Arquivo mensal: março 2022

Lei de Cotas pode ser alterada com exclusão de critérios raciais para seleção de alunos (Carta Capital)

cartacapital.com.br

No texto sancionado por Dilma Rousseff, está prevista uma revisão do sistema após dez anos de implantação, o que ocorrerá em agosto próximo

Por Fabíola Mendonça e Rodrigo Martins | 11.03.2022 05h30


No início de 2021, uma família negra de Caçapava, no interior paulista, teve uma dupla conquista para celebrar. A técnica de enfermagem Sandra Baptista, de 53 anos, obteve uma bolsa de estudos integral para cursar Gestão Pública em uma universidade privada de Santos. Já a filha Lívia ­Gabrielle dos Santos da Silva, de 18 anos, foi aprovada no processo seletivo do curso de Engenharia Química da USP, no campus de Lorena, e tornou-se a primeira integrante do núcleo familiar a ter acesso a uma universidade pública. Até então, apenas outro filho teve a oportunidade de cursar uma faculdade, com financiamento pelo Fies.

Sandra precisou adiar por muitos anos o sonho do ensino superior. Chegou a iniciar alguns cursos no passado, mas precisou abandoná-los em decorrência de problemas financeiros. Agora, com os filhos crescidos, acredita ser possível conciliar o trabalho com a graduação a distância. Lívia, por sua vez, entrou na USP logo após o Ensino Médio. Não foi uma tarefa fácil, ainda mais em tempos de pandemia. “Começava às 7 e meia da manhã e seguia com os estudos até 9 da noite, sem descanso”, relembra. Um sacrifício necessário para dar conta das aulas remotas da escola, a elaboração do trabalho de conclusão de curso e o reforço do Emancipa, um cursinho popular, mantido por voluntários.

ANTES EM MINORIA, OS NEGROS HOJE SOMAM 51,2% DOS ALUNOS DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS. AS VAGAS PARA BRANCOS TAMBÉM CRESCERAM

Beneficiária do sistema de cotas, ela recebe uma bolsa de 500 reais para custear a moradia e tem direito a refeições gratuitas no restaurante universitário. “Como divido o apartamento com duas amigas, consigo pagar a maior parte dos gastos. Ainda assim, preciso da ajuda dos meus pais para cobrir algumas despesas”, comenta. “Sem as cotas e sem esse auxílio financeiro do programa de permanência, eu jamais conseguiria fazer esse curso na USP. Os alunos da escola pública estão em muita desvantagem em relação aos de colégios particulares. E acho muito justo que a população negra tenha acesso facilitado às universidades, até para reparar os três séculos e meio de escravidão e toda a exclusão que sofremos desde então. Após a Abolição, por muitos anos nos impediram de estudar e até mesmo de trabalhar em algumas profissões, como cocheiro. Nada mais justo do que termos, ao menos, a possibilidade de modificar o nosso futuro.”

Assim como Lívia, centenas de milhares de brasileiros tiveram acesso à universidade pública facilitado pelas cotas raciais, implantadas oficialmente no Brasil a partir da Lei 12.711, de 2012. No texto sancionado por Dilma Rousseff, está prevista uma revisão do sistema de cotas após dez anos de implantação, o que ocorrerá em agosto próximo. O governo ainda não se pronunciou formalmente sobre o tema, mas o ministro da Educação, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, já se manifestou no passado contra a reserva de vagas por critérios étnico-raciais. Pior: no Congresso, representantes da base bolsonarista e da autointitulada “direita liberal” se articulam para derrubar o mecanismo, mantendo apenas os critérios sociais.

Em artigo publicado no Jornal da Ciência, um veículo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o advogado José Eduardo Cardoso, ex-ministro da Justiça, esclarece que a lei não tem prazo de validade. “No seu texto não existe nenhuma data estabelecendo o fim da sua vigência. Ao contrário, o que existe, no seu art. 7º, é a previsão de que se realize uma revisão dos seus termos, ‘no prazo de dez anos’, e não a afirmação da ‘perda­ da sua vigência’ após o período de dez anos”. Ou seja, a legislação não vai caducar, caso os parlamentares decidam analisar o tema com calma em outro momento, fora do afogadilho do período eleitoral.

“Sim, podemos ocupar espaços de poder“, diz Joana Guimarães, primeira reitora negra do País – Imagem: UFSB

Cleber Santos, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e professor da Unifesp, reforça essa linha de raciocínio e não descarta judicializar a questão, caso seja retirada da lei a reserva de vagas nas universidades para pretos, pardos e indígenas (PPI). “A lei não tem uma expiração prevista para ocorrer em 2022. Fala de monitoramento e avaliação por parte dos órgãos públicos responsáveis, o que não ocorreu”, observa. “É preciso entender a revisão como um processo de aperfeiçoamento a partir desse monitoramento e avaliação, com dados concretos.”

