Arquivo da tag: Psicanálise

Antídoto onírico (451)

quatrocincoum.com.br

Divulgação Científica | Os Melhores Livros de 2022

Livro sobre sonhos Yanomami mostra que a escuta das vozes dos povos originários é um ensinamento político

Christian Dunker
01dez2022 05h51 (01dez2022 12h11)


O desejo dos outros se insere no debate brasileiro contemporâneo sobre psicanálise e antropologia para além de sua contribuição rigorosa para a descolonização do pensamento. A escuta das vozes dos povos originários não é apenas um benfazejo exercício para tratar nosso etnocentrismo, mas um ensinamento político para todos que se perguntam: onde está a porta pela qual posso sair da bolha? Ou: onde está a catraca reversa que me colocará no antropoceno real e não no metaverso do Brasil paralelo? Hanna Limulja responde que a saída começa pelo sonho. O sonho tem um sentido, diria Artemidoro de Daldis. Este sentido é dado pelo sonhador e referido ao seu desejo, diria Freud. O “eu” do sonhador é um Outro, diria Rimbaud. Desejo de se tornar outro, diria Madame Bovary. Desejo do outro, diria Hegel. Desejo de desejo do desejo do Outro, diria Lacan. Outro desejo, nos dizem os Yanomami.

O desejo dos outros, de Hanna Limulja, se insere no debate brasileiro contemporâneo sobre psicanálise e antropologia para além de sua contribuição rigorosa para a descolonização do pensamento

Sonhar, para eles, é “antes de tudo viajar longe” e “escapar do familiar”. É estar no limite no lugar dos mortos, representados pela noite, e também dos vivos que habitam outros lugares, representados pelo dia. Entre os dois mundos há a experiência da penumbra, da transição, da passagem. Lá está o reino das imagens. Assim como nossos artistas criam linguagens para um mundo que não está ainda presente, os sonhos Yanomami criam mundos para linguagens que ainda não existem. Tais linguagens são o que se pode chamar de perspectiva, ou seja, o ponto de vista que corresponde a este mundo. A grande torção não consiste apenas em perguntar que mundo quero para meu desejo, mas que desejo é preciso inventar para o mundo que vejo em meus sonhos.

O sonho é um intermediário epistêmico entre o que sei porque testemunhei e o que sei porque ouvi falar sobre. É uma negação dos dois modos de funcionamento pois é uma experiência profundamente minha, ocorrida na solidão da noite; mas, ali onde vivi aquilo, não era só este eu que me habitava. Inversamente, o sonho só se torna sonho verdadeiro quando contado, quando passa a ser um saber dos outros. As tragédias, os genocídios (como o de Haximu, em 1993), as mortes irreparáveis (como a de Chico Mendes), a invasão de mineradores são enfrentadas com o sonho. As decisões amorosas, os casamentos, as guerras e os adoecimentos também. O sonho é um método de conhecimento, não apenas a expressão de uma individualidade. Como tal, envolve uma epistemologia política da maior importância, não só como retrato pitoresco ou folclórico que afinal seria a “expressão” de um primitivismo alegórico e harmonioso, mas como forma de vida que pode efetivamente nos ajudar a enfrentar a crise bio-necropolítica de nossos tempos.

O antítodo oniropolítico começa pela ideia de tornar os mortos agentes políticos — aliás, como sempre foram —, mas aqui em um sentido algo diferente. Primeiro porque envolve uma outra concepção de tempo e em particular do futuro. Não se trata de ver no sonho uma prescrição, um destino ou uma escritura, mas uma experiência de conhecimento testemunhal, que orienta a ação coletiva das pessoas. Segundo porque, em contraste dos brancos que reservam os sonhos ao cuidado restrito e sigiloso dos psicanalistas, os Yanomami entendem que um sonho só se completa quando é contado, partilhado socialmente, às vezes contado de viva voz no meio da aldeia. Ao colocar o sonho “na roda” e ao relacioná-lo com problemas concretos da comunidade, cria-se uma espécie de jogo em que a mesma situação se apresenta em outras perspectivas, sugerindo assim novas soluções. Terceiro, novas soluções de nada adiantam se continuamos a ser as velhas pessoas. Neste sentido, a decomposição da pessoa Yanomami envolve versões de si que fariam inveja à qualquer teoria contemporânea do self: “o rosto que expressa pelo olhar” (pei pihi), o “espectro de si mesmo como morto” (né porepé), “a imagem interna de uma unidade corporal: sombra, reflexo, eco” (pei utupé), o “alter ego animal” (rixi).

Saber-fazer

Se todos sonham, nem todos têm o mesmo saber-fazer com os sonhos. Ainda que os xamãs sejam particularmente vocados nessa matéria, alguns ficarão fracos de tanto sonhar, outros serão assombrados pelos mortos, outros ainda nem se lembrarão dos sonhos. Para usar os sonhos de modo oniropolítico é preciso criar e cultivar seus próprios xapiri-pë, versões intermediárias de si, espíritos protetores ou vozes ajudantes que “trançam os fios da rede até o ponto delas se tornarem antenas para o céu”. Inversamente, durante os sonhos, eles nos protegem na convivência com os mortos, impedindo que “venham para cá” ou que, movidos por saudades, nós queiramos “ir para lá”. Eles são a voz que diz: “Voltaremos para vocês, é claro! Mas sem pressa! Retornem ao lugar de onde vieram!”.

O sonho não é um presságio, mas uma espécie de enigma sobre o qual se deve agir

Em uma cultura que partilha seus sonhos, a interpretação funciona de outra maneira. Menos do que um produto inesperado de si mesmo, as visões oníricas são parte de um mundo possível e real, eventualmente já acontecido ou em vias de acontecer. Por exemplo, sonhar com um sobrinho enfeitado com penas pode indicar que seu adoecimento é mais sério do que se pensava e ele pode morrer, porque é nesta condição que os corpos podem ser enfeitados. Porém o sonho não é um presságio, mas uma espécie de enigma sobre o qual se deve agir: procurar um xamã, mudar o caminho da cura ou realizar um rito protetivo.

Isso sugere uma homologia com a política que a psicanálise tem com o sonho: ele também é uma realização de desejo, mas, em vez de perguntar qual desejo foi suprimido neste mundo, os Yanomami perguntam: para este mundo, oniricamente revelado, qual é o desejo que lhe corresponde? Se na psicanálise perguntamos pela relação que as pessoas mantêm com seu desejo, o xamanismo Yanomami pergunta pela pessoa que você precisa ser se o mundo assim se apresentar. Se na psicanálise lemos os sonhos para entender qual passado sexual infantil e recalcado corresponde ao futuro realizado pelas imagens oníricas, no transe xapiri o espírito do xamã fala do passado mítico tendo em vista um futuro indeterminado. Por isso o modelo proposto por Limulja para pensar os sonhos dos Yanomami como uma fita de Moebius — ou seja, o sonho como ponto de torção entre vivos e mortos, dia e noite, sonho individual e mito coletivo — é também a chave para pensar transformações políticas e clínicas: “O próprio xamã vai elaborando seu repertório mítico e ampliando suas experiências oníricas. Seus sonhos transformam o mundo, mas isso só é possível porque ele mesmo é transformado por esta experiência”. Isso vale para as pequenas decisões do cotidiano, para as escolhas inerentes à arte da caça, para os cuidados com a segurança, mas sobretudo para os sonhos que permeiam o trabalho de luto e cercam a experiência da morte.

Uma mulher que perdera a filha e acabara de incinerar os ossos dela se alegra ao reencontrar a filha morta, que não entende o que está acontecendo e pergunta: “Mãe, por que seu rosto está pintado de preto?” Mas a mãe tenta a todo custo despistar a morta. Então ela olha para o cesto que contém seus ossos incinerados e pergunta: “Mãe, o que há dentro do cesto?”. E a mãe dissimula, mas os papagaios respondem: “Esses são seus ossos queimados”. Neste momento os Inhambu [pássaros associados com a morte e o entardecer] cantam e levantam voo.

O sonho se insere na vida como uma forma atenuada de morte. Numa sociedade na qual jamais se pronuncia o nome do morto e todo rastro de vida é apagado depois da festa fúnebre, a presença da morte não faz monumento, história ou escrita. A decisão que interpreta o sonho como uma imagem mítica do passado ou como um mundo possível no futuro é sobretudo um ato político. Vindo a morte sempre a partir de fora, seja este fora o inimigo terreno ou as voluptuosas almas dos mortos, os vivos têm menos domínios de sua vida do que gostariam. Aqui, mais do que nunca, confirmamos o dito de Lévi-Strauss para quem o psicanalista é um xamã moderno:

Se por um lado o sonho é sempre desencadeado pela vontade de um outro, e o sonhador aparece como uma “presa”, uma vítima, alguém à mercê do sentimento que lhe é alheio, por outro, o sonhador não está de forma alguma inteiramente subjugado ao sentimentos deste outro. Os vivos resistem aos apelos destes outros, e é porque resistem que eles podem continuar existindo Yanomami. 

El maldito (Brecha, UY)

Virginia Martínez

Montevideo 10 Marzo, 2017

Cultura, Destacados
Edición 1633 http://brecha.com.uy/el-maldito/; Acesado 13 Marzo 2017

Hijo intelectual y dilecto de Freud, luego disidente expulsado del círculo íntimo del maestro, Wilhelm Reich fue, para muchos, un psicoanalista maldito. Pionero de las terapias corporales, revolucionó la sexología con la teoría sobre la función del orgasmo. Desprestigiado y prohibido, murió en una cárcel de Estados Unidos a donde había llegado huyendo del nazismo para continuar sus investigaciones sobre la energía vital, que él llamaba orgón.

18-Reich-y-Neill-foto-captura-googleWilhelm Reich y Alexander S Neill / Foto: captura Google

Wilhelm Reich nació en una familia judía y acomodada que vivía en una zona rural de la actual Ucrania, por entonces parte del imperio austrohúngaro. El padre le puso el nombre en homenaje al emperador de Alemania, pero la madre prefería llamarlo Willi, quizá para protegerlo de la cólera de ese hombre celoso y autoritario que tenía por marido. Próspero criador de ovejas, León Reich trataba mal a todo el mundo, fuera familia, empleados o vecinos. El niño creció aguantando en silencio las penitencias y las bofetadas del padre. Solitario por obligación, aprendió en casa y de los padres las primeras letras hasta que León contrató a un preceptor.

Una tarde el pequeño Willi descubrió que el preceptor era también el amante de su madre. Aunque lo devoraban los celos, se cuidó de no contarle nada al señor Reich. Después de todo, la madre era el único refugio en el mundo sombrío y hostil de la casa familiar. Hasta que para vengarse de ella por una tontería, la traicionó denunciando la infidelidad. Sobrevino la catástrofe. Reproches, golpes y gritos. La mujer intentó suicidarse con veneno pero el marido la salvó sólo para seguir atormentándola. Willi terminó pupilo en una pensión de familia, y tuvieron que internarlo para tratarlo por una soriasis severa. Determinada a poner fin a una vida de reclusión y violencia, la madre logró irse para siempre en el tercer intento. Durante mucho tiempo el sentimiento de culpa atormentará al muchacho de 14 años que tres años más tarde perderá también al padre.

Socorro obrero. Luego de la Primera Guerra Mundial Reich empezó a estudiar medicina, se interesó en el psicoanálisis y se convirtió en uno de los discípulos más apreciados de Freud, quien le derivó a sus primeros pacientes. Unos años después el maestro ya se refería a él como “la mejor cabeza” de la Asociación Psicoanalítica de Viena. En 1921 llegó a la consulta una hermosa muchacha, con quien se casó al terminar el tratamiento (“Un hombre joven, de menos de 30 años, no debería tratar pacientes del sexo opuesto”, escribió en su diario). Por esa época profundizó el estudio de la sexualidad (“he llegado a la conclusión de que la sexualidad es el centro en torno al que gravita toda la vida social, tanto como la vida interior del individuo”) y siguió devoto a su mentor.

En ocasión de la fiesta de los 70 años de Freud le ofreció como regalo La función del orgasmo. Mucho más tarde de lo que esperaba recibió una respuesta lacónica del maestro. Fue el primer signo de que las cosas con él no iban bien. Diferencias teóricas (la teoría de Reich sobre el origen sexual de la neurosis) y políticas (su acercamiento a la cuestión social y al marxismo) hicieron el resto.

El 15 de julio de 1927 Reich y Annie, su mujer, presenciaron la represión de una manifestación de trabajadores que dejó cien muertos y más de mil heridos. La conciencia social de Reich había comenzado a forjarse como médico en el hospital público, pero la brutalidad de la actuación policial lo decidió a tomar partido. Se afilió al Socorro Obrero, organización del Partido Comunista austríaco, y comenzó a trabajar la idea de que marxismo y psicoanálisis eran complementarios (“Marx es a la ciencia económica lo que Freud a la psiquiatría”). Empezó a hablar en actos callejeros, repartía volantes, enfrentaba a la policía. Hizo amistad con un tornero, un muchacho más joven que él llamado Zadniker, de quien aprenderá tanto o más que en la universidad. Con Zadniker se asomó a la miseria sexual y las relaciones amorosas en la clase obrera, y conoció el efecto devastador de la desocupación en las relaciones familiares. Compró un camión y lo equipó como una policlínica ambulante, y dedicó los fines de semana a recorrer los barrios pobres de la ciudad junto a un pediatra y un ginecólogo: atendían niños, mujeres, jóvenes y daban clases de educación sexual.

Nada podía ser más ajeno a Freud que la militancia política de Reich. Le advirtió que estaba metiéndose en un avispero y que la función del psicoanalista no era cambiar el mundo. Pero él ya estaba lejos del maestro, viviendo en Berlín, preparándose para publicar el ensayo “Materialismo dialéctico y psicoanálisis” y viajar a la Urss.

Sexualidad proletaria. Aunque en Moscú no encontró un ambiente favorable a las teorías psicoanalíticas, regresó convencido de que la explotación capitalista y la represión sexual eran complementarias. En 1931 fundó la Asociación para una Política Sexual Proletaria. La “Sexpol”, como se la conoció, llegó a reunir a 40 mil miembros en torno a un programa que casi un siglo después mantiene vigencia: legalización del aborto, abolición del adulterio, de la prostitución, de la distinción entre casados y concubinos, pedagogía y libertad sexual, protección de los menores y educación para la vida. Para editar y difundir materiales de educación creó su propia editorial. Cuando tu hijo te pregunta y La lucha sexual de los jóvenes fueron dos de los folletos más exitosos en los que explicaba en lenguaje llano y sin prejuicios los tabúes de la vida sexual: orgasmo, aborto, masturbación, eyaculación precoz, homosexualidad.

El primer día de enero de 1932, a renglón seguido de un comentario sobre el agravamiento de la gastritis que padecía, Freud anotó en su diario: “Medidas contra Reich”. Entendía que su afiliación al partido bolchevique le restaba independencia científica y lo colocaba en una situación equivalente a la de un miembro de la Compañía de Jesús.

Dos días después del incendio del Reichstag, el diario oficial del Partido Nacional Socialista publicó una crítica contra La lucha sexual de los jóvenes. La prédica libertaria también le valió la reprobación de su partido, pues los comunistas temían que el interés por las cuestiones del sexo debilitara el compromiso político de sus militantes. Primero retiraron sus publicaciones y luego lo expulsaron del partido. Poco después la Gestapo lo fue a buscar a su casa.

Psicología de masas del fascismo. La primera escala del exilio que terminaría en Estados Unidos lo llevó a Copenhague, luego a Malmö, en Suecia, y más tarde a Oslo. Publicó La psicología de masas del fascismo, una obra que le dio celebridad, en la que analizaba la relación entre la familia autoritaria, la represión sexual y el nacionalsocialismo. La comunidad psicoanalítica lo excluyó, y empezó a circular el rumor de que estaba loco. A propósito escribió: “Los dictadores directamente expulsan o matan. Los dictadores democráticos asesinan furtivamente con menos coraje y sin asumir la responsabilidad de sus actos”.

En ese período se dedicó a estudiar la naturaleza bioeléctrica de la angustia y del placer. Volvió al laboratorio y al microscopio. A fines de mayo de 1935 escribió en una entrada de su diario: “Éxito total de la experimentación. La naturaleza eléctrica de la sexualidad está probada”. A principios del año siguiente fundó el Instituto Internacional de Economía Sexual para las Investigaciones sobre la Vida, donde reunió a un equipo multidisciplinario de médicos, psicólogos, pedagogos, artistas, sociólogos y laboratoristas. Ese año también conoció al pedagogo inglés Alexander S Neill, fundador de la escuela de Summerhill, con quien forjó una larga amistad personal e intelectual. Reich se interesaba en su pedagogía y él en los estudios sobre la psicología de masas del fascismo. En esa época publicó el artículo “¿Qué es el caos sexual?”, que los estudiantes de Nanterre retomarán como programa político en mayo de 1968, divulgándolo en volantes.

Las investigaciones y el proselitismo en materia de libertad sexual complicaron su situación en Oslo. En 1938, a través del psiquiatra estadounidense Theodor P Wolfe, consiguió un contrato como profesor en la Nueva Escuela de Investigación Social, de la Universidad de Nueva York, que recibía universitarios europeos perseguidos. En agosto del año siguiente desembarcó en la ciudad donde ya vivían su ex mujer y las dos hijas.

19-Wilhelm-Reich-museum-foto-captura-googleMuseo Wilhelm Reich / Foto: captura Google

Acumuladores de orgón. Abandonó el psicoanálisis y se concentró en investigar la relación de la psiquis con el sistema nervioso y el cuerpo. Empezó a trabajar los conceptos de “coraza muscular” (agarrotamiento, tensión) que se correspondían con los de “coraza caracterial” (producto de la represión de los sentimientos). Introdujo prácticas de terapia corporal en la consulta (masajes, abrazos, respiración, estiramiento) para ayudar al paciente a liberarse. Decía que el cuerpo necesitaba contraerse y expandirse en movimientos equivalentes a los de una medusa, y que las corazas y bloqueos impedían el movimiento, originando enfermedades.

