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A comunidade moral
JOSÉ PAULO FLORENZANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
28 fev 2010
Década de 60 marcou a ascensão das torcidas organizadas, que passaram de coadjuvantes a protagonistas do espetáculo ao adotarem a “metáfora da guerra”
Foto: Torcedores são-paulinos durante partida em Barueri (SP). Ricardo Nogueira – 28.jan.10/Folha Imagem.
As torcidas organizadas, no Brasil, assim como os agrupamentos ultras, na Itália, começaram a ocupar as arquibancadas e a modificar o clima e a paisagem dos estádios a partir dos últimos anos da década de 1960. Lá, como cá, abandonaram a condição de simples espectadores da partida de futebol para desempenhar o papel de protagonistas do espetáculo que elas próprias criavam e desenvolviam, inspiradas pela “metáfora da guerra”, como mostra a perspectiva antropológica de Alessandro Dal Lago.
A violência, no entanto, não se restringia aos limites de uma batalha simbólica, mas se deslocava no espaço, driblava as medidas de repressão e adquiria, ao longo do tempo, forma e intensidade, alcance e significados muito diversos. De fato, como mostram os estudos feitos na Itália, os jovens torcedores logo enveredaram pela estrada do antagonismo violento, militarizaram-se, adotaram a “lógica da guerra”.
Isso os levava a planificar com antecedência a escolha do lugar da luta, a calcular o momento certo da ação, a delinear previamente a tática a ser empregada no combate travado cada vez mais fora das praças esportivas.
Ao mesmo tempo, procuraram alcançar um consenso em torno das “regras do jogo” no qual se achavam imersos -isto é, definir as armas, os atores e as circunstâncias do confronto. Uma circular redigida por integrantes do movimento buscava estabelecer os ditames do comportamento ultra: “Não se toca nas mulheres e nos velhos e não se enfrenta quem não tem nada a ver e não tem a possibilidade de se defender”.
Visto por esse prisma, o estereótipo da “horda de bárbaros embriagados” transfigurava-se, segundo o sociólogo Antonio Roversi, em uma “comunidade moral”. Esta era edificada com base em um repertório próprio de regras, dotado de mecanismos simbólicos de integração dos jovens reunidos na cultura da curva, na qual a violência desfrutava de um lugar privilegiado, mas não se revestia de uma forma caótica nem se desenvolvia de modo aleatório.
Ao contrário, ela se desenrolava no quadro das rivalidades e das alianças tecidas entre os diversos agrupamentos e de acordo com o código de comportamento aceito e partilhado pelos torcedores. A via brasileira apresentava pontos em comum com o percurso italiano, mas também se distinguia pela elaboração de características próprias e traços originais.
Nesse sentido, enquanto o caminho dos ultras atravessava o campo minado do extremismo político (alguns grupos se autodenominavam “brigadas”, em alusão ao partido armado identificado pela estrela de cinco pontas), o das organizadas desembocava na República do Futebol, paisagem histórica definida por inúmeras experiências de autonomia -como, por exemplo, o Trem da Alegria, idealizado por Afonsinho, e a Democracia Corintiana, liderada por Sócrates.
Aspectos contraditórios
Essa paisagem histórica, delimitada pelos anos de 1978 a 1984, contemplava ainda a iniciativa do jogador Wladimir de estender às gerais e arquibancadas o processo de mudança deslanchado no Corinthians: “As discussões são abertas aos diretores, aos jogadores, aos sócios e até à torcida”. Mas a participação desta última nos anos revolucionários do futebol brasileiro comportava aspectos contraditórios.
De um lado, ela promovia o salto de qualidade no exercício da violência, refletido tanto no conflito entre as organizadas do Santos e da Portuguesa -em 1979, na Taça São Paulo, com um saldo de 15 pessoas feridas- quanto nas brigas ocorridas antes, durante e após o clássico entre Santos e Corinthians, em 1983, com tiros disparados ao redor do estádio e focos de incêndio dentro do Morumbi.