A possibilidade da exclusão dos critérios raciais preocupa os defensores das cotas, sobretudo quando se considera o perfil do governo Bolsonaro, sempre refratário a políticas públicas inclusivas. “Há o enorme risco de aprovarem uma nova legislação que limite as cotas ou abram a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro vetar um trecho específico, que leve à exclusão de algum grupo beneficiado”, chama atenção Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e atual presidente da SBPC. “É preciso destacar que todas as cotas são sociais, pois os beneficiários precisam ser, necessariamente, egressos de escolas públicas. Você pode ser negro, pode ser indígena, pode ter alguma deficiên­cia… Não terá direito à reserva de vagas a menos que tenha cursado os três anos do Ensino Médio na rede pública. Não vejo por que mudar esse sistema. Ele não prejudica ninguém. As cotas levam em conta a proporção de todos os grupos étnicos e pessoas com deficiência existentes em cada estado, nem mais nem menos.”

Uma das iniciativas para acabar com as cotas raciais foi apresentada pelo deputado Kim Kataguiri, do DEM. Em tramitação na Câmara, o Projeto de Lei 4125/21 estabelece que as vagas deveriam ser destinadas exclusivamente aos alunos de baixa renda. “Além de inconstitucionais, as políticas de discriminação positiva não fazem o menor sentido. Quem é excluído da educação é o pobre, que entra cedo no mercado de trabalho e depende dos serviços educacionais do Estado, que, em geral, são de péssima qualidade”, diz o parlamentar. “A pobreza não tem cor.”

Fontes: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): Pesquisas Anuais de Domicílios (1996, 2003 e 2014) e Censo 2010. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as) das Ifes (2018).

O militante do MBL, que recentemente lamentou o fato de a Alemanha ter criminalizado o nazismo em um podcast, parece ignorar os indicadores sociais, sempre mais desfavoráveis à população negra, mesmo quando se comparam grupos com a mesma escolaridade ou faixa de renda. “Perder o componente racial é retroceder mais de 130 anos de história. As cotas ainda não respondem a toda necessidade da população brasileira, sobretudo a que vive discriminação histórica. É visível que avançou a presença dos estudantes negros nas universidades federais, mas é também visível a imensidão do lado de fora”, afirma Matilde Riberio, ex-ministra da Secretaria Especial de Igualdade Racial no governo Lula. “A manutenção do componente racial é uma responsabilidade do Estado e da sociedade, considerando que, em todos os dados estatísticos de todas as áreas das políticas públicas, você identificará que a população negra é preterida.”

A lei determina que todas as universidades e institutos federais de ensino devem reservar ao menos 50% das vagas dos cursos de graduação para alunos que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas. Desse montante, metade das vagas será destinada a pessoas com renda de até um salário mínimo e meio per capita. A outra é distribuída entre pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, considerando a proporcionalidade das populações em cada estado, segundo o último Censo do ­IBGE. “O sistema de ensino é ruim para todos, brancos e não brancos, mas, quando a gente olha para o Ensino Médio, 71,7% dos jovens fora da escola são negros”, comenta José Nilton, professor de Educação das Relações Étnico-Raciais, disciplina obrigatória em todos os cursos da UFRPE.

A maior virtude da Lei de Cotas é o fato de ser uma política abrangente e multidimensional, com uma combinação de critérios que combate, simultaneamente, as desigualdades socioeconômicas e as raciais, ressalta Adriano Senkevics, doutor em Educação pela USP e pesquisador do Inep. Dessa forma, democratizou-se o acesso às universidades federais, inclusive nas carreiras mais prestigiadas, como medicina e engenharia. “Não se pode dizer que a legislação privilegia grupos que teriam condições financeiras de disputar vagas pelo sistema universal, pois todos os cotistas, sem exceção, precisam ser egressos de escola pública, dos quais metade deles também de renda baixa. E não bastaria manter apenas os critérios sociais, pois a desigualdade possui especificidades de cunho racial”, explica Senkevics.