Postuló la existencia de una energía vital, el orgón, que determinaba el funcionamiento del cuerpo humano y también estaba presente en la atmósfera. Creó dos instrumentos: el orgonoscopio, dispositivo para medir la energía, y el acumulador de orgón, especie de caja de madera revestida interiormente por capas de metal y material orgánico para atraer y concentrar el orgón. Primero fueron pequeños acumuladores donde colocó ratones con cáncer. En 1940 creó el primer acumulador de tamaño humano, una caja con aspecto de armario en la que uno podía sentarse. Sostenía que en una sesión dentro del acumulador el paciente absorbía orgón del aire que respiraba dentro de él y que esto tenía un efecto beneficioso para el sistema nervioso, los tejidos y la sangre.

Sin apoyo de la comunidad científica, sus investigaciones empezaron a ser tildadas de delirios y él de charlatán. Buscó el respaldo de Einstein, a quien le presentó su trabajo y le ofreció un acumulador, que instaló en su casa. El científico desechó el resultado de sus experiencias y la relación terminó en disputa. Mientras tanto había comenzado a tratar de forma experimental a enfermos de cáncer con la convicción de que el acumulador podía mejorar su capacidad para combatir la enfermedad. Otros enfermos se sumaron voluntariamente al tratamiento. Reich constató notables mejoras en el estado general y un descenso en los dolores de los pacientes. En 1946 compró un terreno al borde del lago Mooselookmeguntic, un edén al norte del país, en el estado de Maine, en la frontera con Canadá. Un sitio de bosques y montañas donde el contacto con la naturaleza era intenso. Allí instaló su vivienda y el laboratorio, un conjunto de edificaciones que pronto los vecinos llamaron “La casa de Frankenstein”. En 1945 se casó con una colaboradora, Ilse Ollendorf, con quien vivía desde tiempo atrás. Un año antes había nacido su hijo Peter, y un año después obtuvo la ciudadanía estadounidense.

En la mira del FBI. Inventando amigos comunes y con el pretexto de que tenía un mensaje para darle, la periodista Mildred Edie Brady logró franquear los filtros que Ilse ponía para salvaguardar a Reich. La recibió, recorrieron juntos el laboratorio y le mostró sus acumuladores de orgón. En abril de 1947 Brady publicó un artículo en Harper’s Magazine titulado “El nuevo culto del sexo y la anarquía”, por el que se haría famosa. Un mes después retomó el tema en The New Republic con “El extraño caso de Wilhelm Reich”. Brady afirmó que la ciencia desaprobaba sus actividades y conclusiones, que tenía más pacientes de los que podía atender y una influencia “mística” y perjudicial en los jóvenes. Fue el inicio de una campaña de desprestigio a la que se sumaron otras publicaciones. La prensa convirtió a los acumuladores en “cajas de sexo” y a la terapia corporal en sesiones de masturbación a los pacientes. En agosto recibió la primera inspección de la Administración de Alimentos y Medicamentos (Fda).

En los años siguientes Reich continuó publicando (Escucha, pequeño hombrecito, 1948, El análisis del carácter, 1949) e investigando, en particular los efectos de las radiaciones nucleares y las posibilidades de neutralizarlas. Para ello colocó una muestra mínima de radio en un acumulador, pero el efecto provocado fue el contrario del que buscaba. El acumulador amplificó la radiactividad, con consecuencias negativas para él y sus colaboradores. Su hija Eva, médica e investigadora, sufrió una bradicardia severa. El resto del equipo volvió a mostrar los síntomas de enfermedades que habían padecido antes. Todos, incluido Reich, presentaron alteraciones emocionales. Poco después, Ilse decidió dejar la casa con el pequeño Peter.

Para limpiar el lugar de la energía tóxica, que llamó Dor (por deathorgone), creó el “Rompe nubes”, una máquina de seis tubos en línea apuntados al cielo. A partir de ella hizo, con éxito, experimentos para provocar lluvia en la región donde vivía, afectada por una larga sequía. Inagotable, pensó en probarla en el desierto y en adaptarla, reduciendo el tamaño, para extraer el Dor de un cuerpo humano enfermo.

Paranoico con delirios de grandeza. A pedido de la Fda, la justicia del Estado de Maine inició una acción contra Reich y su fundación. Le prohibieron trasladar acumuladores a otros estados y calificaron las investigaciones de expedientes publicitarios. Lo acusaron de charlatán y de obtener beneficio económico de la credulidad de los enfermos. El 19 de marzo de 1955 un juez ordenó retirar de circulación y destruir los acumuladores, quemar las publicaciones que hicieran referencia al orgón y, aunque sin relación con lo anterior, también prohibió las ediciones de La psicología de masas del fascismo y El análisis del carácter.

En octubre Reich viajó a Tucson, en Arizona, para, como informó a la justicia, estudiar la energía de orgon en la atmósfera en zonas desérticas. Luego de semanas de intenso trabajo en el desierto lograron hacer llover. Se proponía repetir el experimento en California, cuando el 1 de mayo de 1956 lo detuvieron.

El psiquiatra que lo examinó en la prisión dictaminó que no podía ser objeto de juicio pues se trataba de un enfermo mental: “Manifiesta paranoia con delirio de grandeza y de persecución e ideas de influencia”. La justicia, sin embargo, entendió que estaba en condiciones de ser juzgado. Lo condenaron a dos años de prisión y a pagar una multa de 10 mil dólares.

Dicen los testimonios que fue un preso ejemplar, que se adaptó bien a la disciplina de Lewisburg y que el único privilegio que reclamaba era bañarse con frecuencia para aliviar la soriasis que no lo abandonaba desde los tristes días de la infancia.

El 3 de noviembre de 1957 lo encontraron muerto en su celda. Dos días después iba a asistir a la audiencia donde el juez debía decidir sobre su pedido de libertad condicional. Reich dormía vestido, sin zapatos, sobre la cama tendida. Lo velaron en el observatorio de Orgonon, en Rangley, donde hoy está el museo que lleva su nombre.


Freud sí, Reich no

“Acá todos estamos dispuestos a asumir riesgos por el psicoanálisis, pero no ciertamente por las ideas de Reich, que nadie suscribe. Con relación a eso, he aquí lo que piensa mi padre: si el psicoanálisis debe ser prohibido, que lo sea por lo que es no por la mescolanza de política y psicoanálisis que hace Reich. Por otro lado, mi padre no se opondría a sacárselo de encima como miembro de la asociación.”

Carta de Anna Freud a Ernest Jones, presidente de la Asociación Internacional de Psicoanálisis y biógrafo de Freud. 27 de abril de 1933.

Deseo sexual versus autoritarismo

“La familia autoritaria no está fundada sólo en la dependencia económica de la mujer y los hijos con respecto al padre y marido, respectivamente. Para que unos seres en tal grado de servidumbre sufran esta dependencia es preciso no olvidar nada a fin de reprimir en ellos la conciencia de seres sexuales. De este modo, la mujer no debe aparecer como un ser sexual, sino solamente como un ser generador. La idealización de la maternidad, su culto exaltado, que configura las antípodas del tratamiento grosero que se inflige a las madres de las clases trabajadoras, está destinada, en lo esencial, a asfixiar en la mujer la conciencia sexual, a someterla a la represión sexual artificial, a mantenerla a sabiendas en un estado de angustia y culpabilidad sexual. Reconocer oficial y públicamente a la mujer su derecho a la sexualidad conduciría al hundimiento de todo el edificio de la ideología autoritaria.”

De La psicología de masas del fascismo.

¿Qué es el caos sexual?

Es apelar en el lecho conyugal a los deberes conyugales.

Es comprometerse en una relación sexual de por vida sin antes haber conocido sexualmente a la pareja.

Es acostarse con una muchacha obrera porque “ella no merece más”, y al mismo tiempo no exigirle “una cosa así” a una chica “respetable”.

Es hacer culminar el poderío viril en la desfloración.

Es castigar a los jóvenes por el delito de autosatisfacción y hacerles creer que la eyaculación les debilita la médula espinal.

Es tolerar la industria pornográfica.

Es soñar a los 14 años con la imagen de una mujer desnuda y a los 20 entrar en las listas de los que pregonan la pureza y el honor de la mujer.

¿Qué no es el caos sexual?

Es liberar a los niños y a los adolescentes del sentimiento de culpa sexual y permitirles vivir acorde a las aspiraciones de su edad.

Es no traer hijos al mundo sin haberlos deseado ni poderlos criar.

Es no matar a la pareja por celos.

Es no tener relaciones con prostitutas sino con amigas de tu entorno.

Es no verse obligado a hacer el amor a escondidas, en los corredores, como los adolescentes en nuestra sociedad hoy, cuando lo que uno quiere es hacerlo en una habitación limpia y sin que lo molesten.

Wilhelm Reich

‘Estudos de neurociência superaram a psicanálise’, diz pesquisador brasileiro (Folha de S.Paulo)

Juliana Cunha, 18.06.2016

Com 60 anos de carreira, 22.794 citações em periódicos, 60 premiações e 710 artigos publicados, Ivan Izquierdo, 78, é o neurocientista mais citado e um dos mais respeitados da América Latina. Nascido na Argentina, ele mora no Brasil há 40 anos e foi naturalizado brasileiro em 1981. Hoje coordena o Centro de Memória do Instituto do Cérebro da PUC-RS.

Suas pesquisas ajudaram a entender os diferentes tipos de memória e a desmistificar a ideia de que áreas específicas do cérebro se dedicariam de maneira exclusiva a um tipo de atividade.

Ele falou à Folha durante o Congresso Mundial do Cérebro, Comportamento e Emoções, que aconteceu esta semana, em Buenos Aires. Izquierdo foi o homenageado desta edição do congresso.

Na entrevista, o cientista fala sobre a utilidade de memórias traumáticas, sua descrença em métodos que prometem apagar lembranças e diz que a psicanálise foi superada pelos estudos de neurociência e funciona hoje como mero exercício estético.

Bruno Todeschini
O neurocientista Ivan Izquierdo durante congresso em Buenos Aires
O neurocientista Ivan Izquierdo durante congresso em Buenos Aires

*

Folha – É possível apagar memórias?
Ivan Izquierdo – É possível evitar que uma memória se expresse, isso sim. É normal, é humano, inclusive, evitar a expressão de certas lembranças. A falta de uso de uma determinada memória implica em desuso daquela sinapse, que aos poucos se atrofia.

Fora disso, não dá. Não existe uma técnica para escolher lembranças e então apagá-las, até porque a mesma informação é salva várias vezes no cérebro, por um mecanismo que chamamos de plasticidade. Quando se fala em apagamento de memórias é pirotecnia, são coisas midiáticas e cinematográficas.

O senhor trabalha bastante com memória do medo. Não apagá-las é uma pena ou algo a ser comemorado?
A memória do medo é o que nos mantém vivos. É a que pode ser acessada mais rapidamente e é a mais útil. Toda vez que você passa por uma situação de ameaça, a informação fundamental que o cérebro precisa guardar é que aquilo é perigoso. As pessoas querem apagar memórias de medo porque muitas vezes são desconfortáveis, mas, se não estivessem ali, nos colocaríamos em situações ruins.

Claro que esse processo causa enorme estresse. Para me locomover numa cidade, meu cérebro aciona inúmeras memórias de medo. Entre tê-las e não tê-las, prefiro tê-las, foram elas que me trouxeram até aqui, mas se pudermos reduzir nossa exposição a riscos, melhor. O problema muitas vezes é o estímulo, não a resposta do medo.

Mas algumas memórias de medo são paralisantes, e podem ser mais arriscadas do que a situação que evitam. Como lidar com elas?
Antes parado do que morto. O cérebro atua para nos preservar, essa é a prioridade. Claro que esse mecanismo é sujeito a falhas. Se entendemos que a resposta a uma memória de medo é exagerada, podemos tentar fazer com que o cérebro ressignifique um estímulo. É possível, por exemplo, expor o paciente repetidas vezes aos estímulos que criaram aquela memória, mas sem o trauma. Isso dissocia a experiência do medo.

Isso não seria parecido com o que Freud tentava fazer com as fobias?
Sim, Freud foi um dos primeiros a usar a extinção no tratamento de fobias, embora ele não acreditasse exatamente em extinção. Com a extinção, a memória continua, não é apagada, mas o trauma não está mais lá.

Mas muitos neurocientistas consideram Freud datado.
Toda teoria envelhece. Freud é uma grande referência, deu contribuições importantes. Mas a psicanálise foi superada pelos estudos em neurociência, é coisa de quando não tínhamos condições de fazer testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a pessoa vai me falar em inconsciente? Onde fica? Sou cientista, não posso acreditar em algo só porque é interessante.

Para mim, a psicanálise hoje é um exercício estético, não um tratamento de saúde. Se a pessoa gosta, tudo bem, não faz mal, mas é uma pena quando alguém que tem um problema real que poderia ser tratado deixa de buscar um tratamento médico achando que psicanálise seria uma alternativa.

E outros tipos de análise que não a freudiana?
Terapia cognitiva, seguramente. Há formas de fazer o sujeito mudar sua resposta a um estímulo.

O senhor veio para o Brasil com a ditadura na Argentina. Agora, vivemos um processo no Brasil que alguns chamam de golpe, é uma memória em disputa. O que o senhor acha disso enquanto cientista?
Eu vim por conta de uma ameaça. Não considero um golpe, mas é um processo muito esperto. Mudar uma palavra ressignifica toda uma memória. Há de fato uma disputa de como essa memória coletiva vai ser construída. A esquerda usa o termo golpe para evocar memórias de medo de um país que já passou por um golpe. Conforme essa palavra é repetida, isso cria um efeito poderoso. Ainda não sabemos como essa memória será consolidada, mas a estratégia é muito esperta.

A jornalista JULIANA CUNHA viajou a convite do Congresso Mundial do Cérebro, Comportamento e Emoções

On Culture and Other Crimes: An Interview with Slavoj Zizek (Exchange)

Accessed October 28, 2014

By Kerry Chance
Anthropology
University of Chicago

Slavoj Zizek, psychoanalytic philosopher and cultural critic at the Institute of Sociology in Slovenia, has taught all over the world, most recently at the University of Chicago. His first public lecture at Chicago, entitled “The Ignorance of Chicken, or, Who Believes What Today”, looked every bit the rock show. Crowds stretched across the main campus quad, a ‘merch’ table featured his latest book The Parallax View, and as the lecture began with crowds still waiting outside, people climbed through the windows of the packed auditorium. While at Chicago, Zizek also taught a seminar as the Critical Inquiry Visiting Professor on topics ranging from Lacanian ethics, political correctness, habit in Hegel, the Big Other, Stalin, theology, politics and the role of the intellectual. Zizek has written innumerable articles and is the author of more than fifty books, including The Sublime Object of Ideology, The Ticklish Subject, Did Somebody Say Totalitarianism?, On Belief andWelcome to the Desert of the RealÑto name just a few that have contributed to his widespread popularity in and outside the academy. Here, Zizek speaks to Exchange about culture, Lacan, cognitive science, neoliberalism and projects for contemporary anthropology.

I.

Chance: In class and in your public lectures here at Chicago, you’ve frequently talked about culture and have done so in two ways: first, in terms of belief as you have theorized it in your earlier work, and secondly in terms of Hegel’s notion of habit. How are you thinking culture in Lacanian terms?

Zizek: Traditionally, Lacanians like to identify culture simply as the symbolic system, within which there is a linguistically limited horizon of meaning, but I think two things should be added.

First, what is for me the zero-sum of culture, if I improvise, is what to do about embarrassing excesses. When somebody does something embarrassing, burps after eating for example, culture is how you react to it in a polite way. To be very vulgar, all seduction rituals are the cultured way of dealing with the fact that people would like to copulate with each other. Now, someone will say, “wait a minute, to feel something as embarrassment, culture must already be there.” No, I don’t think so. Somehow, embarrassment is first. In other words, we have to presuppose an excess, again, embarrassment apropos of something disgusting, non-social, or an excess of obscenity or enjoyment.

So again, this would be the first specification: to put it in bombastic Lacanian terms, first the excess of the real, embarrassment, shock – and culture is how you deal with it. This is why Lacan in a nice, tasteless way put it that one measure of the passage from the animal to the human kingdom is what to do with shit. He always liked this example, that an animal by definition just shits wherever, for humans shit is always an embarrassment. It always amused me when I was a boy that, at circuses, you have animals, horses and especially elephants that take a big shit and usually you see people hidden behind them ready to make the shit quickly disappear. Animals don’t care. The problem with humans is what to do with this embarrassment.

The second thing that interests me, which is a much more concrete historical analysis, is why there is such an obsession with culture today. Why is it that today not only do we have culture studies but everything – and by everything I mean at least the humanities and for some people even the hard sciences – has become a subspecies of cultural studies? In the hard sciences, people will say following Thomas Kuhn’s The Structure of Scientific Revolutions, their history is the history of culture, of paradigm shifts and so on. Everything becomes culture.

Chance: How is this linked to your notion of belief?

Zizek: Again, this is linked to my notion of belief, to the idea that something is changing in the status of belief. Today, the predominant form is a belief that culture is the name of a belief, which is no longer taken seriously. Culture means, for example, I am a Jew, and although I don’t think there was a stupid god coming down and shouting some stupid things to people on Mount Sinai, I nonetheless say out of respect for my lifestyle or whatever, I don’t eat pork. This is culture.

