Arquivo mensal: março 2023

Corte internacional decidirá se países podem ser culpados por não combater crise climática (Folha de S.Paulo)

www1.folha.uol.com.br

Decisão é considerada histórica por poder abrir caminho para mais processos contra governos

Camila Hodgson

29 de março de 2023


A Corte Internacional de Justiça (CIJ) avaliará as obrigações legais dos Estados de proteger as gerações atuais e futuras das mudanças climáticas, depois que os países apoiaram uma resolução na ONU.

A opinião consultiva da CIJ, o principal órgão jurídico da ONU, pode aumentar o risco de litígio para os países que não cumprirem as leis e tratados internacionais existentes, ao mesmo tempo em que orienta os governos sobre o que devem fazer para defender os direitos humanos e o meio ambiente dos danos climáticos.

Os países aprovaram a resolução por consenso sem votação, após uma campanha de anos liderada por Vanuatu, nação insular do Pacífico que corre risco devido à elevação do nível do mar. Mais de cem países copatrocinaram a resolução, mas não os Estados Unidos e a China, os dois maiores emissores anuais do mundo.

Delta Merner, cientista chefe do Polo Científico para Litígio Climático da União de Cientistas Preocupados, disse que a decisão de quarta-feira (29) na Assembleia Geral da ONU marcou “um momento histórico para a justiça climática internacional”.

A CIJ, que pode levar um ano ou mais para entregar suas conclusões, “alteraria a forma como pensamos sobre as responsabilidades pelas emissões e a prestação de contas, incluindo a responsabilidade corporativa”, e “reforçaria” as justificativas legais para “milhares de casos de litígio climático atualmente arquivados“, acrescentou ela.

Dirigindo-se à ONU, o secretário-geral António Guterres disse que os pareceres da CIJ têm “uma importância tremenda e poderão ter um impacto duradouro na ordem jurídica internacional”, embora não sejam juridicamente vinculantes.

O apoio ao que começou como uma iniciativa liderada por estudantes de Vanuatu cresceu no ano passado, pois muitos países sofreram eventos climáticos extremos devastadores. Com as emissões permanecendo teimosamente altas, os principais cientistas climáticos do mundo alertaram recentemente que as temperaturas médias provavelmente atingirão em breve 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.

Embora ativistas tenham recorrido aos tribunais para forçar governos e empresas a efetuarem cortes mais rápidos nas emissões, autoridades disseram que o parecer da CIJ não foi visto como um caminho para novos processos, mas uma forma de dar aos governos maior clareza sobre suas responsabilidades.

Ralph Regenvanu, ministro da Mudança Climática de Vanuatu, disse que a iniciativa “não foi dirigida a nenhum estado [individual]”, nem teve “a intenção de culpar, envergonhar ou buscar qualquer julgamento”.

No entanto, especialistas disseram que ela poderia afetar os processos climáticos mais diretamente. Lavanya Rajamani, professora de direito ambiental internacional da Universidade de Oxford, que apoiou a iniciativa de Vanuatu, disse que as descobertas poderiam “apoiar litígios climáticos nacionais e regionais” ao identificar “um padrão ou referência para o que se espera dos estados”.

A decisão de quarta-feira ocorre meses depois que uma coalizão de pequenos países insulares, incluindo Vanuatu e Antígua e Barbuda, pediu a outro órgão intergovernamental uma opinião sobre as obrigações legais dos países de proteger os ambientes oceânicos das mudanças climáticas.

As conclusões do Tribunal Internacional do Direito do Mar devem ser entregues em 2024, antes que a CIJ conclua seu trabalho.

Payam Akhavan, advogado que apoia a iniciativa dos oceanos, disse que a opinião do tribunal pode resultar em contestações legais contra os países, mas um resultado “mais importante” seria usá-la para pressionar os grandes poluidores nas cúpulas climáticas da COP e “colocar alguns dentes no Acordo de Paris”.

O trabalho da CIJ incluirá um foco particular na vulnerabilidade das pequenas nações insulares às mudanças climáticas. Na cúpula COP27, no ano passado, os países concordaram com a criação de um fundo de perdas e danos para ajudar os países mais vulneráveis.

Regenvanu disse que o parecer da CIJ pode ter “implicações” para a criação do fundo.

Também nesta quarta, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos realizou uma audiência em um caso centrado em saber se a Suíça deve fazer mais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, de modo a proteger os direitos de seus cidadãos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Vatican rejects ‘doctrine of discovery’ used to justify colonial rule (Washington Post)

washingtonpost.com

Niha Masih

March 31, 2023

The Vatican formally repudiated the “Doctrine of Discovery” that legitimized the colonial-era seizure of Native lands. (Gregorio Borgia/AP)

Using 15th-century papal decrees, European colonial powers captured and claimed Indigenous land in the Americas and elsewhere. Now, in a significant move centuries later, the Vatican on Thursday rejected the contentious “Doctrine of Discovery,” addressing a long-standing demand led by Indigenous groups in Canada.

The church acknowledged in a statement that these papal bulls “did not adequately reflectthe equal dignity and rights of indigenous peoples,” and said that the doctrine is not part of the teaching of the Catholic Church.

Indigenous groups have argued that European explorers used the principle of discovery — which was based on the presumed superiority of European Christians — to legally and morally justify the subjugation and exploitation Indigenous communities, and to rule over them.

The Vatican statement also recognized that acts of violence were committed against Indigenous communities by colonial settlers, and asked for forgiveness for “the terrible effects of the assimilation policies and the pain” they experienced. The doctrine of discovery was previously rejected by several faith communities in the United States and Canada.

The Canadian Minister for Justice David Lametti credited the Vatican’s declaration to the hard work of Indigenous communities. “A doctrine that should have never existed. This is another step forward,” he said in a tweet.

The latest move follows the reconciliation that Pope Francis sought in Canada during his visit last year, when he apologized for the role Christians played in the tragic history of its residential school systems, many of which were run by the Catholic Church in the 19th and 20th centuries.

Indigenous children in Canada were forcibly removed from their families to integrate them into a Euro-Christian society, where they had to give up their language and culture; many were sexually abused. Thousands of children died at these schools and their unmarked graves continue to be discovered.

During his trip last year, Francis was confronted by protesters holding banners calling on him to rescind the discovery doctrine.

The announcement this week was greeted by Indigenous advocates. The news was “wonderful,” Phil Fontaine, a former national chief of the Assembly of First Nations in Canada, told the Associated Press.

“The church has done one thing, as it said it would do, for the Holy Father,” said Fontaine, who was part of the First Nations delegation that met with Francis.“Now the ball is in the court of governments, the United States and in Canada, but particularly in the United States where the doctrine is embedded in the law.”

In a landmark 1823 case, U.S. Supreme Court Chief Justice John Marshall invoked the papal discovery doctrine to rule that Indigenous people only had rights of occupancy and not ownership. This jurisprudence on Native American lands has persisted through the years and was referred to as recently as 2005.

A New York court, in the case of City of Sherrill v. Oneida Nation, relied on the earlier acceptance of the discovery doctrine by courts. Those rulings inferred that land titles were vested with European colonists, and later, the U.S. government.

In recent years, the movement to reclaim Native American lands has grown in the United States. In January 2022, 523 acres of redwood forest in Mendocino County, Calif., were transferred to the InterTribal Sinkyone Wilderness Council and, in April, the Rappahannock Tribe reacquired 460 acres of ancestral land in Virginia after 350 years.

Most Native American lands are trust lands, the U.S. government says — lands where the title is held by the federal government but the beneficial interests are with the tribes.

TheUnited Nations said in 2012 that international law demands that governments rectify the wrongs caused by such colonial doctrines, “including the violation of the land rights of indigenous peoples, through law and policy reform.”

Aceito a expressão, mas racismo não é estrutural no Brasil, diz Muniz Sodré (Folha de S.Paulo)

Artigo original

Em novo livro, sociólogo diz que falta base científica ao conceito e propõe nova radiografia da discriminação racial

    18.mar.2023 às 23h00

    MAURÍCIO MEIRELES, repórter especial

    [RESUMO] Em novo livro, Muniz Sodré contesta o conceito de racismo estrutural, que a seu ver carece de base científica. Embora não se oponha ao uso da expressão, o sociólogo e colunista da Folha afirma que a discriminação racial no Brasil é difícil de combater por ser institucional e intersubjetiva, tendo como marca a negação do preconceito, e que teria se reconfigurado depois da Abolição com as ideias fascistas europeias. Sodré defende ainda que o pensamento da aproximação, manifestado em algumas situações brasileiras, traz oportunidade de combater o racismo.

    Muniz Sodré é um intelectual de luta. Faixa-preta de caratê, continua a praticar o esporte aos 81 anos. A idade só o obrigou a deixar para trás a capoeira, que ele treinou com mestre Bimba, um dos grandes capoeiristas do Brasil.

    Professor emérito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e colunista da Folha, ele é um dos mais influentes pesquisadores da comunicação no Brasil. Também é um dos obás de Xangô, espécie de ministros do Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais antigos terreiros de candomblé de Salvador.

    O sociólogo e colunista da Folha Muniz Sodré em seu apartamento no bairro Cosme Velho, no Rio – Eduardo Anizelli/ Folhapress

    Além de livros publicados sobre a mídia, Sodré também publicou obras acerca da cultura brasileira, em especial a cultura negra. Em seu novo lançamento, “O Fascismo da Cor” (Vozes), ele traça uma radiografia da discriminação racial no Brasil, construindo o argumento de que, passadas a Abolição e a Proclamação da República, uma outra forma de racismo se estabeleceu no país.