O ministro-pastor Milton Ribeiro e o deputado Kim Kataguiri acreditam que a pobreza não tem cor. Quem sabe na Suécia, vai saber… – Imagem: Luis Fortes/MEC e Deputados do DEM

Em estudo publicado há três anos na Cadernos de Pesquisa, revista científica da Fundação Carlos Chagas, Senkevics e ­Ursula Mattioli Mello, pesquisadora do Institute for Economic Analysis, de ­Barcelona, revelaram o impacto da Lei de Cotas nas universidades. O porcentual de alunos egressos de escolas públicas e com renda de até um salário mínimo e meio, independentemente do perfil racial, aumentou de 48,12%, em 2012, para 54,8% em 2016. Dentro desse grupo, a maior expansão deu-se entre pretos, pardos e indígenas, cuja participação cresceu de 24,9% para 34% no mesmo período. “Ou seja, se a legislação não contemplasse os critérios raciais, haveria uma menor representatividade étnica no ensino superior.”

O impacto da Lei de Cotas foi ainda mais expressivo nas instituições de ensino que tardaram a adotar políticas afirmativas. A UFC, para citar um exemplo, não possuía qualquer sistema de reserva de vagas até então e dobrou o porcentua­l de ingressantes provenientes da escola pública em quatro anos – a participação desse grupo aumentou de 28,4%, em 2012, para 56,9%, em 2016. No caso da Ufes, que desde 2008 reservava de 40% a 50% das vagas para alunos da rede pública, o aumento foi tímido, de apenas 1,2%.

Autor do projeto pioneiro sobre cotas no Brasil, implantado na UnB em 2003, o antropólogo e professor José Jorge Carvalho acompanha esse debate há mais de 30 anos e diz ser incalculável a evolução da participação de pretos, pardos e indígenas nas universidades públicas. “Uma revolução foi feita. Eu lembro de dar aula há 20 anos em uma turma que eram todos brancos, às vezes tinha um único estudante negro. Agora, se você entrar na sala de aula, ela está integrada racialmente, com estudantes negros, brancos, indígenas, de baixa renda. É uma revolução social, racial e étnica gigantesca”, avalia. “A partir das cotas, os estudantes negros e indígenas começaram a questionar o currículo­ ensinado – eurocêntrico, centrado na cultura branca europeia. Queriam saber quando iriam estudar os escritores e poetas negros, a psicologia e a filosofia negras, a arte e o pensamento indígenas. A universidade cresceu intelectualmente.”

“SE REVISAR A LEI NESTE MOMENTO, HÁ O ENORME RISCO DE APROVAREM UMA NOVA LEGISLAÇÃO QUE LIMITE AS COTAS”, ALERTA JANINE RIBEIRO

Embora não considere o momento mais adequado para a revisão da Lei de Cotas, em razão da pressão de grupos reacionários pela supressão dos critérios raciais, Senkevics acredita que há, sim, aspectos que podem ser aperfeiçoados. Hoje, para definir o porcentual de vagas reservadas aos PPI em cada estado, são utilizados os dados do Censo Demográfico, realizado a cada dez anos. Além disso, a pandemia atrasou a realização do último levantamento, que deveria ter acontecido em 2020. O Censo está defasado e poderia perfeitamente ser substituído pela Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar, atualizada constantemente pelo IBGE.

Outro ponto sensível é a ausência de regulamentação sobre o trabalho das comissões verificadoras das cotas, criadas para combater as fraudes na autodeclaração racial dos alunos. “Isso tem provocado uma crescente judicialização de casos, além de trazer prejuízos para todos os envolvidos: o estudante que é expulso nos anos finais de conclusão do curso, a universidade que gastou recursos para a formação desse aluno e o próprio cotista que perdeu aquela vaga”, observa ­Senkevics. “Com critérios mais claros, esse problema tende a ser minimizado.”

Fonte: IBGE, Pnad Contínua, 2018.

Autor de um projeto que propõe a prorrogação da Lei de Cotas por 50 anos e inclui na proposta políticas de assistência para a permanência dos estudantes, o ­deputado Valmir Assunção, do PT, defende a criação do Conselho Nacional das Ações Afirmativas do Ensino Superior, cuja finalidade seria monitorar a aplicação das regras, com a participação dos movimentos negro e estudantil das próprias universidades. Com os sucessivos cortes e congelamentos de recursos para o ensino superior desde 2015, as instituições de ensino enfrentam uma dificuldade cada vez maior de oferecer auxílio-moradia e refeições gratuitas aos alunos de baixa renda.

