Arquivo da tag: Antropologia

Marcelo Leite: Virada Psicodélica – Artigo aponta injustiça psicodélica contra saber indígena (Folha de S.Paulo)

www1.folha.uol.com.br

Marcelo Leite

7 de março de 2022


A cena tem algo de surreal: pesquisador europeu com o corpo tomado por grafismos indígenas tem na cabeça um gorro com dezenas de eletrodos para eletroencefalografia (EEG). Um membro do povo Huni Kuin sopra rapé na narina do branco, que traz nas costas mochila com aparelhos portáteis para registrar suas ondas cerebrais.

A Expedition Neuron aconteceu em abril de 2019, em Santa Rosa do Purus (AC). No programa, uma tentativa de diminuir o fosso entre saberes tradicionais sobre uso da ayahuasca e a consagração do chá pelo chamado renascimento psicodélico para a ciência.

O resultado mais palpável da iniciativa, até aqui, apareceu num controverso texto sobre ética, e não dados, de pesquisa.

O título do artigo no periódico Transcultural Psychiatry prometia: “Superando Injustiças Epistêmicas no Estudo Biomédico da Ayahuasca – No Rumo de Regulamentação Ética e Sustentável”. Desde a publicação, em 6 de janeiro, o texto gerou mais calor que luz –mesmo porque tem sido criticado fora das vistas do público, não às claras.

Os autores Eduardo Ekman Schenberg, do Instituto Phaneros, e Konstantin Gerber, da PUC-SP, questionam a autoridade da ciência com base na dificuldade de empregar placebo em experimentos com psicodélicos, na ênfase dada a aspectos moleculares e no mal avaliado peso do contexto (setting) para a segurança do uso, quesito em que cientistas teriam muito a aprender com indígenas.

Entre os alvos das críticas figuram pesquisas empreendidas na última década pelos grupos de Jaime Hallak na USP de Ribeirão Preto e de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN, em particular sobre efeito da ayahuasca na depressão. Procurados, cientistas e colaboradores desses grupos não responderam ou preferiram não se pronunciar.

O potencial antidepressivo da dimetiltriptamina (DMT), principal composto psicoativo do chá, está no foco também de pesquisadores de outros países. Mas outras substâncias psicodélicas, como MDMA e psilocibina, estão mais próximas de obter reconhecimento de reguladores como medicamentos psiquiátricos.

Dado o efeito óbvio de substâncias como a ayahuasca na mente e no comportamento da pessoa, argumentam Schenberg e Gerber, o sistema duplo-cego (padrão ouro de ensaios biomédicos) ficaria inviabilizado: tanto o voluntário quanto o experimentador quase sempre sabem se o primeiro tomou um composto ativo ou não. Isso aniquilaria o valor supremo atribuído a estudos desse tipo no campo psicodélico e na biomedicina em geral.

Outro ponto criticado por eles está na descontextualização e no reducionismo de experimentos realizados em hospitais ou laboratórios, com o paciente cercado de aparelhos e submetido a doses fixadas em miligramas por quilo de peso. A precisão é ilusória, afirmam, com base no erro de um artigo que cita concentração de 0,8 mg/ml de DMT e depois fala em 0,08 mg/ml.

A sanitização cultural do setting, por seu lado, faria pouco caso dos elementos contextuais (floresta, cânticos, cosmologia, rapé, danças, xamãs) que para povos como os Huni Kuin são indissociáveis do que a ayahuasca tem a oferecer e ensinar. Ao ignorá-los, cientistas estariam desprezando tudo o que os indígenas sabem sobre uso seguro e coletivo da substância.

Mais ainda, estariam ao mesmo tempo se apropriando e desrespeitando esse conhecimento tradicional. Uma atitude mais ética de pesquisadores implicaria reconhecer essa contribuição, desenvolver protocolos de pesquisa com participação indígena, registrar coautoria em publicações científicas, reconhecer propriedade intelectual e repartir eventuais lucros com tratamentos e patentes.

“A complementaridade entre antropologia, psicanálise e psiquiatria é um dos desafios da etnopsiquiatria”, escrevem Schenberg e Gerber. “A iniciativa de levar ciência biomédica à floresta pode ser criticada como uma tentativa de medicalizar o xamanismo, mas também pode constituir uma possibilidade de diálogo intercultural centrado na inovação e na resolução de ‘redes de problemas’.”

“É particularmente notável que a biomedicina se aventure agora em conceitos como ‘conexão’ e ‘identificação com a natureza’ [nature-relatedness] como efeito de psicodélicos, mais uma vez, portanto, se aproximando de conclusões epistêmicas derivadas de práticas xamânicas. O desafio final seria, assim, entender a relação entre bem-estar da comunidade e ecologia e como isso pode ser traduzido num conceito ocidental de saúde integrada.”

As reações dos poucos a criticar abertamente o texto e suas ideias grandiosas podem ser resumidas num velho dito maldoso da academia: há coisas boas e novas no artigo, mas as coisas boas não são novas e as coisas novas não são boas. Levar EEG para a floresta do Acre, por exemplo, não resolveria todos os problemas.

Schenberg é o elo de ligação entre o artigo na Transcultural Psychiatry e a Expedition Neuron, pois integrou a incursão ao Acre em 2019 e colabora nesse estudo de EEG com o pesquisador Tomas Palenicek, do Instituto Nacional de Saúde Mental da República Checa. Eis um vídeo de apresentação, em inglês:

“Estamos engajados, Konstantin e eu, em projeto inovador com os Huni Kuin e pesquisadores europeus, buscando construir uma parceria epistemicamente justa, há mais de três anos”, respondeu Schenberg quando questionado sobre o cumprimento, pelo estudo com EEG, das exigências éticas apresentadas no artigo.

Na apresentação da Expedition Neuron, ele afirma: “Nessa primeira expedição curta e exploratória [de 2019], confirmamos que há interesse mútuo de cientistas e uma cultura indígena tradicional da Amazônia em explorar conjuntamente a natureza da consciência e como sua cura tradicional funciona, incluindo –pela primeira vez– registros de atividade cerebral num cenário que muitos considerariam demasiado desafiador tecnicamente”.

“Consideramos de supremo valor investigar conjuntamente como os rituais e medicinas dos Huni Kuin afetam a cognição humana, as emoções e os vínculos de grupo e analisar a base neural desses estados alterados de consciência, incluindo possivelmente experiências místicas na floresta.”

Schenberg e seus colaboradores planejam nova expedição aos Huni Kuin para promover registros de EEG múltiplos e simultâneos com até sete indígenas durante cerimônias com ayahuasca. A ideia é testar a “possibilidade muito intrigante” de sincronia entre cérebros:

“Interpretada pelos Huni Kuin e outros povos ameríndios como um tipo de portal para o mundo espiritual, a ayahuasca é conhecida por fortalecer intensa e rapidamente vínculos comunitários e sentimentos de empatia e proximidade com os outros.”

Os propósitos de Schenberg e Gerber não convenceram a antropóloga brasileira Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco (EUA). “Indígenas não parecem ter sido consultados para a produção do texto, não há vozes nativas, não são coautores, e não temos propostas específicas do que seria uma pesquisa verdadeiramente interétnica e intercultural.”

Para a antropóloga, ainda que a Expedition Neuron tenha conseguido autorização para a pesquisa, algo positivo, não configura “epistemologia alternativa à abordagem cientificista e etnocêntrica”. Uma pesquisa interétnica, em sua maneira de ver, implicaria promover uma etnografia que levasse a sério a noção indígena de que plantas são espíritos, têm agência própria, e que o mundo natural também é cultural, tem subjetividade, intencionalidade.

“Todos sabemos que a bebida ayahuasca não é a mesma coisa que ayahuasca freeze dried [liofilizada]; que o contexto importa; que os rituais e coletivos que participam fazem diferença. Coisas iguais ou análogas já haviam sido apontadas pela literatura antropológica, cujas referências foram deixadas de lado pelos autores.”

Labate também discorda de que os estudos com ayahuasca no Brasil negligenciem o reconhecimento de quem chegou antes a ela: “Do ponto de vista global, é justamente uma marca e um diferencial da pesquisa científica brasileira o fato de que houve, sim, diálogo com participantes das religiões ayahuasqueiras. Estes também são sujeitos legítimos de pesquisa, e não apenas os povos originários”.

Schenberg e Palenicek participaram em 2020 de um encontro com outra antropóloga, a franco-colombiana Emilia Sanabria, líder no projeto Encontros de Cura, do Conselho Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ao lado do indígena Leopardo Yawa Bane, o trio debateu o estudo com EEG no painel virtual “Levando o Laboratório até a Ayahuasca”, da Conferência Interdisciplinar sobre Pesquisa Psicodélica (ICPR). Há vídeo disponível, em inglês:

Sanabria, que fala português e conhece os Huni Kuin, chegou a ser convidada por Schenberg para integrar a expedição, mas declinou, por avaliar que não se resolveria a “incomensurabilidade epistemológica” entre o pensamento indígena e o que a biomedicina quer provar. Entende que a discussão proposta na Transcultural Psychiatry é importante, apesar de complexa e não exatamente nova.

Em entrevista ao blog, afirmou que o artigo parece reinventar a roda, ao desconsiderar um longo debate sobre a assimilação de plantas e práticas tradicionais (como a medicina chinesa) pela ciência ocidental: “Não citam a reflexão anterior. É bom que ponham a discussão na mesa, mas há bibliografia de mais de um século”.

A antropóloga declarou ver problema na postura do artigo, ao apresentar-se como salvador dos nativos. “Não tem interlocutor indígena citado como autor”, pondera, corroborando a crítica de Labate, como se os povos originários precisassem ser representados por não índios. “A gente te dá um espacinho aqui no nosso mundo.”

A questão central de uma colaboração respeitosa, para Sanabria, é haver prioridade e utilidade no estudo também para os Huni Kuin, e não só para os cientistas.

Ao apresentar esse questionamento no painel, recebeu respostas genéricas de Schenberg e Palenicek, não direta e concretamente benéficas para os Huni Kuin –por exemplo, que a ciência pode ajudar na rejeição de patentes sobre ayahuasca.

Na visão da antropóloga, “é linda a ideia de levar o laboratório para condições naturalistas”, mas não fica claro como aquela maquinaria toda se enquadraria na lógica indígena. No fundo, trata-se de um argumento simétrico ao brandido pelos autores do artigo contra a pesquisa psicodélica em ambiente hospitalar: num caso se descontextualiza a experiência psicodélica total, socializada; no outro, é a descontextualização tecnológica que viaja e invade a aldeia.

Sanabria vê um dilema quase insolúvel, para povos indígenas, na pactuação de protocolos de pesquisa com a renascida ciência psicodélica. O que em 2014 parecia para muitos uma nova maneira de fazer ciência, com outros referenciais de avaliação e prova, sofreu uma “virada capitalista” desde 2018 e terminou dominado pela lógica bioquímica e de propriedade intelectual.

“Os povos indígenas não podem cair fora porque perdem seus direitos. Mas também não podem entrar [nessa lógica], porque aí perdem sua perspectiva identitária.”

“Molecularizar na floresta ou no laboratório dá no mesmo”, diz Sanabria. “Não vejo como reparação de qualquer injustiça epistêmica. Não vejo diferença radical entre essa pesquisa e o estudo da Fernanda [Palhano-Fontes]”, referindo-se à crítica “agressiva” de Schenberg e Gerber ao teste clínico de ayahuasca para depressão no Instituto do Cérebro da UFRN, extensiva aos trabalhos da USP de Ribeirão Preto.

A dupla destacou, por exemplo, o fato de autores do estudo da UFRN indicarem no artigo de 2019 que 4 dos 29 voluntários no experimento ficaram pelo menos uma semana internados no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal. Lançaram, com isso, a suspeita de que a segurança na administração de ayahuasca tivesse sido inadequadamente tratada.

“Nenhum desses estudos tentou formalmente comparar a segurança no ambiente de laboratório com qualquer um dos contextos culturais em que ayahuasca é comumente usada”, pontificaram Schenberg e Gerber. “Porém, segundo nosso melhor conhecimento, nunca se relatou que 14% das pessoas participantes de um ritual de ayahuasca tenham requerido uma semana de hospitalização.”

O motivo de internação, contudo, foi trivial: pacientes portadores de depressão resistente a medicamentos convencionais, eles já estavam hospitalizados devido à gravidade de seu transtorno mental e permaneceram internados após a intervenção. Ou seja, a internação não teve a ver com terem tomado ayahuasca.

Este blog também questionou Schenberg sobre o possível exagero em pinçar um erro que poderia ser de digitação (0,8 mg/ml ou 0,08 mg/ml), no artigo de 2015 da USP de Ribeirão, como flagrante de imprecisão que poria em dúvida a superioridade epistêmica da biomedicina psicodélica.

“Se dessem mais atenção aos relatos dos voluntários/pacientes, talvez tivessem se percebido do fato”, retorquiu o pesquisador do Instituto Phaneros. “Além da injustiça epistêmica com os indígenas, existe a injustiça epistêmica com os voluntários/pacientes, que também discutimos brevemente no artigo.”

Schenberg tem vários trabalhos publicados que se encaixariam no paradigma biomédico agora em sua mira. Seria seu artigo com Gerber uma autocrítica sobre a atividade pregressa?

“Sempre fui crítico de certas limitações biomédicas e foi somente com muito esforço que consegui fazer meu pós-doc sem, por exemplo, usar um grupo placebo, apesar de a maioria dos colegas insistirem que assim eu deveria fazer, caso contrário ‘não seria científico’…”.

“No fundo, o argumento é circular, usando a biomedicina como critério último para dar respostas à crítica à biomedicina”, contesta Bia Labate. “O texto não resolve o que se propõe a resolver, mas aprofunda o gap [desvão] entre epistemologias originárias e biomédicas ao advogar por novas maneiras de produzir biomedicina a partir de critérios de validação… biomédicos.”

Como a genética está reconstruindo a fascinante jornada dos primeiros humanos à América (BBC)

News Brasil

Artigo original

Lucía Blasco, BBC News Mundo – 20 de janeiro de 2022

Montagem de um crânio de homo sapiens com ilustrações de cientistas ao seu redor.

América. O último continente a ser povoado pelo ser humano. Uma parte do planeta Terra desconhecida do Homo sapiens por milhares de anos.

Até que uma mudança climática — entre muitas outras coisas — permitiu ao inquieto primata pisar naquela região.

Mas como a América foi povoada?

“É uma pergunta vital que ainda não resolvemos e continuamos fazendo porque pulsa em nossa curiosidade humana”, diz à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, Lawrence C. Brody, diretor do departamento de Genômica e Sociedade do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano (NHGRI, na sigla em inglês), nos Estados Unidos.

“Os humanos anatomicamente modernos deixaram a África há pelo menos 100 mil anos e começaram a se espalhar. E em algum momento depois de 40 mil anos, os humanos desenvolveram a tecnologia necessária para começar a explorar mais ao norte”, acrescenta Víctor Moreno, pesquisador de pós-doutorado do Centro de Geogenética da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, à BBC News Mundo.

Há várias teorias, mas a corrente dominante atual sustenta que houve uma única migração primeiro para a Ásia, depois para a Australásia e, mais tarde, para a Europa.

A América ainda estava muito longe e, sobretudo, bastante isolada.

Infográfico do mapa-múndi e das datas em que o Homo Sapiens saiu da África para se espalhar pelo mundo

Os estudos sobre o DNA foram fundamentais para mapear estas migrações ancestrais.

“Nosso DNA contém um arquivo enorme da história de nossos ancestrais. Um genoma pode representar a história de muitas pessoas diferentes de uma população inteira”, afirmou à BBC News Mundo a antropóloga e geneticista americana Jennifer Raff, especialista no povoamento inicial do continente americano.

Para aprender sobre a árvore genealógica de nossos ancestrais, os cientistas sequenciam o DNA humano que ainda pode ser encontrado em fósseis e esqueletos muito antigos, razão pela qual é chamado de “DNA antigo”.

DNA antigo

As tecnologias modernas de sequenciamento tornaram possível ter acesso a fragmentos de DNA sem ter que sequenciar um genoma inteiro.

“Os antropólogos tiram conclusões gerais a partir de amostras muito, muito pequenas de DNA antigo, como dentes ou fragmentos de ossos e, mais recentemente, argila e areia. Os algoritmos nos ajudam a interpretar os dados e saber se aquele DNA está contaminado”, explicou o geneticista humano Brody.

Infográfico sobre onde se pode encontrar DNA antigo

Isso deu a eles algumas respostas sobre o povoamento da América.

“Por exemplo, descobrimos que várias populações ancestrais contribuíram para a ascendência dos povos indígenas americanos, e não apenas uma como se acreditava anteriormente”, diz Raff.

“Graças a isso, agora sabemos que o cenário do povoamento da América foi muito mais complexo do que se pensava, mas também muito mais interessante.”

Para embarcar nesta jornada fascinante, devemos começar situando-nos há aproximadamente 25 mil anos na linha do tempo.

A última era do gelo

Estamos no período do Último Máximo Glacial (LGM, na sigla em inglês), a última era do gelo conhecida na história da Terra.

“O mapa-múndi era muito diferente do atual. A maior parte da América do Norte estava coberta por uma espessa camada de gelo que tornava a região inabitável”, diz Acuña-Alonzo, antropólogo geneticista da Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH) do México.

GIF animado de como se criou um corredor de gelo entre 19.000 e 12.500 a.C.

“As condições eram bastante difíceis. Muitos lugares eram inacessíveis e cobertos de gelo. Fazia muito frio, os humanos tinham que caçar e coletar… e não sabiam quando poderia aparecer o próximo mamute!”, acrescenta o pesquisador Víctor Moreno.

Com o avanço do período glacial, o nível dos mares do mundo foi baixando, à medida que a água era armazenada nas camadas de gelo que cobriam os continentes.

“Toda a água estava sequestrada nas geleiras”, explica Moreno.

Por causa disso, havia duas grandes geleiras que cobriam quase todo o Canadá e tornavam praticamente impossível ir para o sul.

Mas no final desse período glacial, há cerca de 12 mil anos, as camadas de gelo começaram a derreter e surgiram alguns refúgios glaciares.

“Nesses locais, as condições não eram tão terríveis e ainda eram produtivas em termos de recursos para que os humanos pudessem se alimentar”, diz Moreno.

Um desses refúgios foi a Beríngia: uma ponte de terra que emergiu do mar congelado por meio da qual as primeiras populações de humanos entraram na América, segundo acredita a maioria dos pesquisadores.

Ela se estendia do que conhecemos hoje como o Alasca até a Eurásia — e era um território seco, cheio de vegetação e fauna.

Mapa de como era a ponte terrestre de Bering

Atualmente, está submersa — por isso não é possível encontrar vestígios arqueológicos —, mas há um consenso de que os ancestrais dos indígenas americanos saíram da Sibéria em direção ao Alasca por aquele trecho de terra e ficaram isolados na Beríngia durante algum tempo.

“À medida que as péssimas condições do Último Máximo Glacial melhoravam, foram abertas certas rotas — pelo litoral e pelo interior — que teriam permitido a entrada na América a partir da região da ponte terrestre de Bering”, diz Víctor Moreno.

Mas ainda há dúvidas sobre a rota que seguiram para entrar na América, sobre quantos grupos (ou quais grupos) fizeram este caminho e quando isso aconteceu.

Quando chegaram à América?

Há duas teorias sobre quando os primeiros seres humanos chegaram à América.

As duas principais correntes são a teoria do povoamento precoce (que diz que isso ocorreu há cerca de 30 mil ou 25 mil anos) e a teoria do povoamento tardio (segundo a qual isso teria acontecido há cerca de 12 mil ou 14 mil anos).

Por muito tempo, se pensou que o povoamento foi tardio. Esta hipótese também é conhecida como “teoria clássica do povoamento da América” ou “modelo Clóvis”.

Os Clóvis, considerados em meados do século 20 a cultura indígena mais antiga da América, usavam uma técnica de entalhe de pedra bastante aprimorada para caçar a fauna gigante que existia na Idade do Gelo com ferramentas que hoje conhecemos como “pontas de clóvis”.

Fotografia de uma 'ponta de clovis'

Fonte: Getty

Durante décadas, essas “pontas de clóvis” foram encontradas em sítios arqueológicos de cerca de 13 mil anos, espalhados por várias partes da América do Norte. Por isso, se pensava que eles foram os primeiros povoadores da América.

Mas, nos últimos anos, vários estudos genéticos refutaram essa ideia.

Embora não haja consenso, hoje há mais cientistas e arqueólogos que argumentam que a ocupação da América ocorreu muito antes do que se acreditava.

“A maioria dos cientistas e arqueólogos apoia a teoria do povoamento precoce, e não tardia, mas os pesquisadores não chegam a um acordo sobre uma data específica ou sobre que sítios arqueológicos são ‘autênticos'”, diz à BBC News Mundo Jennifer Raff.

A análise genética de populações contemporâneas e antigas foi fundamental para que a teoria do povoamento precoce ganhasse peso.

No entanto, ainda há pesquisadores — principalmente arqueólogos — que continuam a defender a teoria do povoamento tardio.

“Alguns arqueólogos são céticos a respeito dos primeiros sítios arqueológicos encontrados, sobretudo porque não aceitam os métodos de datação, as associações com a atividade humana e a estratigrafia (análise dos estratos arqueológicos) que foram reportados”, explica Acuña-Alonzo.

“A verdade é que demonstrar a antiguidade da presença humana é bastante complicado e difícil, por isso só sítios arqueológicos muito bem escavados e documentados servirão para ir mudando essas posições”, acrescenta o pesquisador.

Também segue aberto o debate sobre como os primeiros seres humanos entraram no continente depois que deixaram a ponte terrestre de Bering, ou Beríngia, mas os cientistas trabalham principalmente com duas possibilidades: uma rota marítima ou uma rota terrestre.

Teoria da via marítima

A hipótese da rota marítima está ligada à teoria do povoamento precoce e tem sido respaldada por estudos arqueológicos, linguísticos e genéticos relativamente recentes.

Segundo essa teoria dominante, os primeiros humanos teriam entrado na América margeando a costa do Pacífico, já que naquela época tão fria “o nível do mar era mais baixo, e as costas muito mais amplas. Eles não teriam conseguido atravessar grandes distâncias nem correntes marítimas que não os favorecessem”, explica o antropólogo Acuña-Alonzo.

Não sabemos a data exata, pode ser há cerca de 17 mil anos ou até mesmo 20 mil ou 30 mil anos.

Teoria da rota terrestre

Mais uma vez, não há consenso, embora menos cientistas digam que a rota foi feita por terra há cerca de 13 mil anos, coincidindo com a teoria do povoamento tardio.

“Os pesquisadores que defendem esse modelo acreditam que os primeiros humanos a chegar à América fizeram isso muito depois do Último Máximo Glacial, viajando por um corredor livre de gelo que abriu caminho nas Montanhas Rochosas canadenses enquanto as geleiras recuavam”, explica Raff.

Segundo essa teoria, os humanos teriam atravessado essa “passagem” entre as geleiras pelo interior da América do Norte e, posteriormente, se espalhado pela América do Sul.

Mas, o estudo de genomas antigos e contemporâneos, a descoberta de sítios arqueológicos pré-Clóvis e alguns estudos ambientais questionam essa teoria, por isso há mais cientistas que defendem que a travessia foi feita pelo mar.

Estas pegadas pertencem a crianças e adolescentes que viveram há pelo menos 21 mil anos.

Estas pegadas pertencem a crianças e adolescentes que viveram há pelo menos 21 mil anos. Fonte: Bournemouth University, Reino Unido

Um dos achados mais recentes foi a descoberta em setembro de 2021 de pegadas humanas em um lago do Novo México, nos Estados Unidos, com mais de 20 mil anos.

Essas pegadas sugerem que os primeiros humanos chegaram à América no auge da Última Era do Gelo e que pode ter havido grandes migrações sobre as quais ainda não sabemos muito.

A miscigenação

Mal sabemos que aparência tinham os primeiros seres humanos que chegaram à América.

Para tentar descobrir quem eram, recorremos novamente à genética.

Graças a ela sabemos que os ancestrais dos primeiros americanos se separaram de seus “primos asiáticos” quando entraram na ponte terrestre de Bering, e que se misturaram muito mais do que se supunha, sobretudo durante os últimos 10 mil anos.

Os geneticistas acreditam que houve uma miscigenação entre duas populações ancestrais humanas: os antigos paleo-siberianos e os antigos asiáticos do leste, segundo Acuña-Alonzo.

Infográfico mostrando a miscigenação ocorrida na Beríngia

Raff diz que um desses grupos habitava o que hoje é o Sudeste Asiático. Acredita-se que esse grupo tenha contribuído majoritariamente para a ancestralidade dos primeiros seres humanos que povoaram o continente americano — especificamente, cerca de 60%, indica Víctor Moreno.

O outro ramo ancestral surgiu há cerca de 39 mil anos no que hoje é o nordeste da Sibéria.

Esses dois grupos convergiram há cerca de 25 mil a 20 mil anos atrás.

Não sabemos exatamente como isso aconteceu, mas aconteceu durante uma migração da Sibéria”

diz Raff.

“Temos muito pouca ideia. O mais provável é que tenha ocorrido em algum lugar da Sibéria, mas quão perto da ponte terrestre de Bering isso aconteceu? Quão ao norte ou quão ao sul? Isso é algo que está sendo debatido porque o apoio genético, arqueológico e antropológico que temos é escasso”, diz Víctor Moreno.

O que a genética explica é o que aconteceu a seguir: houve uma série de eventos demográficos complexos e a população, novamente, se dividiu em duas.

Um ramo, o dos antigos beríngios (por sua possível conexão com a Beríngia) não teve descendentes conhecidos. O outro, dos antigos nativos americanos, sim.

Os cientistas chegaram a essas conclusões após descobrir uma afinidade genética muito grande entre grupos ancestrais da Sibéria e populações da Eurásia Oriental.

Pesquisador analisando pegadas de mais de 20 mil anos atrás encontradas nas margens de um lago no Novo México.

Pesquisador analisando pegadas de mais de 20 mil anos atrás encontradas nas margens de um lago no Novo México. Fonte: Universidade de Bournemouth, Reino Unido

“Sabemos, por exemplo, que os indígenas americanos estão relacionados geneticamente às populações do nordeste da Ásia por uma série de genes que permitiram a seus ancestrais economizar energia em condições climáticas muito difíceis”, acrescenta o geneticista.

Apesar dessas descobertas, eles ainda estão tentando determinar quantos povos antigos e atuais na América têm uma conexão com a linhagem genética desses antigos nativos americanos.

“Temos que aceitar que há muitas arestas dessa pergunta para as quais ainda não temos uma resposta”, diz Raff.

Na verdade, a última descoberta no Novo México deixa outra grande incógnita no ar: a possibilidade de que as primeiras populações tenham se extinguido sem deixar descendentes, sendo “substituídas” por outros povoadores quando o corredor de gelo foi formado.

Mas ainda não se sabe se foi esse o caso ou como teria acontecido.

“Não temos escolha a não ser abraçar a incerteza. Mas, ao mesmo tempo, é emocionante saber que estamos cada vez mais perto de reconstruir essa primeira viagem à América.”

Enquanto isso, os cientistas esperam que a herança genética nos dê mais respostas sobre a última grande expansão do Homo sapiens no planeta.


Créditos

Pesquisa e reportagem: Lucía Blasco
Design e infografia: Cecilia Tombesi
Mapa utilizado como base: Ron Blakey, NAU – NSF
Programação: Zoë Thomas, Adam Allen e Marcos Gurgel
Edição: Carol Olona e Ricardo Acampora
Com a colaboração de Hilda Badenes e Sally Morales
Projeto liderado por Carol Olona

A notável atualidade do Animismo (Outras Palavras)

Ele foi visto pela velha antropologia como “forma mais primitiva” de religião. Mas, surpresa: sugere respostas a questões cruciais de hoje: o divórcio entre cultura e natureza e a tendência da ciência a tratar como objeto tudo o que não é “humano”

Publicado 02/09/2021 às 17:46 – Atualizado 02/09/2021 às 18:00

Por Renato Sztutman, na Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras

Muito se tem falado hoje em dia sobre o animismo. E mais, muito se tem falado sobre uma necessidade de retomar o animismo – uma forma de responder ao projeto racionalista da modernidade, que transformou o ambiente em algo inerte, opaco, sinônimo de recurso, mercadoria. Em tempos de pandemia, constatamos que algo muito importante se perdeu na relação entre os sujeitos humanos e o mundo que eles habitam, e isso estaria na origem da profunda crise que vivemos.

Animismo é, em princípio, um conceito antropológico, proposto por Edward Tylor, em Primitive Culture (1871), para se referir à forma mais “primitiva” de religião, aquela que atribui “alma” a todos os habitantes do cosmos e que precederia o politeísmo e o monoteísmo. O termo “alma” provém do latim anima – sopro, princípio vital. Seria a causa mesma da vida, bem como algo capaz de se desprender do corpo, viajar para outros planos e tempos. O raciocínio evolucionista de autores como Tylor foi refutado por diferentes correntes da antropologia ao longo do século 20, embora possamos dizer que ainda seja visto entranhado no senso comum da modernidade. A ideia de uma religião embrionária, fundada em crenças desprovidas de lógica, perdeu lugar no discurso dos antropólogos, que passaram a buscar racionalidades por trás de diferentes práticas mágico-religiosas.

Uma reabilitação importante do conceito antropológico de animismo aparece com Philippe Descola, em sua monografia “La nature domestique” (1986), sobre os Achuar da Amazônia equatoriana. Descola demonstrou que, quando os Achuar dizem que animais e plantas têm wakan (“alma” ou, mais precisamente, intencionalidade, faculdade de comunicação ou inteligência), isso não deve ser interpretado de maneira metafórica ou como simbolismo. Isso quer dizer que o modo de os Achuar descreverem o mundo é diverso do modo como o fazem os naturalistas (baseados nos ditames da Ciência moderna), por não pressuporem uma linha intransponível entre o que costumamos chamar Natureza e Cultura. O animismo não seria mera crença, representação simbólica ou forma primitiva de religião, mas, antes de tudo, uma ontologia, modo de descrever tudo o que existe, associada a práticas. Os Achuar engajam-se em relações efetivas com outras espécies, o que faz com que, por exemplo, mulheres sejam tidas como mães das plantas que cultivam, e homens como cunhados dos animais de caça.

Para Descola, a ontologia naturalista não pode ser tomada como único modo de descrever o mundo, como fonte última de verdade. Outros três regimes ontológicos deveriam ser considerados de maneira simétrica, entre eles o animismo. Esse ponto foi desenvolvido de maneira exaustiva em Par-delà nature et culture (2005), no qual o autor se lança em uma aventura comparatista cruzando etnografias de todo o globo. O animismo inverte o quadro do naturalismo: se neste último caso a identificação entre humanos e não humanos passa pelo plano da fisicalidade (o que chamamos corpo, organismo ou biologia), no animismo essa mesma identificação se dá no plano da interioridade (o que chamamos alma, espírito ou subjetividade). Para os naturalistas, a alma seria privilégio da espécie humana, já para os animistas é uma mesma “alma humana” que se distribui entre todos os seres do cosmos.

A ideia de perspectivismo, que autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima atribuem a cosmologias ameríndias, estende e transforma a de animismo. O perspectivismo seria, grosso modo, uma teoria ou metafísica indígena que afirma que (idealmente) diferentes espécies se têm como humanas, mas têm as demais como não humanas. Tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas todos não podem ser sujeitos ao mesmo tempo, o que implica uma disputa. Diz-se, por exemplo, que onças veem-se como humanas e veem humanos como presas. O que os humanos veem como sangue é, para elas, cerveja de mandioca, bebida de festa. Onças e outros animais (mas também plantas, astros, fenômenos meteorológicos) são, em suma, humanos “para si mesmos”. Um xamã ameríndio seria capaz de mudar de perspectiva, de se colocar no lugar de outrem e ver como ele o vê, portanto de compreender que a condição humana é partilhada por outras criaturas.

Como insiste Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem (2002), a perspectiva está nos corpos, conjuntos de afecções mais do que organismos. A mudança de perspectiva seria, assim, uma metamorfose somática e se ancoraria na ideia de um fundo comum de humanidade, numa potencialidade anímica distribuída horizontalmente no cosmos. Se o perspectivismo é o avesso do antropocentrismo, ele não se separa de certo antropomorfismo, fazendo com que prerrogativas humanas deixem de ser exclusividade da espécie humana, assumindo formas as mais diversas.

O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2010), traz exemplos luminosos desses animismos e perspectivismos amazônicos. Toda a narrativa de Kopenawa está baseada em sua formação como xamã yanomami, que se define pelo trato com os espíritos xapiripë, seres antropomórficos que nada mais são que “almas” ou “imagens” (tradução que Albert prefere dar para o termo utupë) dos “ancestrais animais” (yaroripë). Segundo a mitologia yanomami, os animais eram humanos em tempos primordiais, mas se metamorfosearam em seus corpos atuais. O que uniria humanos e animais seria justamente utupë, e é como utupë que seus ancestrais aparecem aos xamãs. Quando os xamãs yanomami inalam a yãkoana (pó psicoativo), seus olhos “morrem” e – mudando de perspectiva – eles acessam a realidade invisível dos xapiripë, que se apresentam em uma grande festa, dançando e cantando, adornados e brilhosos. O xamanismo yanomami – apoiando-se em experiências de transe e sonho – é um modo de conhecer e descrever o mundo. É nesse sentido que Kopenawa diz dos brancos, “povo da mercadoria”, que eles não conhecem a terra-floresta (urihi), pois não sabem ver. Onde eles identificam uma natureza inerte, os Yanomami apreendem um emaranhado de relações. O conhecimento dessa realidade oculta é o que permitiria a esses xamãs impedir a queda do céu, catalisada pela ação destrutiva dos brancos. E assim, insiste Kopenawa, esse conhecimento passa a dizer respeito não apenas aos Yanomami, mas a todos os habitantes do planeta.

Embora distintas, as propostas de Descola e de Ingold buscam na experiência animista um contraponto às visões naturalistas e racionalistas, que impõem uma barreira entre o sujeito (humano) e o mundo. Como propõe Viveiros de Castro, essa crítica consiste na “descolonização do pensamento”, pondo em xeque o excepcionalismo humano e a pretensão de uma ontologia exclusiva detida pelos modernos. Contraponto e descolonização que não desembocam de modo algum na negação das ciências modernas, mas que exigem imaginar que é possível outra ciência ou que é possível reencontrar o animismo nas ciências. Tal tem sido o esforço de autores como Bruno Latour e Isabelle Stengers, expoentes mais expressivos dos science studies: mostrar que a ciência em ação desmente o discurso oficial, para o qual conhecer é desanimar (dessubjetivar) o mundo, reduzi-lo a seu caráter imutável, objetivo.