To complicate things even further, I think two traps should be avoided here. Among other things, I have tried to focus my work on one of these traps in the last few years. First, it is too simple to say, “does this mean once before people were taking culture seriously.” No. Not only conservatives, but even progressives like to criticize the present, evoking, “oh, but once it was different, things were more authentic.” No, it wasn’t. It is not that before people did believe. If anything, they believe more today. It’s just that the modality of distance was different. Before, it wasn’t a matter of belief. Rather, it was a feeling of being more attached to, and having more respect for, the power of appearance of ritual as such. Something changed today at that level, I think. So paradoxically these external signs of belief – “nobody takes anything seriously” – if anything, points to how it’s more difficult today for us to trust the symbolic ritual, the symbolic institution. But again, there is no time when people ‘really meant it.’

What I know from anthropology, I may be wrong, is that all the great errors started with a phenomenological evolutionary illusion. I think when researchers found a certain gap between reality and beliefs or between form and content, they always thought, “ah, we have a later descendent state of evolution, there must have been some point earlier when people meant it.” The dream is that there was an original moment when people really ‘meant it.’ An example I know from my Marxist past, in anthropology you must know him from the 19th century, Lewis Henry Morgan. I remember from my youth that Engels among other classical Marxists relied on him. Morgan found that in some tribes all the men in one tribe referred to the women of the other tribe as their ‘sister wives.’ From this he deduced, that this is the linguistic remainder of some primordial form of marriage. The incest prohibition already in place, you were not allowed to have sex with women in your tribe, but only with the women in another tribe. The women were exchanged in a block, collectively. It was basic incest, but regulated. The way I heard it, anthropologists later proved that there never was this nice regulated collective orgy. That is to say, the wrong conclusion was that from this name ‘sister wives’ you conclude that there was a point when it was really meant. No, the gap is here from the very beginning.

What fascinates me in this example also is the logic of institution. By institution, I mean how, in order for something to function as a belief, you cannot simply say, “okay, let’s pretend.” In my book, I think the Ticklish Subject (Verso, 1999), I have a wonderful anecdote, which for me again tells about what culture is as an institution. It is a crazy story about elections some fifteen years ago in my country, Slovenia. An ex-friend of mine, who was a candidate told me – okay, he had to do these democratic games like kissing the asses of local constituents – an old lady came to him and said if he wanted her vote he would have to do her a favor. She was obsessed with the idea that something was wrong with her house number (number 24, not even 13), that this number brings misfortune. There was a burglary twice, lightning struck the house, and she’s convinced that it’s because of the number. She said, can she arrange with the city authorities to change the number, to 23a or something, just not 24. He said to her, “But lady, why even go through all this mess? Why don’t you simply paint a new number and change it yourself?” She said, “No, it must be done properly.” Though it was only superstition, to be effective it must be done properly through the institution. The must be a minimum reification to take the game seriously.

Chance: Is this a project for anthropology?

Zizek: This returns to another aspect of your question. That is, another lesson of all these notions of culture is the irreducibility of alienation. We should abandon this old phenomenological – and for some people, Marxist motive – that every institutionalization means reification in two directions, the past and the future. For the past, it is the idea that we should try to reconstitute a moment when it was not alienated, when it was ‘meant seriously.’ For the future, it is to isolate the moment, to dream or to work toward the moment when this transparency and authenticity of meaning will be reinstalled. No, we should also see the liberating aspect of it.

To return here to what I know of anthropology, when anthropology about half a century ago shifted from “let’s observe the mating rituals in Southern Samoa or South Pacific” or whatever, to focusing on our daily life rituals. You remember Florida, the scandal elections and the first Bush victory. A guy somewhere from Africa wrote an article imitating that sort of journalistic report, you know, an enlightened Western journalist goes to Africa, where they allegedly have some election and he mocks the election, “ha, ha, what corruption.” Well, this guy wrote about Florida in the same way, saying there are votes disappearing, the brother of the candidate is the local government, you know, describing Florida as a provincial Banana Republic case of cheating. It was a wonderful result. It was anthropology at its best.

I think this is what interests me, the anthropology of our lives. Not only is this a politically correct procedure – in this exceptional case, I use the term ‘politically correct’ in a positive way – but also I find it always a subversive procedure. The starting point is always the implicit racism of the anthropologist: you look at a foreign culture, you study them with this detachment, “oh what strange rituals” and so on. The phenomenological humanist temptation would be to say, “No, in this engaged participating fieldwork, we should immerse ourselves, become one of them to really understand them.” This series of presuppositions we should reject. What does it mean that we should be one of them to understand them? They usually don’t understand themselves – isn’t it the basic experience that people as a rule follow rituals that are just a part of tradition, which they themselves don’t get? I think the anthropology of our lives is the true breakthrough from this implicitly racist attitude of studying the eccentricity of others, to adopt the same view of ourselves. It is much better as a double alienation.

This is connected to another central motive of my work, this obsession with not only rules but also habits, which tell you how to obey or disobey rules. Especially social prohibitions never mean what they appear to mean. This is an incredibly wealthy topic of ideology for contemporary anthropology. Why is it so important? Precisely because we live in an era of so-called post-ideology. I claim that at precisely this level, ideology has survived.

My interest in anthropology, what always fascinated me was people never mean what they say and in order to be a part of a culture you have to get this gap. There is an important role of obscenities here. Let me tell you a comic adventure. This weekend, I was with Fred Jameson at Duke and there Fred invited an old, very distinguished Argentine gentleman – I will not tell you the name it’s too embarrassing – because of my wife, who is also Argentinean. This gentleman, you would be afraid of using the f-word in front of him, so I said to myself, okay, can I make him say something dirty? And I did seduce him, you know how? The specificities of Argentine Spanish are very different from say Venezuelan Spanish or Mexican Spanish. So, I told him how I tried to learn Spanish, and then I made my first step into obscenity. I told him I knew the word ‘cojo,’ which in Spanish simply means ‘to catch’ something, like “how do I catch a taxi?” Now, this word will be important because I told him I heard somewhere in Argentina there is a series of jokes, where a stupid Spaniard comes to Argentina and asks, “Where do I catch a taxi?” In Argentinean Spanish, ‘catch’ here means the f-word. Then, the distinguished gentleman smiled briefly and I saw that he knew a really dirty example. And I like it how he broke down. After two or three minutes, he broke down and said, “It’s against my nature but I must tell you Argentines have an even more dirty joke…” which is that a Spanish guy says, “How do you catch a cab?,” which means to fuck a taxi, and the Argentine says, “Well, the only practical way I can imagine is the exhaust pipe.” I was so glad that this distinguished gentleman, that I made him say this joke. For me, this is culture. For me, it is not a violation, but the closest you can get to authentic communication.

II.

Chance: I wanted to talk about Lacanian ethics and about Lacan’s injunction to be consistent with your desire –

Zizek: The thing about Lacan’s injunction is what if your desire is not consistent? In other words, the way I read Lacan is that more and more in his late work he devalues desire, desire itself as not an ethical category. The Lacan of the fifties and sixties, it is the ethics of desire to not compromise your desire. But later, more and more he emphasizes that desire is a priori something hypocritical, inconsistent. In this sense, desire mostly thinks with a secret code that you will not get, the whole economy is to avoid the realization of desire, which is why Lacan understood that fantasy is a realization of desire. He doesn’t mean realization of desire in the sense of getting what you desire, like I want to eat strawberry cakes and I in the fantasy imagine myself realizing it. For Lacan, it is to stage a scene where that desire as such emerges. What would be a nicer example, let’s say I have a desire to eat strawberries but as always with desires, you have this suspicion, what if I will be disappointed. A fantasy would be, for example, I am there sleeping and somebody brings me strawberries, then I taste one, then I stop and it goes on. This ‘going on’ – I never fully have the strawberries – is fantasy. You don’t realize desire – getting your dirty mouth full of strawberries – you just stage this scene on a pleasant, hopeful state of desire, on the verge of satisfaction but not yet there. There is a pleasant obstacle preventing it all the time. This is fantasy.

Chance: How does this ethical injunction, both in the early and late Lacan, play out in the political realm, specifically thinking about it in relation to the cartoon depictions of Mohammad, a debate that opposed unlimited freedom of the press to respect for the other?

Zizek: Do you see the piece I wrote – not in The New York Times, which was censored – but “Antinomies of Tolerant Reason”? (See HYPERLINK “http://www.lacan.com” http://www.lacan.com)

You know, many leftists were mad at me there. They thought I made too many compromises with Western liberals, too much anti-Muslim compromise. But the reason I did it was that I got a little bit sick and tired with these politically correct Western liberals – didn’t you notice this hypocrisy? I noticed it was the same people, who in the West are so sensitive – like I look at you and it already can be harassment – and all of sudden, they say it is a different culture, blah, blah, blah. I hate that even some feminists now are turning to culture as one of the standard defenses of Islam. In the West, we at least have formal equality of women. I am very sorry but there, you have a culture, at least in the predominant mode that is so openly anti-feminine. My god, but they are openly doing what we here are trying to unearth as the anti-feminism beneath the emancipated feminine. My god, are we now even prohibited from stating the obvious?

Do you know this famous, eternal politically correct example of clitoridechtomy? This example is not Islam – it is a ritual independent of Islam. But I remember some Muslim women claiming: isn’t it that in the West in order to be attractive to men, women have to remain slim, seductive; isn’t this a global clitoridechtomy; isn’t it much worse? There, it’s only the clitoris, here, it’s as if your entire body is clitoridechtomized. I hate this – I remember when I was a youth what the facts were about the Gulag. People would say: but at least here, you are in or out of the Gulag; isn’t it that the whole United States is one ideological Gulag? You know, this cheap counter universalization. I don’t buy it – this is what I try to say in that text. The first thing is to admit a genuine deadlock and to stop this hypocrisy.

In that text, I hope it is obvious this fury I have at this logic of respect. Sometimes, respect is the most disrespectful category. Respect here is like telling a child false things so not to hurt him. Here, respect means not taking him seriously. I think a lot of the people who preach, “you should show restraint, show respect to Islam,” are enacting the worst sort of patronization. Paradoxically, violent critics of Islam, on the most elementary level, show more respect for Islam than those who, out of respect, do not attack it. I am not saying we should turn to this, but at least those critics take people seriously as believers.

III.

Chance: What does it mean to return to big theory?

Zizek: You remember, years ago it was fashionable to say big theory overlooks its own historical, concrete, anthropological conditions and presuppositions. That it is na•ve. Foucault has this attitude in its utmost when he says, before asking what’s the meaning of the universe, you should ask in what historical context is it even possible to ask this question. So direct truth questions become questions about the concrete historical conditions in which one can raise such a question. I think this was a deadlock.

Today’s big theory is no longer a na•ve big theory. It’s not saying “let’s forget about historical context and again ask, does god exist, or are we free.” No, the point is that concrete theory – the idea that we cannot ask metaphysical questions, only historical questions – had a skeleton in the closet: it has its own big theory presuppositions. Usually, even some rather primitive historicist, relativist ideas, for example, everything depends on historical circumstances or interactions, there are no universalities, and so on. So for me, it’s about not forgetting from where one speaks. It’s about including into reflection, into historical reflection, the very historicism, which was unquestioned in this eternal, Foucauldian model. I find it so boring. It’s so boring to say, “no, you shouldn’t ask are we free, the only question is what does it mean in our society to ask the question are we free.”

Chance: The presence of cognitive science is increasingly felt in anthropology. What particular problems does cognitive science pose for social sciences?

Zizek: Big theory brings us nicely to cognitive science because what it so tickling about them is precisely this question of freedom – does it mean we are not free? It’s interesting that all the debates about cognitive sciences – the image of the human being emerging from all these interactions, from the brain sciences or more abstract mind sciences – is about are we free.

I don’t know about social sciences, but I know about my field, psychoanalysis. I dealt with cognitive sciences extensively in my last book (SeeThe Parallax View, MIT Press 2006). I think firstly, they should be taken seriously. They should not be dismissed as just another na•ve, naturalizing, positivist approach. The question should be seriously asked, how do they compel us to redefine the most basic notions of human dignity, freedom? That is to say, what we experience as dignity and freedom is it all just an illusion, as they put it in computer user terms, a user’s illusion. Meaning, for example, when you write a text on a computer, you have this user’s illusion scrolling up or down that there is text above or below. There is no text there. Is our freedom the same as a user’s illusion or is there a freedom?

The thing to do – and I’m not saying I did it, I’m saying I am trying to do it – is to take these sciences very seriously, and find a point in them where there is a need for an intervention of concepts developed by psychoanalysis. I think – I hope – that I isolated one such point. I noticed how, when they tried to account for consciousness, they all have to resort to almost always the same metaphor of this autopoesis, self-reflexive move, some kind of self-relating, self-referring closed circuit. They are only able to describe it metaphorically. What I claim is that this is what Freud meant by death drive and so on.

But it’s not that we psychoanalysts know it and can teach the idiots. I think this is also good for us – and by us I mean, my gang of psychoanalytically oriented people. It compels us also to formulate our terminology, to purify our technology as it were.

IV.

Chance: What, if anything, is neoliberalism?

Zizek: You must know, and it has often been noted, that the big shift in the study of the human mind from traditional approaches to modern cognitivism mirrors perfectly the shift from bureaucratic capitalism to neoliberal capitalism with its flexibility and plasticity. It’s so interesting to notice how many cognitivists that I’ve read even say this openly. They say that traditional science of mind was production oriented, organizing up and down, like traditional bureaucratic capitalism. Today, it’s like this digital, flexible capitalism – you don’t have one central deciding point, you have free interaction, nomadic plasticity and so on. I found this very interesting.

Catherine Malabou wrote a wonderful book called What to Do With the Human Brain. She develops, in a very nice way, that plasticity can have two meanings. One meaning is this neoliberal plasticity. Basically, it’s an accommodating plasticity: how to succeed on the market, how to adopt new identity. But there is a more radical plasticity, where the point is not just an adaptive plasticity. It’s a plasticity that not only adapts itself to existing circumstances but also tries to form a margin of freedom to intervene, to change the circumstances.

The same would go for me for neoliberalism. My point would be first, there obviously exists something like neoliberalism. That is to say, it is a fact that at the level of relations between the states, within singular economies new rules of capitalism are emerging today.

But my first doubt would be about the process of describing the fact that something new is emerging. I don’t think it is adequately described by the way neoliberalism describes itself. For example, saying “the rule is no longer state intervention, but free interaction, flexibility, the diminishing role of the state.” But wait a minute, is this really going on? I mean, take Reagan’s presidency and Bush’s presidency today. While bombasting against big spending Democrats – that is to say, big state – the state has never been as strong as it is today and there is an incredible explosion of state apparatuses. State control today is stronger than ever. That would be my automatic reaction: yes, there is something new but, when covered by the label neoliberalism, it is not adequately described. The self-perception of today’s era as neoliberal is a wrong self-perception.

Even leftist critics all too often accept this self-description on its own terms and then proceed to criticize it, saying, “no, we can’t leave everything to the market.” Wait a minute, who is leaving everything to the market? If we look at today’s American economy, how much support there is for American farmers, how much intervention, military contracts, where is there any free market? I mean, sorry, but I don’t see much free market here.

Just look at this paradox, which I think is the nicest icon of what goes on today. You know the problem of cotton in the state of Mali I think, which is the producer of cheap cotton far better than the United States’ cotton. The country is going to ruin because, as you know, the American cotton producers get more state support than the entire Gross Domestic Product of the state of Mali. And they say there, we don’t want American help, what we want is just when you preach about corrupt state intervention and the free market, you play by your own rules. You know, there’s so much cheating going on here.

So that would be the kind of anthropological study that’s needed: what neoliberalism really means. That’s what we have to do.

Zizek PicksMost important book published in the last six months: On Creaturely Life by Eric Santner

It will sound hypocritical but really, I would say On Creaturely Life. If you go further back to 2005, it would be The Persistence of Subjectivity by Robert Pippin.

Most important film released in the last six months: Manderlay directed by Lars Von Trier

My god, this is a tough question. My problem is, as much as I love even commercial Hollywood, I really don’t remember one in particular. It’s a weird film but I like it, the last Lars Von Trier, Manderlay. Need I add that I haven’t seen it, but a priori I don’t deal with empirical things.

Favorite obscure text: Sex and Character by Otto Weininger

Sex and Character. It’s obscure today but remember that this book was published in 1903 and was reprinted like fifty times. Then, it was a megabook. It’s vicious – radically anti-feminist, anti-Semitic, anti-whatever-you-want but I think it’s shattering.

Most underrated philosopher: Hegel

It will sound crazy because he is one of the most overrated philosophers, but I think, Hegel. Because for the last two hundred years, every philosopher defines himself as somehow wanting to go over Hegel. He’s this universal punching bag. Known as he is, he is still the most underrated.

Favorite politician of all time? Lenin and Cromwell

My answer is so boring. It’s boring, it’s stupid, it’s provocative, I’m ashamed to pronounce it: Lenin. You know, many na•ve leftists, who want to maintain their democratic credentials, would say some tragic victim like Allende. I think there is no perspective there. I have a cynical idea that Pinochet’s coup d’etat came at the right point. Imagine what would have happened if someone like Clinton and not that stupid Nixon-Kissinger gang were in power. Someone like Clinton would have gotten the formula: annoy him economically, wait for the true economic crisis to explode and then Allende would either have to opt for a three-way neoliberalism and play all those emancipatory welfare games. Or, he would have to turn Castro, get really tough and lose. Don’t you think they struck at the right point to redeem him? So I don’t respect this kind of person.

I would love to have somebody else – I have such traditional tastes. Okay, again, it’s traditional but if you go back further, Freud loved him: Oliver Cromwell. I like it the way he ruthlessly went from first using the Parliament to cut off the head of the king, to then disbanding Parliament.

