30 de junho de 2016
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Existe uma expressiva produção historiográfica sobre os primeiros 250 anos de contato dos indígenas com os conquistadores europeus do atual território brasileiro. O escambo entre forasteiros e nativos, as várias tentativas de escravização dos índios, a catequese jesuíta, o protagonismo indígena em grandes episódios, como a Guerra dos Tamoios, são razoavelmente conhecidos. Mas, após a derrota dos Guarani das Missões Jesuíticas em meados do século XVIII, escasseiam os relatos. Eles só irão reaparecer no século XX, com a intensificação do processo de interiorização. O século XIX, em especial, parece desprovido de índios. Presente na poesia e na prosa da literatura romântica, o indígena é o grande ausente nas páginas da história.
Com a ajuda de frades capuchinhos italianos, o Império procurou enquadrar os índios geográfica e culturalmente, mas a resistência velada que estes opuseram redimensionou o empreendimento (imagem: Cacique Pahi Kaiowá, Aldeamento de Santo Inácio do Paranapanema. Franz Keller, 1865 / Carneiro, Newton: Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950)
No entanto, o século XIX foi palco da primeira política indigenista do Estado brasileiro. O fenômeno é o objeto do livro Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império, de Marta Amoroso, publicado com o apoio da FAPESP. A obra resultou das pesquisas de doutorado e pós-doutorado de Amoroso – ambas apoiadas pela FAPESP.
“Esta política de Estado, baseada no “Programa de Catequese e Civilização dos Índios”, e instituída por decreto do imperador Pedro II, consistia no aldeamento das populações indígenas. E atendia a dois objetivos principais: por um lado, integrar o índio, como trabalhador rural, à jovem nação brasileira; por outro, liberar terras, antes utilizadas pelos indígenas, para os imigrantes europeus, que começavam a chegar nas colônias do Sudeste do país”, disse a pesquisadora à Agência FAPESP.
Pedro II tinha apenas 19 anos quando assinou, em 24 de junho de 1845, o decreto que criou os aldeamentos. Estes perduraram até o final do Segundo Reinado, em 1889. Aldeamentos foram criados em todas as províncias brasileiras. Para administrá-los e dirigi-los, o Império solicitou à Propaganda Fide, do Vaticano, precursora da atual Congregação para a Evangelização dos Povos, que enviasse ao Brasil frades italianos da Ordem Menor dos Capuchinhos. Cerca de cem missionários capuchinhos desembarcaram no país, logo enviados aos quatro cantos do Império, ao encontro das populações indígenas.
“Os capuchinhos não tinham frente aos índios um projeto de autonomia como o dos jesuítas, que atuaram nos primeiros séculos da colonização. Eram pragmáticos e burocráticos, a maioria deles de origem rural, mal falando o português. E foram contratados como funcionários do governo, com salário pago. Estavam envolvidos no programa de criação da nação brasileira, de construir um povo a partir da mistura. Era um programa de apagamento da identidade indígena, e os capuchinhos se empenharam ao máximo em levá-lo à prática”, informou Amoroso.
A maior parte da documentação utilizada por ela em seu livro veio de um arquivo dessa ordem religiosa, localizado no Rio de Janeiro. “Os capuchinhos deixaram relatórios e cartas absolutamente circunstanciados, com detalhes administrativos ultraminuciosos. Além dos relatos dos viajantes do século XIX, foram esses documentos religiosos, e ao mesmo tempo oficiais, que forneceram a base de dados para o meu trabalho”, afirmou.
Inicialmente a pesquisadora fez um levantamento da cartografia dos aldeamentos do Império. Depois, fechou o foco da pesquisa no sistema de aldeamentos do Paraná, especialmente em seu núcleo central, São Pedro de Alcântara, localizado às margens do rio Tibagi, para o qual havia uma documentação muito substanciosa. “Esse aldeamento, próximo da cidade de Castro, reuniu cerca de 4 mil índios, de quatro etnias: os Kaingang, do tronco linguístico Macro-Jê, e os Kaiowá, Nhandeva e Mbyá, que são falantes da língua Guarani. Considerados agricultores dóceis, os Guarani-Kaiowá, que atualmente sofrem violências brutais devido a conflitos de terras, foram trazidos do Mato Grosso para o Paraná, com a perspectiva de que povoassem os aldeamentos do governo e pudessem produzir mantimentos para abastecer o exército brasileiro na chamada Guerra do Paraguai [1864 – 1870]”, relatou Amoroso.
Segundo a pesquisadora, foram feitas várias tentativas para tornar o aldeamento de São Pedro de Alcântara economicamente produtivo: mantimentos, café, tabaco etc. Mas todas elas fracassaram. Até que o empreendimento finalmente prosperou com a instalação de uma destilaria de aguardente. “Houve todo um esforço, muito bem documentado, dos capuchinhos na montagem dessa destilaria. É incrível que uma das maiores calamidades vividas pelas populações indígenas, que é o alcoolismo, tenha sido oficialmente promovida”, comentou.