De outro lado, ela reivindicava o direito de participação e o concretizava por meio de várias iniciativas. Entre elas, pode-se destacar, em 1977, o debate sobre a criação de uma Associação das Torcidas Organizadas; em 1978, a greve promovida pela Torcida Uniformizada do Palmeiras contra o desgoverno implantado no clube; em 1981, a crítica da Torcida Jovem do Santos à fórmula esdrúxula do Paulista; e, em 1984, a presença da Gaviões da Fiel nos comícios das Diretas-Já.
Violência e participação se constituem, portanto, nos fatores decisivos do universo das organizadas. Isso significa que, além do combate imprescindível e sem tréguas à impunidade dos atos brutais, o enfrentamento do problema atual pode incluir a criação de novos canais de participação e espaços de debate. De fato, como diz o sociólogo Antonio Roversi, juízos acusatórios e categoriais morais impedem a compreensão do quadro dinâmico das torcidas.
Eles não permitem, assim, elucidar as linhas de continuidade, identificar os pontos de ruptura, apontar as reviravoltas que ora as colocam no exercício de uma violência desregrada, ora as aproximam da prática democrática elaborada em conjunto por aqueles que desejam reinventar a República do Futebol e manter, tanto quanto possível, a rivalidade dos jovens torcedores nos limites de um duelo simbólico.
JOSÉ PAULO FLORENZANO é professor de antropologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bolsista da Fapesp e autor de “A Democracia Corinthiana” (Educ).
Os sem-política
Transformado em peça na máquina de consumo compulsivo, torcedor é vítima maior da despolitização que atinge a sociedade
LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Assistência” foi um termo muito comum propagado pela imprensa esportiva até os anos 1930, condenando à passividade os torcedores mais populares. Estes se diferenciavam dos sócios, indivíduos notabilizados por laços mais estreitos, inclusive de parentesco, com os integrantes dos clubes.
A inauguração do estádio do Pacaembu, em São Paulo, e a transformação do futebol em evento de massa nos anos 40 redimensionaria os espetáculos futebolísticos e a importância dos torcedores.
Eles passaram a ser motivo de preocupação mais detida de parte dos poderes públicos, da imprensa e daqueles que organizavam os eventos, em virtude da intolerância e das rinhas que, diga-se de passagem, já existiam desde a época do amadorismo anterior aos anos 30. Os jornais não se cansavam de censurar as “desinteligências” frequentes promovidas pelo mau comportamento generalizado.
Faixas e cartazes
Foi nesse momento, então, que surgiram as primeiras organizações uniformizadas, indivíduos que acompanhavam as partidas em bloco, cantando, exibindo faixas e cartazes homenageando jogadores, cronistas esportivos e o próprio poder público.
Reciprocamente, a imprensa esportiva e os dirigentes dos clubes prestigiavam esses uniformizados por acreditarem que formavam um corpo elitizado (entenda-se “civilizado”) no meio da massa.
Essa situação foi alterada com o aparecimento das torcidas organizadas, já no final dos anos 60.
Tratava-se de agrupamentos com nítida inspiração popular que se autonomizaram em relação aos interesses mais imediatos dos dirigentes e estabeleceram outros padrões para o ato de torcer.
Os ciclos de violência intensificados nos anos 90 e a ingerência cada vez maior da TV e dos canais pagos repercutiram na necessidade imposta por uma nova conduta torcedora.
Foi nessa conjuntura de políticas de repressão às organizadas que se inventaram os sócios-torcedores -analogia opaca que alude a uma espécie de acionista minoritário do clube- e o torcedor de poltrona, que paga para ver seu time pelo sistema pay-per-view, serviço oferecido pelos canais fechados (elitistas, não?).
Portanto, formas físicas ou simbólicas de violência não constituem um corpo necessariamente estranho dentro desse universo. Dirigentes que motivam os seus publicamente, ainda que de modo figurado, na lógica da contenda tendem cada vez mais a levar o espetáculo sacrificial para dentro da casa de cada torcedor plugado na web.
Há que saber administrar as formas da belicosidade que, de resto, é constitutiva do futebol. Assim como as organizadas não reproduzem toda a extensão do torcer, elas também não contêm todas as variáveis que explicam a violência tomada como linguagem de todos.