What surprises me is this myth that Cromwell was this cruel Puritan. Not only did he have personal integrity, but contrary to royalist myth, he was not revengeful. To put it naively, he was even personally kind. It may also come as a surprise how religiously tolerant he was. This is a myth, you know, this pale-lips Puritan just killing all the Catholics and everybody else. No, he was striving very much, for his vision was a kind of secular plurality of religions. He was a genuine tragic, tragic figure, I think.

Discurso sobre o sonho pode ajudar no diagnóstico de doenças mentais (Fapesp)

Pesquisadores brasileiros desenvolvem técnica de análise matemática de relatos sobre sonhos, capaz de auxiliar na identificação de sintomas de esquizofrenia e bipolaridade (imagem: divulgação)

17/03/2014

Por Elton Alisson

Agência FAPESP – A pista dada por Sigmund Freud (1856-1939) no livro “A intepretação dos sonhos, de 1899, de que “os sonhos são a estrada real para o inconsciente”, chave para a Psicanálise, também pode ser útil na Psiquiatria, no diagnóstico clínico de transtornos mentais, como a esquizofrenia e a bipolaridade, entre outras.

A constatação é de um grupo de pesquisadores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em colaboração com colegas do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (Neuromat) – um dos CEPIDs da FAPESP.

Eles desenvolveram uma técnica de análise matemática de relatos de sonhos que poderá, no futuro, auxiliar no diagnóstico de psicoses.

A técnica foi descrita em um artigo publicado em janeiro na Scientific Reports, revista de acesso aberto do grupo Nature.

“A ideia é que a técnica, relativamente simples e barata, seja utilizada como ferramenta para auxiliar os psiquiatras no diagnóstico clínico de pacientes com transtornos mentais de forma mais precisa”, disse Mauro Copelli, professor da UFPE e um dos autores do estudo, à Agência FAPESP.

De acordo com Copelli – que realizou mestrado e doutorado parcialmente com Bolsa da FAPESP –, apesar dos esforços seculares para aumentar a precisão da classificação dos transtornos mentais, o atual método de diagnóstico de psicoses tem sido duramente criticado.

Isso porque ele ainda peca pela falta de objetividade e pelo fato de a maioria dos transtornos mentais não contar com biomarcadores (indicadores biométricos) capazes de auxiliar os psiquiatras a diagnosticá-los com maior exatidão.

Além disso, pacientes com esquizofrenia ou transtorno bipolar muitas vezes apresentam sintomas psicóticos comuns, como alucinações, delírios, hiperatividade e comportamento agressivo – o que pode comprometer a precisão do diagnóstico.

“O diagnóstico dos sintomas psicóticos é altamente subjetivo”, afirmou Copelli. “Por isso mesmo, a última versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais [publicado pela Associação Americana de Psiquiatria em 2013] foi muito atacada”, avaliou.

A fim de desenvolver um método quantitativo para avaliar sintomas psiquiátricos, os pesquisadores gravaram, com o consentimento dos envolvidos, os relatos dos sonhos de 60 pacientes voluntários, atendidos no ambulatório de psiquiatria de um hospital público em Natal (RN).

Alguns dos pacientes já tinham recebido o diagnóstico de esquizofrenia, outros de bipolaridade e os demais, que formaram o grupo de controle, não apresentavam sintomas de transtornos mentais.

Os relatos dos sonhos dos pacientes, feitos à psiquiatra Natália Bezerra Mota, doutoranda na URFN e primeira autora do estudo, foram transcritos.

As frases dos discursos dos pacientes foram transformadas por um software desenvolvido por pesquisadores do Instituto do Cérebro em grafos – estruturas matemáticas similares a diagramas nas quais cada palavra dita pelo paciente foi representada por um ponto ou nó, como o feito em uma linha de crochê.

Ao analisar os grafos dos relatos dos sonhos dos três grupos de pacientes os pesquisadores observaram que há diferenças muito claras entre eles.

O tamanho, em termos de quantidade de arestas ou links, e a conectividade (relação) entre os nós dos grafos dos pacientes diagnosticados com esquizofrenia, bipolaridade ou sem transtornos mentais apresentaram variações, afirmaram os pesquisadores.

“Os pacientes com esquizofrenia, por exemplo, fazem relatos que, quando representados por grafos, possuem menos ligações do que os demais grupos de pacientes”, disse Mota.

Diferenças de discursos

Segundo os pesquisadores, a diferenciação de pacientes a partir da análise dos grafos de relatos dos sonhos foi possível porque suas características de fala também são bastante diversificadas.

Os pacientes esquizofrênicos costumam falar de forma lacônica e com pouca digressão (desvio de assunto) – o que explica por que a conectividade e a quantidade de arestas dos grafos de seus relatos são menores em comparação às dos bipolares.

Por sua vez, pacientes com transtorno bipolar tendem a apresentar um sintoma oposto ao da digressão, chamado logorreia ou verborragia, falando atabalhoadamente frases sem sentido – chamado na Psiquiatria de “fuga de ideias”.

“Encontramos uma correlação importante dessas medidas feitas por meio das análises dos grafos com os sintomas negativos e cognitivos medidos por escalas psicométricas utilizadas na prática clínica da Psiquiatria”, afirmou Mota.

Ao transformar essas características marcantes de fala dos pacientes em grafos é possível dar origem a um classificador computacional capaz de auxiliar os psiquiatras no diagnóstico de transtornos mentais, indicou Copelli.

“Todas as ocorrências no discurso dos pacientes com transtornos mentais que no grafo têm um significado aparentemente geométrico podem ser quantificadas matematicamente e ajudar a classificar se um paciente é esquizofrênico ou bipolar, com uma taxa de sucesso comparável ou até mesmo melhor do que as escalas psiquiátricas subjetivas utilizadas para essa finalidade”, avaliou.

O objetivo dos pesquisadores é avaliar um maior número de pacientes e calibrar o algoritmo (sequência de comandos) do software desenvolvido para transformar os relatos dos sonhos em grafos que possam ser usados em larga escala na prática clínica de Psiquiatria.

Apesar de utilizada inicialmente para o diagnóstico de psicoses, a técnica poderá ser expandida para diversas outras finalidades, contou Mota.

“Ela poderá ser utilizada, por exemplo, para buscar mais informações sobre estrutura de linguagem aplicadas à análise de relatos de pessoas não apenas com sintomas psicóticos, mas também em diferentes situações de declínio cognitivo, como demência, ou em ascensão, como durante o aprendizado e o desenvolvimento da fala e escrita”, indicou a pesquisadora.

Papel dos sonhos

Os pesquisadores também desenvolveram e analisaram, durante o estudo, os grafos de relatos sobre atividades realizadas pelos pacientes voluntários na véspera do sonho.

Os grafos desses relatos do dia a dia, chamados de “relatos de vigília”, não foram tão indicativos do tipo de transtorno mental sofrido pelo paciente como outros, disse Copelli.

“Conseguimos distinguir esquizofrênicos dos demais grupos usando a análise dos grafos dos relatos de vigília, mas não conseguimos distinguir bem os bipolares do grupo de controle dessa forma”, contou.

Os pesquisadores ainda não sabem por que os grafos dos discursos sobre o sonho são mais informativos sobre psicose do que os grafos da vigília.

Algumas hipóteses esmiuçadas na pesquisa de doutorado de Mota estão relacionadas a mecanismos fisiológicos de formação de memória.

“Acreditamos que, por serem memórias mais transitórias, os sonhos podem ser mais demandantes cognitivamente e ter maior impacto afetivo do que as memórias relacionadas ao cotidiano, e isso pode tornar seus relatos mais complexos”, contou a pesquisadora.

“Outra hipótese é que o sonho está relacionado a um evento vivenciado exclusivamente por uma pessoa, sem ser compartilhado com outras, e por isso talvez seja mais complexo de ser explicado do que uma atividade relacionada ao cotidiano”, disse.

Para testar essas hipóteses, os pesquisadores pretendem ampliar a coleta de dados aplicando questionários em pacientes com registro de primeiro surto psicótico, com o objetivo de esclarecer se outros tipos de relatos, como de memórias antigas, podem se equiparar ao sonho em termos de informação psiquiátrica. Eles também querem verificar se podem usar o método para identificar sinais ou grupo de sintomas (pródromo) e acompanhar efeitos de medicações.

“Pretendemos investigar em laboratório, com eletroencefalografia de alta densidade e diversas técnicas de mensuração de distâncias semânticas e análise de estrutura de grafos, de que forma os estímulos recebidos imediatamente antes de dormir influenciam os relatos de sonhos produzidos ao despertar”, disse Sidarta Ribeiro, pesquisador do Instituto do Cérebro da UFRN.

“Estamos particularmente interessados nos efeitos distintos de imagens com valor afetivo”, afirmou Ribeiro, que também é pesquisador associado do Neuromat.

O artigo Graph analysis of dream reports is especially informative about psychosis (doi: 10.1038/srep03691), de Mota e outros, pode ser lido na revista Scientific Reports emwww.nature.com/srep/2014/140115/srep03691/full/srep03691.html.

Notícias sobre o fim do mundo (Ponto de Vista)

12 de janeiro de 2014

Por Amneris Amaroni

Eduardo Viveiros de Castro

Acabei de assistir a duas palestras recentes – em vídeos – do prof. Eduardo Viveiros de Castro e quero recomendá-las aos meus leitores. O primeiro vídeo- palestra tem como título: Filosofia, Antropologia e o Fim do Mundo (http://vimeo.com/78892524); a segunda palestra tem como título: III Conferência Curt Nimuendajú (http://vimeo.com/81488754). Recomendo vivamente ambas.

Nesta postagem farei um breve chamamento para as duas palestras e, desde já, assumo que sou absolutamente fiel às ideias de Viveiros de Castro, praticamente recuperando as suas palavras; exercito, porém, uma certa edição das palestras e então dou ênfase – porque recupero longamente a fala de Viveiros – em relação a algumas questões em detrimento de outras – e, por isso, o melhor para os leitores que desejarem acompanhar o pensamento do antropólogo na íntegra será assistir os vídeos.  Farei também uma reflexão sobre o diálogo – ou a inexistência do diálogo – entre psicanálise e a nova antropologia tendo presente a dramática situação que estamos atravessando do ponto de vista civilizacional. Particularmente quero chamar a atenção dos leitores para o novo campo de luta, uma guerra de fato, que a antropologia – via Bruno Latour e Viveiros de Castro – vislumbra entre os Terranos e os Humanos: quem são os participantes dessa luta, e como as ¨alianças¨ vêm se estabelecendo. E o que é fundamental: como as psicanálises se posicionam frente a esse novo campo de luta, frente a essa – nas palavras de Bruno Latour – guerra que  já estamos vivendo.

Antes de iniciar quero dar um depoimento pessoal da experiência que tive ao assistir a esses vídeos. Penso que a principal virtude dos antropólogos em tela é acoragem. Fiquei completamente mobilizada pela coragem lucidez de Eduardo Viveiros de Castro, e sinto que, através das palestras, mobilizou-se em mim também coragem e lucidez. Penso que só neste início do século XXI começamos a perceber a importância do Anti Édipo e dos Mil Platôs de G. Deleuze e F. Guattari. Há uma nova sensibilidade em curso que a antropologia de Viveiros de Castro capta e transforma em projeto político[1].

I) Filosofia, Antropologia e Fim do Mundo

Davi Kopenawa

O antropólogo parte de duas observações: qual a nossa condição, qual o nosso momento, na tradição cultural ocidental; e como essa tradição é compreendida pelos habitantes da América indígena.

Comecemos pela primeira questão: houve mortes sucessivas das grandes transcendências nos últimos séculos. E. Kant partiu de Deus/ do Homem e do Mundo. Essas três instâncias foram morrendo sucessivamente e isso define a presente condição: 1) Deus morreu; 2) o Homem moderno morreu e agora 3) temos que enfrentar a morte do Mundo, o fim do mundo. Sem Deus, sem Homem e sem Mundo. Três séculos, três mortes.

Hoje há uma inquietação imensa; as mortes suscitam crises. Podíamos viver sem Deus, podíamos viver sem o Homem; podemos viver sem Mundo? Como o pensamento antropológico e filosófico se reorganiza em torno dessas mortes?

Davi Kopenawa, líder dos Yanomamis, tem um escrito publicado em francês e em inglês chamado A queda do céu – esse livro conta com a participação do antropólogo Bruce Albert[2] Nele Davi Kopenawa diz que ¨os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos¨. Essa frase para Viveiros de Castro contém uma imagem do pensamento, contém uma teoria e uma crítica da filosofia ocidental: uma crítica do nosso projeto civilizatório.

A frase nos alerta para a ideia que os Yanomamis ¨não sonham só com eles mesmos¨. É preciso, todavia, frisar que nós os vemos de outro jeito, já que dizemos que os índios são animistas, narcisistas, primitivos e só sabem ler a si mesmos no mundo inteiro! Davi pensa exatamente o contrário e diz que ¨são os ocidentais que não veem nada, ficam só cabeceando de sono e não veem nada¨.

O pensar é essencialmente sonhar para os Yanomamis: sonhar com o que não é humano, ter a capacidade de sonhar e de sair da humanidade. Davi Kopenawa nega a nós, os brancos, essa capacidade porque para nós, brancos, o pensamento está concentrado no ¨mundo da mercadoria¨, porque só vemos a nós mesmos. Como os brancos só pensam nas mercadorias, só sonham consigo mesmos – não saem de si mesmos, não saem da humanidade. Não sonhar consigo mesmo significa para Davi, sonhar com os seres das florestas, os seres invisíveis, as almas, os animais.

O pensamento ocidental tem uma trajetória e nela o pensar foi se introjetando e se tornando uma contemplação narcísica de si mesmo: o pensador ocidental investiga a cognição, a imaginação, o entendimento do próprio homem. Os brancos só sonham então consigo mesmos.

Davi está denunciando o que Freud diz: tudo que o homem sonha é projeção: plantas, animais, etc. É sempre conosco mesmos que sonhamos. É possível pensar outra coisa e então sair de si mesmo? Os brancos já não podem fazer isso.

Davi Kopenawa pertence a uma cultura xamânica, e nela o acesso à realidade se dá através do sonho, com o uso de drogas e alucinógenos e isso é muito diferente do aprendizado da leitura e da escrita dos brancos. Por isso os brancos ficam quando sonham como um ¨machado no chão¨, dormindo como um ¨machado no chão¨ – como se fossem objetos ou como se estivessem mortos:  sonhando consigo mesmos. Ao contrário disso, para uma cultura xamânica, o sonho é a condição de encontrar uma exterioridade, um fora-exterior, e os brancos tem uma incapacidade de atingir o fora, um exterior pelo pensamento. Acrescente-se a isso que os brancos estão apodrecendo a Terra para tirar petróleo, minério, e com isso o céu vai cair e a humanidade vai entrar embaixo da terra e virar fantasma! Quem mantém tudo isso ainda em pé – a Terra e o Céu – são os xamãs. A queda do céu já aconteceu várias vezes e sempre o motivo foi o mesmo: o que nós, brancos, chamamos de crise ecológica.

As cosmologias indígenas falam em ciclos sucessivos de destruição e criação: desabamentos sucessivos da Terra. Hoje, os brancos promovem sem freios a extração de minérios, o desmatamento e então o mundo vai acabar. Duas questões propostas por Davi Kopenawa: 1) só sabem, os brancos, pensar em si mesmos; 2) o mundo vai acabar. Esta acusação de Davi ¨que nós só sonhamos conosco mesmos¨ exige uma resposta. Como responder a isso? Como responder à imanência? À exterioridade? No ocidente isto está reservado à arte – e não à ciência e à técnica.

Para os indígenas fazemos objetos e máquinas prodigiosos, mas sociologicamente somos imbecis, agressivos, escandalosos, primitivos, toscos nas interações. Eles ficam seduzidos pelo prodígio técnico do ocidente e tem a tentação de separar a técnica da sociedade. É possível separar as duas coisas? Para os Yanomamis não tem jeito; eles recusam a cultura do branco in totum.Estamos – diz Viveiros de Castro – prensados contra nós mesmos e contra os outros povos, já que os três pilares da nossa civilização – Deus, Homem e Mundo – estão em crise. Nosso narcisismo é incurável! Os outros povos não podem nos ajudar e nós estamos ameaçando levar todos para o abismo.

Que resposta vamos dar aos outros povos que nos ¨acusam de só sonhar conosco mesmos¨? Que fazer diante disso?Os brancos ¨só sonham consigo mesmos¨: os brancos não incluem os não-humanos no seu universo político!

O fim do mundo é um tema riquíssimo do ponto de vista filosófico e político – afirma Viveiros de Castro. Aliás, esse tema são os  índios  quem sabem pensar, pois os brancos acabaram  com o mundo deles, acabaram com o mundo deles repetidas vezes.

A perspectiva de uma crise ambiental em escala mundial nos coloca em uma situação parecida com a dos índios. Nós corremos o risco de sermos dizimados por nós mesmos! Como será viver após o fim do mundo? É preciso retomar a questão do fim do mundo no pensamento. O que está acabando é o mundo que começou em 1500. O fim da era moderna chegou.

2) III Conferência Curt Nimuendajú

Bruno Latour

Essa conferência, proferida no final de 2013 por Viveiros de Castro, é bastante longa e aconteceu no Centro de Estudos Ameríndios (CESTA/USP) em homengem a Curt Nimuendajú, que fez o primeiro trabalho moderno de etnologia, há exatamente 100 anos – em 1914 – em torno das lendas de criação e destruição e principalmente da destruição do mundo, como fundamento da religião dos xamãs Apopukuvas – Guarani. A palestra então também homenageia os guaranis que hoje são o símbolo concreto da ofensiva final contra os povos indígenas.