Programa de Catequese
O “Programa de Catequese e Civilização dos Índios” inspirou-se em uma ideia de tutela das populações indígenas que remontava aos Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil, produzidos em 1823 por José Bonifácio de Andrada e Silva. E, antes deles, às diretrizes definidas pelo Marquês de Pombal após a expulsão dos jesuítas do Império Português, na segunda metade do século XVIII.
Como escreveu Amoroso, o modelo do indigenismo pombalino, retomado nos aldeamentos indígenas do Império, contrastava na sua concepção com o ideal de autonomia buscada pelas missões jesuíticas. Daí a ênfase na mistura dos índios com os demais habitantes das vilas e povoados, na migração dos colonos para as regiões tradicionalmente habitadas pelos indígenas, e nos deslocamentos forçados dos índios. Bem como nas tentativas de proibição do uso das línguas indígenas e do nheengatu, a chamada “língua geral”, resultante da mistura de idiomas indígenas com o português.
Até por isso, os aldeamentos do Império não eram áreas de confinamento. Os índios não permaneciam reclusos em seu interior. “Os aldeamentos eram concebidos como colônias agrícolas, em cujas sedes ficavam lotados os missionários e funcionários contratados e instaladas as unidades produtivas mais importantes. E essas sedes administravam aldeias indígenas localizadas relativamente perto. Apesar de os deslocamentos serem admitidos pela ideologia associada aos aldeamentos, na maioria dos casos, estes traslados forçados de população de fato não ocorreram. Os frades tutelavam aldeias que já existiam e continuaram existindo”, acrescentou a pesquisadora.
A própria ideia da tutela parece ter sido encarada como uma solução provisória. Em carta enviada pelo Palácio Imperial ao presidente da Província de São Paulo em 1847, dois anos após a assinatura do decreto que criou os aldeamentos, assim foi exposto o princípio que os orientava: “arrancar à vida errante a multidão de selvagens que vaga pelos nossos bosques para reuni-los em sociedade, inspirar-lhes o amor ao trabalho e proporcionar-lhes os cômodos da vida civil, até que possam apreciar as suas vantagens e viver de qualquer trabalho ou indústria”. Essa mesma correspondência ordenava ao presidente provincial que impedisse que o aldeamento acolhesse indígenas e descendentes já integrados à sociedade, “confundidos na massa geral da população”.
Um aspecto para o qual a pesquisadora chamou a atenção foi o fato de que, ao lado de cada aldeamento, o Império instalou também uma guarnição militar. “As Colônias Militares são a evidência de uma política de guerra nas fronteiras internas do Império, em contraponto à ‘brandura para com os índios’ da propaganda imperial”, disse.
O livro destaca as estratégias indígenas diante do “Programa de Catequese e Civilização dos Índios”, encenando uma resistência não declarada nos territórios então administrados pelo Governo. “Tomando como exemplo a participação Guarani em um desses aldeamentos, vislumbram-se conflitos interétnicos e a grande mobilidade de indivíduos e grupos familiares em torno dos equipamentos instalados. O abandono frequente de São Pedro de Alcântara pelos Guarani foi muitas vezes motivado pela impossibilidade de compartilharem o espaço do aldeamento com os funcionários e religiosos e com outros coletivos indígenas aldeados. Já os Kaingang, além de terem imposto sua presença nos aldeamentos originalmente concebidos para os Guarani-Kaiowá, permaneceram em algumas das unidades criadas mesmo depois de estas serem abandonadas pelos órgãos públicos”, descreveu Amoroso.
Moeda de troca
Mas, de maneira geral, o que a pesquisa destacou foi a grande mobilidade dos grupos indígenas que permaneceram em suas aldeias, frequentando eventualmente os aldeamentos.
“Isso era favorecido pelo fato de que, no século XIX, havia ainda uma grande área disponível para a circulação. Logo depois da Lei de Terras de 1850, as fazendas privadas estavam sendo implantadas, os colonos europeus estavam chegando, mas os índios ainda podiam circular por vastas extensões. E frequentavam a civilização apenas quando lhes convinha. Indivíduos que já haviam sido batizados em um aldeamento apresentam-se em outro como ‘selvagens’, em busca de ajuda. E usavam os equipamentos fornecidos pelos missionários como ‘moeda de troca’ nos relacionamentos com outros grupos indígenas. Os frades comentavam e se indispunham contra essa mobilidade, mas nada podiam fazer, porque, sem dizer ‘não’, fazendo-se muitas vezes de desentendidos, os índios opunham uma resistência velada, que acabou se impondo”, argumentou Amoroso.