“Essa política material que garante assistência educacional é o que proporciona aos estudantes em vulnerabilidade a possibilidade de permanecerem nesses cursos onde a exigência é bem maior, como medicina. Mas, com os cortes, a gente não consegue atender a todos”, lamenta ­Cássia ­Virgínia Maciel, pró-reitora de Ações Afirmativas da UFBA, ressaltando que, em 2021, o corte na assistência estudantil da instituição foi de 7,2 milhões de reais. “Os valores repassados nunca deram para as universidades trabalharem com folga. Mas não havia essa política de negação do conhecimento como existe no governo atual”, completa Denise Góes, coordenadora da ­Comissão de Políticas Raciais da UFRJ, ressaltando que a universidade fluminense, a partir de 2019, precisou limitar a concessão de bolsas para alunos com renda ­per capita­ de até meio salário mínimo – antes, o benefício estendia-se a quem tinha até um salário mínimo e meio.

Importante observar que os brancos e asiáticos sofreram uma perda apenas relativa, em termos meramente proporcionais. “O número de vagas nas universidades federais passou de cerca de 100 mil, em 2001, para mais de 230 mil em 2011. Ou seja, o número de vagas para alunos não cotistas aumentou 15% nesse período, de 100 mil para 115 mil”, observa ­Janine Ribeiro. “A expansão da rede federal de ensino superior permitiu que ninguém fosse prejudicado com as cotas. Foi um jogo de ganha-ganha.”

“É VISÍVEL A PRESENÇA DOS NEGROS NAS UNIVERSIDADES, MAS É TAMBÉM VISÍVEL A IMENSIDÃO DO LADO DE FORA”, DIZ A EX-MINISTRA MATILDE RIBEIRO

A 5ª Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) dos Ifes, realizada pela Andifes, corrobora a avaliação de Janine Ribeiro. Em termos porcentuais, a participação da população branca nas universidades federais caiu de 53,9%, em 2010, para 43,3%, em 2018. Não houve, porém, redução do número de alunos brancos. Ao contrário, o quantitativo aumentou de 353,8 mil para 520 mil no mesmo período. As cotas apenas asseguraram maior participação de grupos étnicos sub-representados. A população preta e parda, antes minoritária, passou a representar 51,2% do total de alunos.

O Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, vinculado à Uerj, também tem dados que mostram a evolução das cotas nas universidades federais. Segundo o estudo, em 2012, havia pouco mais de 30 mil vagas para os cotistas e 110 mil para ampla concorrência. Sete anos depois, quase 138 mil pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência puderam fazer um curso superior graças ao sistema. E isso não significou redução de vagas para brancos, pois havia mais de 125 mil ofertas para ampla concorrência, 15 mil a mais que em 2012. “A reserva de vagas foi e é a principal política de mobilidade social do País. É preciso não só manter, mas ampliar, e acabar com a visão de que não existe racismo no Brasil”, diz Penildo Silva Filho, pró-reitor de graduação da UFBA.

“A reparação mal começou“, observa Matilde – Imagem: Valter Campanato/ABR

Primeira mulher negra eleita reitora de uma universidade federal, a geóloga Joana Guimarães chama atenção para o caráter simbólico, histórico, cultural e socioeconômico das cotas. “O fato de eu estar como reitora de uma universidade tem um significado, passa a mensagem de que temos o direito de ocupar espaços de poder. Contribui para uma mudança de olhar, para que os alunos negros se sintam capazes”, destaca a docente, da UFSB. “O que faltou a eles foi oportunidade, pois são tão inteligentes quanto qualquer aluno branco. A única diferença são as condições, o ponto de partida.”

A representatividade também é percebida pela população indígena. Formado em jornalismo pela UFPE, Tarisson Nawa, de 25 anos, está concluindo mestrado e já foi aprovado para o doutorado da UFRJ, dentro da reserva para indígenas. Isso porque, mesmo sem a obrigatoriedade de cota na pós-graduação, muitos programas instituíram a ação afirmativa. “A gente não via perspectiva de entrar na universidade”, comenta. “As cotas são uma possibilidade de deixarmos de ser objeto de pesquisa para sermos autores da pesquisa. Não precisamos mais ser pesquisados por não indígenas, vamos construir as nossas próprias narrativas a partir das nossas vidas, numa cosmovisão dos povos indígenas.”

Sobre a adoção das cotas no mestrado e no doutorado, o coordenador dos Programas de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas, Marciano Seabra Godoi, destaca a necessidade de pessoas negras e indígenas passarem a produzir conhecimento. “Quem pesquisa e cria teorias é o público da pós-graduação. É preciso colocar essa população para disputar narrativas. Se você coloca os cotistas só na graduação, nega a eles a produção do saber.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O revide da casa-grande”

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Editorial: Misinformation is blocking climate action, and the U.N. is finally calling it out (Los Angeles Times)

latimes.com

By The Times Editorial Board March 7, 2022 3 AM PT


A landmark U.N. climate report on the escalating effects of global warming broke new ground by finally highlighting the role of misinformation in obstructing climate action. It was the first time one of the Intergovernmental Panel on Climate Change’s exhaustive assessments has called out the ways in which fossil fuel companies, climate deniers and conspiracy theorists have sown doubt and confusion about climate change and made it harder for policymakers to act.