No livro Sobre o culto moderno dos deuses “fatiches” (1996), Latour aproxima a ideia de fetiche nas religiões africanas à ideia de fato nas ciências modernas. Um fetiche é um objeto de culto (ou mesmo uma divindade) feito por humanos e que, ao mesmo tempo, age sobre eles. Com seu trabalho etnográfico em laboratórios, Latour sugeriu que os fatos científicos não são meramente “dados”, mas dependem de interações e articulações em rede. Num laboratório, moléculas e células não seriam simplesmente objetos, mas actantes imprevisíveis, constantemente interrogados pelo pesquisador. Em seu pioneiro Jamais fomos modernos (1991), Latour assume que fatos científicos são em certo sentido feitos, e só serão aceitos como fatos quando submetidos à prova das controvérsias, isto é, quando conseguirem ser estabilizados como verdades.

Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na história das ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas. Segundo ela, as ciências modernas se estabelecem a partir da desqualificação de outras práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela acompanha, por exemplo, como a química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da hipnose. Em suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. E isso, segundo Stengers, não pode ser dissociado do lastro entre a história das ciências e a do capitalismo. Em La sorcellerie capitaliste (A feitiçaria do capitalismo, 2005), no diálogo com a ativista neopagã Starhawk, Stengers e Philippe Pignarre lembram que o advento da ciência moderna e do capitalismo nos séculos 17 e 18 não se separa da perseguição às práticas de bruxaria lideradas por mulheres. Se o capitalismo, ancorado na propriedade privada e no patriarcado, emergia com a política dos cercamentos (expulsão dos camponeses das terras comuns), a revolução científica se fazia às custas da destruição de práticas mágicas. Stengers e Pignarre encontram no ativismo de Starhawk e de seu grupo Reclaim, que despontou na Califórnia no final dos anos 1980, um exemplo de resistência anticapitalista. Para Starhawk, resistir ao capitalismo é justamente retomar (reclaim) práticas – no caso, a tradição wicca, de origem europeia – que foram sacrificadas para que ele florescesse.

Retomar a magia, retomar o animismo seria, para Stengers, uma forma de existência e de resistência. Como escreveu em Cosmopolíticas (1997), quando falamos de práticas desqualificadas pelas ciências modernas, não deveríamos apenas incorrer em um ato de tolerância. Não se trata de considerar a magia uma crença ou “cultura”, como fez-se na antropologia da época de Tylor e até pouco tempo atrás. Ir além da “maldição da tolerância” é levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida ou uma árvore pensa. Stengers não está interessada no animismo como “outra” ontologia: isso o tornaria inteiramente exterior à experiência moderna. Ela tampouco se interessa em tomar o animismo como verdade única, nova ontologia que viria desbancar as demais. Mais importante seria experimentá-lo, seria fazê-lo funcionar no mundo moderno.

Que outra ciência seria capaz de retomar o animismo hoje? Eis uma questão propriamente stengersiana. Hoje vivemos mundialmente uma crise sanitária em proporções jamais vistas, que não pode ser dissociada da devastação ambiental e do compromisso estabelecido entre as ciências e o mercado. A outra ciência, diriam Latour e Stengers, seria a do sistema terra e do clima, que tem como marco a teoria de Gaia, elaborada por James Lovelock e Lynn Margulis nos anos 1970. Gaia é para esses cientistas a Terra como um organismo senciente, a Terra como resultante de um emaranhado de relações entre seres vivos e não vivos. Poderíamos dizer que Gaia é um conceito propriamente animista que irrompe no seio das ciências modernas, causando desconfortos e ceticismos. O que Stengers chama de “intrusão de Gaia”, em sua obra No tempo das catástrofes (2009), é uma reação ou resposta do planeta aos efeitos destruidores do capitalismo, é a ocorrência cada vez mais frequente de catástrofes ambientais e o alerta para um eventual colapso do globo. Mas é também, ou sobretudo, um chamado para a conexão entre práticas não hegemônicas – científicas, artísticas, políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e imaginar novos mundos.

O chamado de Stengers nos obriga a pensar a urgência de uma conexão efetiva entre as ciências modernas e as ciências indígenas, uma conexão que retoma o animismo, reconhecendo nele um modo de engajar humanos ao mundo, contribuindo assim para evitar ou adiar a destruição do planeta. Como escreve Ailton Krenak, profeta de nosso tempo, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”. Em outras palavras, quando desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um poder mortífero. Retomar o animismo surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir.

Why Anthropology Matters (Scientific American)

scientificamerican.com

It’s the antidote to nativism, the enemy of hate—a vaccine of understanding, tolerance and compassion that can counter the rhetoric of demagogues

Wade Davis, February 1, 2021

Pioneering anthropologist Franz Boas. Credit: Alamy

In 2012, both Kiplinger and Forbes ranked anthropology as the least valuable undergraduate major, unleashing a small wave of indignation as many outside the field rushed to defend the study of culture as ideal preparation for any life or career in an interconnected and globalized world. The response from professional anthropologists, confronted by both an existential challenge and public humiliation, was earnest but largely ineffective, for the voice of the discipline had been muted by a generation of self-absorption, tempered by a disregard for popular engagement that borders on contempt.

Ruth Benedict, acolyte of the great Franz Boas and in 1947 president of the American Anthropological Association (AAA), reputedly said that the very purpose of anthropology was to make the world safe for human differences.

Today, such activism seems as passé as a pith helmet. In the immediate aftermath of 9/11, the AAA met in Washington, D.C. Four thousand anthropologists were in the nation’s capital in the wake of the biggest story of culture they or the country would ever encounter. The entire gathering earned but a mention in The Washington Post, a few lines in the gossip section essentially noting that the nutcases were back in town. It was hard to know who was more remiss, the government for failing to listen to the one profession that could have answered the question on everyone’s lips—Why do they hate us?—or the profession itself for failing to reach outside itself to bring its considerable insights to the attention of the nation.

Perhaps fittingly it took an outsider to remind anthropologists why anthropology matters. Charles King, professor of international affairs at Georgetown University, begins his remarkable book The Reinvention of Humanity by asking us to envision the world as it existed in the minds of our grandparents, perhaps your great-grandparents. Race, he notes, was accepted as a given, a biological fact, with lineages dividing white from Black reaching back through primordial time. Differences in customs and beliefs reflected differences in intelligence and destiny, with every culture finding its rung on an evolutionary ladder rising from the savage to the barbarian to the civilized of the Strand in London, with technological wizardry, the great achievement of the West, being the sole measure of progress and success.

Sexual and behavioral characteristics were presumed fixed. Whites were smart and industrious, Blacks physically strong but lazy, and some people were barely distinguishable from animals; as late as 1902 it was debated in parliament in Australia whether aborigines were human beings. Politics was the domain of men, charity work and the home the realm of women. Women’s suffrage only came in 1919. Immigrants were seen as a threat, even by those who had themselves only just managed to claw their way ashore. The poor were responsible for their own miseries, even as the British army reported that the height of officers recruited in 1914 was on average six inches taller than that of enlisted men, simply because of nutrition. As for the blind, deaf and dumb, the cripples, morons, Mongoloids, and the mad, they were best locked away, lobotomized and even killed to remove them from the gene pool.

The superiority of the white man was accepted with such assurance that the Oxford English Dictionary in 1911 had no entries for racism or colonialism. As recently as 1965, Carleton Coon completed a set of two books, The Origin of Races and The Living Races of Man, in which he advanced the theory that the political and technological dominance of Europeans was a natural consequence of their evolved genetic superiority. He even asserted that “racial intermixture can upset the genetic as well as the social equilibrium of a group.” Coon at the time of his retirement in 1963 was a respected professor and curator at the University of Pennsylvania. Interracial marriage remained illegal across much of the United States until 1967.

Today, not two generations on, it goes without saying that no educated person would share any of these bankrupt certitudes. By the same token, what we take for granted would be unimaginable to those who fiercely defended convictions that appear to the modern eye both transparently wrong and morally reprehensible. All of which raises a question. What was it that allowed our culture to go from zero to 60 in a generation, as women moved from the kitchen to the boardroom, people of color from the woodshed to the White House, gay men and women from the closet to the altar?

Political movements are built upon the possibility of change, possibilities brought into being by new ways of thinking. Before any of these struggles could flourish, something fundamental, some flash of insight, had to challenge and, in time, shatter the intellectual foundations that supported archaic beliefs as irrelevant to our lives today as the notions of 19th-century clergymen, certain that the earth was but 6,000 years old.

The catalyst, as Charles King reminds us, was the wisdom and scientific genius of Franz Boas and a small band of courageous scholars—Margaret Mead, Alfred Kroeber, Elsie Clews Parsons, Melville Herskovits, Edward Sapir, Robert Lowie, Ruth Benedict, Zora Neale Hurston and many others— contrarians all, who came into his orbit, destined to change the world. We live today in the social landscape of their dreams. If you find it normal, for example, that an Irish boy would have an Asian girlfriend, or that a Jewish friend might find solace in the Buddhist dharma, or that a person born into a male body could self-identify as a woman, then you are a child of anthropology.

If you recognize that marriage need not exclusively imply a man and a woman, that single mothers can be good mothers, and that two men or two women can raise good families as long as there is love in the home, it’s because you’ve embraced values and intuitions inconceivable to your great-grandparents. And if you believe that wisdom may be found in all spiritual traditions, that people in all places are always dancing with new possibilities for life, that one preserves jam but not culture, then you share a vision of compassion and inclusion that represents perhaps the most sublime revelation of our species, the scientific realization that all of humanity is one interconnected and undivided whole.

Widely acknowledged as the father of American cultural anthropology, Franz Boas was the first scholar to explore in a truly open and neutral manner how human social perceptions are formed, and how members of distinct societies become conditioned to see and interpret the world. What, he asked, was the nature of knowing? Who decided what was to be known? How do seemingly random beliefs and convictions converge into this thing called culture, a term that he was the first to promote as an organizing principle, a useful point of intellectual departure.

Far ahead of his time, Boas recognized that every distinct social community, every cluster of people distinguished by language or adaptive inclination, was a unique facet of the human legacy and its promise. Each was a product of its own history. None existed in an absolute sense; every culture was but a model of reality. We create our social realms, Boas would say, determine what we then define as being common sense, universal truths, the appropriate rules and codes of behavior. Beauty really does lie in the eye of the beholder. Manners don’t make the man; men and women invent the manners. Race and gender are cultural constructs, derived not from biology but born in the realm of ideas.

Critically, none of this implied an extreme relativism, as if every human behavior must be accepted simply because it exists. Boas never called for the elimination of judgment, only its suspension so that the very judgments we are ethically and morally obliged to make as human beings may be informed ones. Even as he graced the cover of Time magazine in 1936, a German Jew in exile from a homeland already dripping in blood, Boas railed against the cruel conceits and stupidity of scientific racism. Inspired by his time among the Inuit on Baffin Island, and later the Kwakwaka’wakw in the salmon forests of the Pacific Northwest, he informed all who would listen that the other peoples of the world were not failed attempts to be them, failed attempts to be modern. Every culture was a unique expression of the human imagination and heart. Each was a unique answer to a fundamental question: What does it mean to be human and alive? When asked that question, humanity responds in 7,000 different languages, voices that collectively comprise our repertoire for dealing with all the challenges that will confront us as a species.

Boas would not live to see his insights and intuitions confirmed by hard science, let alone define the zeitgeist of a new global culture. But, 80 years on, studies of the human genome have indeed revealed the genetic endowment of humanity to be a single continuum. Race truly is a fiction. We are all cut from the same genetic cloth, all descendants of common ancestors, including those who walked out of Africa some 65,000 years ago, embarking on a journey that over 40,000 years, a mere 2500 generations, carried the human spirit to every corner of the habitable world.

But here is the important idea. If we are all cut from the same fabric of life, then by definition we all share the same mental acuity, the same raw genius. Whether this intellectual potential is exercised through technological innovation, as has been the great achievement of the West, or through the untangling of complex threads of memory inherent in a myth, a priority of many other peoples in the world, is simply a matter of choice and orientation, adaptive insights and cultural emphasis. There is no hierarchy of progress in the history of culture, no evolutionary ladder to success. Boas and his students were right. The brilliance of scientific research, the revelations of modern genetics, has affirmed in an astonishing way both the unity of humanity and the essential wisdom of cultural relativism. Every culture really does have something to say; each deserves to be heard, just as none has a monopoly on the route to the divine.

As a scholar, Boas ranks with Einstein, Darwin and Freud as one of the four intellectual pillars of modernity. His core idea, distilled in the notion of cultural relativism, was a radical departure, as unique in its way as was Einstein’s theory of relativity in the discipline of physics. Everything Boas proposed ran against orthodoxy. It was a shattering of the European mind, the sociological equivalent of the splitting of the atom. And though his research took him to esoteric realms of myth and shamanism, symbolism and the spirit, he remained grounded in the politics of racial and economic justice, the promise and potential of social change. A tireless campaigner for human rights, Boas maintained always that anthropology as a science only made sense if it was practiced in the service of a higher tolerance. “It is possible,” wrote Thomas Gossett in his 1963 book Race: The History of an Idea in America, that “Boas did more to combat race prejudice than any other person in history.”

Though remembered today as the giants of the discipline, Boas and his students in their time were dismissed from jobs because of their activism; denied promotion because of their beliefs; harassed by the FBI as the subversives they truly were; and attacked in the press simply for being different. And yet they stood their ground, and because they did, as Charles King writes, “anthropology came into its own on the front lines of the great moral battle of our time… [as it] anticipated and in good measure built the intellectual foundations for the seismic social changes of the last hundred years from women’s suffrage and civil rights to sexual revolution and marriage equality.”

Were Boas to be with us today, his voice would surely resound in the public square, the media, in all the halls of power. He would never sit back in silence as fully half the languages of the world hover on the brink of extinction, implying the loss within a single generation of half of humanity’s intellectual, ecological and spiritual legacy. To those who suggest that indigenous cultures are destined to fade away, he would reply that change and technology pose no threat to culture, but power does. Cultures under threat are neither fragile nor vestigial; in every instance, they are living dynamic peoples being driven out of existence by identifiable forces. If human beings are the agents of cultural loss, he would note, we can surely be facilitators of cultural survival.  

Anthropology matters because it allows us to look beneath the surface of things. The very existence of other ways of being, other ways of thinking, other visions of life itself, puts the lie to those in our own culture who say that we cannot change, as we know we must, the fundamental way in which we inhabit this planet. Anthropology is the antidote to nativism, the enemy of hate, a vaccine of understanding, tolerance and compassion that silences the rhetoric of demagogues, inoculating the world from the likes of the Proud Boys and Donald Trump. As the events of the last months have shown, the struggle long ago championed by Franz Boas is ongoing. Never has the voice of anthropology been more important.

But it must be spoken to be heard. With a million Uighurs in Chinese prison camps, the forests of the Penan in Sarawak laid waste, and the very homeland of the Inuit melting from beneath their lives, contemporary anthropologists must surely do better than indulging doctrinal grievance studies, seminars on intersectionality, the use of pronouns and other multiple expressions of woke orthodoxy if the discipline is to avoid the indictment of actually being the most worthless of undergraduate degrees.

Wade Davis is a professor of anthropology and holds the B.C. Leadership Chair in Cultures and Ecosystems at Risk at the University of British Columbia. His latest book is Magdalena: River of Dreams (Knopf 2020).

A necessária indomesticabilidade de termos como “Antropoceno”: desafios epistemológicos e ontologia relacional (Opinião Filosófica)

Opinião Filosófica Special Issuehttps://doi.org/10.36592/opiniaofilosofica.v11.1009


A necessária indomesticabilidade de termos como “Antropoceno”: desafios epistemológicos e ontologia relacional

The necessary untameability of terms as “the Anthropocene”: epistemological challenges and relational ontology


Renzo Taddei[1]
Davide Scarso[2]
Nuno Pereira Castanheira[3]

Resumo
Nesta entrevista, realizada por Davide Scarso e Nuno Pereira Castanheira entre os meses de novembro e dezembro de 2020 via e-mail, o Professor Renzo Taddei (Unifesp) discute o significado do termo Antropoceno e as suas implicações, com base nas contribuições teóricas de Deborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro, Donna Haraway, Isabelle Stengers e Bruno Latour, entre outros. O entrevistado enfatiza a necessidade de evitarmos a redução do Antropoceno ou termos similares a conceitos científicos, assim preservando a sua capacidade indutora de novas perspectivas e transformações existenciais e resistindo à tentação de objetivação dominadora de um mundo mais complexo e bagunçado do que a epistemologia clássica gostaria de admitir.

Palavras-chave: Ecologia. Sustentabilidade. Ontologia. Epistemologia. Política

Abstract
In this interview, conducted via e-mail by Davide Scarso and Nuno Pereira Castanheira between the months of November and December 2020, Professor Renzo Taddei (Unifesp) discusses the meaning of the term Anthropocene and its implications, based on the theoretical contributions of Deborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro, Donna Haraway, Isabelle Stengers and Bruno Latour, among others. The interviewee emphasizes the need of avoiding the reduction of the Anthropocene and similar terms to scientific concepts, thus preserving their ability to induce new perspectives and existential transformation, and resisting the temptation of objectifying domination of a world that is more complex and messier than classical epistemology would like to acknowledge.

Keywords: Ecology. Sustainability. Ontology. Epistemology. Politics


1)  O que exatamente é o Antropoceno: um conceito científico, uma proposição política, um alarme soando?

Esta questão é tema de amplos e acalorados debates. Uma coisa que parece estar clara, no entanto, é que não há lugar para o advérbio “exatamente” nas muitas formas como o Antropoceno é conceitualizado. De certa maneira, o contexto em que a questão é colocada define suas respostas potenciais. Sugerir um nome que aponte para os sintomas do problema é distinto de tentar circunscrever as suas causas, e ambas as coisas não são equivalentes ao intento de atribuir responsabilidades. O problema é que o Antropoceno pode ser lido como qualquer uma destas coisas, e isso causa desentendimentos. É neste contexto que surgem argumentos em defesa do uso dos termos Capitaloceno ou Plantationceno[4], dentre outros, como alternativas mais apropriadas. O anthropos do Antropoceno sugere uma humanidade tomada de forma geral, sem atentar para a quantidade de injustiça e racismo ambientais na conformação do contexto presente.

Todos estes nomes têm sua utilidade, mas devem ser usados com cuidado. Como mostraram, cada qual à sua maneira, Timothy Morton[5] e Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro[6] em colaboração, não somos capazes de abarcar o problema em sua totalidade. É um marco importante na história do pensamento social e filosófico que efetivamente exista certo consenso de que o problema é maior e mais complexo que nossos sistemas conceituais e nossas categorias de pensamento. O que nos resta é fazer uso produtivo, na forma de bricolagem, das ferramentas conceituais imperfeitas que possuímos. Como Donna Haraway afirmou repetidamente por toda a sua carreira, o mundo real é mais complexo e bagunçado (“messy”) do que tendemos a reconhecer. Todas as teorias científicas são modelos de arame, e isto inclui, obviamente, as das ciências sociais. Não seria diferente no que diz respeito ao Antropoceno.

No fundo, a busca sôfrega pelo termo “correto” é um sintoma do problema de como nossas mentes estão colonizadas por ideias positivistas sobre a realidade. Em geral, tendemos a cair muito rápido na armadilha de sentir que, quando temos um nome para algo, entendemos do que se trata. Via de regra, trata-se do oposto: nomes estão associados a formas de regimentação semiótica do mundo; são parte de nossos esforços em domesticação da realidade, em tentativa de reduzi-la a nossas expectativas sobre ela. Este é especialmente o caso de nomes “taxonômicos”, como o Antropoceno: são molduras totalizantes que direcionam nossa atenção a certas dimensões do mundo, produzidas pelas ideias hegemônicas do lugar e do tempo em que estão em voga. Há muitas maneiras de desarmar esse esquema; uma é apontando para o fato de que pensar um mundo feito de “objetos” ou mesmo “fenômenos” é causa e efeito, ao mesmo tempo, do fato de que as ciências buscam, em geral, causas unitárias para efeitos específicos no mundo. Isso funciona para a física newtoniana mas não funciona para o que chamamos de ecossistemas, por exemplo. A existência mesma do hábito de criar coisas como o termo Antropoceno nos impede de abordar de forma produtiva o problema que o termo tenta descrever.

O termo é, desta forma, uma tentativa de objetificação; o que ele acaba objetificando são alguns de nossos medos e ansiedades. Dado que temos muito a temer, e tememos de formas muito diversas, não é surpresa que inexista consenso a respeito do que é o Antropoceno.   

Se um nome se faz necessário, precisamos de um que faça coisas outras que reduzir nossa ansiedade cognitiva a níveis administráveis. Esta é a forma, lembremos, como Latour definiu a produção da “verdade” no âmbito das ciências[7]. Ou seja, o que estou dizendo é que o Antropoceno, ou qualquer outro termo que usemos em seu lugar, para ser útil de alguma forma, não deve ser um conceito científico. Necessitamos de um termo que desestabilize nossos esquemas conceituais e nos induza a novas perspectivas e à transformação de nossos modos de existência. Um conceito desta natureza deve ser, necessariamente, indomesticável. Deve, portanto, resistir ao próprio ímpeto definidor da cognição. Etimologicamente, definir é delimitar, colocar limites; trata-se, portanto, de uma forma de domesticação. Um conceito indomesticável será, necessariamente, desconfortável; será percebido como “confusão”.

Na minha percepção, essa é uma das dimensões do conceito de Chthuluceno, proposto por Donna Haraway[8]. Ele não nos fala sobre o que supostamente está acontecendo com o mundo, mas propõe, ao mesmo tempo e de forma sobreposta, novas maneiras de entender as relações entre os seres e o poder de constituição de mundos de tais relações, onde o humano e o próprio pensamento são frutos de processos simpoiéticos. Esta perspectiva impossibilita a adoção, mesmo que tácita e por hábito, da ideia de humano herdada do iluminismo e do liberalismo europeus como elemento definidor da condição que vivemos no Antropoceno, e desarticula o especismo embutido em tais perspectivas.

Outra dimensão fundamental associada ao conceito de Chthuluceno é sua rejeição das metafísicas totalizantes, onde ideias abstratas tem a pretensão de ser universais e, portanto, de não ter ancoragem contextual. Haraway sugere que precisamos alterar nossa perspectiva a respeito do que é importante, em direção ao que ela chama de materialismo sensível em contextos simpoiéticos: a capacidade de perceber as relações que constituem a vida, nos contextos locais, e de agir de forma responsável sobre tais relações. Toda forma de conhecimento é parcial, fragmentada, e tem marcas de nascimento. Quando o conhecimento se apresenta sem o reconhecimento explícito dessas coisas, uma de duas alternativas está em curso: os envolvidos reconhecem e aceitam essa incontornável contextualidade do saber e isso não é mais uma questão; ou o conhecimento segue parte das engrenagens do colonialismo.

A ideia de aterramento, apresentada no último livro de Latour[9], converge em grande medida com as posições de Haraway. Em termos de tradições filosóficas, na minha percepção de não-especialista parece-me que ambos se alinham com o pragmatismo norte-americano, ainda que raramente façam referência a isso.

2)  Frequentemente, quando se discutem os problemas ambientais mais críticos do presente, mas também outros temas urgentes da contemporaneidade, a falta de unanimidade e consenso é lamentada. O que seria, à luz de sua pesquisa e reflexão, uma resposta “adequada” às muitas questões difíceis colocadas pelo Antropoceno?

Vivemos em tempos complexos, e o desenvolvimento das ferramentas conceituais disponíveis para dar conta do que temos adiante de nós segue em ritmo acelerado, mas não exatamente na direção do que as ideologias de progresso científico do século 20 supunham natural. Não me parece que estamos chegando “mais perto” de algo que sejamos capazes de chamar de “solução”, ainda que filosófica. Não se trata mais disso. O que os autores inseridos nos debates sobre o Antropoceno estão sugerindo é que este ideário de progresso colapsou filosoficamente, ainda que siga sendo conveniente ao capitalismo. A maior parte da academia segue trabalhando dentro deste paradigma falido, de forma inercial ou porque efetivamente atua para fornecer recursos ao capitalismo.

O que ocorre é que as noções de que a mente tem acesso imediato à realidade e de que as ideias explicativas sobre o mundo buscam uma ordem subjacente universal, da qual as coisas e contextos são apenas reflexos imperfeitos – uma ordem platônica, portanto – vêm sendo atacadas desde pelo menos Nietzsche. Os autores mais importantes do debate do Antropoceno são herdeiros de uma corrente perspectivista do século 20 que tinha Nietzsche em posição central, mas que incluía também Whitehead e James, e que posteriormente esteve ligada principalmente a Deleuze e Foucault. Isso explica o fato de que é parte fundamental do debate sobre o Antropoceno a crítica às filosofias de transcendência e a atenção dada à questão das relações de imanência. É contribuição fundamental de Eduardo Viveiros de Castro mostrar ao mundo que o que Deleuze entendia como imanência tinha relações profundas com o pensamento indígena amazônico[10], e ele estava trabalhando nisso muito antes da questão do Antropoceno se impor na filosofia e nas ciências sociais. Quando o Antropoceno se tornou tema incontornável, a questão dos modos de vida indígenas ganhou saliência não apenas por se apresentar como forma real, empírica de se viver de modos relacionais, mas também pelo fato de que os povos indígenas têm pegada de carbono zero e promovem a biodiversidade. Este último item funciona como ponte entre os debates mais propriamente filosóficos e os ecológicos.

Isso tudo me parece importante para falarmos sobre o que são, e que expectativas existem em torno dos temas de unanimidade e consenso. O desejo da comunicação perfeita é irmão gêmeo do desejo da nomeação perfeita, citado na resposta anterior. Em ambos os casos, trata-se da manifestação de uma concepção de mente que flutua no vácuo, desconectada das bases materiais e processuais que a fazem existir. De certa forma, esta concepção subjaz aos debates sobre o dissenso sempre que este é entendido como problema epistemológico. Quando isso ocorre, a intersubjetividade entendida como necessária ao processo de construção de consenso é vista como ligada a conceitos e ideias, e os diagnósticos sobre a razão do dissenso rapidamente caem nas valas comuns da “falta de educação” ou de “formas míticas de pensamento”.

A despeito das diferenças entre os autores associados ao debate sobre o Antropoceno – Haraway, Latour, Viveiros de Castro, Stengers, dentre muitos outros -, uma das coisas que todos têm em comum é a rejeição de uma abordagem que reduz o problema a uma questão epistemológica, em favor de uma perspectiva que dá centralidade à dimensão mais propriamente ontológica. Em razão disso, intercâmbios muito frutíferos passaram a ocorrer entre a filosofia e a antropologia, como se pode ver na obra não apenas do Viveiros de Castro, mas também de Tim Ingold, Elizabeth Povinelli, Anna Tsing, e muitos outros.

A questão aqui é que, quando as questões ontológicas, dentro de filosofias relacionais e perspectivísticas, passam a ser tomadas em conta, a comunicação passa a ser outra coisa. O exemplo mais bem acabado de teorização sobre isso é a teoria do perspectivismo ameríndio[11], desenvolvida por Viveiros de Castro e por Tania Stolze Lima. Esta teoria postula que o que os seres percebem no mundo é definido pelo tipo de corpos que têm, dentro de relações interespecíficas perigosas (de predação, por exemplo), e frente a um pano de fundo cosmológico em que grande parte dos seres têm consciência e intencionalidade equivalentes às humanas. Para alguns povos, por exemplo, a onça vê o humano como porco do mato e sangue como cerveja de caium, enquanto o porco do mato vê o humano como onça. A questão crucial, aqui, é que nenhuma das visões é ontologicamente superior à outra. Isso quer dizer que percepção humana não é mais “correta” que a da onça; é simplesmente produzida por um corpo humano, enquanto a da onça é produzida por um corpo de onça. Não há perspectiva absoluta, porque não corpo absoluto.    

Como é que onça e humano se comunicam, então? A pergunta é interessante logo de saída, porque entre os ocidentais a onça é tida como irracional e destituída de linguagem, e a comunicação é entendida como impossível. Nos mundos indígenas, geralmente cabe ao xamã, através de tecnologias xamânicas – que na Amazônia costuma implicar o uso de substâncias das plantas da floresta -, sair de seu corpo de humano e entrar em contato com o espírito da onça, ou dos seres de alguma forma associados às onças. Mas essa é apenas parte da questão; a relação entre caçador e presa, mais ordinária do que o contexto xamânico, é frequentemente descrita como relação de sedução, como uma forma de coreografia entre os corpos.

Alguns autores do debate sobre o Antropoceno têm explorado as implicações filosóficas de uma nova fronteira da microbiologia que apresenta os seres e seus corpos através de outras lentes. Em seu último livro, Haraway discute o conceito de holobionte, um emaranhado de seres em relações simbióticas que permitem a ocorrência da vida dos envolvidos. A questão filosófica importante que advém dos holobiontes é que, ao invés de falarmos de seres que estão em simbiose, parece mais apropriado dizer que é a partir das relações que emergem os seres. A simbiose é anterior aos seres, por assim dizer. Isso pode parecer muito técnico, e fica mais claro se mencionarmos que o corpo humano é entendido como um holobionte. O corpo existe em relação de simbiose com um número imenso de bactérias e outros seres, como fungos e vírus, e está bem documentado que as bactérias que habitam o trato intestinal humano têm efeito sobre o funcionamento do sistema nervoso, induzindo a pessoa a certos estados de ânimo e vontades. Esticando o argumento no limite da provocação, seria possível dizer que o que chamamos de consciência não é produzido nas células que têm o “nosso” DNA, mas é um fenômeno emergente da associação simbiótica entre os sistemas do corpo humano e os demais seres que compõe o holobionte.

Se for este o caso, a comunicação não se dá entre mentes e sistemas semióticos imateriais, mas entre seres imbuídos de sua materialidade e da materialidade dos contextos em que vivem. Mais do que pensar de forma alinhada, a questão passa a ser encontrar formas de relação que, como diz Haraway, nos permita viver e morrer bem em simpoiese com os demais seres. Como coloquei em outro lugar[12], precisamos ser capazes de fazer alianças com quem não pensa como pensamos, com quem não pensa como humanos, e com que não pensa.

O problema é imensamente maior que o do consenso, e ao mesmo tempo mais realista, em termos das possibilidades de materialização de soluções. Duas formas de abordagem da questão foram desenvolvidas entre antropólogos que trabalham na Amazônia: Viveiros de Castro propôs a teoria do equívoco controlado[13], e Mauro Almeida a dos encontros pragmáticos[14]. Ambos os casos se referem à comunicação de seres que existem em mundos distintos, ou seja, suas existências são compostas de acordo com pressupostos distintos sobre o que existe e o que significa existir. É imediato pensar no contexto do contato entre povos indígenas e não indígenas, mas o esquema pode ser usado para pensar qualquer relação de diferença. A ideia de que a comunicação pressupõe necessariamente o alinhamento epistemológico, nesta perspectiva, implica processos de violência contra corpos, culturas e mundos.

Basta olharmos a nosso redor para perceber que a vida comum não pressupõe alinhamento epistemológico. Há alguns dias vi um grupo de formigas cooperando para carregar uma migalha de pão muito maior do que o corpo de cada uma delas, e estavam subindo uma parede vertical. Fiquei espantado com a capacidade de cooperação entre seres entre os quais não existe atividade epistemológica. Entre os seres que pensam, boa parte do que existe no mundo é fruto de desentendimentos produtivos – uma pessoa diz uma coisa, a outra entende algo diferente, e juntas transformam a sua realidade, sem serem capazes sequer de avaliar de forma idêntica o resultado de suas ações, mas ainda assim podendo ambas sentirem-se satisfeitas com o processo. É como se estivessem dançando: nunca se dança da mesma forma, ainda que os corpos estejam conectados, e tampouco se entende o que se está fazendo da mesma forma durante a performance da dança, e com tudo isso é perfeitamente possível que o efeito seja o sentimento de satisfação e a fruição estético-afetiva da situação.

Haraway tem uma forma ainda mais provocadora de colocar a questão: devemos construir relações de parentesco com outros seres, animados e inanimados, se quisermos efetivamente caminhar no tratamento dos problemas ambientais.

No contexto dos conflitos associados ao Antropoceno, dois exemplos equivalentes de acordos pragmáticos são as manifestações conta a exploração de xisto betuminoso no Canadá, em 2013, e os protestos contra o oleoduto que cruzaria o território Sioux nos estados de Dakota do Sul e Dakota do Norte, nos Estados Unidos, em 2016. Em ambos os casos, viam-se pessoas indígenas marchando ao lado de estudantes universitários não-indígenas, ativistas e celebridades televisivas. Enquanto os manifestantes indígenas referiam-se à poluição do seu solo sagrado como motivação para o protesto, ativistas e celebridades gritavam o slogan de que não devemos continuar emitindo carbono. O fato de que um astro de Hollywood seja incapaz de entender o que é o solo sagrado Sioux não o impediu de marchar ao lado de anciãos Sioux que não têm nada parecido com a “molécula do carbono” em suas ontologias. Este é um exemplo pedagógico do tipo de acordo pragmático que precisamos no futuro.

Precisamos encontrar formas de “marchar” ao lado de processos do sistema terrestre que não entendemos, bem como de rochas, rios, plantas, animais, e outros seres humanos. É claro que isso não significa abdicar do uso da capacidade do uso da linguagem, mas apenas que devemos parar de atribuir poderes metafísicos transcendentes a ela – inclusive o de resolver todos os conflitos humanos -, e entender que a linguagem é tão material e relacional quantos as demais dimensões da existência.

3) Nas conversas sobre o Antropoceno e a crise ambiental planetária, as palavras e ações de resistência de comunidades indígenas de distintos lugares é frequentemente evocada. Qual é, na sua visão, a contribuição que estas experiências e intervenções, aparentemente tão distanciadas da face mais tecnológica, para não dizer tecnocrática, dos discursos oficiais sobre o Antropoceno, oferecem ao debate?

São inúmeras, e possivelmente as transformações em curso relacionadas ao papel e lugar dos intelectuais e líderes indígenas nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas fará com que sejamos capazes de perceber nuances dos modos de existência indígenas que hoje não são valorizadas. Refiro-me, no caso do Brasil, ao fato de que, no período de dois anos, Sonia Guajajara foi candidata à vice-presidência da república, Raoni foi indicado ao prêmio Nobel da Paz, Ailton Krenak foi agraciado com o prêmio Juca Pato de intelectual do ano e Davi Kopenawa ganhou o Right Livelihood Award e foi eleito para a Academia Brasileira de Ciência. E isso tudo nos dois anos mais obscuros e retrógrados da história política recente do país.