Assim, a despeito do zelo gerencial dos capuchinhos, a política de aldeamento fracassou. As atividades produtivas não prosperaram, as verbas foram minguando, os equipamentos se degradaram, e as políticas indígenas triunfaram sobre a normatização burocrática. “Nem mesmo a orientação de que os índios deviam se comunicar apenas na língua portuguesa deu certo”, acrescentou a pesquisadora.
Algo importante que a pesquisa buscou destacar foi o “outro lado” dessa história, isto é, como os grupos indígenas vivenciaram o processo. “O trabalho com a documentação, na tentativa de compor uma etnografia, me permitiu perceber que houve todo tipo de arranjo: grupos inteiros foram exterminados, como os Guarani-Kaiowá de São Pedro de Alcântara, que morreram devido a uma epidemia de cólera na década de 1860; grupos permaneceram, como os Kaingang, que até hoje habitam a região; grupos transitaram pelos aldeamentos, sendo registrada ao longo das quatro décadas grande mobilidade dos Nhandeva e os Mbyá”, informou.
Muitos aldeamentos do Império são agora terras indígenas. É o caso do Aldeamento São Jerônimo, atualmente Posto Indígena São Jerônimo da Serra, na margem do rio Tigre, afluente do Tibagi, no Paraná. Criado em 1859, a partir da doação da Fazenda de São Jerônimo pelo Barão de Antonina, teve sua área original, de 33.880 hectares, drasticamente reduzida para pouco mais de 1.339 hectares. Mas sua modesta população vem apresentando consistente crescimento demográfico: 133 pessoas, em 1945; 285, em 1975; 380, em 2005, de acordo com informações do Portal Kaingang.
Também a população Guarani do Estado de São Paulo, computada, em 2013, em 3.593 indígenas das etnias Nhandeva e Mbyá, vem crescendo a uma taxa de 4,5% ao ano, muito superior à da média da população brasileira (de 0,9%, em 2013, e de 0,8%, em 2016) (fonte: www.rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2015/05/vol5no1_03.Juracilda.pdf).
Essa tendência de recuperação demográfica de populações altamente devastadas é um fenômeno conhecido e registrado hoje em dia na África. No território brasileiro, cuja população indígena foi reduzida de estimados 5 milhões em 1500 para 400 mil atualmente (distribuídos em cerca de 200 etnias e 170 línguas), isso também está ocorrendo.
“Ainda mais persistente do que a sobrevivência física tem sido a sobrevivência das práticas culturais. O fio da meada que parece desaparecer em um ponto volta a aparecer adiante, muitas vezes de forma surpreendente. Descobri, por exemplo, que o núcleo Guarani que, em 1906, acolheu em São Paulo o célebre etnólogo alemão Curt Unckel (1883 – 1945) provinha exatamente daquele aldeamento estudado, no Paraná. Foram eles que lhe deram o nome Nimuendajú, pelo qual o alemão trocou seu sobrenome Unckel ao se naturalizar brasileiro. Em seu trabalho de campo, Curt Nimuendajú entrevistou grandes xamãs Guarani, que passaram pela experiência dos aldeamentos. Estes lhe falaram do trabalho extenuante que tinham que realizar sob a direção dos capuchinhos. E também relataram seus primeiros contatos com as drogas da civilização: o açúcar e a cachaça.”
Curt Nimuendajú tornou-se um marco da etnologia, quase tão lendário em vida quanto o foi o etnólogo groenlandês Knud Rasmussen (1879 – 1933). É revelador que a busca de uma perspectiva indígena sobre a política de aldeamento tenha convergido para a trajetória do etnólogo. E que uma abordagem antropológica da tentativa de enquadramento institucional dos indígenas tenha vindo desembocar na figura daquele que testemunhou com os próprios olhos, na década de 1920, a mais impressionante manifestação da fidelidade do povo Guarani a suas raízes culturais: a última grande migração para o Leste, em busca da mítica “Terra sem Males” (Yvy marã e’ỹ).
Tuesday 31 May 2016 06.59 BST
What does it look like when an ideology dies? As with most things, fiction can be the best guide. In Red Plenty, his magnificent novel-cum-history of the Soviet Union, Francis Spufford charts how the communist dream of building a better, fairer society fell apart.
Even while they censored their citizens’ very thoughts, the communists dreamed big. Spufford’s hero is Leonid Kantorovich, the only Soviet ever to win a Nobel prize for economics. Rattling along on the Moscow metro, he fantasises about what plenty will bring to his impoverished fellow commuters: “The women’s clothes all turning to quilted silk, the military uniforms melting into tailored grey and silver: and faces, faces the length of the car, relaxing, losing the worry lines and the hungry looks and all the assorted toothmarks of necessity.”