The expert panel’s report released last week mostly focused on the increasing risk of catastrophe to nature and humanity from climate change. But it also laid out clear evidence of how misinformation about climate change and the “deliberate undermining of science” financed and organized by “vested economic and political interests,” along with deep partisanship and polarization, are delaying action to reduce greenhouse gas emissions and adapt to their impacts.

The assessment describes an atmosphere in which public perception about climate change is continually undermined by fossil fuel interests’ peddling of false, misleading and contrarian information and its circulation through social media echo chambers; where there’s an entrenched partisan divide on climate science and solutions; and people reject factual information if it conflicts with their political ideology.

Sound familiar? It should, because the climate misinformation landscape is worse in the United States than practically any other country.

While the section on misinformation covers only a few of the more than 3,600 pages in the report approved by 195 countries, it’s notable that it’s in a chapter about North America and calls out the U.S. as a hotbed for conspiracy theories, partisanship and polarization. A 2018 study of 25 countries that was cited in the IPCC report found that the U.S. had a stronger link between climate skepticism and conspiratorial and conservative ideology than in any other nation tested. These forces aren’t just a threat to democracy, they are major roadblocks to climate action and seem to have sharpened with the Trump presidency and the COVID-19 pandemic.

Misinformation was included in the North America chapter for the first time this year “because there has been a lot of research conducted on the topic since the last major IPCC report was published in 2014,” said Sherilee Harper, one of the lead authors and an associate professor at the University of Alberta in Canada. “Evidence assessed in the report shows how strong party affiliation and partisan opinion polarization can contribute to delayed climate action, most notably in the U.S.A., but also in Canada.”

The IPCC’s language is measured but leaves no doubt that the fossil fuel industry and politicians who advance its agenda are responsible. It is shameful that fossil fuel interests have been so successful in misleading Americans about the greatest threat to our existence. The industry has engaged in a decades-long campaign to question climate science and delay action, enlisting conservative think tanks and public relations firms to help sow doubt about global warming and the actions needed to fight it.

These dynamics help explain why U.S. politicians have failed time after time to enact significant federal climate legislation, including President Biden’s stalled but desperately needed “Build Back Better” bill that includes $555 billion to spur growth in renewable energy and clean transportation. And they show that combating disinformation is a necessity if we are to break through lawmakers’ refusal to act, which is increasingly out of step with Americans’ surging levels of alarm and concern about the overheating of the planet.

“We’ve seen misinformation poisoning the information landscape for over three decades, and over that time the public has been getting more and more polarized,” said John Cook, a postdoctoral research fellow at the Climate Change Communication Research Hub at Monash University in Australia. “The U.S. is the strongest source of misinformation and recipient of misinformation. It’s also the most polarized on climate.”

Cook and his colleagues studied misinformation on conservative think-tank websites and contrarian blogs over the last 20 years and charted the evolution of the climate opposition from outright denial of the reality of human-caused climate change and toward attacking solutions such as renewable energy or seeking to discredit scientists.

Cook said his research has found the most effective way to counter climate obstruction misinformation is to educate people about how to identify and understand different tactics, such as the use of fake experts, cherry-picked facts, logical fallacies and conspiracy theories. For example, seeing words such as “natural” or “renewable” in fossil fuel advertising raises red flags that you’re being misled through greenwashing.

“It’s like teaching people the magician’s sleight-of-hand trick,” Cook said.

There have been important efforts recently to hold the fossil fuel industry accountable for disinformation. In a hearing that was modeled on tobacco industry testimony from a generation ago, House Democrats hauled in oil executives last fall to answer to allegations that their companies have concealed their knowledge of the risks of global warming to obstruct climate action (they, unsurprisingly, denied them).

Perhaps we are getting closer to a turning point, where public realization that we’ve been misinformed by polluting industries begins to overcome decades of planet-endangering deceit and delay. Having the world’s scientists finally begin to call out the problem certainly can’t hurt.

Marcelo Leite: Virada Psicodélica – Artigo aponta injustiça psicodélica contra saber indígena (Folha de S.Paulo)

www1.folha.uol.com.br

Marcelo Leite

7 de março de 2022


A cena tem algo de surreal: pesquisador europeu com o corpo tomado por grafismos indígenas tem na cabeça um gorro com dezenas de eletrodos para eletroencefalografia (EEG). Um membro do povo Huni Kuin sopra rapé na narina do branco, que traz nas costas mochila com aparelhos portáteis para registrar suas ondas cerebrais.