    Para o pesquisador, essa nova configuração tem laços com as ideias fascistas surgidas na Europa e com o eugenismo associado a elas. Um dos divulgadores desse discurso no país, lembra, era o escritor Monteiro Lobato.

    Além desse diagnóstico, Sodré dedica parte significativa do livro a contestar o conceito de racismo estrutural, tal como desenvolvido por Silvio Almeida, agora ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. “Se fosse estrutural, já teria sido derrotado. O movimento negro é o movimento mais antigo da sociedade brasileira”, diz o autor, que propõe no lugar o conceito de “forma social escravista”.

    Em entrevista à Folha, Sodré analisa o perfil do racismo à brasileira e explica os motivos pelos quais discorda de Silvio Almeida. Ele também defende que as rodas de capoeira e os candomblés podem oferecer uma chave de saída para a discriminação racial.

    Na primeira metade do seu livro, o sr. contesta o conceito de racismo estrutural, hoje muito popular. Por que considera essa definição insuficiente para explicar o racismo no Brasil? 

    O conceito de estrutura é um conceito complexo. Primeiro, tenho que advertir que não tenho nada contra falar em racismo estrutural, porque acho que, do ponto de vista político, é bom, é fácil. Dá um ancoramento para a ideia de racismo aqui no Brasil.

    Mas eu digo que ele não é estrutural. Parto de coisas simples, como a frase do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, quando ele disse que, no Brasil, as estruturas são feitas para não funcionar. Ele está falando da estrutura jurídica, da estrutura econômica, e é verdade. As estruturas aqui são feitas para não funcionar. Por que a única a funcionar seria o racismo?

    Acho que o racismo funciona exatamente porque ele não é estrutural. Minha visão é que o racismo que existia no Brasil estava consolidado e ligado à escravatura. Portanto, a estrutura escravista existia. Há um livro do historiador Jacob Gorender em que ele mostra a estrutura existente na escravidão. Outros ensaístas, como Alberto Torres, mostram que era uma estrutura que funcionava.

    O Brasil se sustentou na escravidão, foi ela que fez a acumulação primitiva [de capital] aqui e foi a coisa mais bem-organizada neste país. Mas isso acabou com a Lei Áurea. Ao contrário do que acham alguns amigos meus escritores negros, a Abolição não foi uma farsa. Ela efetivamente acabou com a sociedade escravista e, portanto, acabou com a estrutura escravista, mas não acabou com o racismo. São duas coisas diferentes.

    Antes da Abolição, não era necessário um racismo atuante. Quatro quintos da população que trabalhavam como escravos eram torturados no Império de dom Pedro 2º. Mesmo assim, houve naquele momento uma classe média negra, uma intelectualidade negra que emergiu. Grandes figuras da literatura e das artes eram negras.

    O primeiro embaixador plenipotenciário do Brasil na Inglaterra, Francisco Jê Acaiaba Montezuma, era um negão baiano muito brilhante. Os artistas negros de Pernambuco formavam uma classe média com quase 2.000 pessoas. Só ouvimos falar deles hoje depois de livros focados nisso porque, como dizia Mário de Andrade, foi uma aurora que não deu dia. Quando veio a Abolição, se esqueceu de tudo isso. A cultura negra passou a ser a cultura popular, reconhecida muito tempo depois.

    Desenho de Angelo Agostini publicados na "Revista Ilustrada", que retrata a brutalidade do cotidiano escravocrata
    Desenho de Angelo Agostini publicados na “Revista Ilustrada”, que retrata a brutalidade do cotidiano escravocrata. Acervo Biblioteca Mário de Andrade
    Desenho de Angelo Agostini publicados na "Revista Ilustrada", que retrata a brutalidade do cotidiano escravocrata
    Desenho de Angelo Agostini publicados na “Revista Ilustrada”, que retrata a brutalidade do cotidiano escravocrata. Acervo Biblioteca Mário de Andrade

    Se o racismo brasileiro não é estrutural, qual seria a característica dele? 

    Ele é institucional. Defino no livro o que é estrutura. É um termo muito preciso na sociologia e na filosofia. O conceito pressupõe uma totalidade fechada de elementos interdependentes. Você pode falar, por exemplo, da estrutura jurídica: a doutrina do direito se reflete nos tribunais, no processo penal, nas leis. Isso é estrutural.

    Se dissermos que o racismo é uma estrutura, temos que mostrar qual é a interdependência dos elementos. Aí você diria que, quando se vai selecionar alguém para um emprego, só brancos são selecionados. Mas a estrutura é formal, tem uma forma escrita ou uma forma de costumes que é reconhecida por todos. A discriminação racial no Brasil não é reconhecida por ninguém. Nenhum Estado ou governante se diz racista. Às vezes, os racistas mais atrozes diziam que não eram racistas.

    A grande dificuldade do combate ao racismo no Brasil é que, aqui, a negação funciona. O grande mecanismo do racismo é a negação.

    Li o livro do Silvio Almeida (“Racismo Estrutural”), e ele não diz o que é uma estrutura. O racismo foi estrutural nos Estados Unidos, na África do Sul…

    Então, o sr. defende que, para ser estrutural, o racismo precisa estar explicitamente amparado pela burocracia do Estado. 

    Exatamente. Para mim, o racismo é institucional e intersubjetivo. Por isso ele é muito difícil de combater. Você não o pega. Se o racismo brasileiro fosse estrutural, já teríamos acabado com ele. O movimento negro é o movimento mais antigo da sociedade brasileira, ele vem desde a Abolição.

    Silvio Almeida fala de instituições que funcionam como uma correia de transmissão do racismo. 

    Sou obrigado a me perguntar: correia de transmissão a partir de onde? Quando Lênin diz que os jornais deveriam ser a correia de transmissão do partido para as massas trabalhadoras, você tem de um lado o partido, de outro, as massas, e no meio, o jornalismo.

    Sem dúvida, as instituições são uma correia de transmissão, mas não de uma estrutura. Onde é que está essa estrutura? No Estado? Mas o Estado não tem leis racistas, elas acabaram com a Abolição. Estão na economia? Não conheço leis econômicas racistas, conheço discriminações econômicas, mas não leis.

    Manifestantes pintam frase #vidaspretasimportam na avenida Paulista. Discriminação racial é o ato de discriminar alguém por conta de sua raça, origem étnica, cor e/ou condição que apresente diferença, com demonstração de suposta superioridade sobre a vítima e com o objetivo de anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou o exercício em igualdade de condições, de direitos e liberdades fundamentais no campo político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada
    Manifestantes pintam frase #vidaspretasimportam na avenida Paulista. Discriminação racial é o ato de discriminar alguém por conta de sua raça, origem étnica, cor e/ou condição que apresente diferença, com demonstração de suposta superioridade sobre a vítima e com o objetivo de anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou o exercício em igualdade de condições, de direitos e liberdades fundamentais no campo político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada. Folhapress/Bruno Santos – 21.nov.20
    Ato pelo Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, na avenida Paulista. RACISMO ou INJÚRIA RACIAL: A principal diferença entre o crime de injúria racial e racismo é a quem é dirigida a ofensa
    Ato pelo Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, na avenida Paulista. RACISMO ou INJÚRIA RACIAL: A principal diferença entre o crime de injúria racial e racismo é a quem é dirigida a ofensa . Folhapress/Jardiel Carvalho – 13.mai.21

    sistema tributário brasileiro, que pesa mais sobre os pobres, em sua maioria pretos e pardos, não tem um componente racial implícito? 

    Não tem uma implicação estritamente racial, são os pobres que pagam mais impostos. Entre eles, você tem claros e escuros —ainda que, sem dúvida, os salários mais baixos sejam dos negros. Acho importante que se estudem esses aspectos embutidos na economia, nas instituições, na remuneração da força de trabalho. Com esses dados, é possível intervir no debate público, tomar um partido antirracista.

    Não sou contra a expressão racismo estrutural, sou contra a cientificidade dela.

    O sr. disse que, depois da Abolição e da Proclamação da República, surgiu uma nova forma de racismo. Qual é o seu perfil? 

    O segundo ponto do livro é mostrar a diferença entre sociedade e forma social. Você não vai encontrar na literatura sociológica brasileira essa distinção, mas ela é feita por mim. A sociedade implica uma estrutura: ela tem uma interconexão de seus elementos, ou seja, o modo de produção está articulado com o sistema jurídico, com a política… Toda a visão marxista sobre a sociedade, para mim, é coerente. Nesse ponto, sou bem marxista.

    Mas a forma social é outra coisa. Ela é uma imagem que a sociedade projeta de si mesma, que ela tem ou quer ter de si. Isso nós temos individualmente: você tem uma imagem de si mesmo e quer que os outros reconheçam você como uma imagem válida.

    Isso também existe em termos coletivos. A imagem que a sociedade tem de si é gerida pelo Estado e pelas classes dirigentes. Ela pode ser oficial, mas também subterrânea, uma imagem oculta que existe e lhe determina. Isso eu chamei de forma social escravista.

    Aluna da Emef Ruben Bento Alves, em Caxias do Sul (RS), Sophya Domingues Marcos, 13, tem na família da mãe a afrodescendência
    Aluna da Emef Ruben Bento Alves, em Caxias do Sul (RS), Sophya Domingues Marcos, 13, tem na família da mãe a afrodescendência . /Carlos Macedo/Folhapress

    O que seria essa forma social escravista? 