Uma parte da resposta já foi elaborada nas questões anteriores. O que se poderia agregar é o fato de que, como Latour desenvolve em seu último livro, não se pode ficar assistindo o desenrolar dos fatos na esperança de que, no fim, tudo dê certo em razão de alguma ordem transcendente misteriosa. O momento atual é de embate entre quem se alinha e vive de acordo com as agendas de exploração colonial do planeta, mesmo que não se perceba desta forma, e quem luta pela recomposição dos modos de existência em aliança com os ecossistemas e demais seres. O discurso oficial sobre o Antropoceno está em transformação, justamente em razão do ativismo das lideranças indígenas, como Davi Kopenawa[15] e Ailton Krenak[16], e dos pensadores que venho mencionando em minhas respostas, junto aos meios mais conservadores da ciência e da sociedade. E uso o termo ativismo de forma consciente aqui: não se trata de escrever livros e esperar que o mundo se transforme (ou não) como resultado. A disputa se dá palmo a palmo, reunião a reunião, e o final da história não está definido. Esta atitude se alinha mais com o modo como os indígenas entendem a realidade do que com o pensamento ocidental moderno.

Uma última coisa que vale a pena adicionar, aqui, diz respeito à questão da relação entre os modos de vida indígena e a sustentabilidade. É possível que toda a argumentação que eu apresentei aqui até agora tenha pouca aceitação e repercussão entre os cientistas que definem isso que a pergunta chama de “discursos oficiais”. Ocorre, no entanto, que pesquisas nas áreas de biodiversidade e ecologia têm mostrado que nos territórios indígenas em que as populações vivem de modos tradicionais, a eficácia na conservação da biodiversidade é igual, e algumas vezes maior, do que as medidas preservacionistas mais misantrópicas, como as chamadas áreas de proteção integral. Isto tem chamado a atenção dos biólogos e ecologistas, graças ao trabalho de antropólogos como a Manuela Carneiro da Cunha, o Mauro Almeida, o Eduardo Brondízio e outros[17]. Os povos indígenas, deste modo, são bons em conservação da natureza, mesmo que não tenham, em seus vocabulários, uma palavra para natureza. É de importância central, para os esforços ocidentais em conservação da biodiversidade, entender como isso se passa entre os povos indígenas e demais populações tradicionais. Escrevi sobre isso recentemente[18]: a chave para a compreensão deste fenômeno reside na relação entre o conceito de cuidado e a ontologia relacional habitadas pelos povos indígenas. Colocando isso de forma direta, em um contexto em que as coisas importantes do mundo são pessoas, isto é, possuem intenção e agência, independente do formato e da natureza dos seus corpos, as relações entre os seres passam a ser sociais e políticas e, portanto, perigosas e complicadas. A liberdade de ação é bem menor em um mundo em que árvores, rios e animais são gente com força de ação política. O resultado líquido disso é o que chamamos de proteção da biodiversidade.

Ou seja, índio não protege a natureza porque gosta ou vive dentro dela; índio protege a floresta justamente porque a natureza, da forma como o Iluminismo europeu plasmou o conceito, simplesmente não existe[19]. Disso tudo decorre que o cuidado para com a vida é um precipitado da arquitetura ontológica dos mundos indígenas, sem demandar voluntarismo nem culpa. Nos modos de vida ocidentais, cuidado é entendido como vontade, como obrigação moral[20], em um contexto em que as infraestruturas e o jogo político são capazes muito facilmente de desarticularem tal voluntarismo. Isso explica a desconexão entre o conhecimento e o cuidado nos modos de vida ocidentais modernos. Se tomarmos a Amazônia como exemplo, é muito fácil perceber que nunca se estudou tanto o bioma amazônico como nos últimos 20 anos; ao mesmo tempo, isso não deteve em nada a devastação da floresta. A mensagem relevante, aqui, e que é bastante contundente, é que ao invés de ficarmos culpando o mundo da política por impedir que o conhecimento científico se transforme em cuidado efetivo para com o meio ambiente, precisamos transformar as bases ontológicas sobre as quais conhecimento sobre o mundo e ação no mundo ocorrem, de modo que, à maneira dos mundos indígenas, conhecer seja, ao mesmo tempo e de forma imediata, cuidar.

4)  O seu trabalho toca frequentemente em questões associadas à interdisciplinaridade, um tema recorrente em muitas das iniciativas relacionadas ao Antropoceno e às mudanças climáticas. Como você resumiria sua experiência e posição a respeito disso?

Com minha colega Sophie Haines[21] desenvolvi uma análise das relações interdisciplinares na academia, com base nas coisas que mencionei em meu comentário acima sobre o consenso, a linguagem e a comunicação. O universo da cooperação interdisciplinar é permeado por conflitos de todas as naturezas, mas o mais proeminente é o resultado da ideia de que a colaboração só é possível com o alinhamento dos conceitos. A quantidade de tempo, fundos e amizades que se desperdiçam na tentativa vã de colonizar as mentes uns dos outros é imensa. Por essa razão as paredes simbólicas dos departamentos universitários são tão grossas.

Uma forma de pensar o problema, usando ainda o arcabouço conceitual da filosofia da ciência, é considerar que em termos epistemológicos, o mundo ao qual a atividade intelectual se refere pode ser dividido em três campos: o das variáveis, foco da atenção e do investimento da atividade científica, e que define os próprios contornos disciplinares; o dos axiomas, que são suposições a respeito da realidade que não estão ali para serem testadas, mas para instrumentalizar o trabalho com as variáveis; e o que Pierre Bourdieu[22] chamou de doxa, o fundo fenomênico da realidade que é tomado como não problemático (e portanto não tem o privilégio de se transformar em variável de pesquisa), e que algumas vezes sequer é reconhecido como existente. O problema nas relações interdisciplinares é que o que é variável para uma disciplina é parte da doxa para a outra, o que induz os acadêmicos a pensar que o que os colegas de disciplinas muito distintas fazem é inútil e perda de tempo. Vivi isso na pele, no início de minha pesquisa de campo de doutorado, quando disse a colegas meteorologistas que iria pesquisar a dimensão cultural do clima. Um deles me falou que parecia óbvio que as culturas reagissem aos climas, e isso portanto não justificaria uma pesquisa que pudesse ser chamada de científica.

Hoje, mais de duas décadas depois, as grandes agências financiadoras internacionais, como a National Science Foundation e o Belmont Forum, exigem a participação de cientistas sociais em pesquisas sobre questões ambientais. As coisas caminharam. Mas falta muito a ser feito ainda.

5)  Em algo que pode ser visto como um gesto “revisionista”, Bruno Latour recentemente afirmou que o declínio acentuado na confiança pública das ciências “duras” e nos cientistas pode estar de alguma forma relacionado com décadas de trabalhos críticos produzidos pelas ciências sociais. Devemos nós, pesquisadores das ciências sociais (e, de forma mais geral, intelectuais) recuarmos para uma forma de “essencialismo estratégico”? Ou, colocando de outra maneira, o que significa hoje um posicionamento crítico no debate sobre o Antropoceno?

Na minha percepção, a ideia de essencialismo estratégico é produto de formas essencialistas de pensar. Como se tivéssemos uma resposta rígida e correta que precisasse ser escondida. Em termos pragmáticos as coisas podem parecer assim, mas conceitualmente a questão é outra. A ideia de que estamos escondendo a resposta “correta” vai contra a compreensão da realidade como constituída de forma relacional. É como se na arena de embates a realidade não estivesse sendo plasmada ali mesmo, mas o conhecimento sobre a realidade fosse algo rígido que é apresentado na arena como arma para acabar com a conversa. Este é um argumento antigo de Latour; já estava em Jamais Fomos Modernos[23].

Há uma outra questão importante a ser mencionada: Latour é nada mais do que vítima do seu próprio sucesso em ganhar um grau de atenção que se estende de forma inédita para fora da academia. Ele não foi o primeiro a revelar que os mecanismos de produção da ciência ocidental não condizem com a imagem que os discursos hegemônicos da ciência apresentam de si. Isso já estava em Wittgenstein. Paul Feyerabend desenvolveu toda a sua carreira sobre essa questão. O trabalho sobre os paradigmas e revoluções científicas de Thomas Kuhn[24] teve grande repercussão no mundo acadêmico, e é um dos golpes mais devastadores no positivismo. Lyotard[25] inaugura o que ficou conhecido como momento pós-moderno com um livro que ataca os ideais positivos da modernidade. Mais recentemente, a ideia de que se pode associar os problemas políticos com os científicos, de modo que ao resolver os últimos se resolvem os primeiros, foi novamente atacada pela teoria da sociedade do risco de Beck[26] e da ciência pós-normal de Funtowicz e Ravetz[27].

A diferença da atuação de Latour é que ele efetivamente buscou interlocução fora da academia. Ele escreveu obras teatrais, organizou diversas exposições, interagiu de forma criativa com artistas, fez experimentos sobre sua ideia de parlamento das coisas misturando intelectuais, ativistas e artistas, e recorrentemente faz uso de um estilo de escrita que busca ser inteligível entre audiências não acadêmicas. Ele começou sua carreira docente na França em uma escola de engenharia, e tem interagido de forma intensa com o meio da arquitetura e do design, especialmente no campo da computação. Ainda que para muita gente as ideias dele não são exatamente fáceis, não há dúvida de que todo o seu esforço deu frutos. E colocou ele na mira dos conservadores, naturalmente.

Ocorre que, ao se adotar uma abordagem ontológica relacional, composicionista, como ele mesmo chamou-a, não faz muito sentido pensar que os debates são vencidos em função do valor de verdade absoluta dos enunciados. Faz muito mais sentido colocar atenção nas estratégias e efeitos pragmáticos de cada debate do que defender uma ideia a ferro e fogo, independentemente de quem sejam os interlocutores. Se tudo é político, como nos mostram o feminismo, os estudos sociais da ciência e da tecnologia, a filosofia da ciência e tantos outros campos de pensamento, é politicamente irresponsável assumir uma atitude positivista sobre o mundo, ainda mais em um momento de transformação tão difícil.

Mas não é só isso. Existem arenas de debate em que o contexto e a lógica de organização semiótica da interação podem desfigurar, de antemão, uma ideia. Lyotard falou sobre essa questão em seu livro Le différend[28]; o grupo de antropólogos da linguagem e da semiótica vinculados aos trabalhos sobre metapragmática de Michael Silverstein[29] também trabalhou extensamente sobre o assunto. Em cada momento da luta política, os avanços se dão através de alianças e movimentos cuidadosamente construídos, em função do caminho que se está seguindo, e não de alguma lógica metafísica transcendente. É assim que se caminha, honrando as alianças e caminhando devagar, com a certeza de que o próprio caminhar transforma as perspectivas.

Vou dar um exemplo mais concreto: um bocado do que vai ocorrer no que diz respeito ao meio ambiente daqui a vinte anos está sendo definido nos assentos de cursos universitários no presente. Ocorre que as pessoas ocupando os assentos dos cursos de ecologia, biologia e afins têm menos poder neste processo de plasmar o futuro do que as que ocupam os assentos dos cursos de engenharia, direito, economia e agronomia. Se quisermos que o sistema de agricultura extensiva baseada em monocultura e agrotóxico deixe de existir, não basta este debate ocorrer nos cursos ligados à ecologia e às humanidades. Ele tem que ocorrer nos cursos de agronomia. O mesmo se dá com relação à mineração ou a questões energéticas e os cursos de engenharia, a questões ligadas aos direitos ambientais e das populações tradicionais e os cursos de direito, e a ideia de crescimento econômico e os cursos de economia. Dito isso, se eu chegar em um curso de engenharia com as ideias da Haraway sobre simpoiése e materialismo sensível, no mínimo não serei tomado a sério. É nisso que as alianças e movimentos têm que ser estratégicos. Não há nada mais importante, hoje, do que fazer este debate sobre o Antropoceno, da forma como os autores que eu mencionei aqui o entendem, nas faculdades de engenharia, economia, direito, agronomia e outras; mas para que eu possa fazer isso, preciso construir alianças dentro destas comunidades. E estas alianças, vistas de longe e sem a compreensão da dimensão estratégica do movimento, podem parecer retrocesso ou essencialismo estratégico. Uma diferença importante aqui é que, no caso de essencialismo estratégico, não existe a abertura para efetivamente escutar quem está do outro lado da interlocução. Em uma abordagem relacional de cunho composicionista, as alianças implicam, no mínimo, a escuta mútua, e isso tem o poder de transformar os membros da aliança. É essa abertura à vida e à transformação, característica das ontologias relacionais, que está ausente na ideia de essencialismo estratégico.

Voltando então ao Latour, o que me parece que ele está tentando fazer, em seus últimos dois livros, é reordenar a dimensão metapragmática dos debates internacionais, ou seja, reordenar os marcos de referência usados pelas pessoas para dar sentido aos problemas correntes. Um bocado de gente existe em uma situação de inércia com relação aos sistemas e infraestruturas dominantes – em como consomem ou votam, por exemplo – mas que estão potencialmente (cosmo)politicamente alinhados com o que ele chama de “terranos”. Seu objetivo é tirar estas pessoas de sua inércia perceptiva e afetiva, através do reordenamento simbólico dos elementos que organizam o debate. Ao mesmo tempo, Latour reconhece que não se trata apenas de ideias e regras de interação: instituições e infraestruturas são elementos fundamentais da composição dos mundos, e que precisam ser transformados. Daí a quantidade imensa de atividades extra-acadêmicas às quais Latour se dedica.

Talvez mais controvertido até do que esta questão do essencialismo estratégico é o movimento recente de insistir na necessidade de composição de um mundo comum. Essa defesa da composição do mundo comum é entendida por muitos como um retrocesso com relação às ideias de multiverso e multinaturalismo, de Viveiros de Castro. Talvez seja, uma vez mais, uma desaceleração e um desvio de percurso, no intuito de construir alianças importantes que demandam essas ações. Veremos. O debate está em curso.

6) Como você vê o futuro próximo dos estudos sobre o Antropoceno e, de maneira geral, das questões ecológicas no mundo lusoparlante e, em particular, no Brasil? Há novos projetos no horizonte que gostaria de mencionar? Que formas de intervenção são possíveis nos debates, não apenas dentro da academia mas também em níveis políticos mais amplos?

Há muita coisa acontecendo; não há dúvida que estamos em um momento de grandes transformações. Por essa razão, é muito difícil fazer previsões.

A condição do meio ambiente no Brasil, no governo Bolsonaro, é calamitosa, e não há qualquer sinal de que as coisas irão melhorar nos dois anos que ainda faltam para as próximas eleições. O país está à deriva. É impressionante, no entanto, que o país seja capaz de permanecer à deriva sem que tudo termine em anomia. Isso significa que existe alguma coisa além das estruturas de governo e do estado. É preciso seguir lutando, com todas as forças, para tirar o Bolsonaro do poder, e ao mesmo tempo é preciso abandonar o culto à figura do presidente que existe no Brasil. A situação atual do Brasil é paradoxal porque, ao mesmo tempo que aos sofrimentos trazidos pela pandemia se somam os sofrimentos trazidos por este governo, a vitalidade da sociedade civil, dos movimentos sociais e do ativismo ambiental é imensa.

Aqui acho que podemos fazer aqui um paralelo com uma das dimensões da questão do Antropoceno: ele pegou o mundo ocidental de surpresa, o que significa que há coisas bem à nossa frente que não somos capazes de perceber por muito tempo. Se assumirmos o início do Antropoceno com as detonações nucleares da década de 1940, vão-se aí mais de 70 anos e ainda não há reconhecimento científico institucionalizado sobre o fato. Não faz sentido dizer que já “se sabia” de sua existência porque Arrhenius tinha falado sobre isso em 1896. Uma voz perdida nos salões acadêmicos não pode ser tomada como percepção coletiva da realidade. E nem se pode reduzir o tempo que demorou para o reconhecimento do problema ao negacionismo, de forma anacrônica. O fato é que as ciências do sistema terrestre nos mostram que há inúmeros padrões de variação no funcionamento do planeta que não conhecemos, e que nos afetam diretamente. Até a década de 1920, a ciência não conhecia o fenômeno El Niño, que afeta o clima do planeta inteiro. Certamente há muitos El Niños que ainda não conhecemos, e alguns que nunca seremos capazes de conhecer com o aparato cognitivo que possuímos. O mesmo ocorre com fenômenos sociais. Há transformações e padrões no funcionamento das coletividades que não conhecemos, mas a que estamos sujeitos. Coisas imprevistas ocorrem o tempo todo no mundo social. No Brasil, por exemplo, ninguém anteviu as manifestações de 2013, e tampouco previu tamanho reconhecimento público e projeção das lideranças indígenas no país neste ano de 2020. Nem que este seria o ano em que, pela primeira vez na história brasileira, haveria mais candidatos pretos e pardos do que brancos nas eleições municipais. Eu sinceramente pensei que não veria isso acontecer nesta vida.  

Por isso acho improdutivo reduzir o contexto brasileiro atual ao Bolsonaro. Isso é seguir cultuando o estado, de certa forma, e reproduzir uma visão de mundo antropocêntrica. Há coisas importantes, inclusive nas dimensões tradicionalmente chamadas de sociais, que não acontecem na escala dos indivíduos nem na escala dos estados. Esta é exatamente uma das dimensões do Antropoceno. Reconhecer isso talvez diminua a amargura e a negatividade com que a intelectualidade progressista brasileira tem observado a realidade.

Em termos do que se vê no horizonte, o quadro é confuso, mas gosto de manter a minha atenção voltada aos fatos que sugerem que mudanças positivas estão ocorrendo. Vejamos: a ONU tem um secretário geral efetivamente comprometido com a agenda ambiental, e está sinalizando em direção à inclusão de indicadores ambientais nos índices usados para avaliar a situação dos países, como o IDH. O Papa Francisco é um ambientalista de esquerda. Trump perdeu as eleições nos EUA, e isso pode ter efeito cascata sobre a política no resto do mundo. A pandemia, a despeito da dimensão impensável de sofrimento que trouxe, forçou os mecanismos de governança planetários a se redesenharem e melhorarem seus processos. Mostrou ainda que a colaboração científica pode ocorrer sem ser induzida, e deformada, pela competição capitalista. A pandemia também deixou bastante evidente a necessidade da luta pelos comuns, inclusive entre grupos mais conservadores. As elites conservadoras abandonaram, por exemplo, a ideia de privatizar o sistema público de saúde brasileiro, o maior do mundo.

No Brasil, enquanto a ciência e a universidade são estranguladas pelo governo atual e resistem bravamente, os movimentos sociais, as periferias, a arte de rua e as iniciativas de solidariedade associadas à pandemia demonstram uma energia impressionante. O movimento da agroecologia tem ganhado muita força no país, também. Acho que, no curto prazo, haverá mais avanço vindo dessas áreas do que da academia. Mas coisas importantes estão ocorrendo no campo acadêmico, também. O que me está mais próximo é a experiência dos bacharelados interdisciplinares, nos quais efetivamente há um esforço de superação das barreiras disciplinares no tratamento de questões importantes. Sou professor em um bacharelado interdisciplinar em ciência e tecnologia do mar, onde os estudantes são preparados para lidar com as questões ambientais a partir de suas dimensões físicas, ecológicas, mas também filosóficas e sociológicas. Esta tem sido uma experiência muito positiva, e que me ajuda a ter esperança sobre o futuro.

Recebido em: 24/12/2020.
Aprovado em: 26/12/2020.
Publicado em: 26/12/2020.


[1] Professor de Antropologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Orcid ID: https://orcid.org/0000-0002-9935-6183. E-mail: renzo.taddei@unifesp.br

[2] Professor no Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-UNL). Orcid ID: https://orcid.org/0000-0003-1111-1286. E-mail: d.scarso@fct.unl.pt

[3] Pesquisador PNPD/CAPES e Professor-Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Orcid ID: https://orcid.org/0000-0003-3295-9454. E-mail: npcastanheira@gmail.com

[4] Haraway, Donna. “Anthropocene, capitalocene, plantationocene, chthulucene: Making kin.” Environmental humanities 6.1 (2015): 159-165.

[5] Morton, Timothy. Hyperobjects: Philosophy and Ecology after the End of the World. U of Minnesota Press, 2013.

[6] Danowski, Déborah, and Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Cultura e Barbárie Editora, 2014.

[7] Latour, Bruno, and Steve Woolgar. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997

[8] Haraway, D. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press.

[9] Latour, Bruno. Onde aterrar? Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

[10] Viveiros de Castro, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

[11] Viveiros de Castro, Eduardo. “Perspectivismo e multi-naturalismo na América indígena.” In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002: 345-399.

[12] Taddei, Renzo. “No que está por vir, seremos todos filósofos-engenheiros-dançarinos ou não seremos nada.” Moringa 10.2 (2019): 65-90.

[13] Viveiros de Castro, Eduardo. 2004. “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation.” Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America 2 (1): 1.

[14] Almeida, Mauro William Barbosa. Caipora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 5, n. 1, p.7-28, 2013

[15] Kopenawa, Davi e Bruce Albert, A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[16] Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora Companhia das Letras, 2019; Krenak, Ailton. O amanhã não está à venda. Companhia das Letras, 2020.

[17] IPBES. 2019. Summary for policymakers of the global assessment report on biodiversity and ecosystem services of the Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services. Edited by S. Díaz, J. Settele, E. S. Brondízio E.S., et al. Bonn, Germany: IPBES secretariat.

[18] Taddei, Renzo. “Kopenawa and the Environmental Sciences in the Amazon.” In Philosophy on Fieldwork: Critical Introductions to Theory and Analysis in Anthropological Practice, edited by Nils Ole Bubandt and Thomas Schwarz Wentzer. London: Routledge, no prelo.

[19] Para uma análise surpreendente da importância filosófica do pensamento ameríndio, especialmente o de Davi Kopenawa, ver Valentin, M.A. Extramundanidade e Sobrenatureza. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.

[20] Puig de la Bellacasa, M. 2017. Matters of Care: Speculative Ethics in More Than Human Worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.

[21] Taddei, Renzo, and Sophie Haines. “Quando climatologistas encontram cientistas sociais: especulações etnográficas sobre equívocos interdisciplinares.” Sociologias 21.51 (2019).

[22] Bourdieu, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. Précédé de trois études d’ethnologie kabyle. Le Seuil, 2018.

[23] Latour, Bruno. Jamais fomos modernos. Editora 34, 1994.

[24] Kuhn, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Editora Perspectiva, 2020.

[25] Lyotard, Jean-François. A condição pós-moderna. J. Olympio, 1998.

[26] Beck, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Editora 34, 2011.

[27] Funtowicz, Silvio, and Jerry Ravetz. “Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais.” História, ciências, saúde-Manguinhos 4.2 (1997): 219-230.

[28] Lyotard, Jean-François, Le différend, Paris, Éd. de Minuit, 1983.

[29] Silverstein, Michael. “Metapragmatic discourse and metapragmatic function” In Lucy, John ed. Reflexive language: Reported speech and metapragmatics. Cambridge University Press, 1993.

Refazer o luto: Como construir novos rituais diante de uma doença que deixa meio milhão de brasileiros sem despedida? (ECOA/UOL)

uol.com.br

Carina Martins, 30 de junho de 2020

Quando o irmão da psicóloga Marília Gabriela morreu, três meses atrás, a pandemia no Brasil ainda era chamada de gripezinha. Saudável, ativo e aos 39 anos, Alexandre prestou sua peregrinação pelo sistema de saúde por alguns dias, até que não considerassem mais sua condição tão benigna. Quando finalmente foi internado, apenas o irmão que o conduziu ao hospital o viu entrar. Nunca mais ninguém da família pôde falar com ele. Um dia depois, ligaram pedindo os seus documentos, e os parentes já entenderam.

Acabou assim, no ar. “A gente foi até o local da cremação, mas você só vai para assinar papel. E tem a coisa de não poder tocar no outro. Na hora, minha mãe acabou abraçando algumas pessoas. Tentei impedir, mas me disseram que deixasse”, conta Marília.

Não foi suficiente para aplacar o rompimento inesperado do vínculo que o jovem filho, irmão, amigo tinha com os seus. A mãe de Alexandre não sabia, mas decidiu fazer exatamente o que aconselham os especialistas: criar um ritual possível. “Ela ligou para um amigo muito querido dele e falou, me ajuda a pensar, não sei o que faço com as cinzas”. A atitude desencadeou um movimento em rede entre pessoas que amavam Alexandre e que começaram a falar sobre ele e rememorar – a viver seu luto. Os amigos sugeriram espalhar as cinzas na praça ao lado da casa onde cresceram e passaram muitos momentos. Uma amiga da mãe pensou em plantar uma árvore e fazer uma oração.

Criaram então, juntos, seu próprio ritual. Escolheram uma árvore – flamboyant – e chamaram poucas pessoas para uma celebração. Na véspera, Marília teve medo de remexer nos sentimentos. Mas foi em frente. “Procurei o jardineiro da praça, ele preparou o buraco com todo cuidado para a muda”. No dia seguinte, cerca de 10 pessoas, afastadas e de máscara, mas juntas, estavam lá. “Nosso irmão mais novo disse algumas palavras, falou o quanto Alexandre amava essas pessoas e fizemos uma oração”. Um ritual simples, mas fundamental. Agora, a mãe de Alexandre sempre visita a mudinha quando passeia com a cachorra que era do filho. Anda achando que a planta está mirrada, quer ver a árvore mais vigorosa. De vez em quando, vai lá cuidar do canteiro.

“Sentimos acho que uma calma, uma coisa que se fecha. A dor existe, mas está bem diferente”, diz Marília. “Não é algo banal”.

Linoca Souza/UOL

Meio milhão sem adeus

Todas as culturas têm um ritual próprio para despedir-se de seus mortos. Todos, até onde sabemos, desde sempre, desde o momento mais primitivo da história humana. A unanimidade dessa necessidade é incomum, e um bom indicativo do quanto ela é, literalmente, uma necessidade. Nem mesmo os rituais de nascimento têm essa incidência absoluta. “Porque a morte desorganiza”, explica a doutora em psicologia Maria Helena Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto da PUC-SP. “O nascimento, nem tanto. A morte desorganiza um grupo, uma sociedade, e em extensão, uma cultura. E o ritual tem essa função de reorganizar”.

Desde o início da pandemia, no entanto, os ritos tradicionais foram suspensos pela imposição de uma realidade em que a despedida tornou-se um risco. Os rituais existem em diversidade inumerável, mas quase sempre envolvem o toque, a presença ou a manipulação do corpo. Essa proximidade não é mais possível, já que, por questões de segurança sanitária, as vítimas de covid-19 chegam às suas famílias envoltas em três camadas protetoras, dentro de urnas lacradas, com a orientação de velórios muito curtos e funerais sem aglomeração.

Uma série de estudos sobre luto antes da pandemia, e outros realizados também com o viés do coronavírus, estima que, em média, cada vida deixa até dez enlutados. Dez pessoas com vínculo significativo com a pessoa que se foi, e que passarão pelo processo do luto. É o número com que trabalham especialistas como Maria Helena, embora ela o considere “conservador” para a realidade brasileira. Isso significa que, dentro dessa estimativa conservadora, os (também conservadores) mais de 50 mil mortos oficiais por Covid, somados aos mortos suspeitos que também são submetidos aos mesmos cuidados, deixaram para trás uma multidão de mais de meio milhão de brasileiros que não puderam se despedir de seus entes queridos. E essa multidão segue crescendo.

“Estamos vivendo um desastre. Mas é um desastre diferente, porque é lento. Em um tsunami, numa barragem que estoura, a onda vem, passa, e fica a destruição. O coronavírus é uma onda em câmera lenta. Você olha para fora e não tem destruição”, diz Elaine Gomes Alves, doutora e pesquisadora da área de Psicologia de Emergências e Desastres do Laboratório de Estudos sobre a Morte da USP.

A gente tem que desconstruir uma coisa que já existe há gerações para colocar no lugar uma realidade que tá aqui, agora, imposta. Não foi nem construída, foi imposta. E é natural que a gente proteste e tenha dificuldade de aceitar isso

Maria Helena Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto da PUC-SP

Diferentemente da maior parte dos desastres, a pandemia não tem a vivência do luto coletivo, que é um recurso muito útil de acolhimento. “As pessoas se aglomeram, ofertam apoio, vivenciam junto. Em Brumadinho, por exemplo, você pode chegar na cidade e falar dos mortos com qualquer um. Na situação atual, a pessoa morre, é enterrada e vai cada um para sua casa, fica sozinho, isolado”, aponta Elaine.

“Não é a pessoa, é o corpo da pessoa. Mas nós, humanos, trabalhamos com símbolos, e para os enlutados falta como simbolizar”, concorda Maria Helena.

Além de ser uma nuance comovente dentro da situação que vivemos, esse obstáculo ao luto é, por si, um potencial problema para cada um que passa por isso e, na proporção que está sendo construído, para a sociedade. Quando o processo do luto não é bem vivido, ele pode tornar-se o que os especialistas chamam de “luto complicado”, que é um luto com possibilidade de adoecimento. As duas especialistas ouvidas pela reportagem, assim como a OMS, esperam uma enormidade de aumento na demanda de saúde mental no porvir da pandemia. Aliás, da saúde como um todo, já que nenhuma das duas dissocia totalmente as saúdes física e mental.

“O luto é um processo de dor intensa. Não existe na existência humana nenhum processo que seja pior do que o luto. Você precisa de um tempo primeiro para entender que a pessoa morreu, para chorar com ela, entrar em contato com a falta, buscar ferramentas internas parta sair do sofrimento. Cada um vai ter um tempo de luto para terminar seu processo”, explica Elaine. O problema é que, sem os rituais, os enlutados muitas vezes sequer conseguem começar adequadamente. “Você pode empacar em algumas coisas. Por exemplo, na negação – como não viu o corpo, pode dizer que ele não morreu. Algumas pessoas que passam por isso dizem coisas como ‘Sabe o que eu penso? Que ele está viajando’. E isso é um problema. É importante fechar o ciclo. Não importa quanto tempo leve.”

Em busca de um símbolo

A construção de uma despedida possível feita pela família de Marília Gabriela não é banal, como ela apontou. Fazer um ritual, ainda que não seja seguindo a tradição, é a recomendação unânime dos psicólogos. Mas não é fácil encontrar os recursos internos para isso, muito menos em um momento de dor. “A racionalidade não tem tido muito efeito. Porque o ritual é tão antigo, é tão arraigado, que a gente saber por quê não pode – por quê não pode aglomeração, por quê tem que enterrar rapidamente – não surte muito efeito”, diz Maria Helena.

No caso de Alexandre, colaborou o fato de que ele não seguia nenhuma religião específica – os ritos a seguir, portanto, eram menos rígidos, mais fáceis de serem adaptados. Mas esse é o caso de apenas 10% dos brasileiros, segundo o IBGE. Nem todos os detalhes religiosos e culturais precisam ser impossíveis na pandemia, mas, para que isso seja avaliado, seria preciso uma cartilha de manejo com mais nuances do que as publicadas até agora.

Na região metropolitana de São Paulo como no Alto Xingu, tem sido difícil. Pela primeira vez em sua milenar história, este ano foi cancelado o Kuarup. Talvez a mais conhecida entre as manifestações indígenas brasileiras, o Kuarup é um grande ritual sagrado que celebra os mortos de todo um ano, e envolve onze etnias do Alto Xingu. É no Kuarup que os parentes encerram o período de luto pelos que morreram. O coronavírus chegou ao Alto Xingu, e este ano não tem Kuarup.

Quando se encerrarão esses milhares de lutos?

O líder indígena Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, em Roraima, tem sido uma das vozes ativas sobre tudo que envolve a questão do coronavírus entre os povos das florestas. Em sua etnia, uma das tradições fundamentais é de que o corpo, cremado, permaneça na aldeia. Mas os yanomamis mortos estão sendo enterrados em cemitérios de Boa Vista, sem a participação ou autorização de seus entes queridos. “Estamos seguindo os protocolos do mundo não-indígena, como os da Organização Mundial da Saúde, das prefeituras, do governo. E isso atrapalha muito em nossa cerimônia [fúnebre]. Sabemos que, neste momento, não é bom pegar o corpo de nosso parente e transmitir a doença. Mas não nos despedimos das vítimas que foram enterradas. É uma falta de respeito, um preconceito contra a nossa cultura”, diz.

O deslocamento dos corpos é uma ruptura grande demais no rito para que a comunidade consiga criar alternativas. “É muito longe, a comunicação é difícil, mas os familiares estão muito tristes de não enterrar os corpos onde ele nasceu, cresceu e viveu. É muito importante o corpo retornar para a aldeia. É muito ruim para nossa cultura e para o familiar fora da comunidade ter o corpo em um cemitério. As lideranças acionaram o Ministério Público Federal questionando que não pode colocar nossos parentes longe da família. Precisamos mais ainda dos médicos, dos epidemiologistas, para nos dizer: quantos dias a doença fica no corpo morto? Isso não é claro ainda. Nós não somos médicos, e acionamos o órgãos públicos para desenterrar o corpo e levá-los para as aldeias, ou cremá-los na cidade e levar as cinzas para as aldeias”.

Quando os yanomamis morrem sem doenças e problemas, conversam com a família e guardam as cinzas em uma vasilha. Reúnem muita comida, muitos alimentos para fazer festa, despedir novamente. Normalmente, parentes de outras aldeias vão ao cerimonial. Riem, choram. “Depois pega as cinzas em uma vasilha e devolvemos à mãe terra com respeito. É tradicional.”

Também liderança, Milena Kokama chorava os então 55 mortos de seu povo sepultados em cova coletiva em Manaus. “Na nossa cultura, a gente não sepulta. A gente crema”, diz, sobre seu luto, agravado pelos entraves das autoridades. “E ainda sai assim no atestado de óbito: pardo. Eu não sei o que é pardo, eu sou Kokama.”

É uma questão muito difícil. Eu não sei o que você entende como parente, mas meu povo é meu parente independentemente de laços sanguíneos

Milena Kokama, liderança indígena

Promessa do encontro

O babalorixá e antropólogo Pai Rodney de Oxóssi sabe o que os enlutados estão sentindo. “Nós, do candomblé, já tínhamos que pensar em alternativas desde antes da doença, sempre tivemos nossos ritos impedidos por intolerância e o racismo religioso”. As restrições a religiões de matrizes africanas acontecem desde famílias que não seguem a denominação e impedem que um familiar iniciado seja tratado segundo sua crença, até hospitais que não permitem a entrada dos sacerdotes – ainda que os de outras religiões circulem sem problemas. “Já tomei chá de cadeira para visitar minha própria mãe, já tive gente de hospital me ligando no dia seguinte a uma visita dizendo que fosse mais discreto e não usasse ‘aquelas roupas'”.

A assistência religiosa é uma garantia legal dos cidadãos brasileiros, mas o babalorixá diz que começou a sentir melhora a partir da lei estadual, sancionada no ano passado, que proíbe a discriminação religiosa. “A lei tem garantido a gente tomar o caminho da cidadania. E isso não permite que as pessoas te impeçam do que a lei te assegura”.