A Expedition Neuron aconteceu em abril de 2019, em Santa Rosa do Purus (AC). No programa, uma tentativa de diminuir o fosso entre saberes tradicionais sobre uso da ayahuasca e a consagração do chá pelo chamado renascimento psicodélico para a ciência.

O resultado mais palpável da iniciativa, até aqui, apareceu num controverso texto sobre ética, e não dados, de pesquisa.

O título do artigo no periódico Transcultural Psychiatry prometia: “Superando Injustiças Epistêmicas no Estudo Biomédico da Ayahuasca – No Rumo de Regulamentação Ética e Sustentável”. Desde a publicação, em 6 de janeiro, o texto gerou mais calor que luz –mesmo porque tem sido criticado fora das vistas do público, não às claras.

Os autores Eduardo Ekman Schenberg, do Instituto Phaneros, e Konstantin Gerber, da PUC-SP, questionam a autoridade da ciência com base na dificuldade de empregar placebo em experimentos com psicodélicos, na ênfase dada a aspectos moleculares e no mal avaliado peso do contexto (setting) para a segurança do uso, quesito em que cientistas teriam muito a aprender com indígenas.

Entre os alvos das críticas figuram pesquisas empreendidas na última década pelos grupos de Jaime Hallak na USP de Ribeirão Preto e de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN, em particular sobre efeito da ayahuasca na depressão. Procurados, cientistas e colaboradores desses grupos não responderam ou preferiram não se pronunciar.

O potencial antidepressivo da dimetiltriptamina (DMT), principal composto psicoativo do chá, está no foco também de pesquisadores de outros países. Mas outras substâncias psicodélicas, como MDMA e psilocibina, estão mais próximas de obter reconhecimento de reguladores como medicamentos psiquiátricos.

Dado o efeito óbvio de substâncias como a ayahuasca na mente e no comportamento da pessoa, argumentam Schenberg e Gerber, o sistema duplo-cego (padrão ouro de ensaios biomédicos) ficaria inviabilizado: tanto o voluntário quanto o experimentador quase sempre sabem se o primeiro tomou um composto ativo ou não. Isso aniquilaria o valor supremo atribuído a estudos desse tipo no campo psicodélico e na biomedicina em geral.

Outro ponto criticado por eles está na descontextualização e no reducionismo de experimentos realizados em hospitais ou laboratórios, com o paciente cercado de aparelhos e submetido a doses fixadas em miligramas por quilo de peso. A precisão é ilusória, afirmam, com base no erro de um artigo que cita concentração de 0,8 mg/ml de DMT e depois fala em 0,08 mg/ml.

A sanitização cultural do setting, por seu lado, faria pouco caso dos elementos contextuais (floresta, cânticos, cosmologia, rapé, danças, xamãs) que para povos como os Huni Kuin são indissociáveis do que a ayahuasca tem a oferecer e ensinar. Ao ignorá-los, cientistas estariam desprezando tudo o que os indígenas sabem sobre uso seguro e coletivo da substância.

Mais ainda, estariam ao mesmo tempo se apropriando e desrespeitando esse conhecimento tradicional. Uma atitude mais ética de pesquisadores implicaria reconhecer essa contribuição, desenvolver protocolos de pesquisa com participação indígena, registrar coautoria em publicações científicas, reconhecer propriedade intelectual e repartir eventuais lucros com tratamentos e patentes.

“A complementaridade entre antropologia, psicanálise e psiquiatria é um dos desafios da etnopsiquiatria”, escrevem Schenberg e Gerber. “A iniciativa de levar ciência biomédica à floresta pode ser criticada como uma tentativa de medicalizar o xamanismo, mas também pode constituir uma possibilidade de diálogo intercultural centrado na inovação e na resolução de ‘redes de problemas’.”

“É particularmente notável que a biomedicina se aventure agora em conceitos como ‘conexão’ e ‘identificação com a natureza’ [nature-relatedness] como efeito de psicodélicos, mais uma vez, portanto, se aproximando de conclusões epistêmicas derivadas de práticas xamânicas. O desafio final seria, assim, entender a relação entre bem-estar da comunidade e ecologia e como isso pode ser traduzido num conceito ocidental de saúde integrada.”

As reações dos poucos a criticar abertamente o texto e suas ideias grandiosas podem ser resumidas num velho dito maldoso da academia: há coisas boas e novas no artigo, mas as coisas boas não são novas e as coisas novas não são boas. Levar EEG para a floresta do Acre, por exemplo, não resolveria todos os problemas.