    Ela é aparência, mas isso não quer dizer que seja uma ilusão. As aparências existem e continuam a existir por ter força, e é um erro querer lidar só com o que é material, concreto. Na forma social, falo de uma aparência que a sociedade quer ter sobre si mesma: as classes dirigentes querem se ver como brancas, europeias e cristãs, sem ter nada a ver com negros.

    Esse querer ver-se é a forma social. Dentro dessa imagem, se desenvolvem os mecanismos linguísticos, psicossociais, de subjetividade e de comunicação. Portanto, a aparência cria formas.

    Ou seja, acabou a escravidão, mas nasceu a forma social escravista. Ela mantém a escravidão como ideia e como discriminação institucional. Essa forma não é captada apenas objetivamente, não está em números. Portanto, não é pega pela sociologia quantitativa. São também as percepções, os afetos. A forma social é um conceito que vem da sociologia alemã e está na sociologia francesa contemporânea.

    O sr. dá um papel de destaque ao patrimonialismo nisso que chama de forma social. 

    A forma escravista está ancorada nesse modo de controle social que é o patrimonialismo, ou seja, no poder exercido por grandes famílias, pelo compadrio, pelo afilhadismo. Esse parentesco dominante no Brasil é branco e reproduz a forma social racista. Quis mostrar como essa forma é tão ampla, tão invasiva, tão maior que a estrutura que ela pode atingir o próprio preto. O preto pode se adequar a ela e ser racista contra pretos também.

    Vivemos essa forma no cotidiano. Podemos vê-la em explosões súbitas de fúria e agressões. No Maranhão, o cara estava passando com a mulher, veem um homem tentando abrir o próprio carro e acham que ele está tentando roubar o veículo. Aí os dois descem a porrada no homem. Quando foi jogado no chão, a mulher grita para o marido chutar a cabeça da vítima. O carro era dele. Isso é diário no Brasil.

    Kaique do Nascimento Mendes (de camisa da seleção) e seu advogado, Ewerton Carvalho
    Kaique do Nascimento Mendes (de camisa da seleção) e seu advogado, Ewerton Carvalho. Folhapress/Marlene Bergamo

    O sr. diz que essa nova manifestação do racismo está ligada ao fascismo europeu. Qual é a relação entre os dois fenômenos? 

    Diferentemente do período da escravidão, o racismo pós-abolicionista é plenamente doutrinário, ou seja, ele incorpora ideias europeias sobre o racismo. Essas ideias vêm principalmente da doutrina do eugenismo.

    Isso não coincide, em termos de data, só com o período pós-Abolição, mas, nesse momento no mundo, o eugenismo faz parte de uma atmosfera fascista. O que faz com que o fascismo se expanda para Portugal, Espanha e outros países é a questão da preservação do cristianismo e da pureza do homem europeu. É o nacionalismo extremado do homem branco.

    O racismo ocidental vem da Igreja Católica e é primeiro antissemita. O modelo do racismo [contra os negros] é o antissemitismo: as primeiras vítimas são os judeus, e os primeiros carrascos são os padres. Depois, isso se transfere para o negro. Os escritos do fascismo incorporam a ideia de eugenia e isso chega aqui muito tempo depois da Abolição, através de igrejas, mas principalmente por meio de intelectuais —Monteiro Lobato é o grande modelo.

    O fascismo é o espírito da época do racismo brasileiro. É dele que conflui, para as classes dirigentes brasileiras, a discriminação do negro, que já não era mais jurídica nem política.

    No livro, o sr. aponta Nilo Peçanha, que virou presidente em 1909 e era negro, como um caso a ser estudado. O que a história dele diz sobre o racismo à brasileira? 

    Examinaram pouco essa história. Nilo Peçanha veio de uma família pobre em Campos dos Goytacazes (RJ), a mãe era meio clarinha e o pai era preto, eram agricultores. Ele se tornou um político brilhante e abolicionista, mas não queria ser reconhecido como negro. Ele se maquiava para clarear a pele antes de ser fotografado, e as fotos eram retocadas.

    É o primeiro e único presidente negro do Brasil. É uma figura importante por mostrar esse mascaramento, ou seja, a tentativa de não parecer negro, que foi típico do mulato aqui no Brasil. A imprensa o ridicularizava. Faço uma análise linguístico-filosófica do discurso racial, mostrando como ele é atravessado pela ambiguidade. Quis mostrar como há jogos de linguagem no discurso racista, para mostrar como a forma social escravista opera.

    Nilo Peçanha lê jornais

    Retrato de Nilo Peçanha – Reprodução

    Há algumas semanas, participantes do Big Brother Brasil expressaram medo de um colega por ele seguir uma religião afro-brasileira. Qual o papel do medo na consolidação do racismo no país? 

    O medo é um elemento importante nas relações hierárquicas. Torturavam-se escravos para infligir medo. Uma tortura podia começar porque a sinhá achava que o negro olhou atravessado para ela.

    Mas o medo é uma faca de dois fios. O torturador tem medo também. Temer os negros foi algo que se intensificou com a Revolta dos Malês, em 1835, mas já vinha do Haiti e de Cuba e se disseminou entre as classes brasileiras.

    Mas como esse medo de revoltas negras nas Américas se transforma no medo de manifestações culturais? 

    O racismo cultural é o racismo do sentido que o outro produz. Junto com ter medo físico do negro vem, principalmente depois da Abolição, ter medo da cultura afro, do feitiço, que era um ponto de repulsa e atração, porque a classe média branca sempre se consultou nos cultos afros.

    Como você sabe, eu sou de candomblé, da hierarquia do Ilê Axé Opô Afonjá. Conheci ao longo da vida professores razoáveis, ateus, que têm medo do pertencimento ao candomblé. A pessoa não acredita em nada, mas tem medo. Isso é o preconceito.

    Ao mesmo tempo que há esse preconceito, as artes brasileiras promoveram uma celebração da cultura afro-brasileira, como na obra de tropicalistas ou de Jorge Amado. Como o racismo brasileiro comporta essa contradição? 

    Porque ele não é estrutural [risos] e essa celebração não foi insurrecional.

    Conheci bem o Jorge Amado. Ele dizia que não acreditava em nada, mas era do Axé Opô Afonjá como eu. Não viajava de avião sem que uma mãe de santo fizesse um jogo para ele, porque morria de medo. Quando me confirmei como obá de Xangô, Caymmi entrou comigo. Quando eu estava na Bahia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, esse pessoal não era de candomblé. Hoje, Gil também é obá de Xangô.

    Quando digo que essas celebrações na cultura brasileira não representam uma insurreição, quero dizer que não são algo contra o Estado, é mais uma posição existencial. Mas celebrar o candomblé é celebrar aquilo que a cultura afro traz de mais precioso, o apego à vida.

    Se o catolicismo é a religião do amor universal irradiado de Cristo, o candomblé é a alegria, uma alegria litúrgica. Quem é baiano é atravessado por essa liturgia. Jorge Amado foi o grande romancista disso. Ele inventa uma Bahia, a língua da Bahia para fora é o jorge-amadês. Todas aquelas histórias são e não são inventadas.

    Filhas de santo com trajes rituais e colares de conta nas cores de seus orixás, no terreiro Ilê Axé Oyó Ibessi, de pai Gegeo, no bairro Faceira, em Cachoeira, Recôncavo Baiano 
    Filhas de santo com trajes rituais e colares de conta nas cores de seus orixás, no terreiro Ilê Axé Oyó Ibessi, de pai Gegeo, no bairro Faceira, em Cachoeira, Recôncavo Baiano . Raul Spinassé/Folhapress/
    Filha de santo na subida que dá acesso ao terreiro Ilê Axé Oyó Ibessi em Cachoeira, no Recôncavo Baiano; ao fundo, o Rio Paraguaçu e, na outra margem, a cidade de São Félix
    Filha de santo na subida que dá acesso ao terreiro Ilê Axé Oyó Ibessi em Cachoeira, no Recôncavo Baiano; ao fundo, o Rio Paraguaçu e, na outra margem, a cidade de São Félix . Raul Spinassé/Folhapress

    Abdias do Nascimento via um racismo implícito na obra de Jorge Amado. 

    Jorge Amado é o ideólogo do povo nacional, e esse povo nacional era um povo mestiço, os baianos. Ele vai encontrar o modelo dessa mestiçagem no candomblé, em que essa mestiçagem não é só ideológica, é cultural também.

    No Axé Opô Afonjá, eu já vi padre bater cabeça, já vi judeu bater cabeça. É isso que sempre atraiu Jorge Amado. Quando Jean-Paul Sartre esteve na Bahia, passou o dia inteiro no Axé Opô Afonjá, sentado com mãe Senhora.

    No livro, o sr. tenta destacar as particularidades do racismo no Brasil, traçando a diferença em relação aos Estados Unidos. Nos últimos anos, alguns intelectuais têm criticado o que veem como uma influência excessiva do pensamento racial americano no debate público brasileiro. Como avalia essa questão? 

    Os negros americanos são diferentes. Acho que nossas condições de luta e opressão são bastante diferentes e o que é igual é a cultura negra. O samba nasceu na Praça 11 nas mesmas circunstâncias que o jazz nasceu na praça Congo, em Nova Orleans. Nasceu do candomblé, com os baianos que civilizaram o Rio de Janeiro.