Ambientadas e nutridas nas dinâmicas de poder, as organizadas reproduzem os sucessos e fracassos das organizações sociais que conformam o que visualizamos por sociedade.
Nenhum destes aspectos lhes faltam: burocracia, hierarquias, lógicas de distinção, comprometimentos políticos com projetos coletivos próprios ou negociados com outros atores, discurso da parlamentarização das relações e, obviamente, violência instrumental nutrida por masculinidades hegemônicas, homofóbicas, e intolerâncias já esparramadas por toda a sociedade.
Vingança inconclusa
O problema não são as organizações em si. No geral, o comportamento belicoso e intolerante se manifesta de modo mais desgarrado, individualizante e descompromissado com qualquer projeto coletivo, descentralizando práticas e comportamentos que fogem em muito ao controle das elites torcedoras.
Como uma espécie de vingança inconclusa, as mortes se sucedem há décadas em nome de honras difusas em torno da adesão aos clubes. Elas certamente estão relacionadas ao desmonte da dimensão lúdica do jogo e ao esgarçamento da sociabilidade em uma sociedade armada.
Embora as imagens dos últimos acontecimentos mostrem hordas de torcedores se digladiando, não há guerra ali, não há cadeia mecânica de mando e obediência.
Essa é justamente a linguagem desgastada do poder que tem no fantasma da desordem unida a sua face oculta, mas companheira de todas as horas. Das instâncias policiais e judiciais espera-se apuração e indiciamento daqueles indivíduos que estiveram diretamente envolvidos nos confrontos generalizados.
Mas o que esperar daqueles que administram o futebol: os dirigentes de clubes, os políticos e as elites torcedoras? O cerne da questão parece residir na baixa qualidade das relações políticas travadas entre esses agentes. Não bastam reuniões administrativas para resolver a conduta torcedora neste ou naquele jogo em específico. A despolitização de longo prazo que se impinge aos torcedores só faz minar os investimentos coletivos em nome de outras violências instrumentais parciais, inclusive legais.
O desinvestimento orquestrado que se faz na cultura do torcer -transformada em mera coadjuvante da maquinaria do consumo compulsivo- também não colabora para o processo de cidadania esportiva, sobretudo às portas dos megaeventos que se avizinham por aí.
LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO é antropólogo e professor na Universidade Federal de São Carlos (SP). É organizador de “Visão de Jogo – Antropologia das Práticas Esportivas” (Terceiro Nome).
Novo Estatuto irá responsabilizar organizadas
DA REDAÇÃO
Durante encontro com o ministro dos Esportes, Orlando Silva Jr., na quarta-feira, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo no Senado, concordou em agilizar a tramitação de um projeto de lei que altera o Estatuto do Torcedor.
O texto define penas de reclusão para torcedores que praticarem atos de violência e responsabiliza civilmente as torcidas organizadas pelos danos causados por seus membros. O projeto, de autoria do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), está em fase de análise por comissões do Senado, que pode ser abreviada mediante acordo das lideranças.
A discussão foi reforçada após confrontos, no último domingo, entre torcedores de São Paulo e Palmeiras, que resultaram em um morto e pelo menos 20 feridos.
Torcidas-empresas
Organizadas se converteram em lugares de negócios, valendo-se do marketing e do merchandising para competir com o material dos clubes
BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em caravana de apoio ao clube que contagiou o país no final dos anos 1970, o Corinthians Paulista, no seu drama de perseguição por um título depois de quase duas décadas de jejum, os Gaviões da Fiel distribuíam um folheto aos viajantes. O lembrete aos corintianos prescrevia: “Não corra, não mate e não morra”.
O prospecto foi na época guardado pelo sociólogo Sérgio Miceli e consta da abertura de um dos primeiros artigos acadêmicos sobre o fenômeno das torcidas organizadas no Brasil. Em 1978, o texto foi publicado pela “Revista de Administração de Empresas”, da Fundação Getúlio Vargas (RJ). Passadas mais de três décadas de sua publicação, o lembrete ainda ecoa como advertência, mas muito pouco de sua prudente recomendação parece ser hoje aplicável a determinados setores de torcidas organizadas.