Schenberg é o elo de ligação entre o artigo na Transcultural Psychiatry e a Expedition Neuron, pois integrou a incursão ao Acre em 2019 e colabora nesse estudo de EEG com o pesquisador Tomas Palenicek, do Instituto Nacional de Saúde Mental da República Checa. Eis um vídeo de apresentação, em inglês:

“Estamos engajados, Konstantin e eu, em projeto inovador com os Huni Kuin e pesquisadores europeus, buscando construir uma parceria epistemicamente justa, há mais de três anos”, respondeu Schenberg quando questionado sobre o cumprimento, pelo estudo com EEG, das exigências éticas apresentadas no artigo.

Na apresentação da Expedition Neuron, ele afirma: “Nessa primeira expedição curta e exploratória [de 2019], confirmamos que há interesse mútuo de cientistas e uma cultura indígena tradicional da Amazônia em explorar conjuntamente a natureza da consciência e como sua cura tradicional funciona, incluindo –pela primeira vez– registros de atividade cerebral num cenário que muitos considerariam demasiado desafiador tecnicamente”.

“Consideramos de supremo valor investigar conjuntamente como os rituais e medicinas dos Huni Kuin afetam a cognição humana, as emoções e os vínculos de grupo e analisar a base neural desses estados alterados de consciência, incluindo possivelmente experiências místicas na floresta.”

Schenberg e seus colaboradores planejam nova expedição aos Huni Kuin para promover registros de EEG múltiplos e simultâneos com até sete indígenas durante cerimônias com ayahuasca. A ideia é testar a “possibilidade muito intrigante” de sincronia entre cérebros:

“Interpretada pelos Huni Kuin e outros povos ameríndios como um tipo de portal para o mundo espiritual, a ayahuasca é conhecida por fortalecer intensa e rapidamente vínculos comunitários e sentimentos de empatia e proximidade com os outros.”

Os propósitos de Schenberg e Gerber não convenceram a antropóloga brasileira Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco (EUA). “Indígenas não parecem ter sido consultados para a produção do texto, não há vozes nativas, não são coautores, e não temos propostas específicas do que seria uma pesquisa verdadeiramente interétnica e intercultural.”

Para a antropóloga, ainda que a Expedition Neuron tenha conseguido autorização para a pesquisa, algo positivo, não configura “epistemologia alternativa à abordagem cientificista e etnocêntrica”. Uma pesquisa interétnica, em sua maneira de ver, implicaria promover uma etnografia que levasse a sério a noção indígena de que plantas são espíritos, têm agência própria, e que o mundo natural também é cultural, tem subjetividade, intencionalidade.

“Todos sabemos que a bebida ayahuasca não é a mesma coisa que ayahuasca freeze dried [liofilizada]; que o contexto importa; que os rituais e coletivos que participam fazem diferença. Coisas iguais ou análogas já haviam sido apontadas pela literatura antropológica, cujas referências foram deixadas de lado pelos autores.”

Labate também discorda de que os estudos com ayahuasca no Brasil negligenciem o reconhecimento de quem chegou antes a ela: “Do ponto de vista global, é justamente uma marca e um diferencial da pesquisa científica brasileira o fato de que houve, sim, diálogo com participantes das religiões ayahuasqueiras. Estes também são sujeitos legítimos de pesquisa, e não apenas os povos originários”.

Schenberg e Palenicek participaram em 2020 de um encontro com outra antropóloga, a franco-colombiana Emilia Sanabria, líder no projeto Encontros de Cura, do Conselho Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ao lado do indígena Leopardo Yawa Bane, o trio debateu o estudo com EEG no painel virtual “Levando o Laboratório até a Ayahuasca”, da Conferência Interdisciplinar sobre Pesquisa Psicodélica (ICPR). Há vídeo disponível, em inglês:

Sanabria, que fala português e conhece os Huni Kuin, chegou a ser convidada por Schenberg para integrar a expedição, mas declinou, por avaliar que não se resolveria a “incomensurabilidade epistemológica” entre o pensamento indígena e o que a biomedicina quer provar. Entende que a discussão proposta na Transcultural Psychiatry é importante, apesar de complexa e não exatamente nova.

Em entrevista ao blog, afirmou que o artigo parece reinventar a roda, ao desconsiderar um longo debate sobre a assimilação de plantas e práticas tradicionais (como a medicina chinesa) pela ciência ocidental: “Não citam a reflexão anterior. É bom que ponham a discussão na mesa, mas há bibliografia de mais de um século”.