But reality makes swift work of such sandcastles. The numbers are increasingly disobedient. The beautiful plans can only be realised through cheating, and the draughtsmen know it better than any dissidents. This is one of Spufford’s crucial insights: that long before any public protests, the insiders led the way in murmuring their disquiet. Whisper by whisper, memo by memo, the regime is steadily undermined from within. Its final toppling lies decades beyond the novel’s close, yet can already be spotted.
When Red Plenty was published in 2010, it was clear the ideology underpinning contemporary capitalism was failing, but not that it was dying. Yet a similar process as that described in the novel appears to be happening now, in our crisis-hit capitalism. And it is the very technocrats in charge of the system who are slowly, reluctantly admitting that it is bust.
You hear it when the Bank of England’s Mark Carney sounds the alarm about “a low-growth, low-inflation, low-interest-rate equilibrium”. Or when the Bank of International Settlements, the central bank’s central bank, warns that “the global economy seems unable to return to sustainable and balanced growth”. And you saw it most clearly last Thursday from the IMF.
What makes the fund’s intervention so remarkable is not what is being said – but who is saying it and just how bluntly. In the IMF’s flagship publication, three of its top economists have written an essay titled “Neoliberalism: Oversold?”.
The very headline delivers a jolt. For so long mainstream economists and policymakers have denied the very existence of such a thing as neoliberalism, dismissing it as an insult invented by gap-toothed malcontents who understand neither economics nor capitalism. Now here comes the IMF, describing how a “neoliberal agenda” has spread across the globe in the past 30 years. What they mean is that more and more states have remade their social and political institutions into pale copies of the market. Two British examples, suggests Will Davies – author of the Limits of Neoliberalism – would be the NHS and universities “where classrooms are being transformed into supermarkets”. In this way, the public sector is replaced by private companies, and democracy is supplanted by mere competition.
The results, the IMF researchers concede, have been terrible. Neoliberalism hasn’t delivered economic growth – it has only made a few people a lot better off. It causes epic crashes that leave behind human wreckage and cost billions to clean up, a finding with which most residents of food bank Britain would agree. And while George Osborne might justify austerity as “fixing the roof while the sun is shining”, the fund team defines it as “curbing the size of the state … another aspect of the neoliberal agenda”. And, they say, its costs “could be large – much larger than the benefit”.
IMF managing director Christine Lagarde with George Osborne. ‘Since 2008, a big gap has opened up between what the IMF thinks and what it does.’ Photograph: Kimimasa Mayama/EPA
Two things need to be borne in mind here. First, this study comes from the IMF’s research division – not from those staffers who fly into bankrupt countries, haggle over loan terms with cash-strapped governments and administer the fiscal waterboarding. Since 2008, a big gap has opened up between what the IMF thinks and what it does. Second, while the researchers go much further than fund watchers might have believed, they leave in some all-important get-out clauses. The authors even defend privatisation as leading to “more efficient provision of services” and less government spending – to which the only response must be to offer them a train ride across to Hinkley Point C.
Even so, this is a remarkable breach of the neoliberal consensus by the IMF. Inequality and the uselessness of much modern finance: such topics have become regular chew toys for economists and politicians, who prefer to treat them as aberrations from the norm. At last a major institution is going after not only the symptoms but the cause – and it is naming that cause as political. No wonder the study’s lead author says that this research wouldn’t even have been published by the fund five years ago.
From the 1980s the policymaking elite has waved away the notion that they were acting ideologically – merely doing “what works”. But you can only get away with that claim if what you’re doing is actually working. Since the crash, central bankers, politicians and TV correspondents have tried to reassure the public that this wheeze or those billions would do the trick and put the economy right again. They have riffled through every page in the textbook and beyond – bank bailouts, spending cuts, wage freezes, pumping billions into financial markets – and still growth remains anaemic.
And the longer the slump goes on, the more the public tumbles to the fact that not only has growth been feebler, but ordinary workers have enjoyed much less of its benefits. Last year the rich countries’ thinktank, the OECD, made a remarkable concession. It acknowledged that the share of UK economic growth enjoyed by workers is now at its lowest since the second world war. Even more remarkably, it said the same or worse applied to workers across the capitalist west.
Red Plenty ends with Nikita Khrushchev pacing outside his dacha, to where he has been forcibly retired. “Paradise,” he exclaims, “is a place where people want to end up, not a place they run from. What kind of socialism is that? What kind of shit is that, when you have to keep people in chains? What kind of social order? What kind of paradise?”
Economists don’t talk like novelists, more’s the pity, but what you’re witnessing amid all the graphs and technical language is the start of the long death of an ideology.