    Falo da cultura como a vitalidade do povo. O que é forte nos Estados Unidos vem dos negros, nada é mais forte que a música, que o jazz. Isso cria uma ponte, é como se o ritmo viajasse pelos Estados Unidos, pelo Caribe, por Cuba, e essa ponte não está sob a égide do Estado, é também uma forma social.

    Em um mundo com trocas possibilitadas pelas tecnologias da informação, seria necessário pensar o racismo com um recorte global em vez de apenas nacional? 

    O pensamento nacional, se for forte, vai ser global. O pensamento global não atinge o núcleo do racismo, que está em conformações nacionais. O combate aqui no país tem que ser pensado em termos brasileiros para ser suficientemente forte e se irradiar transnacionalmente. É algo que o Brasil pode oferecer ao mundo, uma chave de saída do racismo.

    Como? 

    O principal modo de combater o racismo não é pensar intelectualmente a diferença. Não dou muita atenção a toda essa coisa de proteger linguisticamente a diferença, por exemplo. A filosofia da diferença é a grande filosofia moderna, que fala da necessidade de aceitar o diferente. É um pensamento avançado e global.

    Mas, para mim, o principal modo de combater o racismo é o pensamento da aproximação, que é mais completo. É o morar junto, a vizinhança na escola, no trabalho, nas relações amorosas. A aproximação está em qualquer unidade que se possa construir, e o racismo se exacerba quando os diferentes estão próximos.

    O Brasil já é um país que tem as oportunidades de aproximação pela própria heterogeneidade da população. Temos que pensar as diferentes formas de existir no Brasil e aprender com elas. Onde você não encontra racismo aqui? No Axé Opô Afonjá, no candomblé de Menininha do Gantois, no terreiro da Casa Branca, nas rodas de capoeira. Será que não pode vir daí uma lição?

    Não é que as pessoas sejam perfeitas, mas há modos de vida ali que são antirracistas. São casos pequenos, mas é do pequeno que você começa a pensar o grande. Foi assim que Davi matou Golias.

    O FASCISMO DA COR: UMA RADIOGRAFIA DO RACISMO NACIONAL
    • Preço: R$ 54,90 (280 págs.); R$ 41 (ebook)
    • Autor: Muniz Sodré
    • Editora: Vozes

    Solenidade marca entrega de título de doutor honoris causa da Unifesp ao Yanomami Davi Kopenawa (Unifesp)

    Texto original

    Quinta, 16 Março 2023 16:34

    Cerimônia que contou com presenças de lideranças indígenas e de entidades acadêmicas destacou necessária união e encontro de saberes para a difusão do conhecimento e garantia da dignidade humana

    Por Denis Dana
    Fotos: Alex Reipert


    Mesa de abertura da cerimônia de outorga do título de doutor honoris causa a Davi Kopenawa
    Mesa de abertura da cerimônia de outorga do título de doutor honoris causa a Davi Kopenawa

    Em cerimônia realizada na última quarta, 15 de março, que contou com presenças de lideranças indígenas e acadêmicas, além de representante do governo federal, por meio do Ministério dos Povos Indígenas, o Yanomami Davi Kopenawa, pensador, líder político e xamã de seu povo recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Inédita na universidade, a concessão do grau teve processo iniciado em 2021, após iniciativa da Cátedra Kaapora de Conhecimentos Tradicionais e Não Hegemônicos, da Cátedra Sustentabilidade e Visões de Futuro e do Projeto Xingu, com centenas de assinaturas de apoio de docentes, técnicos(as) e estudantes em reconhecimento ao trabalho e luta de Kopenawa pela defesa dos povos originários, do meio ambiente, da diversidade cultural e dos direitos humanos.

    Odair Aguiar Junior, diretor acadêmico do Campus Baixada Santista e presidente da comissão de Títulos Honoríficos da universidade
    Odair Aguiar Junior, diretor acadêmico do Campus Baixada Santista e presidente da comissão de Títulos Honoríficos da universidade

    A mesa de honra da sessão solene foi composta por Raiane Assumpção, reitora pro tempore e presidenta do Conselho Universitário (Consu), Juma Xipaia, secretária de Articulações e Promoção dos Direitos Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, Odair Aguiar Junior, diretor acadêmico do Campus Baixada Santista, membro do Consu e presidente da comissão de Títulos Honoríficos da universidade, Renzo Taddei, docente do Instituto do Mar (IMar/Unifesp) – Campus Baixada Santista e membro da Cátedra Sustentabilidade e Visões de Futuro, e Ilana Seltzer Goldstein, docente da Escola de Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos e membro da Cátedra Kaapora de Conhecimentos Tradicionais e Não Hegemônicos.

    Ao abrir os discursos, Odair Aguiar celebrou a ocasião, que marcou o encerramento de todo o rito realizado na universidade, no processo de proposição do título honorífico para Davi Kopenawa, o primeiro da Unifesp. “Este é um momento histórico e de muita celebração para nós, não só como instituição, mas também como país, ao outorgar como doutor honoris causa essa grande liderança nacional que é Kopenawa”.

    Ilana Seltzer Goldstein, docente da Escola de Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos e membro da Cátedra Kaapora de Conhecimentos Tradicionais e Não Hegemônicos
    Ilana Seltzer Goldstein, docente da Escola de Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos e membro da Cátedra Kaapora de Conhecimentos Tradicionais e Não Hegemônicos

    Responsável por apresentar o currículo de Davi Kopenawa ao público que acompanhava a sessão solene presencial e virtualmente, Ilana Goldstein teve como desafio resumir toda a trajetória de vida do agraciado. Ao construir uma linha do tempo, Ilana trouxe os principais passos de Kopenawa, desde seu nascimento, passando pelas dificuldades na infância e sua adolescência na cidade, onde aprendeu e desenvolveu o português, tão importante para lhe permitir a tradução entre mundos. A apresentação do currículo também destacou a construção de sua família, o desenvolvimento de atividades xamânicas e sua inserção nas mobilizações e lutas em defesa dos povos originários, bem como no universo da literatura e de outras manifestações artísticas, sempre com o objetivo de conscientização e educação para um planeta mais tolerante e mais saudável.


    Marcos Antonio Pellegrini, docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR) 

    cineasta Edmar Tokorino Yanomami
    Na primeira imagem, Marcos Antonio Pellegrini, docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR) proferindo seu discurso. Já segunda imagem, o cineasta Edmar Tokorino Yanomami (de vermelho) fala sobre o filme Uma Mulher Pensando, exibido durante a cerimônia


    Ao término da apresentação, a docente fez um agradecimento especial ao mais novo doutor da Unifesp: “neste encerramento do processo de titulação, diplomamos aqui um homem único e singular, celebrando sua vida e obra, de forma que possamos continuar aprendendo contigo outros modos de pensar a relação entre os seres humanos e os não humanos e de questionar os valores que nos movem. Muito obrigado Davi Kopenawa”.

    Reconhecimento mais que necessário

    Renzo Taddei docente do Instituto do Mar (IMar/Unifesp) - Campus Baixada Santista e membro da Cátedra Sustentabilidade e Visões de Futuro, utiliza o púlpito para destacar o trabalho de Kopenawa
    Renzo Taddei docente do Instituto do Mar (IMar/Unifesp) – Campus Baixada Santista e membro da Cátedra Sustentabilidade e Visões de Futuro, utiliza o púlpito para destacar o trabalho de Kopenawa

    Na sequência da cerimônia, ao ser convidado para um breve discurso, Marcos Antonio Pellegrini, docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR), médico formado pela Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo e integrante do Projeto Xingu, destacou o necessário reconhecimento do agraciado. “Esse título é um reconhecimento à sua coragem, sua luta e todo o seu conhecimento relacionado aos povos indígenas que você representa. É uma grande alegria ver o reconhecimento autêntico e necessário do conhecimento indígena e seu modo diferente de ver o mundo. Parabenizo também a Unifesp por esse reconhecimento”

    O reconhecimento foi novamente ressaltado durante o discurso panegírico, proferido por Renzo Taddei. Logo em suas primeiras palavras, Taddei referenciou que “a Unifesp está localizada justamente em território ancestral dos povos indígenas Guarani Mbya, Tupi-Guarani, Kaingang, Krenak e Terena, a quem possuímos dívidas históricas não saldadas de honra, gratidão e reparação”.

    Davi Kopenawa recebendo o título de doutor honoris causa pela Unifesp
    Davi Kopenawa recebendo o título de doutor honoris causa pela Unifesp

    “Este é um momento ímpar na história da Unifesp. É de beleza sublime o fato de que o primeiro título honorífico da universidade seja concedido a Davi Kopenawa. Contudo, façamos dessa celebração, um momento de reflexão e apoio à luta do agraciado, que vem em um contexto de violência hedionda sofrida pelo povo Yanomami”, disse Taddei.

    Além de celebrar a trajetória e feitos de Davi Kopenawa, o docente da Unifesp destacou em seu discurso panegírico as implicações mais importantes de sua grande obra literária, A Queda do Céu, e de seu pensamento para o fazer da ciência e para o mundo universitário.