Nimuendajú teve seguidores na antropologia, por exemplo, os trabalhos de Pierre Clastres e de Helena Clastres e vários outros etnólogos; hoje, sua perspectiva é retomada em teses e dissertações de mestrado. Para Niemandajú como para esses trabalhos recentes, os Guaranis tinham e tem um pensamento pleno, um pensamento especulativo,  escatológico  e cosmológico pleno de direitos.

Ora, nós também, ocidentais brancos, estamos especulando e dando voltas em torno da questão do fim do mundo. As lendas científicas e outras do ocidente especulam cada vez mais esse tema e então tal especulação tornou-se um problema de todos.

Muitas questões foram discutidas nessa longa palestra e eu vou me ater a duas delas: a) a catástrofe que nos espreita e b) a proposta política em curso trazida por Bruno Latour e Viveiros de Castro.

a) É um equívoco chamarmos o perigo que nos espreita de ¨crise ambiental¨ e isso ficará claro a seguir quando o antropólogo demonstra quão mais sério é a nossa questão. Para ele, o mais importante problema que atravessamos é a entrada do planeta no antropoceno – a terceira época geológica do período quaternário e que, prevê-se, durará muito mais tempo do que a espécie que o batizou! Vale dizer, os efeitos da ação humana sob o sistema Terra durará mais que a própria espécie. O antropoceno – a era do homem – refere-se a um novo regime termodinâmico: e este é um mundo novo e não temos ideia do que vai acontecer. Temos claro uma série de projeções, de especulações – próxima, aliás, como vimos, dos Guaranis – de como o mundo vai acabar. Nosso cenário é tão inquietante hoje quanto o dos Guaranis.

Mudança climática é na verdade um dos parâmetros para compreendermos a atual crise. Há muitos outros parâmetros – que delineiam muitas outras mudanças – para medir essa crise.

Antropoceno, apesar de ter o nosso nome, não nos elogia! O que se quer dizer com ele é que a humanidade tornou-se uma força geofísica. Alguns argumentam que não é a humanidade inteira que se tornou uma força geofísica, mas o capitalismo, as classes dominantes, as sociedades privilegiadas e, principalmente, os países que consomem combustíveis fósseis e energia em geral, mas isso tem efeitos sobre a população de todo o planeta. O problema é que a população inteira do planeta tende a adotar os padrões de consumo energéticos modelados nos padrões de consumo dos países que conduzem as ¨locomotivas antropocênicas¨, os países que conduzem as mudanças climáticas.

Então, há uma espécie de inversão de figura-fundo que caracteriza relação entre humanidade e ambiente! Retomemos a argumentação: antropoceno designa o fato de que a humanidade se tornou uma força geofísica.O nome Gaia vem também junto à noção de antropoceno, só que no sentido inverso. A Terra tornou-se um personagem, um interlocutor político, ao mesmo tempo que o homem tornou-se uma força geo-política. É como se tivéssemos nós, os homens, passado para o fundo e a Terra tivesse passado para a frente. Uma inversão súbita entre figura e fundo que só pode dar errado! É uma inversão fantasmagórica e aterrorizante e nela desaparece a noção de escalas: uma escala de tempo geológica e uma escala de tempo antropológica – essas escalas eram de ordem e magnitudes completamente diferentes. O que se vê hoje é o colapso dessas escalas a tal ponto que há mudanças na estrutura da atmosfera, na circulação dos ventos que se modificam em um tempo mais rápido que os sistemas sociais! E isso é, no mínimo, irônico e, no máximo, aterrorizante.

Essas considerações levam a outra implicação: à ideia do fim da natureza como um pano de fundo imóvel ou muito lento contra o qual nós evoluímos, contra o qual podíamos medir e calibrar nossas ações. O que estamos vivendo hoje é ainversão das escalas, colapso das escalas.

Dito de outra maneira trata-se da ideia mesmo de destruição do ambiente; num certo plano a noção de ambiente desapareceu visto que houve uma interiorização – introspecção – do homem, e as plantas e animais passaram a ser lidos como internos ao ambiente humano e não mais o homem como parte do ambiente!

Isabella Stengers, filósofa belga, recusa a ideia de crise ambiental, recusa a ideia mesmo de crise – a ideia de crise supõe que se vá sair dela e nós não vamos sair do que está acontecendo, porque já aconteceu, nós estamos vivendo os efeitos da ação humana que há muito aconteceu. Isabelle Stengers prefere o termocatástrofe ambiental e muitos insistem que essa é uma visão catastrofista, melancólica, pessimista – dessa mesma visão partilhavam, segundo Nimuendajú, os Guaranis na figura dos xamãs Apokokuvas-guarani entre 1905 e 1912, período de sua pesquisa. Esse pessimismo, dizia o etnólogo no início do século XX, era próprio de uma raça, próprio de um povo cansado de lutar, cansado de ser perseguido. Para os Guaranis, a própria terra estava cansada. Mas como veremosos Guaranis não são apenas pessimistas, pois imaginam também uma renovação do mundo. Tudo isso, e principalmente o pessimismo e a melancolia, ecoa a nossa situação atual.

b) Bruno Latour entende hoje que estamos em um estado de guerra; ele diz também que há uma diferença fundamental entre estado de guerra e estado de polícia, pois na guerra não há árbitros, não há um terceiro termo. A guerra se decide entre duas partes, sem árbitro. E nessa guerra estão de um lado osHumanos e ele diz isso com evidente ironia. Os Humanos, para Latour, somos nós, os modernos que pretendem conquistar todo o planeta para o padrão de consumo americano. Aos Humanos Latour opõe os Terranos – os habitantes da Terra. E é preciso decidir de que lado estamos nessa guerra. Latour diz também que essa de-cisão não será tomada tendo como base argumentos científicos e isso porque o consenso científico é maciço no sentido de que  existe uma grande crise ambiental e que essa crise é de origem antrópicaantropocênica e, todavia, esse consenso não impede que haja contestação! Não é bem assim dizem uns; não é antropocênica dizem outros. Assim, a ciência pode apresentar dados irrefutáveis e isso não impedirá e não impede a controvérsia e a continuidade da ordem existente. E isto porque a controvérsia não é entre ciência e não-ciência, mas é uma controvérsia política; é uma controvérsia em torno do tipo de Mundo, do tipo de Terra que queremos viver. Trata-se então de uma disputa de valores. Os índios são uma espécie de resposta viva: eles estão a nos apontar que existe outra forma de viver, outros Mundos além daquele dos brancos!

Lembro também que – para Viveiros de Castro – os climatocéticos sãonegacionistas, por analogia, com os  historiadores que diziam e dizem que não houve extermínio em massa dos judeus, não existiu a shoah e isso tudo não passa de conspiração do Estado de Israel! São os negacionistas. Os que estão preocupados com a catástrofe ecológica também chamam os que põe em dúvida a crise atual de negacionistas negam o óbvio  e através da negação afirmam  em que Mundo querem afinal viver!

No final de sua última conferência, em fevereiro de 2013, em Edimburgo a respeito da Gaia e do Antropoceno, Bruno Latour diz que há uma guerra entre os Terranose os Humanos. E então ele nomeia os Humanos: são os modernos. Ou seja, osHumanos não é para ele o Homo Sapiens. Os Humanos são todos os entes que fazem parte da modernidade, do projeto moderno e então inclui entre os Humanosos computadores, os animais domésticos, as armas químicas, os cachorros policiais. Todos esses entes fazem parte do exército dos Humanos. Os Terranosnão se sabe, todavia, bem quem são. Quem seriam os Terranos se pergunta Latour? Ali estariam todas as espécies em extinção (sementes/ animais/água/ar/humanos/polo norte/terra), inimigos naturais dos Humanos, ameaçados  ontologicamente. Mas entre os Terranos, claro, está estão também humanos. São o ¨povo de Gaia¨, numa ficção positiva do termo. O ¨povo de Gaia¨ está em oposição ao ¨povo da Natureza¨ que são os modernos, que acreditam em uma natureza transcendente, com leis únicas, absolutamente racional, dominável e controlável – uma ficção negativa do termo.

Latour se pergunta: é possível aceitar como ¨povo de Gaia¨, a pachamama, a deusa natureza, de que falam os ameríndios e outros povos não modernos? Para Latour, esses povos têm se adaptado à retórica ambientalista ocidental para, compatibilizando suas cosmologias e seus projetos existenciais, serem ouvidos pelas sociedades dominantes do hemisfério norte. Latour não acredita que esses povos possam fazer parte do ¨exército dos Terranos¨. Parece que há nesses povos respeito pela Terra, mas só parece, pois são impotentes na medida que sua tecnologia é fraca e sua população ínfima. Esses povos, de acordo com Latour,  chamados de tradicionais sem tecnologia, em pequenos número,  não tem um modo de vida que os qualifique para o ¨exército dos Terranos¨.

Para Viveiros de Castro, é exatamente isso que Latour lê como impotência que pode ser um recurso crucial para um futuro pós-catastrófico que, diga-se de passagem, Latour acredita que vai acontecer. Para o antropólogo brasileiro somos nós os brancos industrializados, em rede, estabilizados farmacologicamente que terão que ¨descer¨ – ¨perder as proporções gigantescas de vida¨ – e isso em todos os sentidos.

Pergunta-se ainda Viveiros de Castro: será que são de fato minorias e o pequeno número demográfico deve ser levado em conta como propõe Latour? A ONU estima oficialmente em 370 milhões de pessoas o número de minorias indígenas no planeta – estariam encapsuladas nos Estados Nação, mas não coincidiriam com os Estados Nação Ou seja, enfatiza Viveiros:a minoria não é tão minoria assim. É pois um ¨exército de Terranos¨ considerável!…

III) E a Psicanálise com isso?

Tenho alguns palpites a respeito disso, e desde já insisto que as idéias que seguem é de minha inteira responsabilidade, e nem Bruno Latour nem Eduardo Viveiros de Castro têm qualquer participação nelas, nas ideias. Também enuncio desde já que se trata de uma brincadeira séria, muito séria, e que foi escrita com total liberdade criadora e com muito bom humor. Engraçada e pessimista sob alguns aspectos; séria e esperançosa sob outros.

Por exemplo, se Bruno Latour e Viveiros de Castro se submetessem a uma psicanálise clássica e oferecessem logo no primeiro dia para um zeloso psicanalista as duas ideias discutidas acima – notícias sobre o fim do mundo e a nova aliança política proposta entre Terranos x Humanos – e insistissem, como fazem acima, que há uma guerra planetária em curso; se isso acontecesse, temo que seriam considerados psicóticos, delirantes, com estranhas e perigosas fantasias. E, se o eminente psicanalista fosse uma pessoa medrosa, creio também que, além de diagnósticá-los, convocaria discretamente uma ambulância, e eles seriam gentilmente retirados do consultório do analista em camisa de força e imediata e fortemente medicados!

É engraçado e trágico pensar isso, mas lastimo dizer, a probabilidade de isso acontecer seria grande! Como posso supor – o leitor tem todo direito de me perguntar – que isso aconteceria? Como a  ¨ciência da escuta¨ não levaria em conta a lucidez do prof. Viveiros de Castro? Por que consideraria suas agudas percepções como fantasias psicóticas delirantes? Antes de responder, prossigo por um momento no meu argumento: as percepções dos antropólogos que, diga-se de passagem, supõem dados oferecidos pela própria ciência climática, têm também por base uma gigantesca desconstrução da subjetividade moderna. Não é possível chegar a tais percepções pela via do intelecto. Ambas as questões envolvem infinitos des-locamentos emocionais, infinitas outras desconstruções. O que está em curso nos antropólogos citados – e numa grande massa de indivíduos – é então uma gigantesca des-construção da subjetividade moderna. Ora, a psicanálise também desconstrói a subjetividade moderna, já que enuncia um sujeito duplo – consciente e inconsciente – e é nisso que reside seu potencial crítico. A desconstrução subjetiva e emocional, todavia, do ¨povo de Gaia¨ foi muito além e desconstruiu e desconstrói a própria subjetividade psicanalítica! O ¨povo de Gaia¨ está deixando de ser antropocêntrico e quebrou as fronteiras entre-mundos, incluindo no seu universo político, na Terra que querem viver, outros seres: as plantas, os animais, os seres invisíveis, o ar, o clima, as sementes, Gaia.

As duas questões discutidas nessa palestra pelo antropólogo Viveiros de Castro só poderão então ser escutadas por aqueles que se desconstruíram emocional e cognitivamente na direção do ¨povo de Gaia¨.

Os antropocêntricos não podem então escutar compreender as propostas acima. Dou exemplos: Eduardo Viveiros de Castro fez, em 2010, uma palestra na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP – intitulada ¨O Anti-Narciso: lugar e função da antropologia no mundo contemporâneo¨. A palestra do antropólogo foi publicada no volume 44 da Revista Brasileira de Psicanálise[3].Junto com a palestra dois comentadores escolhidos a dedo entre os analistas da Instituição foram convidados a comentar a fala de Viveiros de Castro. Para meu espanto eles não compreenderam nada da palestra do antropólogo! Dediquei a isso a postagem de agosto/2012 e até agora me sinto traumatizada com esse debate, já que é óbvio que os psicanalistas poderiam dialogar e discordar de forma radical das ideias expostas sobre o pensamento ameríndio e a nova antropologia. Mas, não poderiam – como foi o caso – nada compreender daquilo que foi exposto! Nem as piadas eles compreenderam! Isso que aconteceu foi traumático, mas também revelador para mim de que as novas sensibilidades não são passíveis de serem aprendidas pela psicanálise clássica. E por psicanálise clássica estou entendendo todos aqueles que vivem sob o espírito de O mal estar da civilização, sob a égide de Totem e Tabu e com a bíblia embaixo do braço, refiro-me ao livro O Futuro de uma Ilusão de S. Freud. Assim como o espírito da política é Maquiável – e o PT está aí para demonstrar quão verdadeiro é a presença desse Pai-fundador na política atual -, a psicanálise que eu chamo clássica vive sob a égide de O Mal estada Civilização e não abre mão da civilização de ¨mão única¨  proposta por Freud, e nela a ideia que a repressão instintual  é  inquestionável ainda que o preço sejam as guerras – mundiais diga-se de passagem. Lembremo-nos quanto Hebert Marcuse em Eros e Civilização tentou dar um basta à civilização de mão única! O problema é que o mundo mudou e o preço hoje deixou de ser tão somente (o que já era bastante!) as guerras mundiais, o problema hoje é o fim do mundo! Mas entre a realidade e o pai-fundador nessas premissas fechadas – porque excetuando-as  abraço eu também o pai-fundador – os psicanalistas clássicos dão as mãos para o pai-fundador e não para a realidade sob seus olhos!

Centenário de Totem e Tabu, escrito por S. Freud e publicado em 1913, o livro mereceu uma re-edição e também debates no Brasil. Freud visava, como se sabe, formular uma nova ¨cosmologia¨, um novo pensamento sobre a condição humana e o mundo. Nela, narra a origem da hominização a partir de um passo fundante que jogou o homem dentro da sociedade, regida doravante por regras (tabus) e não mais pela força do patriarca despótico – figura cuja a força se manifesta nos totens[4]. No centro de nossa cultura temos agora, a partir de Totem e Tabu, um assassinato e um repasto antropofágico. Eis que tornamo-nos humanos após uma insurreição dos filhos, membros da horda primeva, que revoltados contra o despotismo do pai, tomam-lhe o poder, matam-no e devoraram-no. Diz ainda o articulista: ¨esta história estaria esquecida, enterrada na origem da humanidade¨[5], mas seria atualizada nos indivíduos através do complexo de Édipo:  o drama social assim se atualizaria desde sempre e sempre! E conclui o articulista: essa narrativa sintetizava todo um saber antropológico, etnológico, filosófico, histórico, social e psicanalítico. Tem alguma importância para o ¨saber psicanalítico¨ que Freud, ao tratar dos povos ditos ¨primitivos¨, não conseguira se livrar da visão linear, evolucionista e eurocêntrica[6]Sinto dizer, mas para a psicanálise isso não tem nenhuma importância, pois como dizem seus adeptos ¨suas conclusões são totalmente sustentáveis ainda hoje[7]¨. O que fazer frente a uma surdez desse porte?!

Concordo com V. Safatle quando ele diz, de maneira muito inteligente e sem desgostar ninguém, que o único universal que persiste é o mal estar[8]– Unbehagen – o indivíduo na modernidade é arrancado da tradição e lançado ao desabrigo, sem lugar e sem clareira. Penso que qualquer outro universal, Édipo, por exemplo,  tornou-se repressivo – e então me compreenda o leitor não tenho nada, muito ao contrário, contra Édipo, a castração e o princípio de realidade, que esses dispositivos da subjetividade ensejam, são bem-vindos em qualquer clínica, desde que não se pretendam universais!

Dou um exemplo a partir da minha experiência pessoal: frequento os psicanalistas clássicos – debates não faltam em São Paulo, também supervisões clínicas  –  não tenho com eles uma conversa em torno do assunto dessa palestra, raramente, falo do ¨povo de Gaia¨  ou do ¨exército dos Terranos¨ e, todavia, vivo combatendo o universalismo, vivo combatendo a ideia de que Édipo e a castração ensejam o único princípio de realidade possível, e, para meu espanto, eles não compreendem o que eu falo! No início pensava que se tratasse de má vontade, agora sei que não é, é mais grave, pois se trata de uma construção emocional e mental que não lhes permite  por em dúvida o mundo que habitam,  o  mundo  moderno (quando, seja bem dito, este mundo, moderno, está em acelerada desconstrução). E isso não deixa de ser engraçado porque ninguém mais se preocupou com a realidade, com o princípio de realidade, com a aceitação da realidade do que a psicanálise clássica. O problema, inesperado e imprevisível problema, para eles, é que a realidade está mudando! Dito mais precisamente a desconstrução da subjetividade, desconstrução emocional e psíquica – tendo como base o homem moderno e o homem edipiano – nos permite entreabrir umanova percepção da realidade que, doravante, temos chance de compartilhar. O século XX com suas matanças sem fim, com muitos genocídios, com o totalitarismo sempre à nossa espreita, trouxe-nos essa preciosa abertura, a compreensão que a realidade é múltipla e depende dos nossos olhos, da nossa matrix emocional/psíquica/espiritual. Um milagre, como experiência,  se pôs para nossa contemplação e então para nosso pensamento. Por essa realmente ninguém esperava!