A antropóloga declarou ver problema na postura do artigo, ao apresentar-se como salvador dos nativos. “Não tem interlocutor indígena citado como autor”, pondera, corroborando a crítica de Labate, como se os povos originários precisassem ser representados por não índios. “A gente te dá um espacinho aqui no nosso mundo.”

A questão central de uma colaboração respeitosa, para Sanabria, é haver prioridade e utilidade no estudo também para os Huni Kuin, e não só para os cientistas.

Ao apresentar esse questionamento no painel, recebeu respostas genéricas de Schenberg e Palenicek, não direta e concretamente benéficas para os Huni Kuin –por exemplo, que a ciência pode ajudar na rejeição de patentes sobre ayahuasca.

Na visão da antropóloga, “é linda a ideia de levar o laboratório para condições naturalistas”, mas não fica claro como aquela maquinaria toda se enquadraria na lógica indígena. No fundo, trata-se de um argumento simétrico ao brandido pelos autores do artigo contra a pesquisa psicodélica em ambiente hospitalar: num caso se descontextualiza a experiência psicodélica total, socializada; no outro, é a descontextualização tecnológica que viaja e invade a aldeia.

Sanabria vê um dilema quase insolúvel, para povos indígenas, na pactuação de protocolos de pesquisa com a renascida ciência psicodélica. O que em 2014 parecia para muitos uma nova maneira de fazer ciência, com outros referenciais de avaliação e prova, sofreu uma “virada capitalista” desde 2018 e terminou dominado pela lógica bioquímica e de propriedade intelectual.

“Os povos indígenas não podem cair fora porque perdem seus direitos. Mas também não podem entrar [nessa lógica], porque aí perdem sua perspectiva identitária.”

“Molecularizar na floresta ou no laboratório dá no mesmo”, diz Sanabria. “Não vejo como reparação de qualquer injustiça epistêmica. Não vejo diferença radical entre essa pesquisa e o estudo da Fernanda [Palhano-Fontes]”, referindo-se à crítica “agressiva” de Schenberg e Gerber ao teste clínico de ayahuasca para depressão no Instituto do Cérebro da UFRN, extensiva aos trabalhos da USP de Ribeirão Preto.

A dupla destacou, por exemplo, o fato de autores do estudo da UFRN indicarem no artigo de 2019 que 4 dos 29 voluntários no experimento ficaram pelo menos uma semana internados no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal. Lançaram, com isso, a suspeita de que a segurança na administração de ayahuasca tivesse sido inadequadamente tratada.

“Nenhum desses estudos tentou formalmente comparar a segurança no ambiente de laboratório com qualquer um dos contextos culturais em que ayahuasca é comumente usada”, pontificaram Schenberg e Gerber. “Porém, segundo nosso melhor conhecimento, nunca se relatou que 14% das pessoas participantes de um ritual de ayahuasca tenham requerido uma semana de hospitalização.”

O motivo de internação, contudo, foi trivial: pacientes portadores de depressão resistente a medicamentos convencionais, eles já estavam hospitalizados devido à gravidade de seu transtorno mental e permaneceram internados após a intervenção. Ou seja, a internação não teve a ver com terem tomado ayahuasca.

Este blog também questionou Schenberg sobre o possível exagero em pinçar um erro que poderia ser de digitação (0,8 mg/ml ou 0,08 mg/ml), no artigo de 2015 da USP de Ribeirão, como flagrante de imprecisão que poria em dúvida a superioridade epistêmica da biomedicina psicodélica.

“Se dessem mais atenção aos relatos dos voluntários/pacientes, talvez tivessem se percebido do fato”, retorquiu o pesquisador do Instituto Phaneros. “Além da injustiça epistêmica com os indígenas, existe a injustiça epistêmica com os voluntários/pacientes, que também discutimos brevemente no artigo.”

Schenberg tem vários trabalhos publicados que se encaixariam no paradigma biomédico agora em sua mira. Seria seu artigo com Gerber uma autocrítica sobre a atividade pregressa?

“Sempre fui crítico de certas limitações biomédicas e foi somente com muito esforço que consegui fazer meu pós-doc sem, por exemplo, usar um grupo placebo, apesar de a maioria dos colegas insistirem que assim eu deveria fazer, caso contrário ‘não seria científico’…”.

“No fundo, o argumento é circular, usando a biomedicina como critério último para dar respostas à crítica à biomedicina”, contesta Bia Labate. “O texto não resolve o que se propõe a resolver, mas aprofunda o gap [desvão] entre epistemologias originárias e biomédicas ao advogar por novas maneiras de produzir biomedicina a partir de critérios de validação… biomédicos.”