    O discente Willian Jorge Pires 

    a secretária do Consu/Unifesp, Maristela Feldman
    Na primeira imagem, o discente Willian Jorge Pires da Silva lê um trecho do livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa. Na segunda imagem, a secretária do Consu/Unifesp, Maristela Feldman, faz a leitura do termo concessivo

    Após destacar a inclusão da sabedoria indígena em debates de coletividades de cientistas de alto nível mais diretamente ligadas ao combate à crise ambiental causada pela modernidade ocidental, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e a Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), ambos diretamente ligados à ONU e suas agências, Taddei finalizou sua fala novamente com destaque à importância do reconhecimento do trabalho de Kopenawa: “a concessão desse título honorífico é mais do que simplesmente uma declaração de apreciação de sua atuação e de suas ideias, é também uma declaração de que somos seus aliados”.

    Ritual contou com discursos impactantes

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    Davi Kopenawa e os membros da mesa de abertura da cerimônia acompanhando os discursos

    Davi Kopenawa passou por todo o ritual de concessão de título, incluindo a leitura e assinatura do ato concessivo do título de doutor honoris causa, a vestimenta doutoral, marcado pela colocação da beca com o auxílio de sua filha, Tuíra Kopenawa, o pronunciamento da concessão de grau, feito por Raiane Assumpção, e a entrega do diploma. Foram momentos de bastante atenção do público, bem como dos discursos que se seguiram, de maneira impactante.

    Ao representar o Ministério dos Povos Indígenas do Brasil e sua ministra Sonia Guajajara, Juma Xipaia afirmou “estar honrada em fazer parte desse momento tão importante de respeito da ciência e dos saberes indígenas. Não há uma única ciência, há inúmeros povos com suas ciências. Esse título da Unifesp apresenta ao mundo o reconhecimento de toda a ancestralidade e de todo o saber dos povos indígenas do Brasil representada por essa grande liderança que é Davi Kopenawa”.

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    Renzo Taddei docente do Instituto do Mar (IMar/Unifesp) – Campus Baixada Santista e membro da Cátedra Sustentabilidade e Visões de Futuro

    Em seu discurso, Juma fez um alerta para que a humanidade desperte para o que tem acontecido com o mundo. “Nossa luta nunca foi somente pelo povo indígena, algo isolado, é algo muito maior. Sempre foi por todos, pelo planeta e pela existência de todos nós. Temos que garantir para as nossas e para as próximas gerações o direito não somente de resistir, mas, principalmente, de existir”.

    “É preciso que esse exemplo de valorização e reconhecimento que a Unifesp dá seja multiplicado, não só com os povos indígenas, bem como com todos aqueles detentores de saberes que habitam nessa diversidade ainda existente no Brasil,o que faz nosso país tão lindo e com tanta riqueza”, destacou.

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    Juma Xipaia, secretária de Articulações e Promoção dos Direitos Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, discursando no evento

    Seu discurso foi seguido pelo do então mais novo doutor da Unifesp, Davi Kopenawa, que logo em suas primeiras palavras agradeceu o título concedido pela universidade. “Estou muito contente com esse reconhecimento da universidade em ver a minha luta pela defesa dos Yanomami e de todos os povos indígenas do Brasil. Para mim, esse título representa mais uma flecha para seguir nessa luta”.

    Sem deixar de citar o horror vivido pela comunidade Yanomami nos últimos anos em decorrência do avanço do garimpo ilegal, Kopenawa também aproveitou o momento para alertar os povos não indígenas sobre o necessário cuidado com o planeta. “Hoje, com vocês da universidade, vejo que nós não estamos sozinhos. Nossa defesa é por todos. Somos um planeta só”. (Veja aqui a íntegra do discurso de Davi Kopenawa).

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    Raiane Assumpção, presidenta do Consu/Unifesp, durante seu discurso

    O discurso final ficou por conta da reitora pro tempore da Unifesp, Raiane Assumpção. Honrada por ter Davi Kopenawa como o primeiro doutor honoris causa da universidade, Raiane ressaltou o significado da sessão pelo ineditismo e também pela figura do agraciado, mas também por toda a responsabilidade de reafirmação do compromisso compartilhado com Kopenawa e suas causas no que diz respeito à defesa do planeta e da sociedade.

    “Há décadas a nossa instituição vem construindo vínculo com os povos indígenas, possibilitando assistência e produzindo conhecimento em conjunto, reiterando o compromisso da Unifesp com a formação na graduação, pela extensão e pela pesquisa e que não é no fazer por, mas no fazer com, numa produção de conhecimento que é feito com as pessoas”.

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    A presidenta do Consu/Unifesp assinando o termo de outorga do título de doutor honoris causa

    “Ao longo dos anos fomos construindo uma forma de encontro de saberes. Saberes científicos, tradicionais, populares, que são necessários para que a nossa sociedade caminhe mais e melhor. Que possamos seguir nesse rumo, construindo uma melhor forma de existência e de formação e uma contribuição para que nosso estado brasileiro tenha um desenvolvimento para a dignidade humana”, concluiu Raiane.

    Um pouco da arte de Kopenawa

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    Davi Kopenawa asssinando o termo de outorga do título de doutor honoris causa

    Durante a cerimônia de entrega do título honoris causa à Davi Kopenawa, o público pode acessar um pouco da obra do agraciado, com a leitura de trecho do livro A Queda do Céu, feita pelo discente Willian Jorge Pires da Silva, e com a exibição de um trecho do filme Uma Mulher Pensando, do cineasta Edmar Tokorino Yanomami, que, em suas palavras, “foi feito com o objetivo de incomodar e de servir como sinal de alerta e apoio para a luta em defesa da vida”.

    Autoridades presentes na sessão solene: Dácio Roberto Matheus, reitor da Universidade Federal do ABC (UFABC); Soraya Smaili, reitora da Unifesp gestão 2013 a 2021; Andrea Rabinovici, vice-reitora da Unifesp gestão 2020 e 2021; Rafael Alves Scarazzati, pró-reitor de Extensão do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), representando o reitor da instituição; Dan Levy, chefe de gabinete da Unifesp; Maria Beatriz de Souza Henriques, coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo; Carlos Papá, cineasta e líder espiritual do povo Guarani; Cristine Takuá, diretora do Instituto Maracá e educadora das Escolas Vivas; Zysman Neiman, coordenador da Cátedra Sustentabilidade e Visões de Futuro da Unifesp, Valéria Macedo, da coordenação colegiada da Cátedra Kaapora de Conhecimentos Tradicionais e Não Hegemônicos; Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu; Douglas Rodrigues, médico coordenador do Ambulatório de Saúde dos Povos Indígenas do Hospital São Paulo; Artionka Capiberibe, diretora do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena, Áurea Gil, coordenadora do Centro de Memória da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); Fernando Stickel, diretor-presidente da Fundação Stickel; Kelly Adriano de Oliveira, gerente adjunta de Ação Cultural do SESC São Paulo; Rubens Belfort Jr, professor emérito e membro titular da Academia Brasileira de Medicina; Marlon Alberto Weichert, Procurador Regional da República no Ministério Público Federal; Daniel Munduruku, diretor presidente do Instituto Uk´A; Tata Katuvanjesi, autoridade tradicional de matriz centro africana; Renato Sztutman, diretor do Centro Ameríndios da USP; Martin Grossman, diretor da Cátedra Olavo Setubal da USP; Ana Maria Gomes, docente da UFMG e coordenadora do Observatório Educacional Intercultural Indígena, Fernanda Pitta, curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP; Luísa Valentini, supervisora do Centro de Pesquisa e Referência do Museu das Culturas Indígenas, além de representante da liderança indígena Xokleng.

    Ingestão de plástico por humanos e animais modifica células, dizem cientistas (Folha de S.Paulo)

    www1.folha.uol.com.br

    Ingestão de plástico por humanos e animais modifica células, dizem cientistas

    Clive Cookson

    9 de março de 2023


    Novas evidências alarmantes estão surgindo sobre os danos potenciais causados pela poluição generalizada por plástico, com níveis significativos de partículas microscópicas da substância descobertas em muitos órgãos humanos e uma nova doença identificada em aves marinhas.

    As pessoas consomem hoje, em média, cerca de cinco gramas de microplásticos por semana, ingeridos em alimentos e bebidas e inalados ao respirar ar poluído, disse o professor Philip Demokritou, da Universidade Rutgers, na reunião anual da Associação Americana para o Progresso da Ciência, em Washington.

    “O que é realmente alarmante é que os microplásticos entram nas células e interferem nos núcleos, o que levanta preocupações sobre possíveis danos ao DNA”, disse ele. “Outro exemplo alarmante é que eles podem interferir na digestão e absorção de nutrientes importantes.”

    Separadamente, no último dia 3, cientistas do Museu de História Natural de Londres anunciaram a descoberta de uma nova doença em aves marinhas causada exclusivamente pela ingestão de plástico. Eles chamaram a condição de plasticose —uma doença fibrótica causada por pequenos pedaços de plástico que inflamam o trato digestivo. A inflamação persistente danifica os tecidos, que ficam marcados por cicatrizes e deformados.

    Estudando cagarras na ilha de Lord Howe, na Austrália, eles descobriram que o proventrículo —a primeira parte do estômago das aves— tinha cicatrizes generalizadas. As aves que ingeriram mais plástico tinham mais cicatrizes.

    “Embora esses pássaros possam parecer saudáveis por fora, eles não estão bem por dentro”, disse Alex Bond, curador do museu encarregado dos pássaros. “Este estudo é a primeira vez que o tecido do estômago é investigado dessa maneira e mostra que o consumo de plástico pode causar sérios danos ao sistema digestivo dessas aves.”