De novo é surpreendente que seja assim, mas é assim! A psicanálise clássica é a mais antropocêntrica das disciplinas humanas[9] e valendo-me da fala também lúcida de Davi, dos Yanomamis, põe os homens para ¨sonhar consigo mesmos¨. Principal aliada dos Humanos – modernos e achando imensa graça na era doantropoceno – a psicanálise clássica não vê e não verá com bons olhos osTerranos e não se deixará tocar pelo ¨povo de Gaia¨. E então lá – na Sociedade Brasileira de Psicanálise –  a fala perspicaz do prof. Viveiros de Castro não pode ser escutada e compreendida. A construção emocional e cognitiva – tendo Édipo como centro – impede-os de fazer essa  escuta porque o princípio de realidade a que tem acesso é edipiano e, com ele, fronteiras rígidas entre-mundos. Édipo reina soberano com os Humanos – modernos e seus infindáveis dispositivos mortíferos. E isso para mim revela que o problema não é somente o negacionismoaludido por Viveiros de Castro mas, mais sério ainda, o que está em jogo é uma determinada construção emocional e cognitiva: moderna e edipiana. A guerra então não é de persuasão, de convencimento; a guerra está se dando entre modos de ser modos de ver.

/////////////////////////////////////////

E as outras correntes da psicanálise seriam possíveis ¨aliados¨ dos Terranos,acolheriam ou pertenceriam ao  ¨povo de Gaia¨?

Os junguianos por exemplo? Seriam sim, poderiam participar da aliança com o ¨povo de Gaia¨ se abandonassem seus sonhos conservadores, passadistas e prestassem atenção no imenso perigo que vem pela frente! E, tenho claro e afianço para os meus leitores que tirar os olhos do passado e pô-los no presente é um desafio gigantesco para um junguiano. Desde sempre o movimento junguianotem aversão-afetiva pelo ¨povo da Natureza¨ e pelos Humanos – modernos e como forma de resistência lançaram seu olhar para o passado esperando seguramente dias melhores. E lá ficaram com os olhos voltados para o passado durante todo o século XX! Agora, os dias melhores para eles chegaram, e se ousarem olhar para o presente, os termos da aliança com  o ¨exército dosTerranos¨  poderia se dar via  sensibilidade romântica da escola junguiana e o amor que eles tem por Dionísio, afinal o corpo dionisíaco é, enquanto tal, abertura cósmica. Não foi isso que aprendemos com F. Nietzsche?  Acrescente-se a isso que Jung um romântico inveterado e tardio buscava os arquétipos nos homens e também nos animais e isso seria a base comum da aliança entre homens a seres vivos em geral. E, saliente-se, Jung não negligenciava o mundo inorgânico, pois em uma bela passagem de Memórias, Sonhos e Reflexões tem  sérias dúvidas se ele é uma pedra ou se a pedra é ele! Os Humanos psicanalíticos, aliados ao ¨povo da Natureza¨, costumam ver de forma bem  crítica essa passagem já vendo nela a psicose latente de Jung! E, todavia, essa dúvida angustiante que Jung empreendia com o mundo inorgânico é parte da sensibilidade romântica e alquímica do unus mundus. De qualquer maneira há nas ideias de Jung uma possibilidade de unir e sentir mundos diversos e de sonhar objetivamentepara foracom o exteriorcomo propõe Davi Kopenawa, líder dos Yanomami. Jung e seus pacientes sonharam seguidamente e anos antes com a Primeira Guerra Mundial!

Além disso, o mundo junguiano é um mundo encantado graças à ideia de sincronicidade que correponde às afinidades eletivas[10] de Goethe, e com elas a retomada de uma única substância – pensamento e matéria – de B. Espinosa. A experiência da sincronicidade é, enquanto tal, diálogo entre-mundos: o ser humano – e não só ele por suposto – com as plantas, florestas, pedras, gnomos, fadas, seres invisíveis em geral.

Poder-se-ia objetar que são os seres humanos que, através do que chamam sincronicidade, estabelecem o sentido e a significação para  os outros seres, orgânicos e inorgânicos. E, então, eu diria não é bem assim se, de fato, levarmos em conta as afinidades eletivas de Goethe, um dos pilares de Jung para tecer o conceito-experiência de sincronicidade – e só se compreende isso, como disse acima, se levarmos em conta Espinosa e os Românticos que liam o mundo a partir de uma única substância. Em uma sincronicidade vivida como experiência profunda é a pedra, por exemplo, o animal ou uma semente que detém o segredo do significado para o humano e, não raro, encontramos alguém que tem a sensibilidade junguiana fazendo uma circuambulação em torno da pedra, do animal, de uma semente, por anos, às vezes por décadas, abrindo-se para a pedra e/ou a semente detentoras do segredo da significação! A narrativa de um junguiano, de uma pessoa que tem essa sensibilidade, é a do ¨povo de Gaia¨ com certeza.

Em relação a essa escola de psicologia a aliança com os Terranos e com o ¨povo de Gaia¨ se resolveria mais facilmente, já que não são antropocêntricos e o fechamento não é de ordem cognitiva-emocional. São, sim, possíveis aliados.

////////////////////////////////////////////

E os lacanianos veriam com bons olhos os  Terranos? Seriam simpáticos ao ¨povo de Gaia¨?

Pouco posso dizer sobre os lacanianos, não os conheço bem. Dois lacanianos, porém, chamam minha atenção, e talvez com eles, refiro-me a W. Safatle e C. Dunker, os Terranos encontrariam algum acolhimento. Ao que parece são parceiros intelectuais e propõem a travessia do Imaginário para o Simbólico e então o Real. Vale dizer, levam sim o Real – do último Lacan – em conta – ao contrário de outros lacanianos que só pensam a clínica até o simbólico. Safatle, em particular, concorda com Deleuze quando critica aqueles que acreditam que fora do Eu, fora do indivíduo moderno, só pode haver caos.  Safatle pensa que essa é a pior de todas as falhas morais, já que nos prende na defesa do sempre idêntico[11].

São as premissas de Lacan que nos ajudam a compreender por que, para Safatle, ¨há uma humanidade por vir e não temos o direito de temê-la¨[12]. Uma dessas premissas é que para Lacan, ¨toda a socialização é alienação¨. Ou só há sujeito fixo graças a repressão, e então a verdadeira fonte de sofrimento é resultante do caráter repressivo da identidade: ¨dessa identidade que devemos internalizar quando passamos por processos de individuação e de constituição social do Eu. Daí porque Lacan será tão sensível às temáticas vanguardistas de dissolução do Eu e de desarticulação de seus princípios de síntese enquanto condição para o advento de uma experiência capaz de realizar exigências de autenticidade. Isso a ponto de ele afirmar ser a análise uma ¨experiência no limite da despersonalização¨[13].

Outra premissa é que a psicanálise nasce no momento de crise profunda da modernidade ocidental. Mais enfaticamente, a psicanálise, ela mesma, é osintoma maior dessa crise que nos levou a colocar em questão nossos ideais normativos sobre auto-identidade, sexualidade, modos de socialização, justiça e, sobretudo, nossas ideias sobre o que estamos dispostos a contar como racional[14]. Sintoma dessa crise, a modernidade oferta para o pensamento – eu diria para o pensamento psicanalítico, mas não só ele – uma outra concepção do humano:…¨uma concepção que insiste na importância de experiências deconfrontação com o inumano, com o despersonalizado, com oindeterminado, para a formação de uma práxis emancipada. Pensar como a verdadeira práxis virá da capacidade que sujeitos devem desenvolver em se confrontar com o que não tem a figura de ¨humanidade¨ do homem: eis uma tarefa que Lacan nos deixou¨[15]. Confrontar-se com o que aparece como ¨Inumano¨ no interior do desejo, desprovido de imagem identitária do homem: uma potência de indeterminação e despersonalização que habita todo o sujeito. Daí o impacto político da ênfase no Inumano, pois através dessa  noção redimensiona-se a teoria do reconhecimento: como reconhecer aqueles que não se configuram completamente como indivíduos no sentido que nós entendemos[16]?

É exatamente daí que parte C. Dunker, feroz observador das transformações da subjetividade na alta modernidade, justapondo e aproximando o ¨perspectivismo ameríndio¨ e os ¨tipos clínicos¨ recém  configurados por ele: zumbis[17], mortos-vivos, frankensteins[18] e psicoses! Os nomes propostos por Dunker não são nada simpáticos e à primeira vista parece estranho aproximá-los do ¨perspectivismo ameríndio¨  de Viveiros de Castro. Em um primeiro momento essa justaposição pareceu-me grosseira e injustificável, mas aos poucos foi ganhando algum sentido para mim e, de repente, foquei minha atenção nas proposições do psicanalista e as novas sensibilidades em curso – ainda que descritas por ele como ¨experiências de sofrimento¨. Zumbis e Frankensteins sofrem com a falta de experiências produtivas de indeterminação pois para eles os processos de racionalização aparecem como vazio indiferente ou como experiência caótica de si e do mundo. Vale dizer, o Real aparece como impossível. É nesse momento que Dunker conclui, confesso que para o meu espanto: …¨os Zumbis e Frankensteins estão mais próximos daquilo que o antropólogo brasileiro Viveiros de Castro chamou de perspectivismo ameríndio (ou seja, uma cultura na qual a identidade não é tratada como um fato de origem e onde a experiência de reconhecimento está sujeita a elevados níveis de indeterminação)¨[19].      O perspectivismo ameríndio estaria então  mais próximo da experiência do inumano, já que a vivência do laço social não se baseia na perspectiva de identidade. É disso que se trata?

Classificar e pensar não fazem boa parceria!  Essa sede classificatória e diagnóstica de Dunker  é amiga fácil de estereótipos e inimiga do pensamento. Osmodos de ser existenciais tendem a ser duramente ofuscados por classificações e diagnósticos. Quando C. Dunker classifica e aproxima as formas de sofrimento atuais – que ele com muita sensibilidade e perspicácia recupera – do perspectivismo ameríndio, por suposto não nos ajuda a pensar! Acrescente-se a isto que C. Dunker não precisa da nova antropologia nem do perspectivismo ameríndio para construir a sua argumentação. Para quê então ele faz isso? E me vejo obrigada a fazer uma pergunta incomôda: Bruno Latour, Viveiros de Castro, Davi Kopenawa como seriam classificados? Seriam eles também Frankensteins, Zumbis, Mortos Vivos, Psicóticos  – ainda  uma vez?

//////////////////////////////////////////

Outro tanto poderia ser dito em relação à esquizoanálise, paraíso dos Terranos, e do ¨povo de Gaia¨, e isto porque eles – os humanos que participam desses grupos –  existem e subsistem a partir de duas qualidades  pelo menos nesse momento: uma de-cisão a partir de valores, quero dizer, de-cidiram-se por esses grupos respondendo à pergunta ¨qual a Terra que queremos viver¨? Uma Terra onde a vida não acabe. Decidiram-se então pela Vida e a outra qualidade de ambos os grupos é que seus ¨adeptos¨ provém de entre-mundos: vegetais, animais, humanos, sementes, pedras, ar, terra, água: todos os ameaçados de extinção! Ora, a esquizoanálise de F. Guattari e G. Deleuze é propiciadora do valor Vida, aliás, vida vibrátil, vida pulsante em sua potencialidade máxima! E, também, vamos sugerir em seguida, pode ser patrocinadora dessa aliança entre-mundos .

A esquizoanálise é compreendida como uma ética-estética de valorização da vida, e quem participa dessa experiência se lê a partir de uma perspectiva – não tem em mãos – muito longe disso –  uma metodologia e/ou uma teoria universal. Como uma perspectiva convive com todas as outras abordagens  sejam dialéticas, estruturalistas ou qualquer outra. Como perspectiva, a esquizoanálise é muito mais do que uma prática clínica, sua intenção, aliás, foi e é de romper com os saberes instituídos em troca de um saber subterrâneo ao qual Deleuze e Guattari chamaram de rizoma, termo extraído da botânica. O ¨povo de Gaia¨ precisa romper com os saberes instituídos, a esquizoanálise lhes convém pois. Convém-lhes também porque a esquizoanálise não tem modelos para a vida; não há modelos existenciais bons e maus, mas infinitas possibilidades existenciais. A melhor atitude, a melhor possibilidade existencial, é aquela que produz uma vida mais vibrátil e pulsante. A vida só pode ser julgada pela própria Vida! E, todavia, há sempre duas lógicas em jogo: a lógica maquínica – que corresponde à subjetividade instituída e produzida socialmente através do ¨inconsciente maquínico¨ e/ou ¨inconsciente capitalísta¨[20] – e nesta lógica os corpos perdem a sua potência de expressão e há a construção de sujeitos narcísicos; mas, também há a lógica pulsátil presente nos corpos vibráteis que não repelem a sensorialidade, visto que procuram uma existência plena e para isso desejam afetar e ser afetados.

A esquizoanálise trabalha também com a ideia de agenciamentos e esse conceito-experiência supõe disparidade – agenciamentos díspares –  e precisa ser ordenada desde o ponto de vista da imanência, a partir do qual a existência se mostra indissociável de agenciamentos variáveis e remanejáveis que não cessam de produzi-la. Há agenciamentos ¨molares¨ e  os agenciamentos ¨moleculares¨  – e  todo agenciamento remete em última instância ao campo do desejo sobre o qual se constitui . Então a maneira como cada indivíduo investe e participa da reprodução de agenciamentos sociais depende de agenciamentos locais, ¨moleculares¨ e, através desses últimos, cada indivíduo, introduz suas pequenas irregularidades. Cada um de nós combina concretamente os dois tipos de agenciamentos em graus variáveis, o limite é a esquizofrenia como processo – deterritorialização absoluta. Cito Mil Platôs: ¨Se a instituição é um agenciamento molar que repousa em agenciamentos moleculares (daí a importância do ponto de vista molecular em política: a soma dos gestos, atitudes, procedimentos, regras,disposições espaciais e temporais que fazem a consistência concreta ou a duração – no sentido bergsoniano – da instituição, burocracia estatal ou partido), o indivíduo por sua vez não é uma forma originária evoluindo no mundo como em um cenário exterior ou um conjunto de dados aos quais ele se contentaria em reagir;ele só se constitui ao se agenciar, ele só existe tomado de imediato em agenciamentos¨[21].  E concluo apostando que a esquizoanálise é uma prática micropolítica que só  ganhará  sentido com referência a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares que proliferam a partir de uma multidão de mudanças mutantes: tornar-se mulher, tornar-se criança, tornar-se velho, tornar-se animal, planta, cosmos, tornar-se invisível…[22].

A noção acima, o ¨indivíduo só se constitui ao se agenciar¨, libera o poder de afecção dos indivíduos, para o entre-mundos – uma individuação por hecceidades e não por meio de características identificantes. E com isso, a esquizoanálise é aberta a novas formas subjetivas, novas formas de compor a vida, novas alternativas de reapropriação existencial que, porventura, novas coletividades humanas e de indivíduos venham a ¨agenciar¨: vidas vivas, vibrantes e então muito diferentes das formas de vida pobres que a subjetividade maquínica nos impõe.

/////////////////////////////////////////////////

Muitas outras escolas da área-psi teriam como contribuir com o ¨exército dosTerranos¨ e com o ¨povo de Gaia¨. E, todavia, paro por aqui.

Uma palavra em torno do meu consultório. Sabe-se que um analista neurótico atrai muitos pacientes neuróticos, um analista com um certo traço mais esquizoide atrai muitos pacientes esquizoides, um analista ferido narcísico atrai muitos pacientes também feridos primais. Tudo isso se dá por afinidades eletivas! Claro que nem todos os analistas tem essa percepção à mão, refiro-me à sincronicidade, e então, não raro, acreditam que no mundo só tem neuróticos e  esquizóides, por exemplo, e continuam então ¨sonhando só consigo mesmos¨ – como denuncia Davi Kopenawa.

No meu consultório aparecem muitos Terranos, a maioria dos meus pacientes sãoTerranos – cá e lá um Humano do ¨povo da Natureza¨ acolhido também com muito amor . Mas estes últimos não são numerosos. Quero com isto dizer que há sim uma nova sensibilidade cuja ¨experiência de sofrimento¨ é a de não adaptar-se ao mundo dos Humanos – modernos do ¨povo da Natureza¨. Essa não adaptação, claro, traz muito sofrimento, mas começa-se a dizer não para o princípio de realidade instaurado pelo Humanos modernos e edipianos. A guerra está ganhando corpo.

—————————————–

[1] Frente ao impacto que tive ao escutar e compreender as palavras do Prof. Viveiros de Castro em ambos os vídeos não resisti e fiz o mapa natal do antropólogo e seus trânsitos nos próximos anos. Eduardo é do signo de Áries e nasceu a 19 de Abril de 1951, na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se então de um ariano e qualquer astrólogo escutando-o pode apreender isso facilmente. Não sei o horário que o antropólogo nasceu e então não sei qual é o ascendente. E, todavia, só com os dados que tenho posso ter muitas informações sobre ele. Seu sol está a 28 graus e 43 minutos e a imagem Sabeu ( símbolo tradicional da astrologia) do sol é: a large audience confronts the performer who disappointed its expectations (¨Uma grande plateia confronta o artista que frustrou as expectativas do público¨) . Como interpreto esta imagem? O ariano inicia novos mundos, esse é o seu fazer, pois é um iniciador. Ao iniciar um novo mundo, claro, sempre frustra a expectativa de muitos!É inevitável.