Mesmo com vivência desses complicadores, o candomblé não passou imune às restrições da covid. Com rituais fúnebres muito específicos que incluem o comunitário axexê e um preparo do corpo feito pelo babalorixá, seus enlutados estão, como todos, sem poder exercer seus símbolos tradicionais. “Essas despedidas fazem com que a gente consiga acomodar a morte. Sem elas, há essa sensação de vazio, porque a morte continua fora do lugar. O luto acomoda as dores para que você consiga se recuperar”, diz.

Como os terreiros se organizam como uma espécie de família expandida, todos eles têm hoje seu grupo de WhatsApp. Na ausência da homenagem tradicional, é nesses espaços que os enlutados têm encontrado seus símbolos. “É uma religião essencialmente comunitária, cada terreiro é uma família extensa, então a vivência comunitária para nós é essencial. Sempre que alguém morre há um momento de solidariedade, mandam muitas mensagens, fazem suas homenagens, postam suas fotos com os falecidos”, explica.

O axexê com toda a comunidade, suspenso, também está se tornando, em si, um símbolo, com a promessa de que será feito no momento oportuno em que seja possível a aglomeração, a reunião que o ritual demanda. Quando ele vier, será um grande momento de comemoração.

Claro que a humanidade sempre acha uma maneira de compensar isso. Sempre há, depois que tudo isso passa, um florescimento – das artes, da religiosidade, das coisas que fazem o imaginário humano fluir para que compense esse período de obscuridade. A religião e as culturas têm um papel . Os rituais são inventados na medida em que a gente tem necessidade de preencher uma lacuna que a ciência e racionalidade não preenchem

Pai Rodney de Oxóssi, babalorixá e antropólogo

É preciso sensibilidade

Os enlutados nem sempre vão conseguir criar esses novos símbolos sozinhos. As alternativas podem vir de seus líderes religiosos, dos hospitais, dos próprios serviços funerários. Mas as especialistas recomendam que não se espera que os outros façam: que venham de todos nós que tivermos contato com quem perdeu um ente querido.

“Vamos possibilitar que as pessoas façam seus rituais. Que a gente não fique naquele lugar de ‘ah, mas não é a mesma coisa’. É fato, não é a mesma coisa, e a gente não ganha muito ficando nesta tecla. Vamos ver que outra coisa a gente vai fazer”, diz Maria Helena. “Acho que aí a gente pode ser criativo, ajudar as pessoas a honrar a memória do seu amado, honrar uma tradição, de uma outra forma. Que não terá menos valor. Que será diferente. Acho importante a gente entender por aí, e não como algo que não pôde ser feito. Mas sim o que pôde ser feito, e o quão importante é o que pode ser feito.”

A psicóloga Elaine Alves tem dado várias sugestões práticas para as famílias que tem encontrado. “Que as famílias se unam, que possam fazer juntas um rito religioso que faça sentido para elas. Podem pegar uma caixa onde colocam coisas da pessoa que morreu que sejam significativas, fechar e colocar num lugar importante, por exemplo. Falar palavras de despedida. Escrever cartas – a escrita é muito importante, ajuda muito. Ver fotos. Usar a rede social da pessoa que morreu e ali postar coisas para se comunicar com os amigos da pessoa. Os amigos podem postar fotos que a família nunca viu, isso é um presente para os familiares”, diz. São infinitas opções, que funcionarão de acordo com o vínculo e os valores de cada um.

Mas é preciso sensibilidade. “Não deixem os enlutados sozinhos. E liguem logo, não tem que esperar um tempo, uma hora boa”, explica. E seja generoso. “Tem aquela coisa do ‘mas depois que morreu virou santo’? A verdade é que os enlutados não merecem ouvir coisas ruins de seus mortos”, diz. Se, por vício, perguntar se está tudo bem, acolha a resposta. “Entenda que o outro não está bem, e que é para o outro falar. E a parte mais fácil é de quem não está passando por aquilo e só precisa escutar. O enlutado conta várias vezes a mesma história, porque ele precisa entender o que aconteceu. Quando dizem que não aguentam mais escutar, respondo que essa é a parte mais fácil. Você não precisa passar pelo que outro está passando. Só precisa escutar. Escute”.

A fala encontra eco na de Maria Helena. “Eu queria muito pedir a quem tiver acesso a pessoas enlutadas que busque oferecer a elas possibilidades criativas de fazer seus rituais, que não terão menos valor. Terão valor, sim, porque serão feitos. Sem eles é que a gente vai ter problemas”, afirma. “Vamos respeitar algumas requisições religiosas que são necessárias, que fazem falta. Vamos buscar isso. Vamos proporcionar. Isso não precisa ser só a psicologia que faz, não. É a gente que faz com as pessoas que estão próximas a nós. Tendo essa sensibilidade, a gente consegue fazer. Vamos cuidar. E cuidar da gente também.”

Mathias Pape / Arte UOL. Edição de arte: René Cardillo; Edição de texto: Adriana Terra; Ilustração: Linoca Souza; Reportagem: Carina Martins.

Ficar fechado em casa pode afetar a saúde mental: o que fazer para não explodir

Renzo Taddei – 3 de abril de 2020; atualizado em 4 de abril de 2020

A imensa maioria das discussões atuais a respeito dos problemas trazidos pela pandemia de COVID-19 centrou-se, até o momento, no binômio sistema de saúde-economia. O isolamento social faz a curva baixar e desorganiza amplos setores da economia; o chamado isolamento vertical, sem a necessária testagem em massa, preserva a economia mas mantém a trajetória do sistema de saúde rumo ao colapso. Parece não haver mais dúvida que, sem os recursos que permitiriam às autoridades realizar testes na intensidade do que se viu na Coréia do Sul, não há alternativa responsável que não seja permanecer fechado em casa.

Ocorre, no entanto, que há um terceiro elemento na questão, e que só agora, passadas as primeiras semanas desde que o distanciamento social começou seriamente em lugares como São Paulo, começa a se fazer visível: o isolamento afeta a saúde mental das pessoas. A imensa maioria dos meus colegas acadêmicos pensou que os problemas de trabalhar em casa seriam a falta de infraestrutura (como cadeiras desconfortáveis, internet instável, ou competição com outros membros da família pelo uso do computador), de ambiente suficientemente silencioso (com as crianças brincando ao redor) para que as reuniões digitais ocorressem sem interrupções, ou mesmo da disciplina necessária para trabalhar em ambiente onde o corpo aprendeu a relaxar. Os indícios de que havia algo mais na equação começaram a aparecer na forma de memes nas redes sociais. Em um dos áudios engraçados que circulou pelo WhatsApp, uma voz feminina dizia que, se ela sobrevivesse ao vírus, o mesmo provavelmente não ocorreria ao seu casamento. Em outro, o áudio de origem argentina apresenta um homem em uma conferência de trabalho por Internet, dizendo aos colegas da necessidade de se ter paciência e calma com as alterações exigidas no momento, enquanto uma criança grita de forma ininterrupta ao fundo. Em dado momento, o mesmo homem explode em ataque de fúria, gritando com a criança para que esta se cale. Em outro áudio, um homem lista rituais e mandingas que surgiram no lares, como reação ao medo generalizado – a enorme quantidade e suposta incompatibilidade entre tais rituais compondo a carga humorística da mensagem.

Passadas as primeiras semanas, tais memes cessaram. O que me ocorreu foi que, ao invés das pessoas terem se acostumado com a situação e esta, portanto, ter perdido o caráter de novidade que sustenta o humor, a realidade aponta para exatamente o contrário disso: o confinamento começou a afetar a saúde mental das pessoas, e o assunto perdeu a graça, porque virou sofrimento. No últimos dias, uma série de artigos na imprensa internacional e em postagens nas redes sociais mostra que o assunto ganhou visibilidade nos países em que o confinamento ocorre há mais tempo. No Brasil, grupos especializados nas áreas de psicologia e psiquiatria já haviam alertado (e aqui) para essa questão. Agora, ela efetivamente bate à porta de todos nós.

Há muitos motivos mais visíveis, nos debates públicos, do que o tema da saúde mental: além das recomendações médicas para evitar o contágio, dos reflexos devastadores na economia, e do debate planetário a respeito dos distintos protocolos de tratamento e eficácia dos medicamentos, há a questão incontornável dos óbitos produzidos pela epidemia e como o luto impacta as famílias afetadas. Discutirei o tema das mortes e do luto em outro texto.

Há muitas razões pelas quais o confinamento afeta a saúde mental das pessoas. Na minha área de atuação, a antropologia, há trabalhos de referência importantes sobre essa questão. Como este texto não é acadêmico, não vou fazer referências específicas (ver exemplo aqui). Mas o que parece claro na literatura é que, enquanto indivíduos, nossa existência nos coloca em muitos papéis sociais distintos, com identidades, e portanto formas de pensar, de organizar nossas emoções, e de nos relacionarmos com as outras pessoas, diversas. Isso nos conecta com ecossistemas variados de formas de pensar, sentir e agir. Quando estou na universidade lidando com colegas, sem que eu me dê conta, meus pensamentos, postura corporal e formas de uso da fala se ajustam à situação, de modo que as coisas fluam com naturalidade. Quando estou em sala de aula, com estudantes, novamente, de forma inconsciente, eu assumo identidade distinta, o que ocasiona um ajuste de mente, corpo, fala e atitude. Em casa, o mesmo ocorre em contextos que me evocam na qualidade de cônjuge, ou na qualidade de pai. E assim sucessivamente, em uma grande variedade de contextos sociais. Não há nada de patológico em mudar de identidade – e portanto de padrão de pensamento, postura corporal, estilo de fala e atitude -; bizarro seria tratar meus estudantes como trato minha esposa, ou me relacionar com meus colegas como o faço com minha filha. Um indivíduo saudável sabe transitar por grande número de contextos sociais, e ao mesmo tempo sabe identificar, muitas vezes de forma inconsciente, que padrão de pensamentos-emoções-comportamentos-atitudes é apropriado para cada contexto. Lembro-me de estudante, fanática torcedora do Corinthians, que vinha a todas as minhas aulas com a camiseta do clube, e sistematicamente faltava às aulas nas quartas-feiras em que o time jogava. Um dia eu disse a ela que iria reprovar por faltas em minha disciplina, e que poderia ver o jogo no reprise da televisão. Ela respondeu de bate-pronto: “tem coisas que eu não falo na frente da minha avó”. O que ela estava me dizendo é que é impossível reproduzir em casa o contexto do estádio; e que o estádio era importante dentro do rol de contextos sociais dentro dos quais ela transitava, e que permitiam a ela que vivesse toda a gama de emoções necessárias para que se mantivesse feliz e saudável.   

Essa grande variedade de contextos de vida social nos proporciona a possibilidade de vivência e manifestação de amplo espectro de emoções e padrões de ideias, e isso, aparentemente, é fundamental para a manutenção da saúde de nosso ser, em um contexto em que o físico, o mental e o emocional estão profundamente imbricados. É exatamente aqui que o confinamento desorganiza a vida das pessoas: ele reduz drasticamente a quantidade de contextos sociais que experimentamos e vivemos, e ao fazer isso, limita a gama de emoções e as formas de manifestação corporal passíveis de manifestação. Como resultado, as pessoas começam a sentir-se ansiosas, deprimidas, irritadiças, e eventualmente agressivas. Em escala demográfica, aumentam os casos de violência doméstica de todos os tipos, bem como a incidência de sintomas de doenças mentais.  

Como mencionei acima, sou antropólogo, e não psicólogo ou psiquiatra. Ocorre, no entanto, que por ter vivido experiência traumática no passado (estava em Nova York no dia 11 de setembro de 2001), vivo em relação intensa com tais profissionais há duas décadas, na qualidade de paciente. Um detalhe relevante, para a discussão apresentada neste texto, é que não foi exatamente após o ataque terrorista que meus sintomas de síndrome de estresse pós-traumático surgiram. Três ano depois do evento mencionado, foi a ansiedade relacionada com a defesa da minha tese de doutorado que fez a caldeira explodir.  

Se, nos parágrafos acima, eu descrevi algumas das razões pelas quais o confinamento pode afetar a saúde mental da uma pessoa, a situações é bastante mais crítica quando se trata de gente com problemas prévios de saúde mental. Como é de amplo conhecimento, há muitas décadas o mundo vive uma epidemia de depressão e outras formas de patologias da mente. Na minha experiência de professor universitário, o crescimento do número de casos de estudantes com depressão ou distúrbios de ansiedade e pânico na última década é assustador. Ao mesmo tempo, vivemos em um país em que a doença mental ainda é um tabu entre largas parcelas da população, e onde o tema é visto pelas lentes da discriminação e do preconceito, muitas vezes pela própria pessoa que sofre. Dos países do norte a indústria cultural nos trouxe a imagem de que quem sucumbe à enfermidade mental é uma pessoa fracassada.

É assim, portanto, que a pandemia de COVID-19 nos encontra: uma parcela da população padecendo de sofrimentos psíquicos e emocionais, com acompanhamento de especialista; outra parcela, imensamente maior do que a primeira, com sintomas mas sem acompanhamento algum, em razão de preconceito próprio ou alheio, de falta de acesso a serviços de saúde mental, ou de falta de informação. Outra ainda, carregando nas costas o custo emocional, contido e abafado, de experiências traumáticas do passado, mantido sob controle com muito esforço, e portanto sem sintomas mais pronunciados. Se, para as pessoas que não possuem histórico nem sintomas de doenças mentais, o confinamento pode fazer com que estas coisas apareçam, para os que convivem com elas a perspectiva é de dias difíceis pela frente. Muitas caldeiras irão estourar.

Que fique bem claro que nada disso é argumento em favor de que se abandone a estratégia de distanciamento social horizontal. É apenas a constatação de que, se efetivamente não temos alternativa, é preciso enfrentar o desafio com coragem, paciência, compreensão, e ajuda especializada. No que diz respeito a este último item, é oportuno lembrar que, de todas as categorias profissionais, os psicólogos constituem grupo para o qual trabalhar em casa sempre foi prática comum. Nos últimos anos, muitos psicólogos passaram a fazer atendimentos pela Internet de forma rotineira. É em virtude disso que pode-se afirmar com segurança que a oferta de serviços de tratamento psicológico não se desorganizou com a pandemia. Quem procurar indicação de psicólogo pela Internet provavelmente encontrará, sem muita dificuldade, profissional que faça o atendimento em condições perfeitamente compatíveis com o distanciamento social horizontal. O mesmo está ocorrendo com os profissionais da psiquiatria.

Para algumas pessoas, talvez o custo do tratamento psicológico ou psiquiátrico seja impedimento para a procura de ajuda profissional. No contexto do agravamento da crise econômica, uma série de entidades e grupos passou a oferecer serviços de apoio psicológico de forma gratuita e remota; há grupos que ofereciam tais serviços de forma gratuita anteriormente à pandemia, e apenas se prepararam para maior volume de demanda. Uma lista de tais organizações é oferecida no final deste texto.

Na minha experiência de quem tem que gerir uma caldeira sempre à beira da explosão, além da incontornável psicoterapia e do comumente recomendado tratamento com medicações psiquiátricas, senti necessidade de complementação destas coisas com exercícios. Qualquer pessoa que comece tratamento psicológico ou psiquiátrico vai escutar isso dos profissionais da saúde mental: exercício é fundamental. Eu adiciono a isso, no entanto, outra forma de exercício: o exercício emocional. O que eu quero dizer com isso é que existem estratégias interessantes para lidar com emoções represadas e que estão incomodando:

– Uma delas é um exercício da yoga chamado “sopro ha” (há vários vídeos no Youtube ensinando o exercício – como este, por exemplo). Aliás, uma combinação conveniente entre exercícios físicos e técnicas de gestão das emoções é o livro chamado Yoga Para Nervosos, do venerado mestre Hermógenes, e disponível em PDF aqui.

– Meditação ajuda tremendamente. Há muitos apps de meditação gratuitos online, e vídeos no youtube também. Além da meditação do tipo mindfulness, há algumas específicas para ajudar o indivíduo a aceitar a realidade que me parecem especialmente eficazes.

– Outra técnica é ver filmes de gêneros diversos, e que evocam emoções diferentes. Especialmente recomendados são os filmes que fazem chorar. Tem muita gente que tem dificuldade em chorar. O choro é uma forma importantíssima de reequilíbrio das emoções. Quem acha que não vai precisar chorar nisso tudo que estamos passando provavelmente não entendeu o que está por vir e vai ver a caldeira explodir antes do que imagina.

Algumas pessoas acham que uma boa estratégia para liberar as tensões é o álcool. Na verdade, o álcool deve ser evitado a todo custo, não apenas porque existe o perigo real do crescimento dos casos de alcoolismo, como porque há correlação direta e forte entre o álcool e a violência doméstica.

Por fim, para que essas coisas funcionem, as pessoas precisam aprender a prestar a atenção às próprias emoções, e às emoções de quem está ao seu redor. Se estamos todos afetados pela pandemia, ainda que de formas diversas, e estamos todos sujeitos aos solavancos emocionais diários do contexto presente, não há remédio que não passe, necessariamente, pela paciência, pela compreensão e pela empatia. O que eu espero é que, com boa ajuda de profissionais da saúde mental, aprendendo a identificar as próprias emoções e a dos que nos rodeiam, e a usar estratégias de modo a gerir tais emoções de forma construtiva (mesmo que dificultosa), sejamos todos capazes de evitar que as nossas emoções, desorganizadas e confusas como estão agora, produzam qualquer coisa que se assemelhe à violência.  


Serviços de ajuda psicológica gratuitos:

1) A PonteAPonte criou banco de dados com mapeamento de ações de arrecadação e prestação de serviços às comunidades no contexto do COVID-19, disponível no link https://bit.ly/3bPUWYp. Um dos serviços mapeados é a oferta de ajuda psicológica gratuita. Reproduzo abaixo os dados disponíveis na data de 3 de abril de 2020 (o banco de dados é atualizado e expandido constantemente).

– Relações simplificadas: psicólogos, psicanalistas e outros profissionais criaram iniciativas de solidariedade e de escuta para dar suporte emocional durante a pandemia. Agendamento pelo site https://www.relacoessimplificadas.com.br/escuta

– Ana Horta, docente da escola paulista de enfermagem da Unifesp, formou um grupo de 40 psicólogos disponíveis para o trabalho de acolhimento voluntário e online dos profissionais que estão na linha de frente dessa pandemia. O nome e celular do interessado deve ser enviado ao email acolhimentocovid@gmail.com

– A Chave da Questão: grupo de psicólogos que atendem online e de forma gratuita. Contato pelo site: https://www.achavedaquestao.com/

– Escuta Viva: grupo de psicanalistas oferece escuta psicanalítica online. Prioridade para idosos, moradores de periferias e trabalhadores da saúde, mas aberto a todos. Contato pelo site: https://escuta-viva.reservio.com

– Varandas Terapêuticas: o Instituto Gerar de Psicanálise oferece grupos terapêuticos online mediados por psicanalistas para a superação do confinamento. O pagamento é voluntário. Contato pelo site: https://institutogerar.com.br/clinica-instituto-gerar/#varandas-terapeuticas

– Cruzando Histórias: escuta ou apoio psicológico, acolhimento e orientação profissional grátis com 200 psicólogos e mentores de carreira para pessoas desempregadas e em dificuldades especiais. Contato pelo site: https://www.cruzandohistorias.org/post/escutacao-especial

– Lugar de Fala: grupo de psicólogos, psicanalistas e médicos oferece apoio. Contato pelo site: https://fernandanoyapinto.wixsite.com/lugardefala

– A empresa Mão na Roda oferece serviço de escuta solidária, através de encontros semanais online, por iniciativa de Sandra Tudisco. Pagamento voluntário. Contato pelo telefone: (11) 97120-1803

– A psicóloga Fanny Carvalho Aranha do grupo Humanic oferece ajuda psicológica online gratuita. Contato através do site: http://www.humanic.com.br

– Grupo de psicólogos disponibiliza atendimento para as pessoas que estão mais sensíveis a essa mudança de rotina que estamos atravessando. Trata-se de um acompanhamento psicológico breve. Entrar em contato com os profissionais e agendar atendimento:  

Anna Carolina Kolhy: (11) 98155-9015

Felipe Sitta: (11) 99625-8383

Fernanda Portugal: (11) 98269-7807

Jennyfer Gonçalves: (11) 98220-9223

Jessica Gomes: (18) 99806-4063

Luana Estima: (11) 99412-8780

Marcia Voboril: (11) 99829-6700

Nancy Caneparo: (11) 98182-6852

Rafaela Midori: (11) 99891-1128

Sueli Rugno: (11) 99641-1446


2) Artigo da Folha de S.Paulo: Psicanalistas oferecem atendimento gratuito online; saiba onde encontrar (01/04/2020), com lista de serviços gratuitos. Acessar os links das instituições:

Psicanálise na Praça Roosevelt, de São Paulo
Atendimentos aos sábados, das 11h às 14h

Psicanálise na Rua, de Brasília
Contato: facebook.com/psinarua
Atendimentos às sextas, das 16h30 às 18h30, e aos sábados, 10h às 12h

Psicanálise na Praça, de Porto Alegre
Atendimentos aos sábados, das 11h às 14h

Psicanálise de Rua, de São Carlos (SP)
Atendimentos aos sábados, das 11h às 14h, para pessoas da região de São Carlos

Grupo bate-papo, de Brasília
Atendimentos: terças, às 13h; quartas, às 10h e às 14h; sextas, às 10h

Varandas Terapêuticas – Instituto Gerar
Contato: tel. (11) 3032-6905 e (11) 97338-3974
Atendimentos: mediante agendamento
Pagamento voluntário

EscutAto – Instituto de Psicologia da USP (IPUSP)
Atendimentos: mediante agendamento


3) CVV — Centro de Valorização da Vida. Atendimento por voluntários, por telefone ou chat.

Converse por chat: http://www.cvv.org.br/chat.php

Converse por telefone: 141 (veja os horários de atendimento)

Seja voluntário do CVV


Ver ainda:

Artigo Saúde mental para quem não tem condições de pagar, por Victor Freitas, publicado no portal Medium em 5 de maio de 2018

Artigo Depressão: saiba onde encontrar atendimento gratuito, de Marcela Fonseca, publicado no site Moda Sem Crise em 08 de agosto de 2018

As The War On Terror Winds Down, The Pentagon Cuts Social Science (NPR)

March 16, 2020 5:00 AM ET Heard on Morning Edition

Geoff Brumfiel

The Pentagon funded research into the social sciences as part of the wars in Afghanistan and Iraq. Now as those wars wind down, it’s bringing one program to an end. Kevin Sieff/The Washington Post via Getty Images

The fragile peace deal taking shape in Afghanistan could spell the end of an era of for the U.S. military, one marked by efforts at nation-building and winning hearts and minds.

It appears that the Pentagon is also intent on ending a research program from that era — to fund social science for the military.

The program, known as the Minerva Research Initiative, was controversial and never quite delivered, according to its critics. But it was also one of the few Pentagon initiatives that engaged outside researchers to tackle big questions. Some worry that by eschewing outside academics in order to invest in weaponry, the Defense Department risks stumbling into a new arms race.

“The idea that you would need to eliminate a small program because you need to buy some small fraction of a new missile is short-sighted,” says Joshua Pollack, a scholar at the Middlebury Institute of International Studies in Washington, D.C. “It’s penny wise and pound foolish.”

Minerva began in 2008 at a time when the U.S. was trying to bring the wars in Iraq and Afghanistan under control. The idea was to call on anthropologists and other social scientists to help make those missions more successful.

“Counterinsurgency theory requires that you have some knowledge of the culture that you’re trying to occupy or control in some way,” says David Price, a professor of anthropology at St. Martin’s University in Washington State. Price, who studies the history of social science’s involvement with the defense establishment, describes that relationship as “mixed” over the years. During World War II, anthropologists did everything from translation to espionage. Anthropologists also participated in counterinsurgency operations in Vietnam, generating a great deal of controversy within the field.

Catch up on the latest headlines and unique NPR stories, sent every weekday.E-mail address

By subscribing, you agree to NPR’s terms of use and privacy policy. NPR may share your name and email address with your NPR station. See Details. This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.

More recent social science programs in the war on terrorism have proven deeply divisive. One Pentagon program known as the Human Terrain System ended in disaster after several researchers were killed in Iraq and Afghanistan. Psychologists working with the CIA contributed to interrogation practices that are now widely viewed as torture.

Minerva was far more academic. It gave grants to researchers in universities. Price says its military roots made it controversial among anthropologists, and he thinks it never really did deliver on the promise of using social science to win hearts and minds.

“The notion that you can get an occupied population to somehow accept this occupation or see it in their best interest … that’s a lot of weight to put on culture, when people very logically know that they’re being occupied,” he says.

Over the years, Minerva shifted its focus. More recent grants studied Russian disinformation campaigns and how to strengthen Western alliances. A 2019 review by the National Academies found that the research funded by Minerva was of high quality and that the program “has made important contributions.”

The military announced it was ending the program in February. In a written statement, the Pentagon says Minerva was eliminated “to align more directly with the Department’s modernization priorities.”

Price says he reads that statement as part of general shift by the Pentagon’s research arm, away from broad areas of inquiry and towards technology development programs. “Less money for humans, more money for robots,” he says.

Under the Trump administration, the Pentagon has put more money towards things like hypersonic missiles–advanced weapons it believes can help to counter Russia and China.

The end of the Minerva program is about more than just shifting money into advanced technology, Pollack says. The Pentagon appears less interested than ever in ever in hearing from outside academics.

“It’s not just a case of social sciences, it’s scientific advice, generally,” he says.

Last year, the Pentagon tried to disband a group of researchers known as the JASONs. They had given the Defense Department independent, sometimes critical evaluations of tough technical problems for years. The group later moved to the Department of Energy.

In the case of Minerva, the program is only around $15 million each year, sofa change for the Pentagon. Pollack worries that by favoring new hardware over academic advice, the Pentagon risks getting caught in an unproductive technological competition with Russia and China.

“The less we think about why we do things, and the more we’re just determined to go ahead and do them, the more we get into trouble in national security,” he warns.

Interdisciplinary approach yields new insights into human evolution (Vanderbilt University)

PUBLIC RELEASE: 

Vanderbilt biologist Nicole Creanza Nicole Creanza takes interdisciplinary approach to human evolution as guest editor of Royal Society journal

The evolution of human biology should be considered part and parcel with the evolution of humanity itself, proposes Nicole Creanza, assistant professor of biological sciences. She is the guest editor of a new themed issue of the Philosophical Transactions of the Royal Society B, the oldest scientific journal in the world, that focuses on an interdisciplinary approach to human evolution.

Stanford professor Marc Feldman and Stanford postdoc Oren Kolodny collaborated with Creanza on the special issue.

“Within the blink of an eye on a geological timescale, humans advanced from using basic stone tools to examining the rocks on Mars; however, our exact evolutionary path and the relative importance of genetic and cultural evolution remain a mystery,” said Creanza, who specializes in the application of computational and theoretical approaches to human and cultural evolution, particularly language development. “Our cultural capacities-to create new ideas, to communicate and learn from one another, and to form vast social networks-together make us uniquely human, but the origins, the mechanisms, and the evolutionary impact of these capacities remain unknown.”

The special issue brings together researchers in biology, anthropology, archaeology, economics, psychology, computer science and more to explore the cultural forces affecting human evolution from a wider perspective than is usually taken.

“Researchers have begun to recognize that understanding non-genetic inheritance, including culture, ecology, the microbiome, and regulation of gene expression, is fundamental to fully comprehending evolution,” said Creanza. “It is essential to understand the dynamics of cultural inheritance at different temporal and spatial scales, to uncover the underlying mechanisms that drive these dynamics, and to shed light on their implications for our current theory of evolution as well as for our interpretation and predictions regarding human behavior.”

In addition to an essay discussing the need for an interdisciplinary approach to human evolution, Creanza included an interdisciplinary study of her own, examining the origins of English’s contribution to Sranan, a creole that emerged in Suriname following an influx of indentured servants from England in the 17th century.

Creanza, along with linguists Andre Sherriah and Hubert Devonish of the University of the West Indes and psychologist Ewart Thomas from Stanford, sought to determine the geographic origins of the English speakers whose regional dialects formed the backbone of Sranan. Their work combined linguistic, historical and genetic approaches to determine that the English speakers who influenced Sranan the most originated largely from two counties on opposite sides of southern England: Bristol, in the west, and Essex, in the east.

“Thus, analyzing the features of modern-day languages might give us new information about events in human history that left few other traces,” Creanza said.

Anthropology’s Storyteller-Shaman-Sorcerer Strikes Again With ‘The Corn Wolf’ (Pop Matters)

BY HANS ROLLMAN

27 January 2016

MICHAEL TAUSSIG’S WORK BOTH ATTRACTS AND ANGERS OTHER ANTHROPOLOGISTS. IT ALSO RE-ENCHANTS A DISCIPLINE THAT IS IN DESPERATE NEED OF IT.

cover artTHE CORN WOLF MICHAEL TAUSSIG

(UNIVERSITY OF CHICAGO PRESS)
DEC 2015

“So who is telling stories nowadays? And who is telling the story about stories?”

Michael Taussig was once dubbed “anthropology’s alternative radical” (by the New York Times, no less). It’s tempting to call him iconoclastic, but his latest collection, The Corn Wolf, problematizes the term ‘iconoclasm’ (it even features an ‘Iconoclasm Dictionary’) so thoroughly that a writer would deploy it at his peril.

Nevertheless, the dilemma sets the mood: Taussig’s work remains as genre-bending today as when he published the book that first raised eyebrows—and ire, among many colleagues in the field—back in 1987.

That book, Shamanism, Colonialism and the Wild Man(University of Chicago Press, 1991), launched a multi-pronged attack on some of the discipline’s most sacred conventions, and remains a controversial (and widely used) text in graduate and upper-level undergraduate anthropology courses today. While undergrads found Taussig’s unapologetic accounts of partaking in drug binges with Amazonian shamans titillating, it was the reflexive critique of anthropologists’ obsession with violence and terror, coupled with the experimental and often poetic style of composition, that put other scholars on edge.

Over a quarter century later, his ability to confound cultural critics and confront convention hasn’t waned. His latest collection of essays written over the past decade, The Corn Wolf, squarely tackles many of the key controversies of our time—the academic industrial complex, Occupy Wall Street, the intensification and precarity of neoliberal capitalist culture, the plight of Occupied Palestine, and more—in Taussig’s characteristically poetic, storyteller style.

Finding Magic in the Corporate Academy

Taussig’s work is the sort of bewilderingly beautiful prose (one is often tempted to call it poetry) that’s able to operate on multiple intellectual levels. The first essay in the collection, “The Corn Wolf: Writing Apotropaic Texts”, immerses the reader fully and mercilessly in the style. It opens with a poor graduate student realizing that writing up their fieldwork is the most difficult and important task of graduate school, and also the one thing graduate school teaches you nothing about. Fieldwork and writing; “they are both rich, ripe, secret-society-type shenanigans. Could it be that both are based on impossible-to-define talents, intuitions, tricks, and fears?”

No wonder many careerist academics dislike him.

Of course the essay isn’t so much about graduate writing as about his own writing, and about the act of writing—the magical act of writing—itself.

For example, Taussig considers anthropology’s treatment of magic and shamanic sorcery: “Pulling the wool over one’s eyes is a simpler way of putting it… What we have generally done in anthropology is really pretty amazing in this regard, piggybacking on their magic and on their conjuring—their tricks—so as to come up with explanations that seem nonmagical and free of trickery.”

This seemingly nonmagical academic form of writing—or mode of production, as he calls it—is what he refers to as ‘agribusiness writing’: “Agribusiness writing is what we find throughout the university and everyone knows it when they don’t see it.” Against it he pitches the idea of ‘apotropaic writing’, a magic that connives with the prosaic to produce a counter-magic of its own.

When anthropologists demystify shamanic sorcery, for instance, the ‘wolfing’ moves of apotropaic magic would reveal the sorcery implicit in the act of the ‘scientific’ anthropologist’s recasting of shamanism. Indeed, the fact that the wonder and magic of the everyday world has been demystified by science is a sort of magical transformation itself. Is this how we re-enchant the world? By the use of story-telling and writing to re-position what seems like the boring, unmagical workaday world of everyday capitalist drudgery and expose it as the magical sleight-of-hand and tricksterism that it is? “I have long felt that agribusiness writing is more magical than magic ever could be and that what is required is to counter the purported realism of agribusiness writing with apotropaic writing as countermagic, apotropaic from the ancient Greek meaning the use of magic to protect one from harmful magic.”

The point emerges again, perhaps unintentionally, in Taussig’s essay “The Stories Things Tell and Why They Tell Them”, as he discusses our collective yearning for “the old days”.

“‘The old days’ is actually a talismanic phrase and phase that ushers in prehistory and hence the enchanted world when things spoke to man… it goes along with what is felt to be a certain lack or loss of poetry—of poetry and ritual—in workaday life. But, you ask, has that really disappeared? Does enchantment not resurface under certain conditions, maybe extreme conditions, as in our contemporary world of machines, corporate control, and heady consumerism?”

Our world seems devoid of magic, comprised of boring realities that brook no alternatives: from the academic industrial complex to neoliberal capitalism. The hegemonic mode of thinking which makes us think that way, is perhaps the most magical and insidious form of sorcery there is.

Winnie-the-Pooh, and Wittgenstein, Too

The essays cover a broad range. Taussig discusses the literary work of B. Traven, that enigmatic, socio-political novelist who wrote under a pseudonym in early 20th century Mexico but is believed to have been an exiled German anarchist. Walter Benjamin appears repeatedly; Adorno and Wittgenstein, too. But to follow the startling trajectory of Taussig’s thought requires more than intellectual reference points: he weaves a sort of magic in his storytelling designed to disrupt the reader’s familiar mode of analysis; that agribusiness reading and writing model that underpins not just the academy but so much of our society’s accepted ways of configuring knowledge. A shaman-scholar, indeed. It’s Taussig’s particular talent: not just anyone can develop an essay drawing together bumblebees, the dialectics of humming, Theodor Adorno and Winnie-the-Pooh. Or produce serious, thought-provoking reflections on what a zebra in a zoo must think of a man riding by on a bicycle.

The value of Taussig’s work is that it can often be read on multiple levels; as enriching to return to as when it provokes for the first time, although the experience and what one gains from it is often quite different each time. The essay “Excelente Zona Social”, originally written to commemorate the anniversary of an anthropological classic, meanders through a set of reflections on the nature of ethnographic fieldwork, set against the backdrop of Taussig’s own time spent with peasants battling the Colombian state for control of occupied land. The peasants and their legal advisors compete with the state and the owners of capital (the palmeros, or palm plantation owners) to produce maps of the territory in dispute: on the state’s side, maps demonstrating ownership and property rights; on the peasants’ side, maps demonstrating usage and community history.

