação e por uma revisão das políticas públicas para que elas não sejam submissas ao mercado. Outro setor é o da formação profissional. Nas escolas de medicina, a técnica não pode se sobrepor à ética e ao aspecto humano. Toda avaliação e diagnóstico têm que respeitar saberes, valores, história e a cultura porque “a vida não é mercadoria”, finalizou.

Por Patricia Mariuzzo para o Jornal da Ciência

Every Year, the Sky ‘Rains Fish.’ Explanations Vary. (N.Y.Times)

O casal que afirma incorporar índio para controlar a chuva (Veja SP)

Fundação Cacique Cobra Coral já foi chamada pela organização do Rock in Rio e até pela gestão José Serra

Na tarde do último dia 6 de abril, o empresário Osmar Santos, de 53 anos, e a médium e corretora de imóveis Adelaide Scritori, 55, receberam por e-mail uma preocupante previsão. Uma grande tempestade estava se aproximando da cidade. Poucas horas depois, os dois se instalaram no escritório do apartamento onde moram, nos Jardins.

É um cômodo branco, que abriga apenas uma escrivaninha, na qual um tampo de vidro protege um mapa-múndi com os continentes delineados em preto. Na parede, um desenho a lápis retrata um índio. A mulher começou a se concentrar, fechou os olhos e, em um minuto, sua voz ficou baixa, rouca e ganhou um timbre masculino.

Santos com o retrato do índio na sede da empresa: “Reduzimos os estragos” (Antonio Milena/Veja SP)

Segundo o casal, ela havia acabado de incorporar o cacique Cobra Coral. O marido, que acompanhava a cena de perto, ditou as condições climáticas. Ela o ouviu e, com giz de cera, desenhou símbolos meteorológicos sobre a mesa para redirecionar as nuvens a outros cantos. Naquela madrugada, a chuva caiu sobre a capital, mas, de acordo com eles, com menos intensidade que a prevista. “Somos como um airbag”, compara Santos. “Não eliminamos os desastres naturais, mas reduzimos os estragos.”

Essa é a descrição de uma típica cerimônia da Fundação Cacique Cobra Coral. Embora a dupla de criadores viva na metrópole, a organização umbandista é sediada em Guarulhos. Sua missão: controlar o clima por meio dos poderes de um índio. Segundo os fiéis, o espírito reencarnou em vários personagens da história, como o cientista Galileu Galilei e o presidente americano Abraham Lincoln.

Ninguém sabe ao certo de onde teria vindo seu poder de controlar o clima. “O povo indígena sempre teve uma relação estreita com o tempo”, arrisca Santos. Adelaide diz ter recebido a entidade pela primeira vez aos 7 anos, em um centro espírita. À época, seu pai, Ângelo Scritori, a ajudava nas sessões. A partir da década de 80, o marido se tornou o escudeiro.

Os alegados poderes do cacique levaram o casal a ser procurado por órgãos públicos e empresas particulares. Em 2005, durante a gestão de José Serra na prefeitura, um contrato firmado com a dupla chegou a ser publicado no Diário Oficial, segundo o qual Santos e Adelaide se comprometiam a colaborar para reduzir as enchentes na capital. Na ocasião, o secretário das subprefeituras, Andrea Matarazzo, justificava a parceria pela ausência de custos para os cofres públicos. “O convênio é inodoro, sem valor financeiro”, defendia.

Se em alguns locais há excesso de água, em outros o desafio é a falta dela. No início deste ano, o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, convocou a fundação para combater a seca. As águas ainda não rolaram da forma como se esperava, mas a fé continua inabalável. “Como católico, tenho rezado muito para que chova bastante no Distrito Federal, e a fundação é mais uma energia que se junta a esse esforço”, afirmou Rollemberg nas redes sociais.

Na esfera privada, o Rock in Rio era um de seus clientes mais antigos. A parceria começou em 2008 e se estendeu nas edições seguintes do festival. Executivos da empresa organizadora não quiseram comentar o contrato, mas uma pessoa ligada à produção afirmou que o trabalho foi interrompido.

A gota d’água para o divórcio teria sido a tempestade que caiu em um show de Katy Perry em 2015. “O motorista estava sem a credencial e chegamos ao espaço após a entrada da frente fria”, diz Santos. “Mas, depois, continuamos sendo chamados por eles”, garante. No ano passado, durante a Olimpíada, ele e Adelaide circularam pelo Rio com credenciais.

A atuação do espírito se estende a outros países. Entre abril e maio, o casal esteve em Angola e na China para dar conta das forças naturais fora de controle.

Em seu celular, Santos carrega fotografias em que eles aparecem ao lado de personalidades como o prefeito João Doria e o escritor Paulo Coelho. O autor, inclusive, ajudou a popularizar a Cobra Coral ao ocupar o cargo de vice-presidente da fundação entre 2004 e 2006. Há até mesmo membros da comunidade científica entre os admiradores. “Verifiquei uma mudança no clima logo após presenciar um ritual, em 2000”, diz Rubens Villela, professor aposentado do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.

Adelaide ao lado de Paulo Coelho (à dir.), ex-vice-presidente da fundação: grandes eventos e celebridades (Arquivo Pessoal/Veja SP)

Apesar de firmar contratos, o cacique não permite ser remunerado pelo trabalho. Santos e Adelaide mantêm-se com as atividades de suas empresas, como a Nostradamus Corretora de Seguros, a TWX Capas de Chuva e a OAS Empreendimentos Imobiliários, que negocia imóveis acima de 5 milhões de reais.

Caseiros, os dois só costumam deixar o apartamento de 120 metros quadrados próximo à Avenida Paulista para frequentar salas de cinema. “Gostamos de filmes-catástrofe”, diz Santos. Juntos desde 1977, eles têm dois filhos — o coach Jorge, de 38 anos, e a terapeuta floral Barbara, de 22. A caçula, inclusive, pode levar os dotes da Cobra Coral à próxima geração. “Percebemos nela um talento para a tarefa”, afirma o pai.