    As aves afetadas tornam-se mais vulneráveis a infecções e parasitas, enquanto perdem parte da capacidade de digerir alimentos e absorver vitaminas.

    Na reunião da associação científica, Luisa Campagnolo, da Universidade de Roma Tor Vergata, descreveu pesquisas recentes de cientistas italianos que encontraram minúsculas partículas de plástico de várias fontes em placentas humanas coletadas de seis mulheres com gravidez normal.

    Outro estudo identificou partículas de plástico “não apenas no tecido placentário, mas também no mecônio, as primeiras fezes do bebê, o que significa que as partículas podem atravessar a placenta e chegar ao feto”, disse Campagnolo.

    “Um grande número de diferentes tipos de partículas de plástico foi identificado”, acrescentou. “O mais abundante é o PVC, mas basicamente todos os outros tipos de plástico que fazem parte dos produtos de consumo diário estavam presentes.”

    Craig Bennett, executivo-chefe do grupo de conservação The Wildlife Trusts, do Reino Unido, disse que a pesquisa “ressalta meu medo de que estejamos testemunhando apenas o começo do problema do plástico. Nossos mares, rios e campos já estão inundados de poluição plástica. A pesquisa mostra como os humanos e a vida natural consomem microplásticos comendo, bebendo e respirando.”

    Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

    ‘A war society doesn’t see’: the Brazilian force driving out mining gangs from Indigenous lands (Guardian)

    amp.theguardian.com

    Tom Phillips

    Tue 28 Feb 2023 11.53 GMT


    Environmental special forces raid an illegal cassiterite mine near the Yanomami village of Xitei
    Environmental special forces raid an illegal cassiterite mine near the Yanomami village of Xitei. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    An elite unit is on a mission to expel the illegal miners who devastated Yanomami territory during Bolsonaro’s presidency

    Tom Phillips in the Yanomami Indigenous territory

    For the last four years Brazil’s rainforests bled. “They bled like never before,” said Felipe Finger as he prepared to venture into the jungle with his assault rifle to staunch the environmental carnage inflicted on the Amazon under the former far-right president Jair Bolsonaro.

    Moments later Finger, a mettlesome special forces commander for Brazil’s environmental protection agency, Ibama, was airborne in a single-engine helicopter, hurtling over the forest canopy towards the frontline of a ferocious war on nature and the Indigenous peoples who lived here long before Portuguese explorers arrived more than 500 years ago.

    Felipe Finger, a special forces commander for Brazil’s environmental protection agency, Ibama, leads his troops on a mission to destroy illegal mines into the Yanomami indigenous territory last Friday
    Felipe Finger, a special forces commander for Brazil’s environmental protection agency, Ibama, leads his troops on a mission to destroy illegal mines into the Yanomami Indigenous territory. Photograph: The Guardian
    Felipe Finger torches a motor used by illegal gold miners
    Felipe Finger torches a motor used by illegal goldminers. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    The group’s objective was Xitei, one of the most isolated corners of the Yanomami Indigenous territory on Brazil’s northern border with Venezuela. Tens of thousands of illegal miners devastated the region during Bolsonaro’s environmentally calamitous 2019-2023 presidency, hijacking Indigenous villages, banishing health workers, poisoning rivers with mercury, and prompting what his leftist successor, Luiz Inácio Lula da Silva, has called a premeditated genocide.

    As Finger’s aircraft swooped down into a muddy clearing beside a Yanomami village, a handful of those miners scurried into the forest in their wellies in an attempt to avoid capture.

    The motors fuelling their clandestine cassiterite mining operation were still growling as members of his six-strong unit leapt from their helicopters and fanned out across an apocalyptic landscape of sodden craters and fallen trees.

    “Illegal mining on Yanomami land is finished,” declared Finger, a camouflage-clad forest engineer turned rainforest warrior whose team has been spearheading efforts to evict the prospectors since early February.

    Environmental special forces burn down a mining camp in the Yanomami indigenous territory
    Environmental special forces burn down a mining camp in the Yanomami Indigenous territory. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    The raid in Xitei was part of what has been hailed by the government as a historic drive to expel miners from Yanomami lands and rescue the Amazon after four years of chaos, criminality and bloodshed such as that which saw the British journalist Dom Phillips and the Indigenous specialist Bruno Pereira murdered last June.

    The Guardian was one of the first media organisations granted access to those efforts, traveling deep into Yanomami territory to accompany Finger’s elite squad, the Special Inspection Group (GEF).

    The group’s agents gathered early last Friday at a camp on the Uraricoera River – one of the main arteries miners use to invade the territory, which is the size of Portugal and where about 30,000 Yanomami live in more than 300 villages.

    Twenty-four hours earlier a gang of illegal miners – who the government has ordered to leave the territory by 6 April – had exchanged fire with troops who blockaded the waterway in order to cut off their supplies. One miner was shot in the face.

    Shortly before 11am the agents took to the skies in two Squirrel helicopters and powered south-west towards Xitei where they had spotted a series of mines during a surveillance flight the previous day.

    “This region has been absolutely devastated … there are villages that are now completely surrounded by the mines,” said Finger, 43.

    Aerial view of mines in the Yanomami territory
    Aerial view of mines in the Yanomami territory. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    Thirty minutes later his first target came into view. The helicopters corkscrewed down from a cloud-filled sky into a tawny gash in the forest where miners had been pillaging gold from protected Yanomami lands.

    The miners had fled, abandoning their equipment in a muddy pit where a small brook once flowed. “They left in a hurry – just a few days ago,” Finger said as his crew trudged through their deserted encampment.

    Clothes, empty packets of cigarettes and painkillers and spent 12-gauge shotgun cartridges littered the ground near a wooden sluice used to separate gold from gravel and dirt.

    Finger’s troops raid an illegal goldmine in the Yanomami Indigenous territory.
    Finger’s troops raid an illegal goldmine in the Yanomami Indigenous territory. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    After setting fire to the sluice and the motors that powered hoses used to blast away soil, Finger’s group reboarded their helicopters and raced towards their second target: a larger cluster of mines near the Venezuelan border.

    When the Guardian last visited the Xitei region in 2007, it was a sea of largely pristine rainforest dotted with traditional communal huts and deactivated clandestine airstrips that were dynamited during the last major operation to evict miners, in the early 1990s.

    Fifteen years later the jungle around Xitei has been shattered. Immense sand-coloured lacerations have replaced dark green woodlands. Ramshackle mining campsites stand where tapirs and deers once roamed. Unknown quantities of mercury have polluted rivers, poisoning the fish on which the Yanomami rely.

    Yanomami villagers carry away the supplies from an illegal mining camp raided by environmental troops near the village of Xitei.
    Yanomami villagers carry away the supplies from an illegal mining camp raided by environmental troops near the village of Xitei. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    Dário Kopenawa, a prominent Yanomami leader, compared the environmental desecration to leishmaniasis, a disease carried by sand flies that causes horrific skin lesions and ulcers.

    “Our land is so sick. Our rivers are sick. The forest’s sick … the air we breathe is sick,” he said, using a Yanomami word to describe the catastrophe that unfolded under Bolsonaro, whose anti-environmental rhetoric and crippling of protection agencies such as Ibama caused deforestation to soar.

    “I would call it onokãe,” Kopenawa said. “It means a genocide which kills people, spills blood and ends lives.”

    As the Ibama team landed in the cassiterite quarry, its operators scattered. Dozens of Yanomami villagers emerged from the jungle, curious about the arrival of Finger’s flying squad.

    The women wore traditional red loincloths and had yellow and white beads draped over their bare chests. The men wore jaguar teeth necklaces and clutched arrows adorned with the black feathers of pheasant-like curassow birds. The children sported flip-flops and football shirts, given as gifts by the miners.

    Yanomami villagers watch Finger’s troops arrive
    Yanomami villagers watch Finger’s troops arrive. Photograph: The Guardian

    The men shook their heads when asked to name Brazil’s current and former presidents. But the consequences of Bolsonaro’s incitement of environmental crime were visible all around: the wrecked forest, the bulging sacks of illegally extracted minerals, and the filthy encampment where beer cans and tins of sardines were strewn on the ground.

    Yanomami villagers watch environmental troops land in an illegal mine near their community during a major operation to expel mining gangs
    Yanomami villagers watch environmental troops land in an illegal mine near their community. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    Nearby, Finger’s team chased down one fugitive miner, a former butcher named Edmilson Dias from the mid-western state of Goiás.

    Dias, a weather-beaten 39-year-old whose eight years toiling in the mines had given him the appearance of a far older man, voted for Lula in last October’s crunch election. But the miner lambasted the new president’s crackdown and insisted it would fail.

    “Mining’s a fever,” the dejected miner said as he sat on a tree trunk flanked by Finger’s heavily armed troops. “If you kick me out of this mine … I’ll just go somewhere else because illegal mining will never end.”

    Similar defiance could be heard around the swimming pool of the best hotel in Boa Vista, the city nearest to the Yanomami enclave. On a recent afternoon one portly mining boss sat there, swigging beer and bragging how his team had buried its gear in the jungle to prevent troops destroying it. Miners had doused the earth over the concealed objects with petrol to help them relocate their equipment by stopping the forest from growing back.

    Environmental agents frisk suspected miners at a blockade along the Uraricoera river
    Environmental agents frisk suspected miners at a blockade along the Uraricoera River. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    The boss predicted Lula’s clampdown would fade after six months, allowing miners to resume their multimillion dollar activities in more than 200 pits. But Lula allies are adamant they have come to the Yanomami territory to stay.