What emerges is a struggle over contesting frames of reference, and even over the language used to articulate the politics of presence. The state and palmeros speak in a legal, bureaucratic language; the peasants in a language of anecdotes and shared stories. Their legal advisor puts it bluntly: “’We have to create a new language,’ says Juan Felipe. ‘The palmeros have theirs, and we need to show the world an alternate model.’” The dispute echoes a broader one that is emerging in indigenous studies today, between competing histories of culture and the ways we recognize knowledge. In recent years, this trend has involved challenging the ways in which oral histories are traditionally devalued in western legal and intellectual culture.

Food for thought. But Taussig—like his spirit-guide, Walter Benjamin—takes it a step further and implicates the reader in this process, as well: “the origin of storytelling lies in the encounter between the traveler and those who stay at home,” he reminds us. The reader is not an innocent bystander; a point to which Taussig returns in subsequent essays.

The Politics of Field Notes

Another recurring theme in The Corn Wolf appears in the form of valuable reflections on the nature of the field journal, used by anthropologists to collect notes—sketches, snatches of conversation, reflections, vague impressions—and which is then typically translated into more standard form for reader consumption: books or journal articles. But in this process of translation it loses much of its magic, and that includes the capacity of the field journal to convey actual experience. When an anthropologist ‘writes up’ their fieldnotes, muses Taussig, after-thoughts kick in and infuse and suffuse the process. “By afterthoughts I mean secondary elaborations that arise on top of the original notes, photographs, and drawings. Through stops, starts, sudden swerves, the original is pulled into a wider and wilder landscape. To reread and to rewrite is to tug at the memories buried therein as well as engage with the gaps, questions, connections, conundrums, and big ideas that lie latent and in turn generate more of the same.”

The point of this reflection, Taussig continues, is to challenge the conventional trajectory of field-notes-to-publication. “I feel impelled to ask, therefore, if anthropology has sold itself short in conforming to the idea that its main vehicle of expression is an academic book or journal article? This is not a plea for exact reproduction of the fieldwork notebook but rather a plea for following its furtive forms and mix of private and public…”

There’s a revealing clue here to the circuitous and unorthodox nature of Taussig’s own writing style. It’s a form of “magical anthropology”, for lack of a better term. Critics speak of magical realism in fiction and literature as involving the use of magical elements to achieve a deeper insight into reality (well-known examples include the work of Gabriel Garcia Márquez, Salman Rushdie, Isabel Allende).  Adam Hothschild, writing in the New York Review of Books, famously referred to the reportage of Polish journalist Ryszard Kapuscinski as comprising a form of “magical journalism”. Such labels describe the use of writing not to convey facts but to communicate experience, by provoking ideas and states of mind that more accurately reflect the perceived reality of a situation, even if the process of doing so requires the storyteller (be they author, journalist or anthropologist) to sometimes run rough-shod over the facts as they might be conventionally presented.

This is also a form of what is referred to as ‘fictocriticism’—the combination of fictive and non-fictive elements in a single text. Its application has particular merit in anthropology. What many of us consider reality—“the facts”, or those details which are intended to convey and communicate reality—can sometimes themselves prove to be a barrier to comprehending reality as it is experienced by another. Facts are consumed and ordered by the reader within their own frame of reference, neatly reinforcing the reader’s pre-existing sense of reality; the experience of the Other those facts are intended to relay remains uncommunicated.

However,  by playing with the presentation of those facts, some storytellers (journalists, social scientists) might manage to more accurately share the insights and experience of the Other, by provoking a deeper, experiential resonance in the reader. Or so a magical anthropology, like magical journalism or magical storytelling of any genre, might suggest.

At any rate, the fact is there’s another thread here worth following: the power of storytelling and the role of the reader, as Taussig explains best in his travelogue-essay,  “My Two Weeks in Palestine”. A recurring theme in Taussig’s work is humanity’s fascination with violence and terror. Anthropologists (and other academics) are often criticized for their fly-in, fly-out method of witnessing violence, and of the careers built on our society’s fascination with violence. Like politicians, diplomats, journalists, humanitarians, and others, they are often criticized for writing about violence and terror without (seemingly) actually being able to do anything to stop it or cause it to abate. The academic, therefore, becomes implicated in the culture of violence, helping to stoke humanity’s fascination with the abominable. Yet the complicity of the academic, the anthropologist, is as nothing compared with the complicity of the reader, suggests Taussig.

This alone makes such storytelling and retelling a treacherous activity. Joseph Conrad called it ‘the fascination of the abomination,’ an accurate if ponderous rendering of the stock in trade of war journalists and war photographers, especially the latter, wild men and wild women to the core, too much in love with their work which soon settles into banality. But that is as nothing compared with the conceit of the reader of their work, secure at one remove from the action, yet no less likely to be buoyed up by the tempestuous currents of attraction and repulsion inflaming it before succumbing to indifference or turning the page or clicking the mouse.

In the face of this, what is to be done? Taussig suggests the act of witnessing is important, but it must lead to something more than mere consumption on the part of the reader. Thus the imperative for the writer, the storyteller, to find a way to write their stories (or articles, or books) in such a way as to provoke a more reactive reading that transcends mere passive consumption. Here the unorthodox anthropologist, open to the creative and experimental potential of the field journal medium or other types of experimental writing, might stumble upon ways of provoking such responses.

(I)t is my hope that the flexibility and “multi-tasking” to be found in the fieldworker’s diary can reconfigure this otherwise paralyzing ‘fascination of the abomination.’ Like the magical shield of Perseus, a diary allows of witness without being turned to stone. Like Walter Benjamin’s Denkbilden or ‘thought-images,’ the diary form facilitates grasping those images that flare up at a moment of danger when the potential for innervating the body is at its highest.

In Palestine he is struck by the way people tell him their stories: horrifying, terrible stories, but told thoughtfully and even with humour. “[T]he point was that people were capable, precisely because of their circumstance, of combining the unthinkable with the sayable—that was the miracle—and hence pass the baton of witnessing along to me, to pass on to you in the hope, vain as it may be, that witnessing becomes something more than consumption. Like travel and anthropology, reading has not only its passions but responsibilities, too.”

Occupying Anthropology

Taussig’s storytelling, in this collection, include an arc of stories on the pace of modern life: the speed-up of global capitalism, the precarious and destroyed lives it leaves in its ever-present wake, and the protest it sparks as workers and intellectuals and all those left in the margins (which is to say, the majority) struggle to pull the emergency brakes on a society speeding out of control. In “I’m So Angry I Made a Sign”, those brakes take the form of the Occupy Wall Street protests, which Taussig witnessed first-hand, and reflects upon in a thoughtful photo-essay.

Even more powerful is the essay that follows: “The Go Slow Party”, a moving cry for resistance against the great speed-up that plagues modern society (including academia). Taussig realizes that “the only time I really go slow is in the shower and having a shit. Both are fine examples of what Hakim Bey called ‘the temporary autonomous zone.’ Both free the mind and stimulate creative thinking…” He proceeds to reflect on the right to be lazy and the need to decolonize play and leisure. His own intervention—fighting for the right to install hammocks in his university department—was denied in favour of his colleagues’ more abstract approaches to the issue, but his reflections on the topic offer a powerful provocation.

In the final essay, “Don Miguel”, he offers some parting advice for anthropologists on the nature of fieldwork.

You learn after a long, long time, that the famous ‘method’ of participant-observation tends to be weighted toward the observation end of things and, what’s more, tends not, according to the profession, to allow much by way of self-observation. What you learn is that because of class and race barriers, what I would call ‘true’ participation is rare and unforgettable, but that the ‘stranger-effect,’ being a foreigner, makes this a lot easier. Some anthropologists, perhaps the great majority, make these barriers into a virtue, claiming that such participation is irrelevant and romantic, that we should study not ourselves, not psychology, not the anthropologist-native interaction, but something as vast and nebulous as ‘culture.’

Not so, asserts Taussig, and he offers a lifetime of examples to the contrary. The particular story he tells in the final essay is an amusing and engaging one: as a student, he made the poor decision to follow the advice of more senior academics and, against his own instincts, reach out to those at the top of the social hierarchy in the region of Colombia in which he was working, instead of simply ignoring them and focusing on the peasants he felt more comfortable with. The result was his being targeted by the local secret police (who had previously ignored him), setting off a frenzied dash around the country to convince the necessary authorities that he and his colleague were, after all, harmless researchers. His point, however, was that his own memory of this incident and the insights it opened up became a unique and different form of participant-observation, because “we had become objects in our own story”.

The Corn Wolf essays are prime Taussig: assuming a form that is both whimsical and yet deadly provocative at the same time. Michael Taussig: anthropology’s trickster magician, poet and storyteller, casts his spell again.

Hans Rollmann is a writer and editor based in Eastern Canada. He’s a columnist, writer and opinions editor with the online news magazine TheIndependent.ca. His work has appeared in a range of other publications both print and online, from Briarpatch Magazine to Feral Feminisms. In addition to a background in radio-broadcasting, union organizing and archaeology, he’s currently completing a PhD in Gender, Feminist & Women’s Studies in Toronto. He can be reached by email at hansnf@gmail.com or @hansnf on Twitter.

Ethnography as Improv (How to Anthropology)

NOVEMBER 02, 2015

By Cheryl Deutsch

“Anthropology is not a social science tout court, but something else. What that something else is has been notoriously difficult to name, precisely because it involves less a subject matter … than a sensibility.”

— Liisa Malkki, Improvising Theory (2007: 63)

 

In this post, I take inspiration from the book Improvising Theory to articulate three aspects of ethnographic practice that often go unnamed in anthropology.  I also follow up with the book’s authors, Allaine Cerwoncka and Liisa Malkki, to share their thoughts on doing ethnography today.

Most of the book consists of email exchanges from the year Cerwoncka spent in fieldwork as a graduate student and Malkki was her faculty mentor.  The conceit is that Malkki, an anthropologist, must explain to Cerwoncka, a political scientist, what “goes without saying” in anthropology; the customs and quirks that make up the discipline’s sensibility.  But as Malkki writes, “the ‘common sense’ of anthropology is a complicated matter,” and she struggles to articulate its nuances (2007: 163).

Through this exchange and the authors’ reflections, the book offers an intimate view of what ethnographic fieldwork is, in practice, as well as what it amounts to in theory.  Cerwoncka and Malkki conclude that it is ethnography’s improvisational nature that makes it challenging to teach but also special in its theoretical power.

Here are three insights I drew from the book and my subsequent exchange with them:

trumpet.jpg

1. Ethnography is Improvised

Improv comedy is a form of collaborative story-telling whose humor derives from the uncertainty of its own story line. Improv actors must say yes to whatever comes their way, trusting their training and adrenaline to make a story out of surprise.  The result is comedy.

Improvisational jazz is likewise a form of story-telling whose energy derives from its unrehearsed riffs on popular melodies and classic standards.  Jazz musicians construct improvised melodies out of notes that are spontaneous but not random: they have to make sense with the original song or melody.  Just playing fast, for example, is no guarantee that an improvised solo will succeed: the notes have to make emotional sense.

Both improv comedy and jazz employ skills that can be taught and practiced.  They benefit from excellent technique.  But in all forms of improvisation, training and expertise only go so far.  The rest requires a certain sensibility.

In their book, Improvising Theory: Process and Temporality in Ethnographic Fieldwork, Allaine Cerwoncka and Liisa Malkki make the case for ethnography as a form of improvisation.

As Cerwoncka reflected in an email exchange with me: “choices made about a research project are shaped out of intellectual, practical and professional considerations… [They] are inevitably made without full information and require constant adjustment and courage to follow one’s rational and intuitive best judgment.”

Courage is a key word here.  All forms of improv involve risk.  But it’s the vulnerability of such creative acts that give them heart and soul.

As recounted in the book, Cerwoncka scheduled a formal interview with a sergeant in the police station where she was conducting her fieldwork.  Before the interview, he talked openly about the groups that they, as cops, hated having to deal with.  “I acted casual about all this information,” she wrote to Malkki, “not jotting any of it down in front of him…  When I went back for the ‘real’ interview, he was much more formal and immediately asked if I wanted to tape the conversation” (2007: 85).  The formal interview had a different tone; he talked about “safe” topics like his family background, and then he was called away.

Reflecting on this experience in her email to Malkki, Cerwoncka decided not to tape further conversations with the police officers.  “It strikes me that they are in the position of taping people (in the interrogation room),” she wrote, “and their context for that is to use the information people give them against the people they arrest.  So I think the recorder will color the interviews too much” (2007: 85).

Later in her fieldwork, however, she found that one sergeant was particularly eager to set up taped interviews for her, so she continued with them.  She began to see that they helped those in the station feel more comfortable with her. “They don’t even seem to mind when I drift and ask them questions about their taste in music or whether they garden,” she wrote (2007: 120).  Hers is a lesson in improvised field practice.

Formal recorded interviews are an important tool in the ethnographer’s toolbox.  But in this exchange, we see that the ethnographer often has to make decisions about when and where, as well as how, to employ such tools in the field.  Ethnographers are also engaged in a form of collaborative story-telling with the people they interact with.  It takes attention and care for ethnography – as improvisation – to make sense.

 

two_hourglasses_big.jpg

2. Ethnography Takes Time

Improvising Theory’s greatest strength is its portrayal – in real time – of the year-long process of ethnographic fieldwork.  It illustrates not only the tempo of fieldwork but its many temporalities.  As Malkki writes in her concluding chapter to the book, “ethnography as process demands a critical awareness of the invisible social fact that multiple, different temporalities might be at play simultaneously… [There are] quotidian routines, events that become Events (see Malkki 1997), the panic time of deadlines, the elongated time of boredom, the cyclical time of the return of the expected, the spiral time of returns to the recognizable or the remembered, and so on” (2007: 177).

In their email exchange, we read about Cerwoncka’s uncertainties, her successes, as well as her false starts and trails gone cold.  It’s a messy process through which Malkki’s advice offers perspective and rhythm: some situations require action and attention, others call for patience and meditation.

Before she began her interviews at the police station, for example, Cerwoncka was unsure exactly where she would locate her research exploring Australian national identity.  So she made inroads with a gardening club and with officers at the police station, as well as with the pastor of a church.

In an early email to Malkki, Cerwoncka worried that she was contacting people from too many organizations at once and that she’d be overwhelmed with all their necessary follow-up.  Malkki responded: “Anthropological fieldwork is what you are doing, and therefore regular contact with informants should not just be a goal, but should be built into your everyday schedule.  It’s taxing, embarrassing, etc., but you need the material… Strike while the iron is hot” (2007: 54).  She encouraged her to choose the organizations she wanted to work with thoughtfully and then to make a schedule that would allow her to follow up on interactions and opportunities when they arose.

Later, Cerwoncka dropped the church as a site.  Then, when she was deep in fieldwork with the gardening club and the police officers, one of her political science advisers recommended she add a third site.  So she spent time talking to landscape architects.

At this point, Malkki advised her: “It’s important not to let the third site become something that allows you to escape the pressures of the sites in which you have deep investments already… Another related issue (related to the question of what’s the best use of your time): sometimes downtime is best, taking a week away from the fieldwork.  Then you return to things fresh” (2007: 126).

In this case, the right temporal strategy was patience and perserverance.

When I asked Malkki for her thoughts on ethnography today, she reiterated the importance of time: “If I were to add something… One point would be a warning against the overprofessionalization of graduate students in Anthropology.  Easy for me to say since I’ve got a job!  But anthropology does take time, and I think one has to have the time to ‘grow into it’ somehow without having career milestones always hovering at the edges of one’s attention.  One grows into fieldwork according to one’s temperament and in deep relation with people.  That is transformative.  And then, after fieldwork, one grows into writing.  That too is transformative.  It takes time (and simple grit).  This is very much a mind game.  There are many brilliant people – everyone knows they’re brilliant and their work truly original – but they just can’t let it go, or, sometimes, can’t get over writing blocks.  More time.  One should always be humane toward oneself (and everyone, of course).”

It seems that ethnography not only takes time but many different times: striking while the iron is hot, having patience when fieldwork gets tedious, and time for transformation in the writing phase.

3. Improvisation + Time = Theoretical Insight

Cerwoncka started grad school with the goal of becoming a “theorist,” and this book reflects that ambition.  As helpful as it is in illustrating ethnographic practice, it is equally effective in articulating ethnography’s theoretical power.

In our email exchange, Cerwoncka wrote, “Social analysts need more than description of phenomena, and this thing we call theory helps us try to identify patterns and associations.  However, ethnographic fieldwork and life has reinforced for me the conviction that theory serves us intellectually best when it is in dialogue with activity, data, and a variety of possible material.”

The email exchange with Malkki that documents her fieldwork experience bears this out: theoretical concepts help guide her research questions and observations.  It was Benedict Anderson’s concept of imagined communities that inspired her to look for national identity in the ordinary lives of Australian gardeners and police officers.  But these interlocutors – and Cerwoncka’s improvised engagements with them – also gave shape to the project.  Finally, time and distance add their own maturing effects. What results are the project’s theoretical insights.

Cerwoncka writes about this process of conceptual development in Native to the Nation, based on her dissertation research.  Writing about the police sergeant who eagerly arranged her formal interviews, she writes:  “These arrangements developed into a strange kind of ritual where each interview began with the sergeant ‘joking’ that the junior officer about to be interviewed ‘mustn’t give away the shop secrets’ before I was left alone with him or her” (cited in Cerwoncka and Malkki 2007: 90-1).  Such jests caused her quite a bit of anxiety: uncovering police brutality or corruption would put her and her research in a uncomfortable ethical position.  Only much later, in writing, did she conclude that the sergeant’s comments pointed to in-group boundary policing more so than any real “heart of darkness” within the station (2007: 91).  And it was much longer into writing that she came to believe “that there was another story one could write about the police besides a journalistic-type exposé or a romantic narrative about un-sung heroes” (2007: 92).

The theoretical insights of ethnographic fieldwork take time.  Improvisation in the field is what shakes up one’s orientation to theoretical concepts, but it can take time for that orientation to mature into new conceptualizations.

Postscript: Ethnography and Professionalization

In addition to producing theoretical insights, Cerwoncka also stressed to me the ways in which ethnography has served her as a faculty member and university administrator:

Cerwoncka: “Every time I move to a different institution, role and, or discipline, I find myself doing a version of ethnographic fieldwork!  Fieldwork taught me the techniques and instilled confidence in me to map and analyze patterns of community, be it a police station or a School of Social Sciences.  I think the professional skills I learned through ethnographic fieldwork … are as useful to me as a Dean of Social Sciences at University of East London as they were to my dissertation.”

These thoughts neatly illustrate the challenge and promise of ethnography: that one has to let go and accept in order to reap its creative potential.  Much of the advice embodied in the book revolves around the need for both confidence and acceptance.  One can’t seek out theory but can trust that it will result.  One can’t seek out professionalization but can trust that it will happen.  Just as in improv comedy there is no magic formula for making something funny, so the ethnographer that tells a compelling story can let the scene do its magic.

Thank you to Nikhil Anand for first suggesting Improvising Theory to me.  Thank you, as well, to Allaine Cerwoncka and Liisa Malkki for taking the time to share their thoughts.  And a final thanks to Ethan Hein for his explanation of improvisational jazz.

Anthropologies #21: Weather changes people: stretching to encompass material sky dynamics in our ethnography (Savage Minds)

See original text here.

September 24, 2015.

This entry is part 10 of 10 in the Anthropologies #21 series.

Heid Jerstad brings our climate change issue to a close with this thoughtful essay. Jerstad (BA Oxford, MRes SOAS) is writing up her PhD on the effects of weather on peoples lives at the university of Edinburgh. Having done fieldwork in the western Indian Himalayas, she is particularly interested in the range of social and livelihood implications that weather (and thus climate change) has. She is on twitter @entanglednotion –R.A.

For most people, the climate change issue is a bundle of scientific ideas, or maybe a chunk of guilt lurking behind that short haul flight. The words have fused together to form a single stone, immobile and heavy. Change is a bit of a nothing word anyway – anything can change, and who is to say if it is good or bad, drastic or practically unnoticeable?

But what about climate? It is a big science-y word, neither human nor particularly tangible. Climate is about a place – engrained, palimpsested, with time-depth. That big sky, those habits – the Frenchman advising wine and bed on a rainy day, the Croatian judge lenient because there was a hot wind from the Sahara that day. This is weather I am talking about, seasons, years, the heat, damp and sparkling frost.

People care about the weather. We consider ourselves used to this or good at observing that. My home has more weather than other places – it is colder in winter, the air is clearer and brighter – because it is mine. My sunsets – this is eastern Norway – are vibrant and fill the sky, my sky will snow in June with not a cloud, my nose can feel that special tingle when it gets to below -20˚c. The north is not gloomy in winter – the snow is bright white, the hydro-fuelled streetlights illuminate empty streets and windows seal the warmth in.

What is your weather? It would be safe to assume it is part of the climate and I would go out on a limb and say I think you care about it. Am I wrong?

When the weather matters to people, the task becomes one of bridging this caring and the climate change science and projections. Looking at the impact of these weather changes in different areas of life is, then, going to make up a steadily larger part of useful climate change research.

Mead famously convened a conference with Kellogg titled ‘The Atmosphere: Endangered and Endangering’ in 1975, and Douglas published Risk and Blame in 1992. In the new millennium Strauss and Orlove (2003), Crate and Nuttall (2009) and Hastrup and Rubow (2014) brought edited volumes to the debate. It seems to be fairly well established, then, that climate change is a matter for anthropologists, as phrased by the AAA statement on climate change: ‘Climate change is rooted in social institutions and cultural habits. … Climate change is not a natural problem, it is a human problem.’ What then, can anthropologists do, about this problem?

Anthropologists provide description. The mapping of people’s stories of how the weather is ‘going wrong’, stories of change, and of coping and consequences is underway (Crate 2008 described the effects of unusual winter melt on the Vilui Sakha in Siberia, Cruikshank 2005 explored the tendrils of meaning surrounding glaciers between Alaska, British Colombia and the Yukon territory). Linked to the description, of course, and not really disentanglable from it is the explanation. Explanations and understandings of weather and weather changes in the places where they are happening, whether Chesapeake Bay, the Marshall Islands, or Rajasthan, India, fill in the social significance of what had been an empty sky (Paolisso 2003, Rudiak-Gould 2013, Grodzins-Gold 1998). The weather changes, in fact, constitute one of those satisfying areas of inquiry which concern those asked as much as the anthropologist.

The question of knowledge, however, can still seem a barrier when climate scientists are those with a mandate to understand changing weather. Anna Tsing, in the Firth Lecture at the Association of Social Anthropologists of the UK and Commonwealth’s (ASA) 2015 conference in Exeter, brought the contextual ecological study of mushrooms and the trees that they are mutual with in the forests of Japan and China to illustrate the gains anthropology can make when we give up scepticism of natural science. Earlier in the year, Moore, at the launch of the Centre of the Anthropology of Sustainability (CAOS) at University College London used microbial research to break down the bounded image of the body, where on the cellular level culture and biology shape each other – for instance when poor black women in the States eat fish which contains mercury and this affects the biological development of their children. Tsing and Moore brought together what might previously have been considered within the remit of ecology or biology to make important points about the capacity of anthropology—and to suggest where we might go next, expanding vision of social science. When mushrooms and microbes are appropriate topics for anthropological research, then looking at the climate and its material as well as social effects (rotting, drying, illness (Jerstad 2014)) starts to look feasible.

The anthropocene is a term which has been shown to have considerable analytical purchase outside of geology, illuminating moral and political debates about blame, the north-south divide and the global movement of materials, people and plants (Chakrabarty 2014, Tsing 2013). These ideas have been applyied in the study of climate scientists themselves (Simonetti 2015) as well as climate policy (Lahsen 2009). The anthropocene, i.e. the world as subject to the effects of human activities such as climate change, may be read as a set of material relationships, where the weather, bodies and landscapes meet, as Ingold showed (2010). This term allows the larger picture, where the world and all the people in it – those people for whom climate change matters – to be considered in a single conceptual space. In this space climate change can be seen as part of the encompassing extra-somatic human activity which defines our world as we are starting to understand it.

The anthropocene and climate change, however, both involve the challenge of how to follow the conceptual and material threads that lead from these global issues and into particular, ethnographically described lives:

 A close examination of scientific practice makes clear that localizing is as much a problem for climate researchers as it is for ethnographers. This holds not only for the     interconnectedness of the global and the local climate, but also for the separation of climate change as a ‘scientific fact’ on the one hand, and a ‘matter of concern’ on the other. Climate research offers an insight into a messy world of ramifications, surprising activities and unexpected “social” context (Krauss 2009:149–50).

Anthropological work has the reflexive capacity to deal with the messy world Krauss refers to here, where these ramifications, surprising activities and unexpected ‘social’ context are part of the particular places where we, as anthropologists, work, taking cues from events and observations around us. In my own fieldwork I found all kinds of unanticipated connections between weathers and other aspects of life. With a research proposal full of religion and ‘belief’ I ended up with far more material interests, guided by the sometimes patient and sometimes exasperated villagers with whom I lived in the western Indian Himalayas.

I was walking with Karishma to get green grass one day during the monsoon. She told me that our village (Gau) is famous for being misty, and therefore that the girls are known, both for working hard and for being beautiful, because even though they are outside the mistiness keeps them pale. So apparently on festival days people say that the girls from this village are gori (white) because there is so much mist here. But Karishma pointed out that this can’t be true because there is mist only in the rainy season. Then she said that the girls here wear sweaters to stay gori. Also, she said girls of this village have a reputation for being hard working so people ask for them in marriage when there is a household where work is to be done. This (I think) might be part of why quite a few of the new brides in Gau are not used to doing as much work as women do here. But then Karishma said fairly that it is not just the girls who work hard, everyone works hard in this village (well, most people). She said that when girls go away to study, like she did, then they come back more beautiful. That is to say pale from not being outside. She was saying how on the other hand I had become more black (kala) since being there in the village (this was true).

People, whether Himalayan villagers or Norwegian PhD students, live with weather on an ongoing basis, and consistently live in the weather, which is not always catastrophic but does always impinge (think food perishability, wardrobe choices, sitting in the shade). The considerations people have with regards to the weather, then, necessarily translate to potential climate change concerns. Climate change is a threat, it has potentially deadly dimensions, but weather is inherent to our world, and I would not want to pathologize it.

Weather relates in fundamental ways to sensation and the body, thermal infrastructure, agriculture and animal husbandry, health and illness, disasters and other areas of anthropology (that is to say life). Weather may be implicated in all kinds of ways with other areas of life – for instance the hot/cold symbolism in India which classifies illness, the body, food and even moods. I think that it can be surprisingly easy to forget or ignore weather precisely because it is so pervasive. And this resistance of the mind against focusing on it is a risk when it comes to climate change. It can be tiring to think about. How, after all, do you write about the wind? And people have (Parkin 1995, James 1972, Hsu and Low 2007), but personally I find it challenging just to make a start – capturing the sky with a few black marks on paper feels so unrealistic. In that sense it is a great stretching area for our minds, about the material and the social, about what we mean with words like ‘impact’ and ‘atmosphere’ and the connections between people and places.

Finally there is the role of anthropology in clarifying the terms of the climate change debate. This is a new kind of challenge, it is a global one (hence the usefulness of Tsing’s work, who demonstrated the crucial part material relationships and meetings play in globalisation (2005)), it is to do with both technologies and nature (we can apply Latour, who shows in ‘we have never been modern’ (1993) how ‘modernity’ has not succeeded in cutting us off from the material and natural world around us), it is political, historical (hence Chakrabarty, whose work pushes us to think in new ways about how we are positioned in history and what place climate change has in this context), and there is something about it which is pushing at the edges in all these areas and others, in which new terms are required to even conceive of some of these problematics. Building on what we understand and moving further, in ways that might tread new neural pathways and enable new realities, simply from the newness of our thinking, feels like a worthwhile undertaking. I suggest that the orientation of research which maps out the weather-weight of social life can help bring the people back into climate change.

So the immovable stone of ‘climate change’ is being loosened up, pulled apart to reassemble in illuminating and constructive ways by people contributing to blow away the fog obstructing understanding, using the culminations of what we know so far and the ways in which we can think new thoughts. This effort rewards.

References

AAA statement on climate change. 29th January 2015. http://www.aaanet.org/cmtes/commissions/CCTF/upload/AAA-Statement-on-Humanity-and-Climate-Change.pdf Accessed 1st July 2015.

Chakrabarty, Dipesh 2014. Climate and Capital: On Conjoined Histories. Critical Inquiry 41(1):1-23.

Crate, Susan. 2008. Gone the Bull of Winter? Grappling with the Cultural Implications of and Anthropology’s Role(s) in Global Climate Change. Current Anthropology 49:569-595.

Crate, Susan and Mark Nuttall, eds. 2009. Anthropology and Climate Change: from Encounters to Actions. California: Left Coast Press.

Cruikshank, Julie. 2005. Do Glaciers Listen? Local Knowledge, Colonial Encounters, and Social Imagination. Toronto: University of British Columbia Press.

Douglas, Mary. 1992. Risk and Blame. London: Routledge

Grodzins-Gold, Ann. 1998. Sin and Rain: Moral Ecology in Rural North India. In Lance Nelson ed. Purifying the Earthly Body of God. New York: State University of New York Press.

Hsu, Elizabeth and Chris Low eds. 2007: Wind, Life, Health: Anthropological and Historical Perspectives. Special issue. Journal of the Royal Anthropological Institute 13:S1-S181.

Ingold, T. (2010), Footprints through the weather-world: walking, breathing, knowing. Journal of the Royal Anthropological Institute, 16: S121–S139.

James, Wendy. 1972. The politics of rain control among the Uduk. In Ian Cunnison and Wendy James eds. Essays on Sudan ethnography presented to Sir Edward Evans-Pritchard. London: C. Hurst.

Jerstad, Heid. 2014. Damp bodies and smoky firewood: material weather and livelihood in rural Himachal Pradesh. Forum for development studies 41(3):399-414.

Krauss, Werner. 2009. Localizing Climate Change: A Multi-sited Approach. In Marc-Anthony Falzon and Clair Hall eds. Multi-Sited. Ethnography. Theory, Praxis and Locality in Contemporary Research 149-165. Ashgate.

Lahsen, Myanna. 2009. A science-policy interface in the Global South: The politics of carbon sinks and science in Brazil. Climatic Change 97:339–372.

Paolisso, Michael. 2003. Chesapeake Bay watermen, weather and blue crabs: cultural models and fishery policies. In Sarah Strauss and Benjamin Orlove eds. Weather, Climate, Culture. Oxford: Berg.

Rudiak-Gould, Peter. 2013. Climate change and tradition in a small island state: the rising tide. Routledge.

Simonetti, Christian. 2015. The stratification of time. Time and Society .

Strauss, Sarah and Orlove, Benjamin eds. 2003. Weather, climate, culture. Oxford: Berg

Tsing, Anna. 2013. Dancing the Mushroom Forest. PAN: Philosophy, Activism, Nature vol 10.

Tsing, Anna. 2005. Friction. Princeton University Press.

Decolonizing Anthropology (Savage Minds)

April 19, 2016

Decolonizing Anthropology is a new series on Savage Minds edited by Carole McGranahan and Uzma Z. Rizvi. Welcome.

Just about 25 years ago Faye Harrison poignantly asked if “an authentic anthropology can emerge from the critical intellectual traditions and counter-hegemonic struggles of Third World peoples? Can a genuine study of humankind arise from dialogues, debates, and reconciliation amongst various non-Western and Western intellectuals — both those with formal credentials and those with other socially meaningful and appreciated qualifications?” (1991:1). In launching this series, we acknowledge the key role that Black anthropologists have played in thinking through how and why to decolonize anthropology, from the 1987 Association of Black Anthropologists’ roundtable at the AAAs that preceded the 1991 volume on Decolonizing Anthropology edited by Faye Harrison, to the World Anthropologies Network, to Jafari Sinclaire Allen and Ryan Cecil Jobson’s essay out this very month in Current Anthropology on “The Decolonizing Generation: (Race and) Theory in Anthropology since the Eighties.”

Decolonizing Anthropology HarrisonThese questions continue to haunt anthropology and all those striving to bring some resolution to these issues. It has become increasingly important to also recognize the ways in which those questions have changed, and how the separation between Western and NonWestern is less about locality and geography, but rather an epistemic question related to the colonial histories of anthropology. Decolonization then has multiple facets to its approach: it is philosophical, methodological, and praxis-oriented, particularly within the fields of anthropology. Here at Savage Minds, we have decided to take these questions on again in a different public, and work through a series of dialogues, debates and possibly even reconciliation. 

We feel it imperative to decolonize anthropology; not doing so reiterates hierarchies of control and oppressive systems of knowledge production. But what does that really mean and what does it look like? What might it mean to decolonize anthropology? Various subfields of anthropology have been contending with this issue in different ways. For example, within archaeological literature, decolonization emerged as political necessity developed through an engagement with the postcolonial critique. Being inspired by Linda Tuhiwai Smith’s influential work on decolonizing methodologies (among others) resulted in the development of indigenous archaeology. Most archaeologists would argue that anthropological archaeology continues to exist within neocolonial, neoliberal, and late capitalist frameworks, and thus these critiques and methodologies need to be constantly revised utilizing interdisciplinary projects that locate decolonization across academia (including decolonizing epistemologies, aesthetics, pedagogy, etc).

decolonize-stickersCalls for decolonization have now emerged as mainstream politics in the academy: an era when academics across disciplines are calling for historical, financial, and intellectual accountability for not only the work we do, but also for the academic institutions in which we study, teach, and learn. We contend, therefore, that decolonizing anthropology (at a minimum) has now grown to a project beyond its initial impetus in treating non-anthropologist intellectuals as just that: intellectuals rather than local interlocutors. In its development across the discipline, in both archaeology and cultural anthropology, for example, decolonizing anthropology is a project about rethinking epistemology, methodology, community, and political commitments.

Epistemology. Decolonizing anthropology means rethinking epistemology. Anthropologists have long acknowledged the development of our field with a colonial impulse, and how the construction of knowledge reiterate systems of control. It is important to continue working through epistemic concerns to realign how our discipline might undiscipline itself and realign how it evaluates what research is considered important. Decolonizing epistemology destabilizes the canon. It is not enough to only add certain voices into our anthro-core classes; a decolonizing movement focused on epistemology provides rigor to the multiplicity and plurality of voices. Deeply linked to the ways in which knowledge is produced and constructed, is our pedagogy and the methodologies by which we practice.

Pedagogy. If we are to realign our discipline, it becomes imperative for us to reconsider how decolonization might impact our pedagogy. This is not a new concept in the academy: decolonizing pedagogy is a subfield within the field of education. As mediators/translators/facilitators of knowledge, it is our responsibility to consider how anthropological conversations about race and difference might be supported and developed in the classroom through a decolonized pedagogical practices. A decolonized pedagogy should be listed within as best practices in our guides to teaching and learning. Pedagogy also includes what one teaches as well as how. What forms the anthropological “canon” of works that one must know? Part of the decolonizing of the discipline is to reassess whose scholarship we mark as important via inclusion on course syllabi. The rediscovery of Zora Neale Hurston’s scholarship by anthropologists is the most obvious example; who else are we–or should we–be learning from and thinking with anew today?

