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>Loucura artística – Como a sétima arte retrata os distúrbios mentais (FAPESP)

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HUMANIDADES | CINEMA

Alexandre Agabiti Fernandez
Edição Impressa – Fevereiro 2011

Loucura de Dalí em Quando fala o coração

O cinema se presta, mais do que qualquer outra forma de arte, à representação de transtornos mentais. Paranoicos, psicóticos e outros transtornados fascinam ou perturbam o espectador porque a loucura interrompe a ordem imanente do mundo e as modalidades habituais de percepção deste. Cinema e loucura – Conhecendo os transtornos mentais através dos filmes (Artmed), de J. Landeira-Fernandez e Elie Cheniaux, é a primeira obra publicada entre nós a classificar sistematicamente os distúrbios mentais de personagens cinematográficos. Cada capítulo descreve os aspectos clínicos de um determinado transtorno mental e, em seguida, exemplos cinematográficos do mesmo transtorno são apresentados e comentados. Os autores discutem um total de 184 filmes, muitos deles bastante conhecidos. “O livro é uma ferramenta acadêmica para o ensino de psicopatologia e de psiquiatria, fornecendo exemplos concretos que em sala de aula são tratados de maneira mais abstrata”, afirma J. Landeira-Fernandez, professor da Universidade Estácio de Sá (Unesa). “Usar filmes motiva o aluno e é especialmente interessante nos casos de alunos que não têm acesso a pacientes de carne e osso”, observa Elie Cheniaux, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

A relação entre o cinema e o psiquismo é uma evidência, pois a sétima arte representa o humano sob todas as suas formas, das mais risonhas às mais sombrias. Por outro lado, o próprio dispositivo cinematográfico – a sala escura em que são projetadas imagens, com o espectador em situação de passividade relativa, de imobilidade – determina um estado regressivo artificial que remete ao sonho. Este implica sujeito que se afasta do real e é envolvido por suas imagens. No cinema, acontece algo semelhante com o espectador. A experiência do sonho, com suas associações livres, também pode ser comparada à montagem cinematográfica, que faz coexistir mundos aparentemente heterogêneos.

Além dessas analogias, convém lembrar que o cinema e a psicanálise, oriunda da psiquiatria, nasceram praticamente ao mesmo tempo, entre o fim do século XIX e o começo do seguinte, revolucionando a abordagem da realidade. Hanns Sachs, discípulo de Freud, foi um dos primeiros psicanalistas a manifestar interesse pelo cinema. Em seu seminário, Jacques Lacan, outro pioneiro da psicanálise, fez uma análise do personagem principal de O alucinado (1953), de Luis Buñuel, um célebre caso de paranoia.

“A dramaturgia se baseia no conflito. Um filme, segundo o modelo clássico, tem três atos: a introdução dos personagens, o desenvolvimento de conflitos entre eles e a resolução dos conflitos. Muitos desses conflitos são de natureza mental. Um filme com personagens ‘normais’, resolvidos e sem conflito, não despertaria o interesse do público. Mas um filme com figuras perturbadas, fora da normalidade, traz conflitos, que fazem a narrativa avançar. O personagem ‘maluco’ é mais cinematográfico. O desvio seduz; a norma, não”, argumenta Flávio Ramos Tambellini, coordenador docente da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio.

Em Cinema e loucura, os personagens cinematográficos são encarados como casos clínicos.Farrapo humano (1945), de Billy Wilder, retrata muito bem a riqueza dos sintomas presentes no quadro de abstinência de álcool. Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), de Woody Allen, apresenta o transtorno distímico – caracterizado por sintomas depressivos menos intensos do que os observados em um quadro depressivo típico – e também o transtorno de ansiedade generalizada.

Porém muitas vezes os transtornos mentais não estão bem representados, pois o filme não tem finalidade educativa, obedece a injunções artísticas e comerciais. “Roteiristas e cineastas não têm obrigação de ser fiéis à realidade. O cinema não tem a obrigação de ser didático. É arte, não ciência”, constata Cheniaux. Entretanto tais distorções não desautorizam a abordagem proposta pelos autores, ao contrário. Em Uma mente brilhante(2001), de Ron Howard, biografia de John Nash, matemático e Prêmio Nobel de Economia, a esquizofrenia do personagem está mal descrita. “Ele tem alucinações visuais, cinestésicas e auditivas. Está errado, pois os esquizofrênicos têm alucinações unimodais, sendo a modalidade auditiva a mais co­mum. Efetivamente, o John Nash real tinha apenas alucinações auditivas. Mesmo estando errada, a representação do sintoma já serve como exemplo negativo”, diz Landeira-Fernandez.