    “This is Lula’s pledge and we’re all working … so this pledge becomes reality. We are determined to make this work,” said the environment minister, Marina Silva, vowing to defend other Indigenous territories ravaged by illegal mining such as those of the Munduruku and Kayapó peoples.

    A Yanomami man sits beside an illegal cassiterite mining operation deep in the indigenous territory
    A Yanomami man sits beside an illegal cassiterite mining operation deep in the Indigenous territory. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    For the Yanomami such pledges are a matter of life and death. At least 570Yanomami children reportedly died of curable diseases during Bolsonaro’s administration, partly because rampant mining gangs had caused an explosion of malaria and made it impossible for health workers to operate.

    “This is a crime. There’s no other name for it – an attempted genocide,” said Silva, denouncing the “ethically, politically, morally and spiritually degrading” conditions she believed the Yanomami had been deliberately subjected to under Bolsonaro.

    André Siqueira, a malaria expert who visited the Yanomami territory recently to assess the health emergency, described horrifying scenes of malnourishment and neglect. “I saw five-year-old children who weighed less than my two-year-old. Even on trips to Africa I’d never seen such levels of malnutrition. I’d only seen it in books,” he said.

    Bruce Albert, an anthropologist who has worked with the Yanomami since the 70s, when miners first stormed their territory, accused Bolsonaro of seeking to “totally annihilate” the Yanomami by sabotaging efforts to shield the lands they are thought to have inhabited for thousands of years.

    “Bolsonaro’s plan was a species of genocide by means of intentional negligence,” Albert said of the politician, who he believed was obsessed with military dictatorship-era conspiracy theories that hostile foreign powers wanted to annex the border region by inciting an Indigenous separatist movement. “And if Bolsonaro had had another four years [in power] his plan would have succeeded.”

    Brazil’s former president has called such accusations a leftist “farce”. Dias also rejected claims miners were destroying the Yanomami.

    “When our machines are all working they eat well and they live well,” he said reeling off the names of three supposed Yanomami collaborators. “Miners aren’t crooks and what they are doing to us is a total disgrace.”

    Dias also denied miners were collecting gold with the use of mercury, which can cause birth defects, kidney damage and even death. Moments later, however, Finger emerged from Dias’s shack brandishing a plastic flask filled with the toxic heavy metal. “It’s not just dangerous, it’s lethal – for them [the miners] and for the Indigenous,” he bristled.

    Ibama agent Rafael Sant’Ana dismantles a wooden sluice used to separate gold from dirt
    Ibama agent Rafael Sant’Ana dismantles a wooden sluice used to separate gold from dirt. Photograph: Tom Phillips/The Guardian

    Dias confessed to paying about five grams of gold (£240) for the silvery substance. “It comes from X-ray machines, hospitals, that sort of thing,” he mumbled.

    After Dias’s supplies were distributed to Yanomami villagers, his hovel was torched. He was fined and left in the forest to find his way home.

    Finger’s troops soared back to base to clean their weapons and prepare for the next day’s mission at the vanguard of Lula’s campaign to write a new chapter for the environment, the Yanomami, and the global fight against climate change.

    “We’re fighting a de facto war,” Finger said as Ibama agents frisked down a group of miners fleeing along the river behind him. “It’s a silent war that society doesn’t see – but those of us doing battle know it exists.”

    ‘Reverter crise dos Yanomami exige tempo e muitas ações’, diz antropólogo francês (Valor)

    Antropólogo francês que trabalha há 50 anos com grupo critica auxílio garimpeiro

    Artigo original

    Daniela Chiaretti

    10/02/2023

    Bruce Albert, o antropólogo francês que trabalha há quase 50 anos com os Yanomami, acredita que levará tempo, esforço e muitas ações para reverter o cenário desolador de desnutrição e falta de assistência de saúde ao povo indígena. “Ainda há muito trabalho pela frente para articular um sistema de assistência em saúde eficiente na Terra Indígena Yanomami que permita reverter o quadro assustador do presente”, diz ele. “A dramática situação de saúde e desnutrição causada pela invasão da mineração ilegal na TI Yanomami, e a destruição da base da subsistência indígena com os rios poluídos, a caça afugentada e as roças devastadas, estão longe de ser resolvidas.”

    Albert, um dos maiores antropólogos contemporâneos, acredita que, do mesmo modo que é preciso criar um sistema de saúde duradouro na terra indígena, será necessário criar um sistema de monitoramento com imagens de satélites e drones e intervenção rápida de equipes da Funai e do Ibama, para controlar invasões na área.

    “Fora da TI Yanomami também é preciso ter um planejamento de inteligência eficiente para desmantelar a logística das mineradoras ilegais”, diz. “O comércio do ouro deve ser profundamente revisto para que seja implementada, de maneira sistemática, a fiscalização da origem do metal produzido e destinado ao setor financeiro e joalheiro”, defende.

    Nascido no Marrocos e doutor em antropologia pela Université Paris X Nanterre, Albert é tido como uma das maiores referências entre estudiosos dos Yanomami. Começou a trabalhar com o povo em 1975, fala bem uma das línguas e foi um dos fundadores da Comissão Pró-Yanomami, a CCPY, que conduziu com o xamã Davi Kopenawa, a célebre fotógrafa Claudia Andujar e o missionário Carlo Zacquini a campanha nacional e internacional de 14 anos pela homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992.

    Intérprete do inquérito que ouviu sobreviventes do massacre de Haximu em 1993 – que vitimou 16 crianças, velhos, mulheres e até um bebê- Albert enxerga duas causas básicas para o drama atual que acomete o povo indígena: a abertura “escancarada” da terra indígena “a verdadeiras empresas-piratas de extração de ouro e cassiterita” e “um cínico desmantelamento de todas as estruturas assistenciais -ambientais, sociais e sanitárias-, na TI Yanomami e na Amazônia em geral.” Atribui ambos “à mortífera desgovernança do ex-presidente Jair Bolsonaro’.

    Para Albert, criar o que chama de “auxílio garimpeiro” seria um erro que premiaria “a busca de lucro em atividades ilegais nas terras indígenas. E ainda pago pelo erário público, que já se encontra muito lesado pela mobilização necessária para conter e remediar estas ilegalidades, sem contar o prejuízo ecológico enorme ao patrimônio público”. Na visão do antropólogo “quem tem que financiar a saída dos garimpeiros da TI Yanomami são os donos das mineradoras clandestinas”.

    Em 1992, a retirada dos garimpeiros da TI Yanomami foi “relativamente rápida, mas os Yanomami de Roraima tinham perdido 13% da sua população”, lembra. Alguns garimpeiros nunca saíram da região, conta, e quando o preço do ouro voltou a subir, retornaram em número muito maior, mecanizados e possivelmente apoiados pelo crime organizado. “As lideranças Yanomami e suas associações alertaram inúmeras vezes o governo e a imprensa sobre a iminência de uma crise humanitária sem precedentes na terra indígena. Sem resultado. Desde 2015 pouco foi feito para resolver a situação e, a partir de 2019, o governo Bolsonaro agravou a crise. Acabou se configurando uma verdadeira tentativa de genocídio.”

    Albert acaba de voltar de viagem aos Estados Unidos com o amigo Davi Kopenawa e Claudia Andujar. Participaram da abertura da exposição “The Yanomami Struggle”, em Nova York, com fotos de Claudia Andujar e o trabalho de vários artistas Yanomami – Albert foi o consultor antropológico. Estiveram nas universidade de Princeton e Columbia, onde relataram o que vem ocorrendo com o povo Yanomami e encontraram o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

    Albert, que escreveu com Davi Kopenawa “A Queda do Céu”, prepara em março o lançamento de “O Espírito da Floresta”, também em coautoria com o xamã e editado pela Cia. das Letras. O livro reúne reflexões e diálogos que, a partir do conhecimento xamânico Yanomami, evocam imagens e sons da floresta. Ao retornar dos EUA, concedeu esta entrevista ao Valor, por escrito:

    Valor: O senhor já dizia, em entrevista em 2021, que a pior catástrofe que viu em 50 anos de convívio com os Yanomami, é a que assistimos nos últimos anos. Por quê?

    Bruce Albert: A trágica situação na qual se encontram atualmente os Yanomami do Brasil – que é de fato a pior em 50 anos – tem duas causas imputáveis à mortífera desgovernança do ex-presidente Jair Bolsonaro entre 2019 e 2022. A primeira é a abertura escancarada da Terra Indígena Yanomami a verdadeiras empresas-piratas de extração de ouro e cassiterita, em desprezo total das leis e da Constituição brasileiras.

    Valor: E a segunda causa?

    Albert: A segunda: paralelamente [à abertura da terra indígena às empresas de mineração de médio porte que atuam clandestinamente na TI Yanomami] ocorreu um cínico desmantelamento de todas as estruturas assistenciais – ambientais, sociais e sanitárias -, na TI Yanomami e na Amazônia em geral. Eu me refiro à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

    Valor: O senhor foi intérprete do inquérito que ouviu os sobreviventes do massacre de Haximu, em 1993, quando morreram 16 crianças Yanomami, idosos, mulheres e um bebê. O massacre foi caracterizado como genocídio pelo Superior Tribunal de Justiça, a única vez, na história do país. O senhor dizia, em 2021, que tolerar o garimpo em terras indígenas configurava um crime de genocídio por omissão.