Methodology. Decolonizing anthropology means rethinking methodology, Our history is full of taking information from communities without enough consideration of the impact of this form of anthropological research. This does not only mean filling out our IRB forms, but also thinking carefully about power. Institutionally, our bodies are disciplined to hold and claim certain statuses as anthropologists. How does tending to such manifestations of power redirect our relationships in the field, our research questions, the ways we teach, and the way we work with communities?

Community. Decolonizing anthropology means rethinking community. Rethinking who the communities are within which we do our research. Rethinking the way we stretch and build our community of conversation to open beyond the academy, and learning how to extend our deep anthropological practice of listening with our ears and with our hands, and cultivating a spirit of reciprocity for a new era. And at the heart of today’s decolonial project, rethinking who our community of anthropologists is, and rethinking strategies of recruitment and retention for an anthropology that reflects and includes the communities whose stories, beliefs, and practices have long been those which comprised our discipline.

Political Commitment. Decolonizing anthropology means rethinking our political commitments. It also means to acknowledge that we are not the first to have them. Anthropology has long been a discipline with a political edge to its scholarship for some of its practitioners. However, as decades turn into centuries, what was once politically edgy looks embarrassingly not so, conventional or racist or both. We believe that a decolonized anthropology involves research that advances our understanding of the human world in a way that moves us forward.

All of this involves communication. As editors, our goals for this series are both personal and professional. Our first collaboration was an India Review special issue on Public Anthropology (2006), edited by Carole McGranahan, with Uzma Z. Rizvi as a contributor to the issue. Carole recently revisited her introduction to that volume in a keynote lecture for the annual American University’s Public Anthropology conference in 2014. In a talk on “Tibet, Ferguson, Gaza: On Political Crisis and Anthropological Responsibility,” she reflected on political changes in the discipline over the last decade, including our need to not only address anthropology’s colonial past, but also our imperial present. This is the sort of thinking we began together in 2006. Uzma’s article entitled “Accounting for Multiple Desires: Decolonizing Methodologies, Archaeology and the Public Interest” was based on her PhD research (2000-2003) in Rajasthan, India. The project was designed as a community based-participatory action research project that was explicitly linked to decolonizing archaeology in India. Both of us have had a long standing engagement with this literature and consider this contemporary moment to be significant within the praxis of our discipline, which is why we are thrilled to launch this series!

We have invited anthropologists writing and thinking about decolonizing the discipline to contribute essays to this series. Essays will be posted roughly every two weeks, and if any readers would like to submit an essay for consideration, please send us an email at decolonizinganthropology[at]gmail.com.

Our series schedule of contributors is as follows:

April 25–Faye Harrison, in conversation with Carole McGranahan, Kaifa Roland, and Bianca Williams

May 9–Melissa Rosario

May 23–Zodwa Radebe

June 6–Lisa Uperesa

June 20–Public Anthropology Institute (Gina Athena Ulysse, with Faye Harrison, Carole McGranahan, Melissa Rosario, Paul Stoller, and Maria Vesperi)

July 4–Krysta Ryzewski

August 1–Asmeret Mehari

August 8–Nokuthula Hlabangane

August 15–Zoe Todd

August 29–Didier Sylvain and Les Sabiston

September 12–Claudia Serrato

September 26–Gina Athena Ulysse

October 10–Paige West

November 7–Kristina Lyons

November 14–Marisol de la Cadena

Debate com Eduardo Viveiros de Castro sobre filme “O Abraço da Serpente” (Almanaque Virtual)

Indicado ao Oscar 2016 e distribuído pela Esfera Filmes, debate sobre o filme O Abraço da Serpente lotou o Cinema Estação Botafogo

por 

28 de fevereiro de 2016

O renomado Antropólogo e profundo conhecedor da Etnologia Ameríndia, Eduardo Viveiros de Castro, foi convidado para um debate sobre o novo filme distribuído pela Esfera Filmes, candidato ao Oscar 2016 na categoria de melhor filme em língua não-inglesa, o multipremiado representante da Colômbia “O Abraço da Serpente”, dirigido por Ciro Guerra. O Almanaque Virtual traz por escrito este grandioso debate de Viveiros de Castro com o público que lotou a sala do Cinema Estação Botafogo no Rio de Janeiro na manhã do Sábado do dia 27 de fevereiro.

12799439_1064736346933493_4771678075448367952_n

É importante ressaltar que os personagens cientistas do filme são inspirados em grandes nomes reais para a Antropologia, nos dois tempos em que o filme se passa: o alemão Theodor Koch-Grünberg, que estudou os povos indígenas do Amazonas Colombiano e do Alto Rio Negro entre 1903-1905; e o americano Richard Evans Schultes, renomado etnobotânico que viveu em terras indígenas entre 1941-1952.

Embora bastante alusivo à realidade, há diferenças como as apontadas por Viveiros de Castro: “O personagem de Theodore pode parecer no filme que sumiu ao final de sua jornada exploradora, porém viveu mais 20 anos em Roraima, cujos estudos resultou na obra ‘De Roraima a Orinoco’, coleção em cinco volumes, e apenas faleceu em 1924.”

12800133_1064761743597620_9026066127734794476_n

Já o segundo personagem, no salto de tempo que o filme faz de 1903 para 1941, era o etnobotânico mais famoso da área, que fez grandes estudos sobre o ‘Peiote’, e outras plantas com efeitos alucinógenos. Neste período, quando plantações da Malásia e Ceilão estavam fechadas, explorou-se bastante o Brasil, durante o apogeu do ciclo da borracha em que o alvo eram as seringueiras da América do Sul. Dizimaram muitos índios à conta das guerras da borracha, principalmente na Amazônia Ocidental, entre Brasil, Peru e Colômbia, tanto que nas cenas do filme que aludem a este período, o personagem de um messias falava português.

Na verdade, a representação do personagem que alude a Schultes, o etnobotânico, queria exprimir uma dupla função: procurar a Borracha/seringueira mais fina e melhor (porque a que antes ia pra Europa estava sob poder dos japoneses durante a 2ª Guerra Mundial para a fabricação de armas), e também procurar as plantas referidas no filme como Yakruna, que na realidade possivelmente se refere a plantas como a Chacrona que é uma das substâncias utilizadas para a confecção do Santo Daime (bebida consumida em cultos e experiências transcendentais/religiosas). De igual forma, a representação da fictícia Yakruna (Chacrona) não seria como a bela árvore frondosa mostrada no filme, nem tampouco a linda flor branca que nasce dela. Tratam-se de licenças líricas utilizadas pelo diretor do filme.

o-abraco-da-serpente-2-1280x640

Já a língua falada no filme pelos nativos provavelmente era da família Tucano, representada pelo personagem do índio mais velho, Karamakate, que era possivelmente um descendente Huitoto, que representaria um Pagé/Xamã que teria se isolado do grupo que se “rendeu” aos brancos, como é mostrado mais ao final do filme, quando aparece a representação de índios aprisionados ou embriagados em uma espécie de campo de concentração ou acampamento militar/religioso dos exploradores e exportadores das riquezas nativas.

O filme destaca Missões Capuchinhas como a de Santa Maria do Vaupés, que fica a beira de um rio de mesmo nome que nasce na Colômbia e se junta ao Rio Negro no Brasil. Trata-se de Missões criadas pelos padres, ao longo deste rio importantíssimo na formação das tribos originárias desta região, representada de forma bastante fiel às missões educacionais de índios sob tortura nos anos de 1920 a 1960 até o governo tirar o apoio que dava às missões católicas, como ficou marcado na notória visita do Presidente Juscelino Kubitschek que chegou a dizer que a exploração daquelas terras teria a mesma importância que teve a construção de Brasília para o Brasil. Havia ainda internatos separados de meninos e meninas, “Órfãos das guerras da borracha”, que visava transformá-los não apenas em “bons cristãos” como bons “empregados”.

abraço-capa

Noutro quesito, como se aprofunda Eduardo Viveiros de Castro, o velho Karamakate vestido com trajes nativos clássicos é mais uma ficção improvável para o período de 1960. Viver completamente sozinho faz parte da ficção, porque a lógica ameríndia é completamente diferente da ocidental e, portanto, e seria muito difícil para alguém isoladamente se manter nos costumes tradicionais, preservando artefatos como a sua Maloca (casa) como originalmente seriam.

O personagem do segundo explorador, na figura de Schultes, foi um dos últimos representantes expedicionários. Já o primeiro, Theodor, foi quem trouxe o mito do Macunaíma, usado depois popularmente na literatura pela obra de Mário de Andrade e depois na adaptação pelo cinema brasileiro (interpretado por Grande Othelo).

Outro ponto importante foi a escolha do narrativa do filme em adaptar a diferença epistemológica entre o Conhecimento pelos fatos e o Conhecimento pelos sonhos, ao abordar as diferenças da cultura dos ‘brancos’ e dos indígenas, respectivamente. A percepção ameríndia não se dá a partir da visão do humano para fora, mas sim de fora para dentro, pelas plantas, árvores e montanhas em total harmonia com a natureza, em oposição ao conhecimento classificatório e taxonômico do Ocidente.

El abrazo de la serpiente wala

Metaforicamente, todos os personagens do filme são bastante isolados, tanto os antropólogos quanto os índios que se isolam do grupo por natureza. E daí advém a bela passagem dos 40 anos que ocorre na dupla representação temporal no filme (1903 em oposição a 1941): o personagem mais velho de Karamakate diz que não sabia mais nada, nem realizar os rituais mais tradicionais para ele, mas ‘ao mesmo tempo sabia’, como um simbolismo de que o conhecimento estava sendo perdido, mas tinha de ser merecido, honrado para se passar adiante. A última Yakruna é uma ficção do filme para demonstrar justamente isso.

Viveiros de Castro atenta para o fato de que Antropólogos geralmente reclamam que filmes sobre o gênero de culturas indígenas “explicam demais o tema”. Raros filmes nesta seara são realmente bons. E tem os mais lúdicos/poéticos/alusivos como “O Abraço da Serpente”, que para o professor não se detém tanto em explicações conceituais, que se apresentam raras em alguns diálogos diretamente pra facilitar um pouco para o público em geral, como na cena que alude ao mapa.

abraco

Só ao final da projeção se tem a informação de que os personagens eram inspirados em figuras reais. Schultes, por exemplo, era amigo de Albert Hofmann, o químico que sintetizou o LSD, conhecimento este em parte obtido a partir dos estudos do Schultes sobre a Chacrona, a ‘Yakruna’ do filme. É inegável o resultado destas pesquisas para os avanços farmacológicos da História. Schultes foi quem descobriu o princípio ativo do Peiote/chacrona e etc pra farmacologia moderna. É uma bonita Mensagem sobre precisar do conhecimento dos índios pra evoluir

Vale ressaltar que para Viveiros de Castro foi uma ótima solução a escolha da fotografia P&B pelo diretor Ciro Guerra e só ao final exibir efeitos coloridos como o obtido pelo uso de alucinógenos.

Viveiros de Castro ressalta que há filmagens em regiões bastante diferentes, como mostram as plantas e montanhas de algumas cenas que se pretenderiam passar no mesmo lugar. Apenas um olhar mais atento de quem estudou a geografia da região poderá identificar tais nuances e tal fato não prejudica o resultado final do filme. Faz uma brincadeira ao afirmar que ficou imaginando como na cena da bússola, o personagem do explorador estrangeiro teria explicado sobre o eixo magnético da Terra na língua dos índios, já que este tipo de conhecimento nem mesmo faz parte do universo estrutural daquelas tribos.

Claro que o filme tomou liberdades para contar a história, como a flor de Yakruna, que no máximo talvez venha a desagradar aos botânicos, que podem não gostar da alteração da licença poética relacionada a “verdadeira Yakruna” e o modo como o filme a representa. Porém, há no filme um bom aproveitamento de um contraste real entre os conhecimentos do ‘branco’ e do indígena. Não foi necessariamente o foco dos escritos dos cientistas falar sobre este lado mais místico da apreensão da realidade etnobotânica, mas sim adotado pelo diretor Ciro Guerra para formular uma dramaturgia com uma outra forma de proceder o conhecimento do mundo diferente da nossa. Um bom exemplo cultural neste sentido que Eduardo indica é o livro: “A queda do céu”, livro Yanomani do xamã Davi Kopenawa e Bruce Albert.

El abrazo de la serpiente

Afirma ainda Viveiros de Castro que existem diferenças na abordagem do filme perante os reais estudos. Há de citar o título “O Abraço da Serpente” e a real representação da Anaconda para a cultura indígena, não muito abordada no roteiro. Pra eles o animal é importante porque advém de uma sucuri a gênese da vida, como que deixando de seu ventre as tribos no curso dos rios. Geralmente os pontos onde tem cachoeiras, região muito importante para os povos do Rio Valpés, onde os índios evoluíram após sair da cobra (que também pode ser entendida como uma representação de canoa no Rio). E, similar à onça pra eles, as serpentes também são animais multicoloridos. Teriam uma dupla significação. Primeiro de origem do homem, lembrando que a sucuri é uma cobra aquática. Segundo que é multicolorida e desenhada, um arquétipo da arte e dos desenhos indígenas, também associada ao arco-íris, a cobra como cor, grafismo e cromatismo.

Sobre a imagem do vazio na expressão usada no filme do “Chullachaqui”, uma cópia vazia de nós mesmos, afirma que está também muito bem retratada na fotografia. Sim, este símbolo existe em outras culturas indígenas, mas Eduardo nunca havia visto o uso desta forma, e é interessante como colocaram. Geralmente, a representação do ‘Chullachaqui’ é o aparecimento de uma pessoa após a morte, um outro eu perpétuo na memória de quem fica. Mas no filme Karamakate chama o estrangeiro de duplo/Chullachaqui, porque ele tinha 2 interesses: não só o conhecimento, mas usá-lo para a guerra. O próprio Karamakate se diz ‘Chullachaqui’ porque perdeu a memória. Era um duplo de si mesmo. O que ocorre muito na realidade demonstrada no filme é memória em demasia do passado que traz os mortos de volta. Mas esta forma em vida do Chullachaqui o próprio Eduardo abre a dúvida se existe em um dos povos ou se é mais licença poética.

Num outro momento, o uso da “última planta de Yakruna” é uma visão trágica, como se dissesse que o conhecimento indígena só sobreviveria se passado para o ‘branco’ (por isso ensina o bom uso e não deturpado). Para o professor, leia-se o ‘homem branco’ como o antropólogo. Mas o povo tucano, por exemplo, não se extinguiu. Ainda é numeroso. Esta visão trágica é mais relativa ao personagem do Manduca, do índio tido como “vendido para o branco”. Dependendo da região há índios mais “Manducas” e outros mais “Karamakates” (dependendo do grau de preservação da cultura).

Ironicamente, por se falar em ‘vendido para os brancos’, Viveiros de Castro conta que vários ornamentos indígenas foram roubados pelos missionários por serem por eles consideradas “coisas do demônio”. Os indígenas usavam caixas para guardar o que era sagrado e os missionários lhes tiravam isso e expunham em museus (Mas não diziam q era coisa de demônio? Então por que guardaram pra expor? Os índios querem de volta). Um exemplo deste resgate é “Iauaretê, Cachoeira das Onças” de Vincent Carelli, um filme que aborda este assunto.

Perguntado se hoje com conflitos de terra e um filme de visibilidade como esse, indicado ao Oscar, pode gerar mais debates, Eduardo se mostra positivo, lembrando que já há bons filmes sim neste sentido, que talvez ganhem mais repercussão, como “A bicicleta de Nhanderú” filme Mbyá-guarani de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira de 2011.

Voltando ao assunto das simbologias para os indígenas, a onça também tem muita importância, embora apareça apenas rapidamente no filme. Entre as tribos ameríndias da região amazônica existe a figura do pagé-onça, que é quem negocia com os “Guardiões” dos recursos naturais. Há ainda a importante questão sobre as proibições alimentares, com o mundo extra humano, sobre restrição de períodos do ano, e que aparece de forma superficial no filme. A sucuri é muito importante principalmente ao norte da Amazônia. A ‘Boa’ mencionada no roteiro pode ser lida tanto como a jiboia como a sucuri, que são da mesma família de cobras. Ambas não-peçonhentas que matam por estrangulamento. A primeira terrestre e a segunda aquática. E a onça em toda mitologia seria o grande antagonista competidor do humano, modelo de força, agilidade e ao mesmo tempo perigoso, como podendo se apoderar do espírito humano.

Para finalizar, Viveiros de Castro encerra sua fala discorrendo sobre a noção de tempo: o indígena do filme usa palavras como ‘milhares’, ‘milhão’ de anos, mas ‘milhão’ não existe naquela língua. É visão poética do filme. E ele cita ainda várias outras formas poéticas do tempo na percepção das culturas ameríndias, com por exemplo o tempo do amanhecer, da gênese, antes dos diferentes grupos humanos saírem da cobra, antes de se separarem. Humanos eram peixes, alguns viraram humanos, outros não, por isso os povos do Rio Negro eram principalmente pescadores. Este seria um Tempo pré-cosmológico, onde os animais e humanos falavam entre si, todos eram o mesmo ser. Há também o tempo cíclico, onde netos recebem nomes dos avós, pois só existe a concepção de 2 gerações que se reconstituem a cada vez, a 3ª é igual à 1ª e a 4ª à 2ª, bidimensional e assim sucessivamente.

Transcrição por Filippo Pitanga

Edição por Samantha Brasil

El abrazo de la serpiente13

50 anos de calamidades na América do Sul (Pesquisa Fapesp)

Terremotos e vulcões matam mais, mas secas e inundações atingem maior número de pessoas 

MARCOS PIVETTA | ED. 241 | MARÇO 2016

Um estudo sobre os impactos de 863 desastres naturais registrados nas últimas cinco décadas na América do Sul indica que fenômenos geológicos relativamente raros, como os terremotos e o vulcanismo, produziram quase o dobro de mortes do que eventos climáticos e meteorológicos de ocorrência mais frequente, como inundações, deslizamento de encostas, tempestades e secas. Dos cerca de 180 mil óbitos decorrentes dos desastres, 60% foram em razão de tremores de terra e da atividade de vulcões, um tipo de ocorrência que se concentra nos países andinos, como Peru, Chile, Equador e Colômbia. Os terremotos e o vulcanismo representaram, respectivamente, 11% e 3% dos eventos contabilizados no trabalho.

Aproximadamente 32% das mortes ocorreram em razão de eventos associados a ocorrências meteorológicas ou climáticas, categoria que engloba quatro de cada cinco desastres naturais registrados na região entre 1960 e 2009. Epidemias de doenças – um tipo de desastre biológico com dados escassos sobre a região, segundo o levantamento – levaram 15 mil pessoas a perder a vida, 8% do total. No Brasil, 10.225 pessoas morreram ao longo dessas cinco décadas em razão de desastres naturais, pouco mais de 5% do total, a maioria em inundações e deslizamentos de encostas durante tempestades.

Seca no Nordeste...

O trabalho foi feito pela geógrafa Lucí Hidalgo Nunes, professora do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp) para sua tese de livre-docência e resultou no livro Urbanização e desastres naturais – Abrangência América do Sul (Oficina de Textos), lançado em meados do ano passado. “Desde os anos 1960, a população urbana da América do Sul é maior do que a rural”, diz Lucí. “O palco maior das calamidades naturais tem sido o espaço urbano, que cresce em área ocupada pelas cidades e número de habitantes.”

A situação se inverteu quando o parâmetro analisado foi, em vez da quantidade de mortos, o número de indivíduos afetados em cada tipo de desastre. Dos 138 milhões de vítimas não fatais atingidas por esses eventos, 1% foi alvo de epidemias, 11% de terremotos e vulcanismo, 88% de fenômenos climáticos ou meteorológicos. As secas e as inundações foram as ocorrências que provocaram impactos em mais indivíduos. As grandes estiagens atingiram 57 milhões de pessoas (41% de todos os afetados), e as enchentes, 52,5 milhões de habitantes (38%). O Brasil respondeu por cerca de 85% das vítimas não fatais de secas, essencialmente moradores do Nordeste, e por um terço dos atingidos por inundações, fundamentalmente habitantes das grandes cidades do Sul-Sudeste.

...inundação em Caracas, na Venezuela: esses dois tipos de desastres são os que afetam o maior número de pessoas

Estimados em US$ 44 bilhões ao longo das cinco décadas, os prejuízos materiais associados aos quase 900 desastres contabilizados foram decorrentes, em 80% dos casos, de fenômenos de natureza climática ou meteorológica. “O Brasil tem quase 50% do território e mais da metade da população da América do Sul. Mas foi palco de apenas 20% dos desastres, 5% das mortes e 30% dos prejuízos econômicos associados a esses eventos”, diz Lucí. “O número de pessoas afetadas aqui, no entanto, foi alto, 53% do total de atingidos por desastres na América do Sul. Ainda temos vulnerabilidades, mas não tanto quanto países como Peru, Colômbia e Equador.”

Para escrever o estudo, a geógrafa com-pilou, organizou e analisou os registros de desastres naturais das últimas cinco décadas nos países da América do Sul, além da Guiana Francesa (departamento ultramarino da França), que estão armazenados no Em-Dat – International Disaster Database. Essa base de dados reúne informações sobre mais de 21 mil desastres naturais ocorridos em todo o mundo desde 1900 até hoje. Ela é mantida pelo Centro de Pesquisa em Epidemiologia de Desastres (Cred, na sigla em inglês), que funciona na Escola de Saúde Pública da Universidade Católica de Louvain, em Bruxelas (Bélgica). “Não há base de dados perfeita”, pondera Lucí. “A do Em-Dat é falha, por exemplo, no registro de desastres biológicos.” Sua vantagem é juntar informações oriundas de diferentes fontes – agências não governamentais, órgãos das Nações Unidas, companhias de seguros, institutos de pesquisa e meios de comunicação – e arquivá-las usando sempre a mesma metodologia, abordagem que possibilita a realização de estudos comparativos.

O que caracteriza um desastre
Os eventos registrados no Em-Dat como desastres naturais devem preencher ao menos uma de quatro condições: provocar a morte de no mínimo 10 pessoas; afetar 100 ou mais indivíduos; motivar a declaração de estado de emergência; ou ainda ser a razão para um pedido de ajuda internacional. No trabalho sobre a América do Sul, Lucí organizou os desastres em três grandes categorias, subdivididas em 10 tipos de ocorrências. Os fenômenos de natureza geofísica englobam os terremotos, as erupções vulcânicas e os movimentos de massa seca (como a queda de uma pedra morro abaixo em um dia sem chuva). Os eventos de caráter meteorológico ou climático abarcam as tempestades, as inundações, os deslocamentos de terra em encostas, os extremos de temperatura (calor ou frio fora do normal), as secas e os incêndios. As epidemias representam o único tipo de desastre biológico contabilizado (ver quadro).

062-065_Desastres climáticos_241O climatologista José Marengo, chefe da divisão de pesquisas do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em Cachoeira Paulista, interior de São Paulo, afirma que, além de eventos naturais, existem desastres considerados tecnológicos e casos híbridos. O rompimento em novembro passado de uma barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana (MG), que provocou a morte de 19 pessoas e liberou toneladas de uma lama tóxica na bacia hidrográfica do rio Doce, não tem relação com eventos naturais. Pode ser qualificado como um desastre tecnológico, em que a ação humana está ligada às causas da ocorrência. Em 2011, o terremoto de 9.0 graus na escala Richter, seguido de tsunamis, foi o maior da história do Japão. Matou quase 16 mil pessoas, feriu 6 mil habitantes e provocou o desaparecimento de 2.500 indivíduos. Destruiu também cerca de 138 mil edificações. Uma das construções afetadas foi a usina nuclear de Fukushima, de cujos reatores vazou radioatividade. “Nesse caso, houve um desastre tecnológico causado por um desastre natural”, afirma Marengo.

Década após década, os registros de desastres naturais têm aumentado no continente, seguindo uma tendência que parece ser global. “A qualidade das informações sobre os desastres naturais melhorou muito nas últimas décadas. Isso ajuda a engrossar as estatísticas”, diz Lucí. “Mas parece haver um aumento real no número de eventos ocorridos.” Segundo o estudo, grande parte da escalada de eventos trágicos se deveu ao número crescente de fenômenos meteorológicos e climáticos de grande intensidade que atingiram a América do Sul. Na década de 1960, houve 51 eventos desse tipo. Nos anos 2000, o número subiu para 257. Ao longo das cinco décadas, a incidência de desastres geofísicos, que provocam muitas mortes, manteve-se mais ou menos estável e os casos de epidemias diminuíram.

Risco urbano 
O número de mortes em razão de eventos extremos parece estar diminuindo depois de ter atingido um pico de 75 mil óbitos nos anos 1970. Na década passada, houve pouco mais de 6 mil mortes na América do Sul causadas por desastres naturais, de acordo com o levantamento de Lucí. Historicamente, as vítimas fatais se concentram em poucas ocorrências de enormes proporções, em especial os terremotos e as erupções vulcânicas. Os 20 eventos com mais fatalidades (oito ocorridos no Peru e cinco na Colômbia) responderam por 83% de todas as mortes ligadas a fenômenos naturais entre 1960 e 2009. O pior desastre foi um terremoto no Peru em maio de 1970, com 66 mil mortes, seguido de uma inundação na Venezuela em dezembro de 1999 (30 mil mortes) e uma erupção vulcânica na Colômbia em novembro de 1985 (20 mil mortes). O Brasil contabiliza o 9º evento com mais fatalidades (a epidemia de meningite em 1974, com 1.500 óbitos) e o 19° (um deslizamento de encostas, em razão de fortes chuvas, que matou 436 pessoas em março de 1967 em Caraguatatuba, litoral de São Paulo).

Também houve declínio na quantidade de pessoas afetadas nos anos mais recentes, mas as cifras continuam elevadas. Nos anos 1980, os desastres produziram cerca de 50 milhões de vítimas não fatais na América do Sul. Na década passada e também na retrasada, o número caiu para cerca de 20 milhões.

062-065_Desastres climáticos_241-02Sete em cada 10 latino-americanos moram atualmente em cidades, onde a ocupação do solo sem critérios e algumas características geoclimáticas específicas tendem a aumentar a vulnerabilidade da população local a desastres naturais. Lucí comparou a situação de 56 aglomerados urbanos com mais de 750 mil habitantes da América do Sul em relação a cinco fatores que aumentam o risco de calamidades: seca, terremoto, inundação, deslizamento de encostas e vulcanismo. Quito, capital do Equador, foi a única metrópole que estava exposta aos cinco fatores. Quatro cidades colombianas (Bogotá, Cáli, Cúcuta e Medellín) e La Paz, na Bolívia, vieram logo atrás, com quatro vulnerabilidades. As capitais brasileiras apresentaram no máximo dois fatores de risco, seca e inundação (ver quadro). “Os desastres resultam da junção de ameaças naturais e das vulnerabilidades das áreas ocupadas”, diz o pesquisador Victor Marchezini, do Cemaden, sociólogo que estuda os impactos de longo prazo desses fenômenos extremos. “São um evento socioambiental.”

É difícil mensurar os custos de um desastre. Mas a partir de dados da edição de 2013 do Atlas brasileiro de desastres naturais, que usa uma metodologia dife-rente da empregada pela geógrafa da Unicamp para contabilizar calamidades na América do Sul, o grupo de Carlos Eduardo Young, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez no final do ano passado um estudo. Baseado em estimativas do Banco Mundial de perdas provocadas por desastres em alguns estados brasileiros, Young calculou que enxurradas, inundações e movimentos de massa ocorridos entre 2002 e 2012 provocaram prejuízos econômicos de ao menos R$ 180 bilhões para o país. Em geral, os estados mais pobres, como os do Nordeste, sofreram as maiores perdas econômicas em relação ao tamanho do seu PIB. “A vulnerabilidade a desastres pode ser inversamente proporcional ao grau de desenvolvimento econômico dos estados”, diz o economista. “As mudanças climáticas podem acirrar a questão da desigualdade regional no Brasil.”

Ministro da Defesa vai a CPI para constranger antropólogos e defensores de indígenas (Outras Palavras)

Blog do Alceu Castilho

Publicado em 3 de abril de 2016

Em ato voluntário, Aldo Rebelo voltou a se aliar com ruralistas para colecionar delírios que seriam inadequados para um deputado; quanto mais à sua função no governo

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

No que se refere à questão agrária, tema que acompanho de perto, nenhuma vez fiquei tão constrangido ao ver a fala de um político quanto agora, ao assistir o vídeo de Aldo Rebelo na CPI da Funai, na quarta-feira. E olhem que ele tem sérios concorrentes. Tivemos o deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS) chamando índios, gays, quilombolas de “tudo que não presta”. E falas absurdas da ministra Kátia Abreu, principalmente do tempo em que era senadora; ou do líder da milícia UDR, hoje senador, Ronaldo Caiado (DEM-GO).

E por que a fala de Rebelo é pior?

Porque ele é ministro da Defesa. Suas curiosas concepções sobre “antropologia colonial” já seriam particularmente bizarras por ele se declarar comunista – ele é um dos líderes do PCdoB. Mas este é um assunto menor: que esses comunistas específicos se virem com sua consciência e com suas leituras, diante das diatribes do ex-deputado. Que se olhem no espelho e tentem encarar, depois disso, uma liderança indígena, um antropólogo sério, sem passar profunda vergonha. Agora, repito: Rebelo é ministro da Defesa. 

E, por isso, sua fala é indefensável. Vejamos.

“Dos três troncos, o indígena é o mais sofrido, o mais esquecido pelo Estado brasileiro. Enquanto os outros troncos alcançaram, de certa forma, seu espaço na construção da sociedade nacional, os índios foram ficando à margem desse processo, e carregando maior as penas e o sofrimento da construção da nossa pátria. Cabe, portanto, esse registro pra que essa injustiça possa ser reparada, para que nós possamos, de forma consequente, socorrer, amparar essa parcela da nossa população. Exatamente para que ela não fique à mercê [eleva a voz] da manipulação de demagogos, da manipulação de interesses espúrios internos e externos, como, lamentavelmente, vem acontecendo.

É preciso que o Estado brasileiro ampare a população indígena do Brasil, para que organizações não-governamentais interesseiras, muitas vezes agentes do próprio Estado, agindo contra o Estado, manipulem o sofrimento e o abandono das populações indígenas. Falo, senhoras e senhores, com a experiência de quem palmilhou, nas fronteiras do Brasil mais remotas da Amazônia, as terras indígenas e quem pôde dialogar com suas populações. E de quem pôde testemunhar, exatamente, aquilo que acabo de dizer. (…)

Nossa tradição, naturalmente, não nega as violências, não nega as brutalidades, não nega as injustiças, não nega tudo que de errado nós fizemos contra as populações indígenas. Mas isso também afirma a natureza da nossa civilização de buscar incorporar, não apenas no sangue, mas na cultura, na história, na literatura, na culinária, no imaginário e na psicologia do nosso povo a presença dos nossos queridos e das nossas queridas irmãs e irmãos indígenas.

Por essa razão, senhores, é inaceitável [eleva novamente a voz] a doutrina esposada por certos setores da antropologia, principalmente da antropologia colonial, antropologia criada na França e na Inglaterra exatamente para melhor realizar o trabalho de dominação das chamadas populações aborígenes. Antropologia que depois foi incorporada pelos exércitos coloniais como parte do esquema de dominação. Essa corrente antropológica neocolonial é que procura apartar da sociedade nacional e da integração à sociedade nacional as populações indígenas. E é preciso que se denuncie com vigor e com coragem, para que o Brasil não se ponha no papel de vítima dos crimes que, de fato, ele não cometeu. Basta aqueles que nós já cometemos.

Essa antropologia que influencia estruturas do próprio Estado brasileiro, que incorpora setores importantes da nossa mídia, que incorpora setores importantes de correntes religiosas trata de estabelecer um abismo entre a sociedade nacional, entre o Brasil e as populações indígenas, contrapondo ao esforço de integração a ideia de segregação. Como se na escala evolutiva da humanidade o índio pudesse ser contido e parado nos estágios anteriores à evolução de toda a humanidade.

Tenho amigos europeus que fazem estudos em populações tribais e que descobriram, aqui na região da Amazônia, como é óbvio, uma população indígena que não sabe contar, que não domina a aritmética como qualquer povo ágrafo. Eu dizia para ele: seus antepassados também não sabiam contar. Contam no máximo 1, 2, 3 e muito. (…) O que eu perguntava para esse amigo antropólogo era o seguinte: as crianças dessa tribo devem ter o direito de aprender matemática? Ou elas devem ter negado esse direito, para que a antropologia continue dispondo de estudo de caso para registrar nas suas teses de mestrado ou doutorado? (…)

A manipulação das causas nobres e justas, como é a causa da proteção dos índios, não é a única no mundo. Ela tem paralelo com a manipulação da causa do meio ambiente. É muito parecido. As potências usam o meio ambiente, as causas indígenas, os direitos humanos, a democracia, a liberdade como usaram o anticomunismo no passado. O que era o anticomunismo? Era o pretexto para se fazer golpes de Estado, para defender interesses econômicos em função da defesa da liberdade e da democracia. Depois que o comunismo deixou de ser o pretexto, porque não era de fato ameaça, eles procuraram outros pretextos: a causa indígena é um deles, o ambientalismo é outro”.   

E assim por diante, como se pode ver no vídeo. De forma voluntária, sem que o ministro Aldo Rebelo tivesse sido convidado ou convocado à CPI, instalada pelos ruralistas para combater direitos indígenas e a reforma agrária. Como porta-voz do governo, portanto?

aldorebelo

Note-se que ele chega a combater a demarcação contínua da Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em determinado momento, pergunta: “Quem é índio e quem não é índio onde tudo já se misturou?” E cita um estudo de pedologia na Universidade Federal de Viçosa que considera não existir mais ali uma civilização indígena, “mas uma civilização miscigenada”.

E tem mais: ele se declarou à favor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215) que transfere ao Congresso o poder de demarcar terras indígenas e quilombolas: “Aldo diz à CPI que é a favor da PEC que muda regras de demarcação de terras“. Uma bandeira de quem? Dos ruralistas.

É como resume o antropólogo Henyo Barretto Filho, do Instituto Internacional de Educação do Brasil: “Se o governo não desautorizar de modo igualmente público e expresso tal depoimento, fica sendo essa a versão do governo sobre os povos indígenas, a política indigenista e o papel da antropologia no reconhecimento dos direitos territoriais”.