Correr, matar e morrer tornaram-se verbos até certo ponto corriqueiros, atrativas palavras de ordem entre alguns adeptos dessas associações, como se pode observar nos incidentes fatais do último fim de semana, envolvendo torcedores de Palmeiras e São Paulo. As rodovias, as ferrovias ou quaisquer outros meios de acesso aos estádios são agora os locais privilegiados para o enfrentamento desses grupos.
Houve, de fato, uma mudança na dinâmica espacial dos confrontos entre torcidas organizadas. Se, até o final dos anos 80, as torcidas se confrontavam com mais frequência dentro dos estádios, a partir do decênio seguinte, a crescente vigilância em seu interior levou à sistematização das brigas para fora das arenas.
Desde então, a cada ano, o raio de ação da polícia nas imediações do estádio tem se alargado, criando uma espécie de segundo território de conflito. Este se afigura muito mais amplo e menos controlável em relação ao primeiro, o que coloca as forças da ordem diante de uma nova série de desafios a enfrentar.
Agonia
Conforme muitos estudiosos já assinalaram, a violência -bem como a busca por sua sublimação- é um componente agonístico liminar, constitutivo da sociedade e da atividade esportiva. Como tal, essa tensão, quer latente quer manifesta, está presente em um esporte popular como o futebol. No que diz respeito às torcidas organizadas, a especificidade de seus embates físicos é que ela assiste a ciclos violentos, verdadeiras “espirais” que fazem e desfazem vendetas ao sabor das gerações e das lideranças à frente dos grupos, com o efeito alarmante de difundir aquilo que na Europa se chamou de “pânico moral”.
A cada nova tragédia, a sociedade é instada a se mobilizar e a expiar os seus “bodes”. Quase sempre, a pedra de toque para a solução do problema recai na interdição das torcidas, por meio da simples extinção jurídica ou da proscrição dos “baderneiros”.
Como se isso fosse apenas uma questão de norma -e não, principalmente, de costume-, os decretos vêm redundando em sucessivos fracassos.
Por que a situação é tão difícil de ser solucionada? Em parte, porque a aparente barbárie que evoca o comportamento violento das torcidas constitui apenas sua franja superficial.
Quando se discute o problema, pouco se atenta para o fato de que as torcidas organizadas não estão apenas na contramão dos princípios desportivos ou nos antípodas do futebol mercantilizado moderno. De forma homóloga à lógica dos clubes-empresas, as agremiações de torcedores se tornaram elas próprias torcidas-empresas. Orbitam em torno dos clubes -razão de existirem-, mas são também autônomas, com sedes, símbolos, legendas, cânticos e logotipos que traduzem uma identidade à parte.
Seguindo o etos comercial, as torcidas organizadas converteram-se em lugares de negócios, passando a se valer do marketing, do merchandising e da oferta de uma série de produtos ligados a suas grifes. Elas competem, assim, com o material dos clubes e atendem à demanda de seu público consumidor, adolescentes e jovens seduzidos pelo pertencimento a uma coletividade.
A expansão em âmbito nacional das torcidas acarreta ainda o recrutamento de mais simpatizantes, o que leva ao seu alargamento simbólico-territorial, à semiprofissionalização de seus quadros e à formação de uma complexa rede de relações sociais.
Nos primórdios do futebol, dizia-se que a prática esportiva era uma atividade intrinsecamente amadora, razão pela qual o jogador não podia ganhar dinheiro com o jogo.
No Brasil, foi preciso esperar até os anos 1930 para que tal formulação fosse refeita, com a adoção do profissionalismo no futebol e com a transformação do jogador em atleta profissional, capaz de auferir astronômicos salários. Talvez hoje nós estejamos, em meio à globalização do futebol, onde tudo se comercializa e se rentabiliza, assistindo a um debate moral não muito distinto.
Se o torcedor representa a quintessência da paixão futebolística, último bastião de um idealizado “amadorismo”, até que ponto estaríamos dispostos a aceitar o fato de que o torcedor organizado pode fazer de sua atividade uma profissão legítima e legalizada?
BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA é pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (RJ).
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