    Albert: O planejamento e a execução desses dois ataques complementares contra a integridade da TI Yanomami e de seus habitantes indígenas configuram exatamente a situação descrita no artigo 2o item c da Convenção para a Prevenção e Repressão de Crime de Genocídio promulgada por decreto no Brasil [decreto no 30.822/1952, assinado por Getúlio Vargas. O artigo 2o entende por genocídio “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” e o item c diz “submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial”]. Nos anos 90, Bolsonaro, então parlamentar, tentou por todos os meios legais impedir a demarcação da TI Yanomami. Em vão. Um decreto presidencial [assinado pelo então presidente Fernando Collor] e as disposições da Constituição de 1988 garantiram a sua homologação em 1992. Não podendo anular legalmente a TI Yanomami, Bolsonaro deixou, na sua Presidência, os Yanomami serem dizimados pelos garimpeiros. Ele deverá responder pelo crime diante da justiça nacional e/ou internacional.

    Valor: O senhor pode contar algo do processo de desintrusão dos garimpeiros nos anos 90?

    Albert: A desintrusão da invasão garimpeira do fim dos anos 80 começou em janeiro de 1990 com uma ação conjunta e simultânea da Polícia Federal, do Exército, do Ministério da Saúde. Imediatamente após a desintrusão entraram equipes médicas com voluntários do país inteiro mobilizadas pelo Ministério da Saúde e membros de ONG parceiras dos Yanomami, indigenistas e antropólogos, que conheciam a área e a língua yanomami. Eu mesmo trabalhei meses como intérprete nestas equipes. A desintrusão foi relativamente rápida, mas os Yanomami de Roraima tinham perdido 13% da sua população e núcleos de garimpeiros profissionais “radicais” permaneceram durante décadas entricheirados em lugares de difícil acesso na TI Yanomami.

    Valor: E o que aconteceu depois?

    Albert: Esse garimpo começou a expandir novamente com a subida do preço do ouro nos mercados internacionais no fim de 2015, e explodiu em proporções inéditas durante a presidência Bolsonaro, pelas razões que mencionei. No fim dos anos 80 estimava-se que os garimpeiros na TI Yanomami eram 40 mil. Em 2022 eram provavelmente ainda mais numerosos, em vista da extensão das áreas devastadas que quase quadruplicaram de 2018 a 2022 chegando a praticamente 4.500 hectares de florestas destruídas. Há anos estes garimpeiros estão submetendo mais da metade da população Yanomami a terríveis condições de degradação sanitária e desnutrição, violência, exploração sexual e degradação social. As lideranças Yanomami e suas associações alertaram inúmeras vezes o governo e a imprensa sobre a iminência de uma crise humanitária sem precedentes na terra indígena. Sem resultado. Desde 2015 pouco foi feito para resolver a situação e a partir de 2019, o governo Bolsonaro agravou a crise. Acabou se configurando uma verdadeira tentativa de genocídio.

    Valor: Na sua visão, como o processo de desintrusão deveria ser feito agora, com o garimpo ilegal mecanizado e muito mais violento?

    Albert: A situação é mais complexa hoje do que em 1990, é óbvio. Em 1990 assistimos a um início de mecanização e capitalização do garimpo. Em 2022 estamos frente a verdadeiras empresas ilegais de extração de ouro e cassiterita, altamente mecanizada e capitalizadas, operando com retroescavadeiras, abrindo estradas privadas na floresta, com frota de aviões e helicópteros. São protegidas por milícias com armamento pesado e provavelmente associadas ao crime organizado do sul do país, para lavagem de dinheiro. Não tem mais nada a ver com o que era, no passado, o garimpo artesanal. Aliás, chamar de “garimpo” a mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami é hoje impróprio -pode esconder a verdadeira natureza da situação e sua extrema gravidade. O novo governo parece agir com prudência e determinação para retirar os garimpeiros da TI Yanomami, controlando o espaço aéreo para forçar, em um primeiro momento, a saída espontânea dos garimpeiros; e, em um segundo momento, implementar uma intervenção repressiva direta na área para quem tentar ficar e manter lugares de garimpo. Obviamente este planejamento, por mais bem-intencionado que seja, não é perfeito. Sabemos que os garimpeiros desabastecidos que devem sair por sua própria conta, sem controle, acabam muitas vezes roubando a ajuda humanitária levada aos Yanomami e cometendo mais violência. Muitos cruzam a fronteira da Venezuela para esperar a pressão baixar e poder voltar mais tarde, impunemente, na TI Yanomami do lado brasileiro.

    Valor: O senhor acha que pode haver resistência?

    Albert: Em 30 anos de garimpo na TI Yanomami, os invasores desenvolveram técnicas sofisticadas para esconder seus equipamentos. Vai ter uma grande resistência para manter a mineração clandestina na área. Os interesses econômicos envolvidos são poderosos e os políticos locais são favoráveis à mineração ilegal. Isto sem contar o envolvimento das facções criminosas no garimpo da TI Yanomami. Circulam também noticias sobre um possível auxílio público aos garimpeiros o que me parece o cúmulo do populismo.

    Valor: Por quê?

    Albert: “Garimpeiro” não é uma profissão permanente, só para muito poucos. Trata-se, em geral, de uma atividade ilegal temporária nas terras indígenas e pela qual abandonam um emprego. Ou buscam a atividade no desemprego, por ser mais lucrativa que um emprego legal na cidade – e isto sem falar da criminalidade profissional que é muito presente nos garimpos. Portanto, criar um “auxílio garimpeiro” seria premiar a busca de lucro em atividades ilegais nas terras indígenas. E ainda pago pelo erário público, que já se encontra muito lesado pela mobilização necessária para conter e remediar estas ilegalidades. Isso sem contar o prejuízo ecológico enorme ao patrimônio público. Nos caso dos Yanomami seria um verdadeiro “auxílio genocídio”. Quem tem que financiar a saída dos garimpeiros da TI Yanomami são os donos das mineradoras clandestinas cujos bens, mal adquiridos, devem ser confiscados e assim pagar a retirada de seus empregados abandonados na floresta.

    Valor: O quadro atual levará tempo para ser revertido?

    Albert: A dramática situação de saúde e desnutrição causada pela invasão da mineração ilegal na TI Yanomami, e a destruição da base da subsistência indígena com os rios poluídos, a caça afugentada e as roças devastadas, estão longe de ser resolvidas. Não basta o fluxo emergencial de cestas básicas. Pelo que soube, a ação sanitária de emergência em campo ainda é pouco organizada e sistemática, e não consegue atingir as piores áreas onde o garimpo ainda é ativo. As equipes de saúde trabalham em situações de alto risco com falta de pessoal competente e insumos médicos especializados. As ONGs médicas que conhecem a área começam apenas estes dias a ser autorizadas a colaborar no sistema de assistência emergencial. Enfim, o Distrito Sanitário Yanomami ainda não tem nova direção e não foi reestruturado, enquanto políticos locais, cúmplices do genocídio yanomami, rondam para interferir na nomeação. Ainda há muito trabalho pela frente para articular um sistema de assistência em saúde permanente e eficiente na Terra Indígena Yanomami que permita reverter o quadro assustador do presente.

    Valor: Como fazer para que os garimpeiros não retornem?

    Albert: Do mesmo modo que a assistência em saúde, será precisar articular um dispositivo de controle permanente na TI Yanomami. Este sistema deveria ser de monitoramento e contar com radares, imagens satélites e drones. E também com intervenção rápida de equipes da Funai, do Ibama e outros, em lugares estratégicos da terra indígena. Fora da TI Yanomami também é preciso ter um planejamento de inteligência eficiente para desmantelar a logística das mineradoras ilegais que compreende voos, combustíveis, circuitos comerciais dos insumos, por exemplo. O comércio do ouro deve ser profundamente revisto para que seja implementada, de maneira sistemática, a fiscalização da origem do metal produzido e destinado ao setor financeiro e joalheiro.

    Valor: O governo Lula criou o Ministério dos Povos Indígenas. Como o senhor viu essa decisão?

    Albert: Esta criação é obviamente uma vitória e um momento histórico para os povos indígenas do Brasil que reivindicaram esta decisão por muito tempo. É a primeira vez na história do Brasil que os povos indígenas ganham espaço no poder Executivo para administrar seu próprio destino.

    Valor: O governador de Roraima Antônio Denarium deu entrevista à “Folha de S.Paulo” dizendo “que os Yanomami têm que se aculturar e não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”. O que acha deste pensamento, que é, também de boa parte da população?

    Albert: Os ditos do governador de Roraima caracterizam um infame retorno do recalcado cultural e social do Brasil colônia, o que é inacreditável e inaceitável em 2023. Com estereótipos racistas só se pretende encobrir o extermínio dos Yanomami pela mineração selvagem invadindo suas terras. Isto é indigno de um cargo publico no Brasil contemporâneo. Alem disso, tais colocações parecem tão medíocres e anacrônicas quando o mundo inteiro reconhece a profunda sabedoria filosófica e ecológica da tradição do povo Yanomami, através de livros de pensadores como Davi Kopenawa [“A Queda do Céu”, com Bruce Albert], que foi publicado em oito idiomas. E a exposição de arte Yanomami nos museus e galerias de arte contemporâneas de São Paulo, Londres, Paris, Xangai e Nova Iorque com obras de Joseca Mokahesi e outros artistas Yanomami.