Crow Tribe Elder, Historian Joe Medicine Crow Dead at 102 (New York Times)


Agora a versão portuguesa:

Morreu o último chefe índio dos Estados Unidos (RTP)

[Esse título é uma piada. Não é de estranhar que o jornalista português não saiba o mínimo necessário para falar sobre indígenas sem cometer o erro absurdo de considera-lo o “último” chefe índio, uma vez que os jornalistas brasileiros, que estão tão próximos das populações indígenas, tampouco sejam capazes de evitar tais gafes.-RT]

RTP 04 Abr, 2016, 15:38 / atualizado em 04 Abr, 2016, 15:50 | Cultura

Morreu o último chefe índio dos Estados Unidos

O presidente Obama, ao condecorar Joe Medicine Crow em 2009, debatendo-se com uma pena que lhe entrou pelo nariz. Foto:  Jim Young, Reuters

Joseph Medicine Crow, último chefe da tribo Crow, morreu com 102 anos de idade. Embora tenha nascido em 1913, era considerado uma memória viva do século XIX.

 Joseph Medicine Crow foi educado para ser um guerreiro, absorveu na sua tribo as narrativas de feitos heróicos, em especial a batalha nas margens do rio Little Bighorn, em 1876. Ouviu essas narrativas de guerreiros índios que ainda tinham participado na batalha. Recordavam-na como rara vitória que fora, dos índios sobre as tropas brancas, ocasionada pela aliança entre cheyennes sioux, contra a prática do general George Armstrong Custer, que habitualmente massacrava aldeias índias inteiras.

Custer, retratado sem contemplações no filme Little Big Man, protagonizado por Dustin Hoffman, foi morto na batalha, juntamente com mais de duas centenas de militares norte-americanos.

Na reserva de Lodge Grass, Montana, Joseph Medicine Crow foi treinado desde os seis anos de idade pelo seu avô, Cauda Amarela, para continuar as proezas guerreiras de chefes como Touro Sentado e Cavalo Louco, os dois líderes das tribos coligadas para a vitória de Little Bighorn. O avô fazia-o correr descalço sobre a neve, para criar resistências.

Segundo a nota publicada no New York Times por ocasião da sua morte, Medicine Crow seguiu, contudo, um outro caminho, numa época em que a resistência à ocupação branca já tinha terminado. Foi um dos primeiros índios estudarem e licenciou-se em antropologia em 1939. Mas depois veio a Segunda Guerra Mundial e voltou a emergir Crow, o guerreiro índio.

Entre os seus feitos de guerra conta-se o de roubar cavalos num acampamento inimigo e o de vencer em combate corpo-a-corpo um soldado alemão, a quem finalmente decidiu poupar a vida. Num livro publicado em 2006, Medicine Crow explicava que “fazer a guerra é a nossa arte suprema; mas para os índios da planície fazer a guerra não consiste em matar. É tudo uma questão de inteligência, de liderança e de honra”.

Quando voltou da guerra na frente europeia, Joseph Medicine Crow foi nomeado pelo conselho tribal como historiador da tribo. Diz-se que era dotado de uma memória prodigiosa e que conseguia, muitos anos depois, reproduzir grande parte das conversas que tivera com seis batedores índios que chegara a conhecer e que estiveram ao serviço do general Custer na batalha de Little Bighorn.

O empenhamento de Medicine Crow em cultivar as tradições da sua tribo como parte integrante de uma nação americana resultante do extermínio da população indígena valeu-lhe numerosos louvores e condecorações, mais recentemente por parte do presidente Barack Obama. Entre os elogios fúnebres que lhe fizeram os seus conterrâneos conta-se o do senador Steve Daines, nestas palavras algo ambíguas: “O espírito de Medicine Crow, a sua humildade e as realizações da sua vida, deixam uma marca duradoura na história de Montana”.

Why Some Societies Practiced Ritual Human Sacrifice (New York Times)

Enough about Ethnography: An Interview with Tim Infold (Cultural Anthropology)

April 5, 2016

by Susan MacDougall

The Summer 2014 issue of HAU: Journal of Ethnographic Theory included the article “That’s Enough about Ethnography!”, by Tim Ingold, who is Chair in Social Anthropology at the University of Aberdeen. What follows is a lightly edited transcript of an interview that contributing editor Susan MacDougall conducted with Ingold about the article and reactions to it.

Susan MacDougall: In your HAU article, you identify the need for anthropology to “heal the rupture between imagination and everyday life.” When you talk about this rupture, you link it to a divorce of fact from theory. Can you expand on this notion and why it is important for the future of anthropology? 

Timothy Ingold: The problem here lies in the degree to which anthropology, as an academic discipline, remains compliant with the protocols of normal science. These protocols enforce a division between the real world, from which we are expected to gather “data,” and the world of theory, in which these data are to be interpreted and fashioned into authorized knowledge. This division is only reinforced by continual appeals to the idea of anthropological knowledge production. It is as though we go to the world for our material, but then turn our backs on it in working this material into the finely crafted, peer-reviewed artifacts that we recognize as books and articles. To my mind, this procedure fatally compromises the core mission of anthropology, which is to demonstrate—by precept and example—how to do our thinking in and with the world we inhabit: in response to its summons, rather than after the fact. This means giving due recognition to what we know full well from our inquiries, namely that what is given to us is not just there for the taking as data for collection, but is an offering, the acceptance of which carries a responsibility of care. Anthropology shows that curiosity and care, pried apart in mainstream science policy by a spurious and ethically indefensible division between research and impact, are inseparable aspects of our relations with those to whom we owe our education in the ways of the world.

SM: Timothy Jenkins (1994) referred to fieldwork as a series of apprenticeships, and pointed out that learning how to get along in the field involves quite a bit of un-learning one’s own assumptions. You also mention Kenelm Burridge’s metanoia: an ongoing series of transformations that alter the predicates of being. These are possible results of encounters, ethnographic or otherwise, and if those results lead to fruitful analysis, all the better. If this is such a commonplace thing to do, though, how can the aspiring anthropologist prepare to do it and do it well?

TI: Certainly, there is an element of unlearning in all fieldwork. What would be the point of it otherwise? Such unlearning, moreover, can be unsettling and does involve an element of existential risk. My point, however, is that unlearning is intrinsic to education, understood in its original sense as a leading out into the world that frees us from the limitations of standpoints or perspectives and causes us continually to question what previously we would have taken for granted. This is what we expect from our students in the classroom, as much as what we expect from ourselves in the field.

Two things follow from this. First, although only a tiny proportion of the students we teach—at least at introductory levels—will go on to become practicing anthropologists, our task is nevertheless to foster an anthropological attitude that all of them may take into whatever walks of life they subsequently follow. Preparation for anthropology is preparation for life, and it lies in the cultivation of a readiness to both listen to others and question ourselves. Second, whether this preparation and the results that flow therefrom yield to “fruitful analysis,” as you put it, depends on what we mean by analysis. If we mean the processing and interpretation of empirical data in the normal scientific sense, then the answer is no. But if analysis means a critical interrogation that opens simultaneously to the self and to the world, then the answer is a definite yes!

SM: Conversely, is it possible to do the encounter badly or incorrectly? Or do weaknesses and mistakes emerge later, in the note-taking and what follows? If anthropologists would like to maintain some claim to ethnography or to participant-observation, then is there a need to distinguish between the high- and low-quality conduct of both?

TI: The opposite of opening is, of course, closure. That is when we refuse to attend to the presence of others or to what they have to offer. I suppose a “bad” encounter would be one in which we see but do not observe, hear but do not listen, touch but do not feel. In such an encounter, we would pick up signals as data, but remain impervious to them. Our curiosity would be divorced from care. This, of course, is what is generally recommended by science in the name of objectivity. But as I have stressed, objectivity is one thing, observation quite another. Observers are bound to make mistakes, and our field notes are doubtless full of them. We can misunderstand what people say, jump to the wrong conclusions, or confuse one thing for another. There’s nothing intrinsically wrong with that: as in any situation of apprenticeship, we learn from our mistakes. But no amount of correction can make up for a failure to attend. Even if, objectively speaking, there were to be not a single error in our data, we could still fail to draw any lessons from them. We learn much from mistakes of observation grounded in attention, and nothing whatsoever from an objectively “correct” record that is nevertheless grounded in inattention.

SM: You point out in the article that anthropologists’ obsession with ethnography has a navel-gazing quality, turning “the project of anthropology into the study of its own ways of working.” Certainly anthropologists can be sentimental about their fieldwork experience and consider it formative for their characters as well as their scholarship. But, as you point out, this willingness to be changed by the fieldwork experience is what makes it an education as opposed to straightforward data collection. Do you see a way for this admission—that is, that participant observation can be personally transformative—to enhance anthropology’s impact in the world, rather than undermining it? 

TI: This is precisely why anthropology can potentially make such a difference in the world. But we should not have grudgingly to “admit” that fieldwork can personally transform the observer, as though we were offering an apology for anthropology’s inability to come up with accounts that more positivist disciplines would regard (in their terms) as suitably robust or evidence-based. Nor should our addiction to fieldwork be used to justify disciplinary introversion, affording an excuse to retreat into our own shells and to talk only to ourselves about the conditions and possibilities of anthropological knowledge production. On the contrary, we should be leading a campaign against the very idea that the world presents itself to human science as a standing reserve of data for collection. And to do this, we must stop pretending to believe in this idea ourselves.

For this reason I insist that participant-observation is not a research method but, more fundamentally, an ontological commitment: an acknowledgement of our debt to the world for what we are and what we know. This is a commitment, I believe, that should underwrite not just anthropology but every branch of scientific inquiry. Whatever our field of specialization, we should have the humility to recognize that understanding can only grow from within the world we seek to know, the world of which we are a part. This recognition, however, strikes at the core of the constitution of the academy. It is why anthropology’s campaign must also be a campaign for the heart and soul of the academy. The stakes could scarcely be higher.

SM: In a related vein, I’d like to bring up Amy Pollard’s (2009) piece “Field of Screams,” which took anthropology to task for sending vulnerable students off into the field to meet with traumatic and isolating experiences. It seems that a direct, convincing definition of ethnography will remain elusive if postfield graduate students are afraid to talk about what they actually did in the field. Do you see a way for anthropology to address the sometimes painful realities of fieldwork, without undue reliance on procedures that look like they were written by university risk management offices and not anthropologists? 

TI: Traumatic and isolating experiences are not exclusive to anthropological fieldwork. They are a part of life. In life in general, as in fieldwork in particular, painful realities are always hard to talk about. The absurdity of bureaucratic risk management, on which so many of our universities nowadays insist, is that they fail to understand this. Were we to follow their logic to the letter, then we would have a society in which no baby could be born without a divinely ordained risk management schedule that would anticipate every contingency of its future life. That institutions should have usurped such godlike powers for themselves—in the interests, it must be said, not of protecting their researchers but of protecting themselves against litigation should things go wrong—is an indication of the corporate dishonesty that now pervades the higher education sector. Anthropology should not participate in this dishonesty. I do not think, however, that this issue of risk management has any immediate bearing on the definition of ethnography, unless of course we were to include within our catalog of risks the isolations and traumas of writing up. As I have endeavored to show, ethnography and participant-observation are not the same, and their common identification has brought nothing but confusion.

SM: One of the reasons I was interested in discussing this article with you is that it clearly sparked a conversation. Rarely do journal articles show up in my Twitter feed or inspire threads on the Open Anthropology Cooperative, and this one certainly did. Have you had any particularly thought-provoking responses to this article? Have any of them prompted you to reevaluate your views?

TI: There is no doubt that my article touched a raw nerve in the discipline. It seems to have brought into the open a number of issues that have long been simmering beneath the surface, and that many would have preferred to have kept there. The responses I have received are roughly of two kinds. The first are supportive. They come principally from younger scholars who thank me for stating explicitly what they have long felt, but have been afraid to express for fear of rocking the boat. The second come from critics who accuse me of tilting against windmills. They complain that, in distinguishing ethnography from anthropology, I have resorted to a narrow, old-fashioned, and overly literal characterization of ethnography that bears little resemblance to what most scholars who would call themselves ethnographers actually do nowadays. Looking at the content of most mainstream anthropological journals, I am a little skeptical of this complaint.

Be that as it may, my response is that even if so-called ethnographers are already doing everything that I am calling for under the banner of anthropology, ethnography is nevertheless a singularly inappropriate term by which to describe it. Maybe among ourselves, with our common experience of having undertaken fieldwork of one kind or another, we can share an in-house understanding of what ethnography means without having to spell it out too precisely. This understanding, however, does not extend to realms beyond the bounds of the discipline, where fundamental misapprehensions remain about what anthropologists do and why it is important. Overuse of the term ethnography, I believe, only feeds these misapprehensions and makes it more difficult, not less, to explain what we do and what its value might be to others: whether they are students, academics in other disciplines, or the public at large. Anthropology is a noble calling and not one to be ashamed of. Why should we hide it under another term, ethnography, as if pretending to do something completely different?

References

Jenkins, Timothy. 1994. “Fieldwork and the Perception of Everyday Life.” Man 29, no. 2: 433–55.

Pollard, Amy. 2009. “Field of Screams: Difficulty and Ethnographic Fieldwork.” Anthropology Matters 11, no. 2.

On the anthropology of climate change (Eurozine)

Thomas Hylland EriksenDasa Licen

Original in English
First published in Razpotja 22 (2015)

Contributed by Razpotja
© Thomas Hylland Eriksen, Dasa Licen / Razpotja
© Eurozine

A conversation with Thomas Hylland Eriksen

Mainstream literature on globalization tends not to take the uniqueness of each locality seriously enough, says Thomas Hylland Eriksen. He explains how the anthropology of climate change is responding to the need for an analysis of the global situation seen from below.

Dasa Licen: You have a blog, a vlog where you report on your fieldwork, where you look a bit like Indiana Jones. On top of that, you write popular articles and essays. You seem to believe that media are very important for anthropology.

Thomas Hylland Eriksen: I think anthropologists should be more conscious about how they are perceived in the wider public. Unfortunately, for decades now, there has in many places been a certain withdrawal of anthropology from the public sphere. There are many burning issues, from climate change to identity politics to debates on human nature, where anthropologists are not present the way they could be. This was not always the case.

If you go back a few generations, there were many anthropologists who were also engaged public intellectuals. They were visible, well known, they wrote popular books, took part in political debates, and so on. Think of a scholar like Margaret Mead back in the 1960s: her research was controversial, but she succeeded in placing anthropology on the map by being engaged in important debates. Nowadays, there are important discussions where anthropologists would have a lot to offer, yet they are more or less absent.

An obvious example is identity politics, but you can also take the debates on human nature. In many western countries, these have been monopolized by evolutionary biologists or psychologists. The things anthropologists say about human nature are quite different, and while we are rather good at criticizing sociobiology and evolutionary perspectives amongst ourselves, we rarely go out and present our nuanced message to a wider public. It is a striking fact that the most famous anthropologists today is not an anthropologists. He is an ornithologist and physiologist called Jared Diamond who has written bestsellers about where we come from and where we are going. His latest book called The World until Yesterday is a sort of anthropological treatise about other cultures, traditional peoples, and about the kind of wisdom they contribute to the modern world. His book has not been very well received by anthropologists, because he gets a lot of things nearly right. Although he has not been trained as an anthropologist, he uses anthropological sources and asks the kind of questions we do. But he manages to do it in a way that makes people want to read his book. We should learn from these examples.

DL: We all know the case of the doctor who is walking down the street and sees an injured person: he must offer to help. Do you think something similar applies to anthropologists in the face of global crises?

THE: I do think so. In my own work, I try to address two big lumps of questions. One of them is the extent to which we can apply anthropology as a tool to understand the contemporary world. This is what my project “Overheating” is about. The second is a more general question: what is it to be human? There are two groups of answers, one of them says, well a human being is a small twig on a branch on the big tree of life: that’s the story of evolution and while it generates some important some insight, it leaves aside a different set of questions about human subjectivity and emotions. I am talking about the complexities of life, all the existential struggles that human beings are confronted with. This perspective generates an entirely different set or answers, which are at the basis of what we do as anthropologists. By addressing them, we can contribute to a more nuanced view to what it is to be a human.

We are not only homo economics, merely maximizing creatures, and although instincts can be important for understanding our behaviour, we are not driven by them but immersed in a network of additional aspects. We are also not just social animals… Clifford Geertz insisted that human beings are primarily self-defining animals. Such a perspective enables not only a better understanding of the realities of human lives, but it also has its moral implications.

DL: Which ones?

THE: Let me give you an example. One of my PhD students works in rural Sierra Leone. It is an overheated place, in the sense that the Chinese and other foreign investors are coming in, opening up mines, new roads are being built… For many people this means opportunities, for many others it means misery. My student asks a guy, “so how do you explain these changes taking place in your community in the last years?”, and this guy would just shrug and say, “well you know man, it’s the global”. We have to try to find out what exactly he means when he says “it’s the global”.

DL: Is this the aim of the Overheating project which you mentioned?

THE: What we are trying to do with Overheating is to fill a gap in the literature on globalization: we are trying to say something general about what I call the clash of scales, the dichotomy between the large and local. The large scale is the world of global capitalism, of the environment and of nation-states; on the other hand, there are the lives people live in their own communities. We are a group of researchers who’ve done fieldwork in lots of locations around the world and we try to produce ethnographic material that is comparable, so that we can use our material to create, if I can be a bit pretentious, an anthropological history of the early twenty-first century. So we are working very hard to create an analysis of the global situation seen from below.

DL: Your project seems so wide that it almost looks like the anthropology of everything…

THE: Not quite. It is the anthropology of global crisis as perceived locally. Say you live somewhere in Australia and all of a sudden a mining company arrives next door and disrupts the ecosystem, and you ask yourself, “who can I blame and what can I do”? It’s the kind of question that many people ask when confronted with changes on the large scale that affect their local community. Our informants do not distinguish between the environment, the economy, identity as they all interact and effect local life. What we are interested in is the anthropology of local responses to global changes.

DL: So, you are trying to advance an anthropological understanding of globalization?

THE: Yes. I think one of the shortcomings of the mainstream literature on globalization is that the uniqueness of each locality is not taken seriously enough: the local is present mostly in the form of anecdotes from people’s lives. The problem of anthropological studies of globalization has often been the opposite: you go really deeply into one place and you neglect the wider perspective. We are trying to feel the gap in both approaches. The metaphor I often use is that of a social scientist who sits in a helicopter with a pair of binoculars and looks at the world. This would be the case of authors like Anthony Giddens or Manuel Castells. On the other hand, you have the person who works with a magnifying glass. We are trying to bring these two levels closer.

DL: The seriousness of global warming has been neglected by anthropologists, indeed by all social sciences for a long time.

THE: This is changing. The anthropology of climate change has become one of the big growth industries in academia, just as ethnicity and nationalism were big in the 1970s and 1980s. You are from Slovenia, you know the breakup of Yugoslavia, which came as a shock to us and we needed to understand what was happening. The genocide in Rwanda happened around the same time, Hindu nationalists came to power in India, contradicting everything we thought we knew about the country, controversies emerged around migration, multiculturalism, diversity, Islam in western Europe. After the turn of the century, the issue of climate change came to be understood as another layer on top of these issues.

DL: When did you develop your interest in climate change?

THE: It must have been many years ago but it took a while before I got the opportunity to look at these interconnected issues more closely. We are not geophysicists, we do not know much about CO2, we cannot predict the temperature of the world. What we can do is study how people respond, how they react, how they talk about it and what they do.

Summit camp on top of the Austfonna Ice Cap in Svalbard (Norwegian Arctic). Photo: NASA Goddard Space Flight Center / Thorben Dunse, University of Oslo. Source: Flickr

The dangerous thing about climate changes is that it has deep consequences, and yet it is hard to find anybody to blame. Think about it: say you are in small town or village in the Andes in Peru and you notice there is something odd with the water. It is not the way it used to be, you notice the glaciers are melting, and then you know that mining company has opened an operation venue nearby. You think the mining company must be to blame, because they probably pumped out all the water and they destabilized the local climate, and so you march up to them telling them “look, you are taking away our water, we need compensation”, and they come out and they say “I’m sorry but it is not us, it is global climate change”. Where do you go to address that question? Do you write to Obama, do you write a letter to the Chinese?

The concern with climate change can be very serious in the sense that it creates a sense of powerlessness. We just have to let things happen. For this reason I have been interested in how environmental engagement begins with things that are within your reach. I probably can’t do anything about world climate, but maybe I can save some trees, or the dolphins in the harbour. That’s how engagement begins.

DL: Do you feel such helplessness when you talk about global warming and they ask you, “so what is your solution”?

THE: Good question. I guess we all have to find the best way of acting where we are. It is not as if you or I have the responsibility to save to planet, or that you will fail if you have not been able to save it. I remember that as a schoolboy I had a devout Christian teacher who was raised by missionaries in Japan. Being a Christian missionary in Japan can be very difficult because the people are generally not very interested in evangelization. She told us about a fellow Christian who had spend his entire life as a missionary in Japan and succeeded in converting one person, which made his life feel worthwhile. He felt saving one soul was well worth 50 years of hard work. We should not be overambitious regarding what we are able to achieve. We can take part in public debates, add one drop of complexity, a drop of doubt. Maybe sometimes it is enough or rather, it is all we can do.

DL: As an anthropologist you are not allowed to pass judgment on people, however sometimes it is extremely hard to avoid judgment, for example when we are confronted with obtuse forms of climate change denial.

THE: Traditionally, anthropologists have not been too good at thinking of themselves as engaged subjects, we have been taught not to pass judgment, to just lay out the facts and say, well this is what the world looks like and this is why this makes sense to those people and not to those people, and I believe that this paradigm, this kind of relative paradigm has collapsed. Such an approach can no longer function precisely for the reasons I was suggesting: we are now all in the same boat. So there is no good reason anymore to make sharp distinctions between scholarship and the wider public, because we are facing the same radical challenges. We are all part of the same moral space and sometimes we have to take an ethical or political stance, anything else would be irresponsible. But we have to strike a balance between that kind of engagement and our credibility as researchers.

Back to your question: when I study people who deny the reality of climate change I have to take their view of world seriously. Many of them really believe in the paradigm or progress, industrialism and so on. This to me is a key double bind in contemporary civilization: there is no easy way out, between economic growth and the ecological sustainability. There is no reason that anybody should have the answer. When people ask me what to do, I have to say: “Sorry, I am trying to work this out together with you. I do not have the answer.”

DL: You probably know Slavoj Zizek, he is more famous than Slovenia. He has had an ongoing dispute with Dipesh Chakrabarty on a related issue: should we first do something about global warming or engage in revolutionary struggle? Zizek believes climate change cannot be addressed outside the struggle for global emancipation, Chakrabarty on the other hand insists on the need to strike a historical compromise on a global level. What is your stance in this polemics?

THE: That is a very interesting question. On the one hand, I see the biggest tension in contemporary civilization is that between economic growth, which for two hundred years has been based on fossil fuels, and sustainability. Fossil fuels have been a blessing for humanity. They have created the foundations for modern life. Yet they are now becoming a damnation, a threat to civilization. This is hard to see from the viewpoint of a classical progressivist perspective.

This is strongly linked to another contradiction, the tension between a class based politics and green politics. What is more important, to do something about inequality or to save the world climate? Sometimes you just cannot pursue both aims. I worked in Australia, in a place where virtually everybody works directly or indirectly in industry. They have a huge power station, a cement factory, it is an industrial hub. Very few people have any environmental engagement to talk of. There is nothing about climate change in the local newspaper. It is all about industrial growth and job security. Being an environment activist in that place is very hard because your neighbours are not going to like it, but they have a very strong union-based socialist movement in that town. Those people see green politics as something that is a kind of a middle class thing. They associate it with cappuccino-sipping do-gooder students in Sydney and Melbourne, whereas us, the hard working industrial employees are the ones actually producing the cappuccino, the tablets, and they are not aware of where their wealth comes from. There is a widespread feeling of the hypocrisy of green politics.

Where do I stand? I think saving the climate is the main issue. But it should be pursued with concern for social justice. The first priority has to be to create sustainable jobs. If you take away a million jobs, you have to reproduce those jobs somewhere else. This leads me to what I think could have been an answer, had Zizek been aware of it, namely the anthropological school called human economy. There is a very creative English anthropologist who works in South Africa called Keith Hart who works from this perspective. David Graeber is sort of within the same world, looking at feasible economic alternatives to global neoliberalism. We are not talking about state socialism here: you are from Slovenia, you are too young to remember it, but state socialism did not make people too happy and it was not good for the environment either.

The point is that we need to talk about the economy in terms of human needs. The goal of economy is to satisfy human needs; not just material needs but also the need to something meaningful, to be useful for others, to see the results of what you are doing. The point of economy is not only to generate profits, but to try to fight alienation.

DL: You wrote somewhere that the Left lacks an understanding of multiculturalism and knowledge of the environment, and it tends to neglect these two fields that are extremely important right now. Isn’t that a surprising statement given that in the West, these issues have become almost synonymous with leftism?

THE: Things are indeed changing. That is probably one of the reasons Slavoj Zizek gets so angry sometimes, because he identifies with the Left, but the Left has abandoned his positions. I think many of us have the same feeling of being ideologically homeless. For 200 hundred years, the Left was quite good at promoting equality and social justice, presuming that economic growth will continue indefinitely. Then, in the 1980s multiculturalism emerged. The Left tried to appropriate it, tried to promote diversity, but it has not succeeded, because leftist movements have been good at promoting equality but not difference. Then environmental issues came as another factor complicating the picture. What do you do when you have to choose between class politics and green politics? You probably stick with class politics, but then you realize it is part of the problem, especially if you live in a rich country, as I do, where the working class flies to southern Europe all the time, going on holiday, driving cars, eating imported meat and so on. There is a big dilemma here. Again I must insist I don’t have the final answer, but at least if we identify the problem we make small steps in the right direction.

By the way, I very strongly disagree with what Zizek says about multiculturalism. Whenever he makes jokes about it, he produces a caricature of multiculturalism, rather than a parody which is arguably his aim. He does not really know what he is talking about. He knows a lot of things, but multiculturalism is not one of his strong points.

DL: Zizek has advanced a positive interpretation of the Judeo-Christian tradition from a leftist perspective. Do you think that this tradition, which sees the Earth as ultimately doomed, poses a problem for environmentalism?

THE: Good question. Probably there is something about the way in which many people talk about climate change that resembles these Judeo-Christian ideas about the end of time. We are approaching the end, we are approaching the final phase. Think about the popularity of post-apocalyptic films in science fiction. It started already in the early 1980s with Mad Max films, and there has been a series of Hollywood and other movies about the world after the apocalypse. There is a real thirst for this sort of narratives. In the text I am writing now I just quoted T. S. Eliot who writes famously that the world ends not with a bomb but with a whimper. There is no before and after. Many of the communist revolutionaries held similar chiliastic ideas: things are going to get worse and worse and worse, and then after the revolution everything is going to be fine. But we have some 200 years of experience with revolutions, and we know they tend to reproduce many of the problems they were meant to solve, and on top of that they create new ones. Take the Arab spring in North Africa and the Middle East. I think it is very dangerous to behave as if the history has a direction.

DL: This is somewhat connected to the wider issue of the role of human civilization in the environmental history of the planet. You use the term Anthropocene, yet some find it inappropriate as it puts humans in the centre, not only as the source of the trouble we are facing but also as more important than anything else on the planet. How do you feel about that?

THE: Some scientists want to have it both ways. Some think in terms of the changes that characterize the Anthropocene and at the same time they emphasize that humans and non-humans are really in a symbiotic relationship. I do not have a lot of patience for that kind of argument, especially if you think of the state of the world in times of climate change, with huge extractive industries, the global mining boom as the result of the growing Chinese and Indian economies, the upsurge of fracking which seems to have provided us with an almost indefinite supply of fossil fuels. I feel it is irresponsible to question the responsibility of humanity. And yet, however much I may love my cat and acknowledge that humans and domestic animals have coevolved, we must realize that human beings are special. There is no chimpanzee or the smartest of dolphins able to say, “well my dad was poor but at least he was honest”. Only human beings can create that sentence: our sense of moral responsibility is unique and we must live up to it.

DL: Speaking of moral responsibility: I understand you had an important role in the coming to terms with the Breivik tragedy…

THE: Yes, I spent about three weeks after the terrorist attack and doing little other than talking to foreign journalist and writing articles for foreign newspapers. They contacted me not only because I have been writing about identity politics and nationalism, but also because Breivik had a sort of soft spot for me. He sees me as a symbol of everything that has gone wrong in Norway, a sort of spineless effeminate cosmopolitan middle class multiculturalist Muslim lover. There has been a hardening; polarization is much more strong now than it was only 20 years.

In the 1990s, people who had said things like I do about cultural diversity would perhaps have been accused of being naive, whereas in the last few years we are increasingly being accused of being traitors – which is different. Breivik quoted me about 15 times in his manifesto and his YouTube film. You might say he had a mild obsession with me. Eventually, I was called in as a witness in the trial by the defence. Originally, the psychiatrists who examined Breivik concluded he was insane. He should have received psychiatric treatment, and thus could not be punished for what he did. Of course, at the certain level one has to be insane to kill so many innocent young people. But his ideas are not the result of mental illness, they are quite widely shared. We have websites in Norway, with 20,000 unique visits every week, that were among his favourite websites. The defence wanted to call me in as a witness to testify that although he may be a murderer, his ideas are very common, they are shared by thousands of others. Which is true, but in the end I did not have to go because they had a long list of witnesses and they only used some of them.

DL: Were you scared by this kind of exposure?

THE: Not really. But in the first few weeks after the terrorist attack when everybody in Norway was in a state of shock, I noticed that some people at the university whom I hardly knew would come over to me and were behaving unusually nicely. I realized they probably thought that was the last time they see of me because I was probably next on the dead list. Then things went back to normal. You can never feel entirely safe. Breivik reminds us that even a handful of people can do immense harm, just like the terrorist attack in United States in 2001. It has probably made society a little bit less trusting, a bit more worried. But I do not think about my own person security. About the security of my family, yes, but not mine. You cannot. That would be allowing the other people to win.

DL: Would you say that Norway has learnt anything from this tragedy?

THE: Unfortunately not. There was a chance that we could have, and many of us were hoping that an attack like that should make us understand that the idea of ethnic purity is absurd, crazy and not feasible in this century. We hoped that we could now get together to sit down and discuss these issues in a more measured, serious, balanced way, but it did not happen. It took only a couple of weeks for the usual political polarization to return. If anything, people who were against immigration became even more aggressive than before. We missed an opportunity there.

DL: You are coming to Ljubljana to a convention with the provocative title, Why the world needs anthropologists. But isn’t it a bit pretentious to suggest that the world needs us at all?

THE: That is an excellent question. I do not know whether the world needs novelists, but it probably does not does need poets. It can easily manage without them. And yet, the human need for meaning is just as powerful as the need for food and shelter. The kind of meaning sensitive and intelligent people can provide is especially important, when we need to reformulate the main questions.

I sometimes think about students of mine who are never going to work as anthropologist, they will find jobs elsewhere, but studying anthropology enables them to lead a better life because they understand more of themselves and of the world. I even think that doing anthropology makes you a better person: just like reading novels, it enables you to identify with others. When you then see the refugees in the Mediterranean, at least you know, it could have been me. You think that because you relate to people in all parts of the world. I think the main sort of moral message of anthropology perhaps is that all human lives have value, no matter how alien no matter how strange it might appear. So yes, I think world needs anthropologists, just as it needs novelists and poets.

Os desastres em uma perspectiva antropológica (ComCiência)

No. 176 – 10/03/2016

Renzo Taddei

Um traço peculiar do imaginário brasileiro, ou pelo menos daquele mais presente nos principais centros de produção midiática (Rio de Janeiro-São Paulo-Brasília), é a ideia de que “no Brasil não tem desastre”. Uma piada muito difundida no passado, e ainda presente na memória das pessoas e na internet, diz que, frente à indagação do anjo Gabriel sobre a razão pela qual Deus teria poupado o Brasil dos desastres naturais, quando da criação do mundo, este teria respondido que desastroso seria o povo que ele colocaria aí. Racismo ou “complexo de vira-latas” (Rodrigues, 1993) à parte, a ideia de um Brasil sem desastres é tomada aí como senso comum, como elemento de obviedade na elaboração da anedota (Taddei, 2014a).

Ocorre, no entanto, que os desastres são parte da relação entre humanos e o meio ambiente no Brasil desde pelo menos os primeiros anos de colonização. De acordo com o historiador Raimundo Girão, Pero Coelho de Souza, o primeiro português a tentar estabelecer-se no Ceará, em 1603, foi obrigado a retirar-se, poucos anos depois, em função da estiagem. Os registros históricos dizem que, na empreitada, perdeu sua fortuna e filhos seus morreram de fome e sede (Girão, 1985, p. 69). Esse não era o primeiro desastre do continente: acredita-se que as secas foram fator fundamental para o colapso do império Maia (Webster, 2002), na região do sul do México, cinco séculos antes de espanhóis e portugueses cruzarem o Atlântico. E também não seria o último em solo brasileiro, como bem sabemos.

Frente a esse panorama, uma contribuição possível das ciências sociais ao estudos dos desastres é a tentativa de responder à pergunta: o que constitui um desastre, e como tal forma de pensamento está embutida na realidade social e política brasileira?

O que é um desastre

Uma definição de desastre bastante utilizada nas ciências sociais é aquela que sugere que o desastre é um acontecimento que desorganiza a ordem social, cultural, econômica e política de uma coletividade, a ponto de que esta não é capaz de reorganizar-se de forma espontânea e autônoma (Blakie et al apud Briones, 2010). Ainda que essa forma de entender o desastre seja instrutiva, não é incomum que ela seja entendida como sugerindo que o desastre sempre vem “de fora”, da natureza, e é exógeno ao meio sociocultural. Essa abordagem reproduz a ideia de que trata-se de uma questão de domínio humano sobre a natureza; quando as coisas saem do controle, evidenciam-se os limites de tal domínio, e a natureza mostra sua força.

Para entendermos por que esta conceituação é limitada (e limitante), tomemos o exemplo das secas, sem dúvida o desastre mais comum e recorrente em território brasileiro: o que exatamente vem de fora para desorganizar as coisas? Vejamos: a caatinga, ecossistema dominante no chamado “polígono das secas” do Nordeste, é formada sobretudo por vegetação xerófila, aquela capaz de sobreviver em situação de escassez extrema de água. Se indagarmos nossos colegas botânicos e biólogos qual o tempo necessário para que os organismos se adaptem a um ecossistema, através dos processos de geração de novas espécies e seleção natural – o mesmo que supostamente gerou a vegetação xerófila da caatinga –, eles nos responderão que trata-se de um processo longo, de milhares de anos. Ou seja, a existência de vegetação xerófila na caatinga evidencia que os períodos longos de estiagem ocorrem aí há milênios. Nessa perspectiva, um período longo sem chuvas não é novidade alguma na região.