A Vênus do Eduardo está a 5 graus de gêmeos e o símbolo sabeu que lhe corresponde é: a revolutionary magazine asking for action (¨Uma revista revolucionária pedindo ação¨) . Desde 2011 Netuno em peixes, um dos grandes deuses da mudança, está fazendo uma quadratura com a Vênus do antropólogo e isto significa que ele se abriu para a ¨unidade da vida¨. Dito de outra maneira sua forma de amar e de criar mundos desde há alguns anos transformou-se pois cairam as fronteiras entre-mundos.Netuno dissolve as fronteiras entre-mundos e abre para todos nós, quando passa pela Vênus ou pelo sol, a ¨unidade da vida¨.Em 2013, 2014 e 2015 Netuno fez e estará fazendo quadratura exata a 5 graus de gêmeos e – prosseguirá em conjunção ainda por alguns anos –e então Viveiros está e estará no auge dessa apropriação: criação de mundos a partir da ¨unidade da vida¨. E isso nos permite ler poéticamente então o símbolo Sabeu que corresponde a Vênus: escritos revolucionários que pedem ação!

Este trânsito de Netuno quadrando Vênus é então quem dará uma tonalidade especial aos dois grandes trânsitos sobre o Sol do antropólogo. Urano em Áries, o imprevisível, e Plutão em Capricórnio, o transformador,farão respectivamente conjunção e quadratura com o Sol do antropólogo. Urano a partir de 2015 já estará fazendo conjunção com o Sol  e fará conjunção exata em 2017 e 2018 – prosseguindo ainda em conjunção por alguns anos.Plutão estará fazendo quadratura com o Sol de Eduardo a partir de 2018 e quadratura exata em 2022 – e por alguns anos ainda a partir dessa data. O que significa isso? Significa que esses dois planetas transpessoais trarão à tona as sementes genuínas da individualidade do antropólogo e com isso ele dará inícios – já que é o que melhor sabe fazer! – a mundos a partir de sua singularidade máxima. Quem viver, verá!

[2] A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami¨ é um relato único da história de vida de Davi Kopenawa. Relata a sua iniciação como xamã e os primeiros encontros com os forasteiros brancos. Descreve também a rica cultura, história e modos de vida dos habitantes da floresta e não se furta a descrever suas impressoões da cultura ocidental. O livro foi publicado em francês e em inglês e será publicado em português em 2014.

[3] Volume 44, número 4, 15-26, 2010, cujo tema é Alteridade.

[4] Freud e uma nova origem da espécie. Márcio Seligmann-Silva, Folha de São Paulo, 29/12/2013.

[5] Idem, ibidem.

[6] Idem. Ibidem.

[7] Idem. Ibidem.

[8] Cito-o: ¨Sim, há algo universal. É o desconforto das pessoas com suas limitações identitárias. Essa experiência é partilhada em qualquer tempo e lugar; define a condição humana. Dizer isso é o desdobramento de uma ideia freudiana: o mal estar é quem define o homem. Se quisermos podemos dizer que o mal estar é uma categoria ontológica[…] Então, acho que é possível construir experiências políticas, estéticas e reflexões clínicas, fazendo apelo a essa dimensão profundamente essencial que é a experiência do desconforto¨. Cult 186, ano 16/ dezembro de 2013. Entrevista com W. Safatle, ¨A Filosofia nua e crua¨.

[9] Talvez os bionianos ( W. R. Bion) possam abrir-se para essa escuta e isso em função da noção de inconsciente como potencialidade infinita. A mente primordial, realidade primeira do mental, para Bion, poderia bem ser pensada como transpessoal e mesmo transespecista – e é sim possível pensá-la para além da espécie homo sapiens.Da  mente primordial de Bion faz parte a  história mesmo do cosmos e o futuro do cosmos: é o Ó,  inominável, infinito, informe e é em direção ao Ó que se dá a expansão da mente. Bion discípulo e analisando de Melanie Klein parte, com certeza, da personalidade edipiana, mas tende para ummais além, para o infinito, para Ó.

[10] Afinidades Eletivas  é um romance de Goethe, que eu também recomendo;  sofreu publicações em vários selos editoriais.

[11][11] Cult, número 186, já citada, p. 11.

[12] Idem.

[13] Confrontar-se com o Inumano, Revista Cult, número 125, grifos meus.

[14] Confrontar-se com o Inumano. Op.cit.

[15] Idem, grifos meus.

[16] Cult, número 186, p. 11.

[17] C. Dunker é um psicanalista atento aos sofrimentos que se constelam como invenção e resposta às transformações no horizonte da nossa época. Uma dessas formas de sofrimento que o autor generaliza tomando como parâmetro as observações de W. Benjamim sobre os soldados que voltavam da Primeira Guerra Mundial refere-se à impossibilidade de narrar, de nomear, de dizer o sofrimento. Esse sofrimento hoje generalizado, expressa a brutalidade do choque, o inominável da experiência que silencia e, doravante, os que dele participam estão tais como os combatentes de guerra ¨narrativamente lesados¨, na medida em que não conseguem inscrever seu sofrimento em um discurso . Cito Dunker: ¨Seu paradigma literário são os zumbis ou mortos-vivos, seres funcionais que repetem automaticamente uma ação, incapazes de reconstruir a história da tragédia que sobre eles se abateu. Parecem seres que perderam a alma e cujo sofrimento aparece em meio a mutismos seletivos, fenômenos psicossomáticos e alexetimias ( dificuldade de perceber sentimentos e nomeá-los)¨. Revista Cult 174 – 19/11/2012. O artigo de C. Dunker chama-se ¨O real e a verdade do sofrimento¨.

[18] Na direção inversa, Dunker recorrerá à ¨antropologia do inumano¨ proposta por W. Safatle; estes experimentam uma forma de vida que é sentida como monstruosa, animal e coisificada e fracassam sistematicamente em dar nome à causa de seu sofrimento. E já que não nomeiam a causa, buscam encontrar a razão de seu mal estar no mundo, explorando para isso a força da inadequação,  do estranhamento e da fragmentação. Fora do tempo, fora de lugar, fora do corpo: ninguém melhor que as sexualidades estudadas por Judith Butler para dizê-los. Errantes da linguagem, inadaptados do trabalho, depressivos do desejo, seu sofrimento pode ser tematizado como exílio e isolamento e clinicamente é o que encontramos no trabalho de luto. Ressentimento e tédio rondam a vida desses seres errantes. Cito Dunker: ¨É o drama daqueles que são habitados por experiências de radical anomia e indeterminação, cujo maior exemplo literário é Frankenstein. Esta desregulação sistêmica do mundo, teorizada por Lacan como separação entre real, simbólico e imaginário, exprime-se como sentimento permanente de perda de unidade¨ ( CULT, número 174, p. 26).

[19] Cult,  número 174, p. 27 – grifos meus.

[20][20] O ¨inconsciente capitalístico¨ e ou o ¨inconsciente maquínico¨ corresponderiam à subjetividade capitalística produzida pela mídia e pelos equipamentos coletivos e impõe  modos de se compor com a vida que visam atender às exigências globais do sistema.

[21] DELEUZE, G.GUATTARI. F. Mil Platôs,  S. P. Editora Trinta e Quatro, 2003. p. 318 grifos meus.

[22] GUATTARI. Féliz. ¨Os oito ¨princípios¨ da esquizoanálise¨, escrito por Bernardo Rieux, 12/10/2005.

On the end of the world / sobre o fim do mundo (21.12.2012)

O mundo não acabou (Folha de S.Paulo)

Contardo Calligaris – 27/12/2012 – 03h00

Pode ser que o mundo acabe entre hoje (segunda, dia em que escrevo) e quinta, 27, dia em que seria publicada esta coluna. Em tese, eu não devo me preocupar: meu título não será desmentido –pois, se o mundo acabar, não haverá mais ninguém para verificar que eu me enganei.

Tudo isso, em termos, pois o fim do mundo esperado (mais ou menos ansiosamente) por alguns (ou por muitos) não é o sumiço definitivo e completo da espécie. Ao contrário: em geral, quem fantasia com o fim do mundo se vê como um dos sobreviventes e, imaginando as dificuldades no mundo destruído, aparelha-se para isso.

Na cultura dos EUA, os “survivalists” são também “preppers”: ou seja, quem planeja sobreviver se prepara. A catástrofe iminente pode ser mais uma “merecida” vingança divina contra Sodoma e Gomorra, a realização de uma antiga profecia, a consequência de uma guerra (nuclear, química ou biológica), o efeito do aquecimento global ou, enfim (última moda), o resultado de uma crise financeira que levaria todos à ruina e à fome.

A preparação dos sobreviventes pode incluir ou não o deslocamento para lugares mais seguros (abrigos debaixo da terra, picos de montanhas que, por alguma razão, serão poupados, lugares “místicos” com proteção divina, plataformas de encontro com extraterrestres etc.), mas dificilmente dispensa a acumulação de bens básicos de subsistência (alimentos, água, remédios, combustíveis, geradores, baterias) e (pelo seu bem, não se esqueça disso) de armas de todo tipo (caça e defesa) com uma quantidade descomunal de munições -sem contar coletes a prova de balas e explosivos.

Imaginemos que você esteja a fim de perguntar “armas para o quê?”. Afinal, você diria, talvez a gente precise de armas de caça, pois o supermercado da esquina estará fechado. Mas por que as armas para defesa? Se houver mesmo uma catástrofe, ela não poderia nos levar a descobrir novas formas de solidariedade entre os que sobraram? Pois bem, se você coloca esse tipo de perguntas, é que você não fantasia com o fim do mundo.

Para entender no que consiste a fantasia do fim do mundo, não é preciso comparar os diferentes futuros pós-catastróficos possíveis. Assim como não é preciso considerar se, por exemplo, nos vários cenários desolados do dia depois, há ou não o encontro com um Adão ou uma Eva com quem recomeçar a espécie. Pois essas são apenas variações, enquanto a necessidade das armas (e não só para caçar os últimos coelhos e faisões) é uma constante, que revela qual é o sonho central na expectativa do fim do mundo.

Em todos os fins do mundo que povoam os devaneios modernos, alguns ou muitos sobrevivem (entre eles, obviamente, o sonhador), mas o que sempre sucumbe é a ordem social. A catástrofe, seja ela qual for, serve para garantir que não haverá mais Estado, condado, município, lei, polícia, nação ou condomínio. Nenhum tipo de coletividade instituída sobreviverá ao fim do mundo. Nele (e graças a ele) perderá sua força e seu valor qualquer obrigação que emane da coletividade e, em geral, dos outros: seremos, como nunca fomos, indivíduos, dependendo unicamente de nós mesmos.

Esse é o desejo dos sonhos do fim do mundo: o fim de qualquer primazia da vida coletiva sobre nossas escolhas particulares. O que nos parece justo, no nosso foro íntimo, sempre tentará prevalecer sobre o que, em outros tempos, teria sido ou não conforme à lei.

Por isso, depois do fim do mundo, a gente se relacionará sem mediações –sem juízes, sem padres, sem sábios, sem pais, sem autoridade reconhecida: nós nos encararemos, no amor e no ódio, com uma mão sempre pronta em cima do coldre.

E não é preciso desejar explicitamente o fim do mundo para sentir seu charme. A confrontação direta entre indivíduos talvez seja a situação dramática preferida pelas narrativas que nos fazem sonhar: a dura história do pioneiro, do soldado, do policial ou do criminoso, vagando num território em que nada (além de sua consciência) pode lhes servir de guia e onde nada se impõe a não ser pela força.

Na coluna passada, comentei o caso do jovem que matou a mãe e massacrou 20 crianças e seis adultos numa escola primária de Newtown, Connecticut. Pois bem, a mãe era uma “survivalist”; ela se preparava para o fim do mundo. Talvez, junto com as armas e as munições acumuladas, ela tenha transmitido ao filho alguma versão de seu devaneio de fim do mundo.

*   *   *

Are You Prepared for Zombies? (American Anthropological Association blog)

By Joslyn O. – December 21, 2012 at 12:52 pm

 

In light of all the end of the world talk, a repost of this Zombie preppers post from last spring:

Today’s guest blog post is by cultural anthropologist and AAA member, Chad Huddleston. He is an Assistant Professor at St. Louis University in the Sociology, Anthropology and Criminal Justice department.

Recently, a host of new shows, such as Doomsday Preppers on NatGeo and Doomsday Bunkers on Discovery Channel, has focused on people with a wide array of concerns about possible events that may threaten their lives.  Both of these shows focus on what are called ‘preppers.’ While the people that may have performed these behaviors in the past might have been called ‘survivalists,’ many ‘preppers’ have distanced themselves from that term, due to its cultural baggage: stereotypical anti-government, gun-loving, racist, extremists that are most often associated with the fundamentalist (politically and religiously) right side of the spectrum.

I’ve been doing fieldwork with preppers for the past two years, focusing on a group called Zombie Squad. It is ‘the nation’s premier non-stationary cadaver suppression task force,’ as well as a grassroots, 501(c)3 charity organization.  Zombie Squad’s story is that while the zombie removal business is generally slow, there is no reason to be unprepared.  So, while it is waiting for the “zombpacolpyse,” it focuses its time on disaster preparedness education for the membership and community.

The group’s position is that being prepared for zombies means that you are prepared for anything, especially those events that are much more likely than a zombie uprising – tornadoes, an interruption in services, ice storms, flooding, fires, and earthquakes.

For many in this group, Hurricane Katrina was the event that solidified their resolve to prep.  They saw what we all saw – a natural disaster in which services were not available for most, leading to violence, death and chaos. Their argument is that the more prepared the public is before a disaster occurs, the less resources they will require from first responders and those agencies that come after them.

In fact, instead of being a victim of natural disaster, you can be an active responder yourself, if you are prepared.  Prepare they do.  Members are active in gaining knowledge of all sorts – first aid, communications, tactical training, self-defense, first responder disaster training, as well as many outdoor survival skills, like making fire, building shelters, hunting and filtering water.

This education is individual, feeding directly into the online forum they maintain (which has just under 30,000 active members from all over the world), and by monthly local meetings all over the country, as well as annual national gatherings in southern Missouri, where they socialize, learn survival skills and practice sharpshooting.

Sound like those survivalists of the past?  Emphatically no.  Zombie Squad’s message is one of public education and awareness, very successful charity drives for a wide array of organizations, and inclusion of all ethnicities, genders, religions and politics.  Yet, the group is adamant on leaving politics and religion out of discussions on the group and prepping. You will not find exclusive language on their forum or in their media.  That is not to say that the individuals in the group do not have opinions on one side or the other of these issues, but it is a fact that those issues are not to be discussed within the community of Zombie Squad.

Considering the focus on ‘future doom’ and the types of fears that are being pushed on the shows mentioned above, usually involve protecting yourself from disaster and then other people that have survived the disaster, Zombie Squad is a refreshing twist to the ‘prepper’ discourse.  After all, if a natural disaster were to befall your region, whom would you rather be knocking at your door: ‘raiders’ or your neighborhood Zombie Squad member?

And the answer is no: they don’t really believe in zombies.

 

Viveiros de Castro na SBPSP (Blog Ponto de Vista)

Por Amenéris Maroni

31 de agosto de 2012

A Revista Brasileira de Psicanálise[1], volume 44, cujo tema é ¨Alteridade¨, nos contempla com a ida de Viveiros de Castro à Sociedade Brasileira de Psicanálise/São Paulo para uma palestra intitulada  ¨O Anti- Narciso: lugar e função da antropologia no mundo contemporâneo¨. Parodiando G. Deleuze e F.Guattari, Viveiros de Castro abre a conferência brincando que Anti-Narciso é o nome de um livro que ele jamais escreverá –  contrapondo-o ao Anti-Édipo. O Anti- Édipo é uma crítica radical ao Édipo e, então, à psicanálise, o Anti-Narciso: uma crítica e uma grande reviravolta em relação à antropologia clássica. Só essa brincadeira deveria deixar de sobreaviso os psicanalistas: afinal sabe-se o papel que teve o Anti-Édipo na filosofia e na cultura – muito embora tenha sido pouco apreciado na psicanálise! O Anti-Narciso, suponho, teria o mesmo valor na antropologia: para a antropologia contemporânea proposta por Viveiros de Castro, Narciso  já não seria a figura central na relação com o outro-nativo!

Narciso – Caravaggio

Os psicanalistas – nos comentários que se seguiram à palestra de Viveiros de Castro –  não parecem ter compreendido a brincadeira. Será que leram o  Anti-Édipo?