E qual a forma mais universalmente disseminada de convivência dos seres vivos com ecossistemas áridos e semiáridos? O nomadismo, a migração sazonal, em todas as suas variações possíveis. Animais e populações indígenas moviam-se no território de modo a tentar adaptar-se à periódica escassez de chuvas. Uma novidade trazida pelos portugueses, no entanto, o conceito de propriedade privada, mostrou-se incompatível com tais práticas adaptativas. O estabelecimento das fazendas e dos núcleos permanentes de povoamento expôs a população a uma rigidez espacial inconciliável com os fluxos e variações climáticas da região. Adicionalmente, a fartura dos anos de chuvas regulares fez com que a densidade demográfica aumentasse para muito além dos níveis pré-coloniais. O resultado disso tudo: quatro séculos de epidemias recorrentes de fome e sofrimento no sertão nordestino (Taddei, 2014b).

No exemplo acima, qual foi, exatamente, o elemento desastroso? A estiagem não é uma anomalia climática na região semiárida; foi a forma de domínio e uso da terra trazida pelos europeus que mostrou-se uma verdadeira anomalia sociopolítica. O caso das secas evidencia que necessitamos de uma outra forma de entender os desastres, que não separe radicalmente os meios social e natural. De maneira geral e simplificada, podemos propor como alternativa a ideia de que quando as coletividades têm conhecimento das variações e calendários dos ecossistemas locais e se organizam tomando-os em consideração, acumulam certa quantidade de recursos como reserva que os proteja de imprevistos, e escolhem práticas produtivas, sociais e políticas comprovadamente compatíveis com o ecossistema local, são capazes de atravessar períodos extremos, ou de sobreviver a eventos críticos, sem que a situação se configure como um desastre. Um desastre é, então, fruto das formas como ecossistema e grupos sociais relacionam-se entre si. Por isso, um desastre jamais está “na” natureza, e sim na relação que se tem com ela (Oliver-Smith, 1999). Um exemplo disso é a constatação, fruto de uma pesquisa por mim coordenada durante o ano de 2005 – ano em que houve secas de grande porte e praticamente ao mesmo tempo no Nordeste, na Amazônia e no Rio Grande do Sul –, de que os efeitos da estiagem motivaram manifestações populares e a invasão de prédios públicos em diversas cidades cearenses, enquanto a falta de chuva em intensidade equivalente sequer foi notada por moradores de cidades das serras gaúchas (ver Taddei e Gamboggi, 2010).

Essa forma de entender desastre tem duas vantagens: a primeira é que o desastre deixa de ser um evento isolado no tempo e no espaço, e passa a ser entendido como um processo que se desdobra ao longo do tempo (Valencio, 2009), e que, em geral, afeta coletividades humanas e animais em uma dimensão espacial muito maior do que o local específico do evento crítico. A segunda é que podemos facilmente retirar a natureza da equação e substituí-la por ambientes e processos técnicos, e temos aí uma forma interessante de pensar os desastres ditos “tecnológicos”. A realidade é que não há desastre que não tenha, concomitantemente, componentes ecossistêmicos e componentes tecnológicos e, em razão disso, a diferenciação entre desastres naturais e tecnológicos é apenas o destaque, para fins operacionais ou jurídicos, do fator preponderante em cada caso.

Voltemos por um minuto à definição proposta acima, de modo a exemplificá-la melhor. Recorrentemente, o que chamamos de seca, no que tange à produção agrícola, ocorre em situações em que a terra é arrendada, de modo que as relações comerciais de curto prazo fazem com que o conhecimento sobre as variações de longo prazo do ecossistema local se percam de vista; a necessidade de se atingir níveis de lucratividade compatíveis com os praticados no mercado financeiro faz com que frequentemente os recursos sejam investidos de forma intensiva, o que aumenta os riscos envolvidos e coloca o produtor em situação de vulnerabilidade a variações climáticas; e a seleção das culturas, quase sempre, está ligada aos preços do mercado, e raramente às condições específicas do ecossistema onde se dará a produção (grande parte da qual é destruída para ceder espaço às áreas agricultáveis). Ou seja, o que estou dizendo aqui é que o modelo de produção agrícola vigente na atualidade está fundado em uma forma de relação entre o ecossistema e a atividade humana altamente vulnerável a variações naturais, o que produz um contexto propício ao desastre. Não é à toa que, em um ano “bom”, cerca de um quarto dos municípios do país declaram situação de emergência. Em um ano ruim, esse número sobe para mais de um terço. O desastre está praticamente embutido nas formas de organização econômica e política brasileiras (Taddei e Gamboggi, 2010).

Nem todas as declarações de situação de emergência se dão em função de secas. No entanto, a coisa não é diferente com as inundações, os deslizamentos de terra, ou as ressacas que destroem infra-estrutura pública e privada nas zonas costeiras. Os fluxos de água têm ciclos que se repetem, muitos dos quais, por razões distintas, desconhecemos. O curso de um rio nunca pode ser determinado com exatidão; um rio “pulsa”, isto é, tem seu ciclo natural de retração e expansão. Esse ciclo é, em geral, anual, mas há outros ciclos na natureza que afetam os cursos de água e que são mais longos. O fenômeno El Niño é um deles: tende a ocorrer duas vezes por década, em geral diminuindo as chuvas na região Nordeste e as aumentando na parte Sudeste e Sul do Brasil. Há ainda ciclos mais longos: existem evidências de que alguns ecossistemas podem alternar séries de duas ou três décadas com menos chuva com outras consideravelmente mais chuvosas (Marengo et al, 1998). Grande parte desses ciclos não são conhecidos. Desta forma, um empreendimento no entorno de um rio pode, sem que as pessoas envolvidas se dêem conta, estar na verdade dentro do curso histórico do rio.

Um rio, por sua vez, não se resume à calha onde a água corre em grande volume. Esta é apenas o resultado da relação entre a água da chuva e determinada configuração topológica e geológica. A água infiltrada no solo, escoando lentamente para baixo e ao longo de uma camada de solo impermeável, até finalmente avolumar-se na região mais baixa (formando o rio propriamente dito), já é o rio em atividade. Em uma cidade, a ideia de que um rio foi “canalizado” envolve um equívoco conceitual diretamente ligado às inundações urbanas. Não se pode canalizar um rio, mas apenas sua calha principal. Quando isso é feito e o solo é impermeabilizado com concreto e asfalto, separa-se duas partes do rio, a que escoa pela topografia do terreno, e que obviamente continuará escoando, e a que escoa na calha do rio. A calha do rio é uma solução geológica para o escoamento de água; a separação entre o escoamento nos terrenos inclinados e a calha – ou a limitação da conexão entre ambas – é a construção das condições para a ocorrência dos desastres. A ideia de que o poder público tem que “resolver a questão das inundações urbanas” é fruto daquela mesma visão de “controle sobre a natureza” que criticamos no início deste texto. Uma solução mais apropriada para essa questão é considerar que o rio tem direito a estar na cidade, de forma íntegra e com toda sua variabilidade espacial, e que a cidade deve ser construída tomando isso em conta. Caso contrário, as cidades serão, como são, aparatos produtores de inundações. Ou seja, a inundação não é resultado da chuva, mas de uma certa relação entre a forma como os humanos transformam o espaço e o ciclo natural das águas.

Em resumo, o que quero dizer aqui é que, no mundo contemporâneo, somos frequentemente levados a agir pautados por agendas que não apenas se mostram incompatíveis com ciclos naturais dos ecossistemas, mas também afetam nossa capacidade de perceber detalhes dos mesmos que são importantes para a redução dos riscos de desastres. Desta forma, muitas de nossas formas de organização econômica, social e política têm que encontrar maneiras de lidar com a pouca eficácia, ou mesmo com a inconveniência, de nossas formas estabelecidas de ocupação do mundo. Por isso, desenvolvemos coisas como seguros financeiros, um complexo sistema de defesa civil em todos os níveis políticos, tecnologias de monitoramento e previsão de características importantes do meio ambiente, legislação específica, agências reguladoras, e muito mais. Temos também práticas sociais pautadas em relações de clientelismo, nas quais o detentor de poder político ou recursos econômicos oferece a determinada coletividade proteção contra os efeitos das variações dos ecossistemas (e contra coisas não relacionadas ao meio ambiente) em troca de apoio político; e a chamada “indústria das secas” (Callado, 1960), estratégias econômicas e sociais que geram riqueza para as elites locais a partir dos mecanismos federais de mitigação dos impactos das secas (Albuquerque Jr, 1999).

Particularmente no que diz respeito à nossa incapacidade de perceber as variações e ciclos dos ecossistemas, nossa base científica de monitoramento dos ecossistemas e da atmosfera começou a operar efetivamente apenas na década de 1960, o que fornece uma base bastante limitada de dados históricos. Neste contexto, é digno de nota o fato de que, em geral, são as populações tradicionais – indígenas, caboclos, ribeirinhos, caiçaras – que habitam os ecossistemas por muitas gerações que possuem tais conhecimentos (Taddei, 2015). Ocorre, no entanto, que a forma de codificação e transmissão de conhecimento de tais populações, através de transmissão oral e sobre uma base narrativa que faz amplo uso do que chamamos de folclore e pensamento mítico, é não apenas incompreensível para as populações urbanas, mas ativamente desvalorizada como superstição e atraso, frente aos poderes do conhecimento científico. São muito poucas, ao redor do mundo, as iniciativas de transformação de conhecimento tradicional em material que possa engajar-se de forma significativa com as discussões técnicas e científicas a respeito de como entender o meio ambiente e os desastres a eles relacionados. Um dos exemplos mais interessantes sobre esse respeito são os estudos dos manuscritos pré-hispânicos (os códices) maias e aztecas no que tange à forma como tais populações entendiam e lidavam com terremotos (ver Acosta e Suarez, 1996).

Riscos e desastres tecnológicos

Como mencionei acima, posso trocar “natureza” por “tecnologia” e a frase continua fazendo sentido: no mundo contemporâneo, somos frequentemente levados a agir no mundo pautados por agendas que não apenas se mostram incompatíveis com certas características dos sistemas técnicos em que atuamos, mas igualmente afetam nossa capacidade de perceber detalhes importantes dos mesmos (Taddei, 2014c). Na década de 1980, o sociólogo alemão Ulrich Beck (1992) propôs a teoria da sociedade do risco, na qual argumentou que as sociedades modernas, através da inovação tecnológica, criam riscos inéditos e que não somos capazes de mensurar. O sociólogo americano Charles Perrow, por sua vez, criou o conceito de acidentes normais (1999), nos quais sistemas complexos podem assumir configurações indesejáveis sob o ponto de vista humano, mas que são apenas configurações “normais”, isto é, possíveis, do sistema. Ou seja, quando projetamos sistemas complexos, como computadores, por exemplo, não somos capazes de prever todas as suas configurações possíveis. No caso particular dos computadores, o “travamento” do sistema operacional, em geral, não representa qualquer dano ao aparato, em suas dimensões físicas ou lógicas. Por isso, reinicializamos a máquina e ela volta a funcionar perfeitamente. Uma possibilidade de entender o que houve é justamente a ideia de que a máquina pode ter assumido uma configuração que, apesar de ser uma das muitas possíveis para ela, é inconveniente para o usuário. O caso do computador pessoal pode ser inócuo; ocorre que, segundo Perrow, não há razão para imaginar que o mesmo não possa ocorrer com aviões em pleno vôo, com usinas nucleares, ou com barragens.

Essa constatação evidencia os imensos desafios que as coletividades têm no que diz respeito à governança dos riscos aos quais estão submetidas. O mercado em sociedades liberais mostrou, repetidamente, que não é um bom instrumento de gestão de riscos na perspectiva da coletividade – a crise mundial de 2008 foi apenas a última em uma sequência longa de crises associadas à incapacidade das corporações capitalistas em gerir riscos de modo benéfico, não apenas para seus interesses particulares, mas para a sociedade como um todo. Os governos dos países capitalistas em geral pautam-se por indicadores de mercado (como o PIB) para avaliar o sucesso e a eficácia de seus governantes e, por essa razão, tendem a ser ineficientes no que tange a usar seu poder regulatório coercitivo contra o próprio mercado. Desta forma, com exceção de setores historicamente marcados por desastres em larga escala, como a geração de energia nuclear e a prospecção de petróleo, em geral, o setor corporativo cria novas tecnologias e as coloca no mercado sem que os riscos a elas associados sejam conhecidos. Aliás, no que tange à questão nuclear, o Brasil tem a infelicidade de figurar no seleto grupo de países1 que foram palco de acidentes radioativos, devido ao evento do Césio 137 em Goiânia, no ano de 1987 (Da Silva, 2001; Vieira, 2013).

Os desastres em tempos de mudanças climáticas

Particularmente no Brasil, como demonstram os exemplos das secas no Nordeste, os deslizamentos da serra fluminense de 2011, ou o desastre de Mariana em 2015, o poder público age de forma notoriamente reativa, esperando a catástrofe e apenas posteriormente ajustando sua configuração institucional e suas formas de ação aos riscos envolvidos – e, ainda assim, com variados graus de eficácia. Neste contexto, a perspectiva de futuro trazida pelas mudanças climáticas é duplamente sombria: por um lado, as alterações ecossistêmicas previstas (bem como as não previstas) devem desestabilizar até mesmo os arranjos adaptativos mais efetivos entre ecossistemas e coletividades; por outro, como o exemplo das reuniões do clima da ONU (as chamadas “conferencias das partes” ou COPs) deixa evidente, os estados nacionais e seus aparatos institucionais se mostram ineficazes e despreparados para lidar com o desafio que se aproxima. A crise migratória europeia dos últimos anos é outro exemplo contundente: em quase todos os casos envolvidos (e particularmente nos casos dos conflitos do Sudão e da Síria), o componente climático é uma das variáveis mais importantes; os países europeus e a própria ONU, no entanto, evitam qualquer associação entre tais migrações e as secas dramáticas que assolaram tais países, uma vez que isso desorganizaria o arcabouço jurídico para lidar com questões migratórias desenvolvido pelos países ocidentais. Ou seja, não existe, até o momento, a figura jurídica do refugiado climático. E a principal razão para tanto é o fato evidente, já mencionado anteriormente neste texto, que limites territoriais fixos, como as fronteiras nacionais, são incompatíveis com a estratégia mais óbvia de sobrevivência a variações extremas do ambiente, justamente a migração. Desta forma, a crise migratória atual é apenas uma amostra do que está por vir, e não há razões para acreditar que os estados nacionais, que têm em suas configurações espaciais parte da causa da crise, sejam os atores que irão propor soluções sustentáveis ao problema. É mais provável que as soluções venham de fora do sistema e, desta forma, a pesquisa científica sobre ambiente e desastres deve estar aberta para o diálogo com outras formas de conhecimento e ação no mundo. Novamente, aqui as populações tradicionais talvez tenham um papel fundamental a desempenhar (Danowski e Viveiros de Castro, 2014); e não há campo mais apropriado, dentro do mundo acadêmico, para fazer tal interlocução do que as ciências sociais. Para isso, no entanto, a agenda de pesquisa em sociologia e antropologia dos desastres tem muito que avançar.

Renzo Taddei é professor de antropologia na Universidade Federal de São Paulo.

Referências bibliográficas

Acosta, V. G.; Suarez, G. Los sismos en la historia de México: el análisis social. Tlalpan, México: CIESAS, 1996.

Albuquerque Junior, D. M. de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999.

Beck, U. Risk society. Towards a new modernityLondres: Sage Publications, 1992.

Briones, F. “¿Sequía natural o sequía hidrológica? Políticas públicas y respuestas sociales en el perímetro irrigado de Icó-Lima Campos, Ceará” In: Taddei, R.; Gamboggi, A. L. (orgs). Depois que a chuva não veio – respostas sociais às secas na Amazônia, no Nordeste e no Sul do Brasil. Fortaleza: Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos/Instituto Comitas para Estudos Antropológicos, 2010.

Callado, A. Os industriais da seca e os “Galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.

Da Silva, T. C. “Bodily memory and the politics of remembrance: the aftermath of Goiânia radiological disaster”. High Plains Applied Anthropologist. v. 21, n. 1, p. 40–52, Spring 2001. 

Danowski, D.; Viveiros de Castro, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie, 2014

Girão, R. Evolução histórica cearense. Fortaleza: BNB/Etene, 1985.

Marengo, J. Tomasella, J. Uvo, C. “Long-term stream ow and rainfall fluctuations in tropical South America: Amazonia, eastern Brazil and northwest Peru”. Journal of Geophysical Research, n. 103, p. 1775-1783, 1998.

Oliver-Smith, A. “What is a disaster? Anthropological perspectives on a persistent question”. In: Oliver-Smith, A; Hoffman, S. (orgs.), The angry Earth: disaster in anthropological perspective. New York: Routledge, 1999.

Perrow, C. Normal accidents: living with high-risk technologies. Princeton: Princeton University Press, 1999.

Rodrigues, N. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Taddei, R. “Sobre a invisibilidade dos desastres na antropologia brasileira”. WATERLAT-GOBACIT Network Working Papers, Thematic Area Series SATAD, TA8 – Water-related Disasters, vol. 1 no. 1, Newcastle upon Tyne and São Paulo, September 2014, pp. 30-42 2014a.

Taddei, R. “As secas como modos de enredamento”. ClimaCom Cultura Científica – pesquisa, jornalismo e arte. Ano 01, No. 01 – “Redes”, 2014 2014b.

Taddei, R. “Alter geoengenharia”. Trabalho apresentado no colóquio internacional Os Mil Nomes de Gaia. Fundação Casa de Rui Barbosa, 16 de setembro de 2014, Rio de Janeiro. Disponível em https://goo.gl/5wUVHn; acessado em 8 de março de 2016 2014c.

Taddei, R. “O lugar do saber local (sobre ambiente e desastres)”. In: Siqueira, A.; Valencio, N.; Siena, M.; Malagoli, M. A. (Org.). Riscos de desastres relacionados à água: aplicabilidade de bases conceituais das ciências humanas e sociais para a análise de casos concretos. São Carlos: Rima Editora, 2015.

Taddei, R.; Gamboggi, A. L. (orgs). Depois que a chuva não veio – respostas sociais às secas na Amazônia, no Nordeste e no Sul do Brasil. Fortaleza: Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos/Instituto Comitas para Estudos Antropológicos, 2010.

Valencio, N. “Da morte da quimera à procura de Pégaso: a importância da interpretação sociológica na análise do fenômeno denominado desastre”. In: Valencio, N.; Siena, M.; Marchezini, V.; Gonçalves, J. C. (orgs), Sociologia dos desastres – construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: RiMa Editora, 2009.

Vieira, S. de A. “Césio-137, um drama recontado”. Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 27, p. 217-236, 2013.

Webster, D. L. The fall of the ancient Maya: solving the mystery of the Maya collapse. London: Thames and Hudson, 2002.

1 Estes países são: Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, Coréia do Sul, Costa Rica, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Ilhas Marshall, Índia, Japão, Panamá, Paquistão, Suíça, Rússia e Ucrânia.

Viveiros, indisciplina-te! (GEAC)

Posted on Fevereiro 12, 2016

viveiros

Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo

Enquanto agita a bandeira da descolonização do pensamento e nos alimenta com uma fonte inesgotável de alteridade radical, Viveiros de Castro permanece aferrado à disciplina antropológica e ao senso comum policialesco que a sustenta. Fora da academia, contudo, sua obra vem sendo reconectada à ação política transformadora. Resta-nos, então, a esperança de que Viveiros indiscipline-se

* * *

A minha hipótese é que as teorias e disciplinas reagirão de modo não-teórico e não disciplinar quando forem objeto de questões não previstas por elas. 

Boaventura de Sousa Santos

Como eu “vivo a política?” Ora, vtnc.

Viveiros de Castro

Quando fazemos uso de nomes próprios e referências diretas a determinadas declarações públicas não estamos buscando discutir características pessoais, mas sim a relevância e o poder de interpelação de determinadas posturas teórico-políticas.

I.

Faz quarenta anos que a prática antropológica em geral e especificamente as práticas da antropologia disciplinar vêm sendo problematizadas a partir de enfoques variados em diversos países. O triunfo dos movimentos de libertação nacional em África, Ásia e Oceania, associado aos processos de descolonização epistêmica que problematizaram os regimes de representação da alteridade enraizados nas academias metropolitanas, desencadeou um movimento reflexivo que repercutiu com força nas antropologias hegemônicas. O antropólogo haitiano Michel Trouillot caracterizou tal processo como o esvaziamento empírico do “nicho do Selvagem”: enquanto disciplina, a antropologia dependia do Selvagem-objeto, mas este agora enunciava a si mesmo, sua história e seus projetos em primeira pessoa. Para Trouillot, a antropologia surgiu no final do século XIX incumbida de disciplinar o “nicho do Selvagem”, anteriormente objeto de especulações em novelas utópicas, relatos de viagens ao Novo Mundo e informes para-etnográficos. Dentro do esquema discursivo evidenciado pelo autor, o Selvagem é aquele que alimenta diferentes Utopias destinadas a refundar a Ordem, entendida como expressão da universalidade legítima. A tríade Ordem-Utopia-Selvagem que sustentava as metanarrativas ocidentais estava, no entanto, dissolvendo-se e tal processo ameaçava a autossuficiência da disciplina antropológica.

Abalados pelo impacto da crítica pós-colonial, os domínios da disciplina pareciam inférteis aos olhos daqueles que ainda cultuavam a velha e boa Antropologia, outrora presidida sem embaraço pelos mandarins de Cambridge. O setor mais cético e enclassado da disciplina manteve uma desconfiança profunda em relação a qualquer tipo de engajamento intelectual que se deixasse afetar – no tocante às suas preocupações e aos seus objetivos – por vetores políticos extra-acadêmicos. Para referido setor o panorama desolador do período que poderíamos definir como “pós-crítica” exigia Restauração. A avidez por restaurar a Antropologia encontrou eco, num primeiro momento, no cinismo de tipo geertziano. Hermenêutica em punho, Geertz profetizou que o novo destino da Antropologia seria contribuir para a expansão dos horizontes da racionalidade humana através da tradução intercultural. Malgrado seu passado colonial, a disciplina antropológica preservaria uma tendência inata de valor não desprezível: a capacidade de ouvir o outro e decodificar sua cultura. Não era exatamente disso que precisávamos num mundo marcado pela intolerância e pela incompreensão?

As alternativas a la Geertz não bastavam, contudo, para devolver à Antropologia sua antiga auto-suficiência. Passar o resto da vida operando traduções interculturais para mitigar as catástrofes da modernidade tardia não parecia um destino à altura daquela disciplina que havia dispendido boa parte do século XX na ousada tarefa de confrontar o narcisismo moderno com a imagem desafiadora do seu outro selvagem. Entretanto, a “linha forte” do restauracionismo disciplinar teria de esperar até os anos noventa para encontrar no perspectivismo ameríndio um dos seus mais promissores cavalos de batalha. A potência do paradigma esgrimido por Viveiros de Castro residia em sua capacidade de matar dois coelhos numa cajadada só: ao passo que flertava com o espírito do seu tempo, respondendo ao compromisso político com a descolonização da disciplina, também restaurava o “nicho do selvagem”, objeto que, como apontou Trouillot, havia sido herdado e nunca verdadeiramente questionado pelas expressões hegemônicas da antropologia. Na “geografia da imaginação” que engendrou o Ocidente e a antropologia disciplinar, o Selvagem foi frequentemente uma projeção utópica. “Agora, como então – diz Trouillot –, o Selvagem é apenas evidência num debate cuja importância ultrapassa não só seu entendimento, mas também sua existência. Assim como a Utopia pode ser oferecida como uma promessa ou como uma ilusão perigosa, o Selvagem pode ser nobre, sábio, bárbaro, vítima ou agressor, dependendo do debate e dos propósitos dos interlocutores” (p.67 [acessar texto aqui])

Diante do encerro de alguns antropólogos nos corredores da academia e do desinteresse de outros em vincular sua produção a grandes debates estruturais, foi Viveiros quem soube construir uma ponte entre o discurso antropológico e a formulação de enunciados políticos radicais e abrangentes. Por outro lado – e paradoxalmente – Viveiros erigiu seu lugar de fala sobre o velho “nicho do selvagem”, que agora retorna a nós em sua faceta utópica, capaz de iluminar alternativas imediatas e anistóricas às vicissitudes da modernidade ocidental. Reivindicado em entrevistas e ensaios teóricos, o Pensamento Selvagem serve de “controle” para imaginar Utopias – virtualidades que poderiam ser atualizadas em “nossa” própria antropologia, em “nosso” próprio mundo, etc. Aqui cabe recuperar novamente a súplica de Michel Trouillot: os sujeitos históricos com voz própria aos quais se reporta Viveiros merecem muito mais do que um “nicho”; merecem ser muito mais do que a projeção das ânsias de refundar a metafísica. Para o autor, devemos ser capazes de desestabilizar e, eventualmente, destruir o “nicho do Selvagem” para poder relacionar-nos com a alteridade em sua especificidade e legitimidade histórica, que sempre escapam ao universalismo. A dicotomia “nós e o resto”, implícita na ordem simbólica que engendra a ideia de Ocidente, é um construto ideológico, afinal “não há apenas um Outro, mas multidões de outros que são outros por diferentes razões, a pesar das narrativas totalizantes, incluindo a do capital” (p. 75).

Ao lançar mão do recurso ao nicho do Selvagem, Viveiros provoca um efeito de sedução que resulta não tanto das suas manobras conceituais, mas da necessidade que temos de alimentar a fonte inesgotável de exterioridade radical que poderia nos salvar do Ocidente. A outridade termina, assim, subsumida à mesmidade dos projetos de sempre – transformar a Antropologia, por exemplo. Em tal cenário, a disciplina antropológica é chamada a continuar seu trabalho, reassumindo a vocação de perscrutar fielmente o Outro selvagem refratado pela teoria de Viveiros de Castro. Trouillot vaticina: “enquanto o nicho [do Selvagem] existir, no melhor dos casos o Selvagem será uma figura de fala, uma metáfora num argumento sobre a natureza e o universo, sobre o ser e a existência – em suma, um argumento sobre o pensamento fundacional” (p. 68).

II.

Deixemos que Viveiros fale um pouco mais sobre a forma como concebe o promissor entrelaçamento entre a “nossa” Antropologia e o Pensamento Selvagem: “por transformações indígenas da antropologia entendo as transformações da estrutura conceitual do discurso antropológico suscitadas por seu alinhamento em simetria com as pragmáticas reflexivas indígenas, isto é, com aquelas etno-antropologias alheias que descrevem nossa própria (etno-) antropologia precisamente ao e por divergirem dela” (p.163 [acessar texto aqui]). O pensamento ameríndio consistiria, ele próprio, em uma ontologia política do sensível que, ao se alinhar com o discurso antropológico, se tornaria capaz de redefini-lo e de convertê-lo em enunciador de uma antropologia outra. Neste sentido, o conhecimento antropológico não operaria sobre um repertório cultural fechado em si mesmo, mas sim em meio a outro movimento reflexivo – o ameríndio – que é concebido como dinâmica ontológica transformacional capaz de instaurar, pelo menos no plano do conceito, uma mundaneidade completamente nova e potencialmente transgressora dos parâmetros epistemológicos da nossa etno-antropologia.

O problema começa quando dizemos que a dinâmica transformacional inerente à ontologia ameríndia possui um modus operandi determinado que nós, antropólogos, poderíamos abstrair mediante procedimento de “coloração contrastiva” (p.157). Procedendo assim, o antropólogo transforma a transformação outra em algo completamente desencarnado – fruto da construção artificial, laboratorial, em suma, contrastiva da alteridade radical. Na verdade essas dinâmicas transformacionais outras nas quais o discurso antropológico supostamente se imiscui não são outra coisa senão o resultado de um procedimento enunciativo disciplinar e disciplinador que submete a experiência ao conceito (“A revolução, ou a essa altura será melhor dizer, a insurreição e a alteração começam pelo conceito”, Viveiros, p. 155).

O “perspectivismo imanente” depreendido por Viveiros da análise formal dos mitos só pode existir enquanto subproduto da alteridade radical laboratorialmente forjada por uma antropologia que se obstina em negar a experiência e a voz própria dos homens e mulheres que são os verdadeiros sujeitos da história. Mesmo abundantes, os eufemismos de Viveiros são insuficientes para dissimular o recurso ao “nicho do selvagem” que abastece sua máquina textual. No final das contas, Viveiros quer comparar “transformações” – outro nome para cultura – e depois mobilizá-las na construção de enunciados políticos que suspendem a política, que nos conclamam ao estarrecimento resmungão e, no pior dos casos, nos transformam em moralistas que repetem insistentemente que as coisas poderiam – ou deveriam – ser diferentes do que são sem saber como, objetivamente, engajar-se nas dinâmicas transformacionais imanentes à realidade.

A ideia de transformação da antropologia enunciada por Viveiros de Castro é caudatária da ego-política do conhecimento. Nesta perspectiva profundamente desencarnada, a antropologia aparece como uma “estrutura conceitual” – e não como a expressão localizada de certo processo de institucionalização – que pode sofrer alinhamentos com a “pragmática reflexiva” indígena. Quem promove esses alinhamentos? Viveiros não explicita, mas só podemos concluir que são os próprios antropólogos que o fazem. Se now is the turn of the native, quem distribui os “turnos” na fila da legitimidade epistêmica (ou ontológica) é o próprio antropólogo.

No sentido oposto ao da ego-política do conhecimento, o Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC) retomou a noção descolonial de corpo-política do conhecimento. Esta noção nos leva a definir a transformação da antropologia como um processo localizado de disputa encarnada – corporalizada – pela construção de outros lugares de enunciação e de novas formas de produzir efeitos de verdade. Pensar com os outros, como propõe Viveiros, significa, para nós algo muito mais radical. Significa pensar na presença concreta do outro, engajados corpo-politicamente com ele. O resultado disso não precisa ser, necessariamente, “antropologia”, “etnografia” ou qualquer outra forma de subsunção da radicalidade da ação histórica e da especificidade dos sujeitos à mesmidade do texto acadêmico. Não vemos necessidade de construir, laboratorialmente e por contraste, o pensamento do outro – ou, sendo fiéis a Viveiros, as formas outras de empreender a transformação – para, só depois, proceder à construção do comum.

III.

Viveiros quer transformar as estruturas conceituais da antropologia e colocá-las a serviço da descolonização do pensamento. Nós perguntamos: é possível fazê-lo sem abrir mão das formas específicas de exercício do poder que a antropologia avaliza enquanto disciplina? Viveiros reforça um senso comum de longa data cujo efeito é a neutralização de quaisquer práticas intelectuais dissidentes. Ele agita a bandeira da descolonização do pensamento sem prestar atenção às bases institucionais conservadoras sobre as quais repousa comodamente. Evidência disso é a facilidade com que o antropólogo descolonizador ironizou a interpelação que lhe fizemos anos atrás (acessar texto aqui) recorrendo àquela pergunta tão frequente nos espaços mais policialescos da disciplina: onde está a etnografia dessa gente?

Quando Viveiros procura deslegitimar nossa interpelação recorrendo à pergunta irônica sobre as “etnografias” que fomos ou não capazes de produzir, ele se inscreve completamente na história da qual pretende emancipar a disciplina. Uma história que erigiu a etnografia (o texto) em única expressão legítima do enunciado antropológico. Isso para não falar da leitura completamente narcísica feita por ele de nossa intervenção. Para Viveiros, tudo o que dissemos era a reprodução do discurso de nossos “orientadores” ou, até mesmo, uma tentativa de atacá-lo para salvar o Partido dos Trabalhadores (!). Enquanto líamos essas assertivas, nos lembrávamos da forma como alguns docentes reagiram à greve dos estudantes de mestrado em antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2011. Incrédulos diante das críticas que os estudantes faziam ao produtivismo acadêmico desenfreado, à escassez de bolsas e à nula participação discente na definição das políticas do programa de pós-graduação, determinados professores só puderam explicar o acontecimento recorrendo à lógica da cooptação: era o Partido Comunista (!) que estava por trás daquela imensa insensatez. A voz própria enunciada em primeira pessoa continua a ser desacreditada fortemente nos domínios da disciplina: não há sujeito histórico verdadeiramente autêntico, sempre “há algo” por trás que o explica e conduz. Reações desta ordem, que se recusam a reconhecer a autenticidade da fala do outro, são sintomas de um narcisismo antropológico-disciplinar que priva a si mesmo da possibilidade de mudar a própria perspectiva sobre as coisas: “ao adentrarmos o espaço da exterioridade e da verdade, só conseguimos ver reflexos e simulacros obsedantes de nós mesmos” (p.23 [acessar texto aqui]). Tudo aquilo que o establishment disciplinar contempla não pode ser outra coisa senão o reflexo da sua própria lógica de funcionamento.

Ao mesmo tempo que Viveiros atualiza em sua performance acadêmica as hierarquias silenciadoras e os sistemas de visibilidade que sustentam a disciplina que o legitima, ele também nos entrega, paradoxalmente, uma retórica descolonizadora. Sua crítica aguda e implacável à fé cega nas ideias-força da modernidade capitalocêntrica possui, sem dúvidas, uma potência suscetível de ser atualizada por quem deseja incidir nas relações de força concretas. Não só no Brasil, mas também em outros países da América do Sul, os enunciados produzidos por Viveiros de Castro são constelados em agenciamentos coletivos que ensaiam uma ruptura pragmática com o consenso das commodities e inauguram, assim, renovados espaços de imaginação política. Nestes casos, Viveiros é vivificado pela ação coletiva; sua crítica se associa com os imperativos das lutas atuais e é potencializada por uma poética materialista capaz de desenterrar outro mundo possível das entranhas deste mundo subsumido pelo capital. Peter Perbart tem razão: “ainda os que costumam planejar uma abstração radical (…) podem ser reconectados à terra ao entrar em contato com uma situação real e deixar para trás a imagem da qual muitas vezes são prisioneiros e na qual o poder insiste em enclausurá-los” (acessar texto).

Viveiros é vivificado pela política fora da academia. Dentro dela, no entanto, é disciplinado e sabe disciplinar. Aprisiona entre aspas todas as palavras que correm o risco de serem abastardadas pelo uso canalha (“grupo” de “antropologia” “crítica” – dizia no twitter). Insinua que por detrás da interpelação crítica a ele destinada se oculta o repreensível desejo de “aparecer”. É que ao atrair para si uma atenção da qual a priori não são merecedores, os responsáveis pela mais mínima inversão dos regimes convencionais de visibilidade acadêmica só podem ser encarados como usurpadores.

Nós questionamos estas tendências e procuramos problematizá-las através do espaço autônomo de diálogo e reflexão que é o GEAC. Enquanto a “filosopausa” não chega – e com ela a possibilidade de publicar textos aforísticos em revistas indexadas – decidimos construir, de direito próprio, um lugar amigável para desenvolver engajamentos e debates cuja emergência costuma ser obturada pelos estabelecimentos antropológicos mais conservadores.

Apesar da deriva filosófica, Viveiros de Castro continua aferrado à disciplina antropológica e ao senso comum que a sustenta. Resta-nos a esperança de que as ruas e a história o absolvam.  E de que Viveiros indiscipline-se.