O antropólogo, professor de etnologia do Museu Nacional, levou para a Sociedade Brasileira de Psicanálise temas inquietantes frutos da ¨nova antropologia¨. Nas linhas que seguem, discuto algumas das questões apresentadas pelo antropólogo aos psicanalistas e, desde já, chamo a atenção do leitor para o silêncio e o esvaziamento – no mal sentido – com que essas proposições foram recebidas pelos psicanalistas. Nos comentários à palestra do antropólogo, as evasivas,  a incompreensão frente às questões propostas  chamaram a minha atenção. Sem dúvida as questões postas em discussão pelo antropólogo são difíceis, mas absolutamente centrais frente à crise ecológica e cultural que o ocidente atravessa. Deveriam então, ao meu ver, ter suscitado interesse, desafios de compreensão; muito ao contrário,  os psicanalistas não se deixaram afetar minimamente pelas questões.  Vamos então às inquietantes questões do etnólogo.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro

A reviravolta proposta pela nova antropologia

 A antropologia classicamente gira em torno da questão  ¨quem somos nós¨ e o que os outros não tem que os tornam ¨diferentes de nós¨. O que distingue o sujeito do discurso antropológico de tudo aquilo que não é ele, isto é, tudo aquilo que não é ¨nós¨: o não ocidental, o não moderno, ou o não humano? Perguntar o que nos faz diferentes dos outros – vários outros – já é uma resposta, porque o que importa não são eles, e, sim, nós. A antropologia clássica se alimentou desses grandes divisores: nós e os outros, os humanos e os animais, os ocidentais e os não ocidentais. Na antropologia clássica o antropólogo já sabe a resposta e quer ver simplesmente  ¨como a resposta dos outros se adéqua à resposta que ele já tem¨[2] Nessa antropologia, por suposto, Narciso reina soberano; é intrinsecamente narcísica porque nós ocidentais é quem, a grosso modo, temos as perguntas – porque sempre entendemos que as nossas perguntas são as perguntas que todo ser humano faz, e por aí vai.

I) Ora, o gesto inicial que funda a antropologia contemporânea é a recusa da questão: ¨o que é próprio do homem¨? ¨o que é o homem?¨ De repente parece que a antropologia percebeu a armadilha implícita nessa pergunta. Pois respondê-la é seguir repetindo que ¨o próprio do homem é não ter nada de próprio¨, que o homem se caracteriza justamente por sua indeterminação. Nas palavras de Viveiros de Castro: …¨O homem é aquele ser a quem, por chegar por último na criação, foi dado o poder de ter todos os poderes e, portanto, o homem não tem nada de próprio¨. Ora, é exatamente isto, ¨não ter nada de próprio¨ que parece dar ao homem direito ilimitado sobre as propriedades alheias. Prossegue o antropólogo: … ¨Isto é uma maneira de dizer que estamos numa crise ecológica gravíssima, que é uma crise cultural, e que surge precisamente por termos colocado demais a questão ´O que é próprio do homem?´ ou ´O que nos torna tão especiais?´ […] Essa idéia de que o próprio do homem é não ter nada de próprio é uma resposta que já tem milênios na nossa tradição ocidental, e que justifica o antropocentrismo. As idéias de ausência, da finitude, da falta, seriam como que a distinção que a espécie carrega, esse fardo, em benefício ( diriam os cínicos) do restante da criação, à maneira de uma pesada condecoração¨[3].

Ora, é com essa pergunta e com essa proposição de homem que a psicanálise trabalha, exatamente com esse homem marcado pelo negativo, perguntei-me então porque os psicanalistas convidados a comentar a palestra do professor Viveiros de Castro não discutiram essa proposição, não refutaram e/ou no limite aceitaram tal reviravolta que com certeza situa-se no âmago da própria psicanálise! Silêncio a respeito dessa questão.

Como não poderia deixar de ser a metafísica ocidental – uma metafísica especista – está na base da antropologia e foi a responsável por todos os colonialismo que pudemos inventar. Basta que chamemos a atenção para um fato: o que a metafísica ocidental clássica entende como característica do humano é muito parecido com o que a Antropologia entendia como sendo característica do ocidental por oposição ao não ocidental! De repente fica bem claro em que barco estávamos, pois não? Para Viveiros de Castro a antropologia contemporânea começa justamente quando colocamos essas diferenças em questão, ao invés de nos refugiarmos nelas e então descobrirmos (sic) o que é próprio do homem! Cito Viveiros de Castro: … ¨Contra esses grandes divisores – nós e os outros, os humanos e os animais, os ocidentais e os não ocidentais – temos de fazer o contrário: proliferar as pequenas multiplicidades. Não o narcisismo das pequenas diferenças, aquele célebre que Freud detectou, mas o que a gente poderia chamar de o ´anti-narcisismo das variações infinitesimais´. Não se trata de forma alguma, como lembrou Derrida, de se questionar isso e pregar uma abolição de fronteiras que separam os humanos dos não humanos, as pessoas das coisas, os signos do mundo etc. As fantasias fusionais não estão em questão. Trata-se de certa maneira, de tornar infinitamente complexa essa linha que separa o humano do não humano¨[4]. Vale dizer, está na hora de a Antropologia parar de se preocupar ¨com o que é humano¨ ;  melhor seria que se preocupasse em estudar as diferenças que os humanos são capazes de operar.

Não preciso insistir que os dois psicanalistas convidados a comentar a fala do Prof. Viveiros de Castro não dirão uma única palavra a respeito da ¨metafísica especista¨ e do girar que todas as ciências humanas fazem – e em particular a psicanálise – em torno do homem! A psicanálise –  que estamos agora examinando – parece não ter nada a dizer sobre isso porque, herdeira da metafísica, é um dos dispositivos contemporâneos mais importantes da atualização dessa herança. Grosso modo, o homem é lapidado pela psicanálise para continuar exercendo-se exatamente onde está: o rei da criação, e os ocidentais, os mais humanos dentre os humanos: edipianos, supergóicos, família nuclear burguesa como ápice das proposições civilizatórias!

Seria injusto porém afirmar que também a psicanálise não apresenta ruídos em relação a essas questões. Mesmo nos seus ramos clássicos – pensemos em W.R. Bion – esses ruídos estão presentes. Hoje vertentes da psicanálise  que buscam a companhia de M. Heidegger,  de G. Deleuze, já não podem ser lidas também como insinuei acima.

II) Enfrentarei uma última questão proposta pelo Prof. Viveiros de Castro e a que mais me interessa. O antropólogo contemporâneo tem a chance de virar-se para o lado e perguntar para o índio – ou seja lá quem for o outro que ele estuda – : ¨o que é o humano¨?  e isso na expectativa de que haja respostas diferentes e o que é mais excitante – perguntas diferentes.¨E que, portanto, a questão não é de encontrar as respostas que os índios (ou seja lá quem for) dão às nossas perguntas – porque sempre entendemos que as nossas perguntas são as perguntas que todo ser humano faz – mas colocar sob suspeita este pressuposto e imaginar que talvez as perguntas, elas próprias sejam outras¨[5]

Quarup

Viveiros de Castros faz então dois chamamentos para todas as Ciências Humanas, incluindo aí a Psicologia, a Psicanálise, a Sociologia – e não só para as duas concepções radicalmente antagônicas de antropologia que teceu até agora.

1) Como funcionam de maneira geral as Ciências Humanas – incluindo a Antropologia? Aplicam conceitos que são extrínsecos ao que estamos estudando. Muitos reagirão contra, digo eu, dizendo que não é bem assim, que há uma relação dialética e até mesmo uma disjunção-tensão-conflito entre teoria e prática. Talvez os grandes teóricos consigam o tempo todo operar esses deslocamentos e essa criatividade tensionada entre teoria e prática; a maioria porém  dos ¨cientistas acadêmicos¨ operam da forma como sugere Viveiros de Castro: ¨nós temos o conceito e queremos simplesmente ver como ele é preenchido¨. Na verdade, no caso da antropologia clássica, imaginamos ¨cada sociedade como que preenchendo uma forma universal – conceito – com um conteúdo particular; esquecendo que essa forma universal é o nosso conteúdo particular¨[6]. Ora, a antropologia contemporânea propõe uma mudança – e convida todas as Ciências Humanas para trabalhar na mesma direção: ¨os procedimentos que caracterizam a investigação são conceitualmente da mesma ordem que os procedimentos investigados¨. Cito Viveiros de Castro:  ¨Se os humanos são todos iguais, é preciso que a nossa investigação seja algo da mesma natureza do que estamos investigando. Não podemos afirmar que os homens são todos iguais, por um lado, e retirar isso com a outra mão. Se os humanos são todos iguais, antropólogos estudam antropólogos, psicanalistas estudam psicanalistas, e, portanto, não há onde colocar assimetria nessa investigação¨[7].

2) A antropologia contemporânea parte do princípio fundamental de que o antropólogo  não sabe de antemão quais são os problemas que caracterizam o pensamento do Outro. E enfatize-se: este não saber não é empírico. Viveiros de Castro afirma: ¨É um não saber propriamente transcendental, uma ignorância, uma nesciência constitutiva da disciplina. ¨Eu não sei o que interessa a eles¨, e não simplesmente: Eu não sei como eles respondem ao que interessa a mim¨ […] O que a segunda concepção de Antropologia coloca em relação são problemas diferentes, não um problema único e suas diferentes soluções¨[8].  Imagine – e agora sou eu provocando – se este modo de proceder se alastrasse pelas Ciências Humanas, se no seio delas este ¨não saber propriamente transcendental¨ ganhasse um lugar de honra. Um sociólogo dirigir-se-ia a uma favela sem saber, muito ignorante a respeito de quem são os favelados e o que querem. E um psicanalista também: de fato escutaria os seus pacientes a partir desse não saber transcendental, dessa ignorância constitutiva. A fala do analisando deixaria de ser uma maneira de preencher conceitos postos de antemão. Provavelmente haveria escuta!

Em seguida, o prof. Viveiros de Castro discute o ¨pensamento ameríndio¨ e o perspectivismo. Convido meus leitores a ler a conferência completa na Revista da Sociedade.

Agora quero voltar aos comentários dos psicanalistas a respeito da conferência do Prof. Viveiros de Castro e claro farei isso com uma pergunta provocativa para os meus leitores: o que os  psicanalistas escutam, eles que representam a ¨ciência da escuta¨? Ou será que o emudecimento deles, o esvaziamento de suas falas, a ligeireza de suas proposições não estão exatamente relacionadas com as críticas que Viveiros de Castro faz à Antropologia Clássica e com ela a todas as  Ciências Humanas?

1) Psicanálise e Tempo; Psicanálise e epistemologia, hoje;

É esse o título dado por um dos psicanalistas aos seus comentários a respeito da conferência do Prof. Eduardo Viveiros de Castro.

A tendência do primeiro comentador é manter-se aferroado àantropologia clássica: parece que a idéia do ¨nós¨e dos ¨outros¨ lhe é mais acessível. Parece mesmo encantado com a diferença: como se comunicar  por meio de uma diferença e o que nos distingue dos outros. Transcrevo dois pequenos trechos para que os meus leitores tenham acesso ao trauma que a leitura me proporcionou: ¨ ´Nós´ faz referência ao sujeito do discurso, não há dúvida, que, narcisicamente, coloca tudo aquilo que não é ´nós´como sendo diferente. Convenhamos que não é tarefa fácil compreender o diferente, visto que jamais poderíamos saber como o diferente se sente, do contrário seríamos o próprio diferente e a questão permaneceria a mesma, invertida apenas¨. E ainda: ¨O pensamento do prof. Viveiros convida-nos a questionar e, dentro do possível, abrir mão de nossos entraves narcísicos, ou ao menos do que for possível abrir mão nesses entraves, o que é necessário para que a humildade possa surgir e com ela o espaço para sentir e pensar livremente¨[9].  E continua: ¨Haveria algo próprio do ser humano?  O que nos distinguiria do restante da criação? – questiona o professor, ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de descartarmos essa questão para podermos seguir adiante, sem desconsiderarmos nossa essência, mas também sem hipocrisias narcisistas. E sem hipocrisias a fronteira se faz delgada, frágil, tênue, seja do ponto de vista dos estudos sobre o genoma, seja a partir da própria observação despreconceitualizada¨[10] e em seguida o psicanalista dá muitos exemplos de chipanzés e de macacos prego – tudo isso, claro, para a minha surpresa!

O  psicanalista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise poderia defender a antropologia clássica contra a antropologia contemporânea trazida para a discussão pelo prof. Viveiros de Castro, com certeza era um direito seu, mas era preciso que ele primeiro compreendesse a discussão, ou melhor era preciso que ele tivesse uma capacidade de escuta sustentada, talvez, na ¨ignorância constitutiva¨ proposta por Viveiros de Castro. Além de traumatizada desenvolvi uma fantasia algo persecutória durante a leitura: e se eu estivesse naquele divã, aí meu Deus do céu, o que aconteceria?!

Vou fechando não sem antes passar por algumas questões levantadas pelo psicanalista que explicitam uma  escuta algo saturada: …¨Esta complexidade relaciona-se ao que o prof. Viveiros chama de homo duplex, ou seja, temos um corpo biológico, fruto da criação e com a qual nos misturamos, mas temos ainda uma alma cultural produzida por este corpo e que se desenvolve e se define por uma certa e razoável falta. Lembrando que a certa e razoável falta precisa ser suportada para que o desenvolvimento se dê também de maneira minimamente razoável e para que as diferenças não sejam extintas¨[…] ¨Mudando a perspectiva, o prof. Viveiros nos traz ainda a visão indígena de  mundo, em um universo encantado, animado, fantasmático, onde tudo é gente, mais próximo do que conhecemos como Princípio do Prazer e menos mutantes do que nós, civilizados, quer dizer, mais criaturas da natureza e menos homo duplexNão sei se isso os torna menos complexos, mas, segundo o palestrante, é um mundo mais perigoso¨…[11]

Como já disse, parece que falta a esse psicanalista aquele ¨não saber propriamente transcedental¨, aquela ¨ignorância constitutiva¨ proposta por Viveiros de Castro! Revelar-se-iam condições para percepções novas, condições para uma escuta não saturada  trazendo à tona novas possibilidades de compreensão e não a sobreposição do muito velho: o ¨preenchimento conceitual¨ a que antes se referia o antropólogo.

2) Antropologia ataca o narcisismo

O segundo comentador se saiu muito melhor. Além de psicanalista, ele  é também antropólogo, e, então, com certeza, a discussão proposta por Viveiros de Castro lhe é mais familiar. Ele é inteligente, o segundo comentador,  e tenta aproximar rapidamente  a antropologia da psicanálise e, todavia, não se aventura a discutir a proposta de Viveiros de Castro, pois este fez uma crítica interna ao modo da antropologia clássica proceder. Ao comentador caberia acompanhar o movimento de desconstrução da própria antropologia e só então aproximar – se fosse o caso – as duas disciplinas – antropologia e psicanálise –  que sabidamente resistem ao diálogo. Cito dois trechos que deixam claro, ao meu ver, como, evitando a discussão central proposta por Viveiros de Castro, ele aproxima a antropologia da psicanálise: ¨Pressuposto básico: adotamos, nós, psicanalistas, e eles, antropólogos, pronomes pessoais de epistemologias diversas. No exercício da Psicanálise, como é notório, o campo de interesse é  o ¨eu¨ individual, o inconsciente dinâmico e as relações vinculares, incluindo, aí, uma ¨ferramenta¨ essencial para a abordagem: outro ser humano que, autorizado, dará diferentes e novas versões sobre nós mesmos. Os antropólogos, por seu lado, tratam do ¨nós¨, seres humanos agrupados em sociedade, em todas as suas múltiplas dimensões. Entretanto, fato comum às técnicas, nas duas disciplinas, é o escrutínio das diferenças como único caminho para a compreensão e desenvolvimento. Trocando em miúdos: para nos compreendermos – seres humanos, individualmente, ou em grupo, – necessitamos de um ¨outro¨ ( outro ser humano ou outro agrupamento humano); além disso – dura realidade! – este ¨outro¨ será sempre um estranho¨[12]

Cito ainda, antes de concluir, um outro trecho do comentador; nele, o autor interpreta o que seria a antropologia contemporânea: ¨Relendo algumas vezes a transcrição da palestra do Eduardo, entendo que a idéia central do texto, que se encaixaria no âmbito da filosofia da etnologia, seja propor um novo viés de observação antropológica, de um ângulo de observação ¨invertido-revertido¨, ou seja, a partir do objeto observado, e pelo avesso. Uma maneira de olhar menos investida de ¨amor próprio¨- se é que podemos assim falar -, visando reduzir as influências do observador autorreferente. Essa inversão-reversão de perspectiva teria uma equivalência metafórica com a álgebra elementar, no mesmo sentido que a expressão { -1/x}. Em psicanálise, o recurso da análise pessoal do analista ( componente do tripé essencial) contribui, sobremaneira, para a diminuição das interferências pessoais do observador sobre o que é observado¨[13].

E, então, o comentador pergunta: ¨E, em relação a nós, psicanalistas, que tipo de interesse a palestra do Eduardo poderia ter? Uma muito boa pergunta, e, todavia, a resposta está bem longe de enfrentar o problema proposto por Viveiros de Castro: …¨Na minha maneira de ver, reafirmar a importância das descobertas freudianas (narcisismo, inconsciente, transferência, etc) adaptados a outros campos de saber, num exercício de Psicanálise Aplicada¨[14].

Com certeza este divã seria, ele também, bem pouco acolhedor para mim. Uma das coisas simples que aprendi ao longo da minha já longa vida é que é um prazer, um deleite enunciar uma pergunta e sentir que o meu interlocutor pode acolhê-la, compreendê-la, às vezes não respondê-la, mas sentir que a comunicação se deu. Se isto não acontece, e não acontece repetidamente, a folie a deux rapidamente se instala.

Sinto-me agora convidada a fazer um casamento mais feliz entre a Psicanálise e o anti-humanismo. Voltarei pois a esta discussão.


[1] Volume 44, número 4, 15-26 – 2010, intitulada ¨Alteridade¨.

[2] Idem, ibidem, p. 17.

[3] Idem, ibidem, p. 16.

[4] Idem, ibidem, p. 17.

[5] Idem, ibidem, p. 18.

[6] Idem, ibidem, p. 18.

[7] Idem, ibidem, p. 18.

[8] Idem, ibidem, p. 18.

[9] Idem, ibidem, p. 27.

[10] Idem, ibidem, p. 28.

[11] Idem, ibidem, p. 29

[12] Idem, ibidem, p. 32.

[13] Idem, ibidem, p. 33.

[14] Idem, ibidem, p. 33.