Em outros casos, o personagem tem um comportamento que não se encaixa em nenhuma categoria diag­nóstica. Frequentemente, essa “loucura” reflete o senso comum, é muito diferente dos sintomas de um doente mental real. O livro também compila filmes com estas distorções. Em Repulsa ao sexo (1965), de Roman Polanski, Carol, personagem vivida por Catherine Deneuve, tem horror à penetração e apresenta uma série de comportamentos estranhos. Qual transtorno mental teria estas características? Os distúrbios de Carol não se enquadram nas categorias descritas pelo Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV-TR), que orientou os autores.

Cena de Repúdio ao sexo

Os problemas de diagnóstico, contudo, estão longe de ser uma especificidade do cinema. “Na medicina, as doenças são definidas a partir de suas causas. Mas na psiquiatria as categorias são descritas apenas pelos sintomas e isso é bastante criticável. Frequentemente, um mesmo paciente preenche critérios diagnósticos para mais de uma categoria nosológica ao mesmo tempo. Fica difícil acreditar que ele tenha três ou quatro doenças psiquiátricas ao mesmo tempo. É algo até certo ponto arbitrário”, afirma Cheniaux.

Nas primeiras décadas do século passado, os “loucos” estavam geralmente confinados ao gênero fantástico e eram, em geral, criminosos. Com O gabinete do doutor Caligari (1919), clássico do expressionismo alemão, de Robert Wiene, a loucura entra nas modalidades de representação cinematográfica. Como em outros filmes expressionistas, os cenários fortemente estilizados e a gestualidade brusca dos atores traduzem simbolicamente a mentalidade dos personagens e seus estados de alma. Caligari é um médico louco que hipnotiza César, seu assistente, para que ele cometa crimes, afirmando uma vontade de poder paranoica. Outra figura perversa e inteligente desta época é o personagem central deDoutor Mabuse (1922), de Fritz Lang. Trata-se de um psiquiatra que também recorre à hipnose para manipular as pessoas e cometer seus crimes. Mabuse é devorado pelo desejo de governar por meio do dinheiro, enquanto a sede de poder de Caligari é abstrata. A loucura de Mabuse e a passividade mórbida de suas vítimas apontam para a decadência da sociedade alemã da época e para o caos que então grassava no país.

Outro filme de Lang, M – O vampiro de Dusseldorf (1931), se interessa de maneira mais realista pela psicologia dos personagens. A figura central é um assassino de meninas, que, entretanto, é mostrado com humanidade em seu horror. Mas a sociedade não é melhor: diante da incapacidade da polícia em prendê-lo, ele é “julgado” por outros delinquentes, prefigurando o que iria acontecer na Alemanha em poucos meses com a chegada dos nazistas ao poder.

A partir dos anos 1940, a psicanálise ganha espaço nos meios de comunicação. Surgem osthrillers psicanalíticos, que utilizam o arsenal da psicanálise de maneira rústica e ingênua. O protótipo destes filmes é Quando fala o coração (1945), de Alfred Hitchcock. Constance (Ingrid Bergman) é uma jovem psiquiatra de um asilo que se apaixona pelo novo diretor. Mas ela logo se dá conta de que o homem que ama (Gregory Peck) é um doente mental que se faz passar pelo doutor Edwards. A partir dos sonhos do doente e depois de uma sessão de análise, Constance descobre que ele perdera a memória e com­preende por que o doente assumira a culpa por um crime que não cometera: ele testemunhara a morte do verdadeiro Edwards, assassinado pelo ex-diretor do asilo, assim como ele mesmo, em uma brincadeira quando era criança, empurrara o irmão menor para a morte. Além da angústia diante da loucura, o filme mostra a angústia da loucura, figurando o medo do personagem por meio de sonhos (desenhados por Salvador Dalí) que revelam um mundo cheio de alucinações e símbolos pretensamente produzidos pelo inconsciente. Neste e em outros filmes do período, a psicanálise é reduzida a um método capaz de resolver obscuros conflitos por meio do deciframento de um conjunto de signos geralmente claríssimos.

A partir dos anos 1950, sob o impacto dos horrores da Segunda Guerra Mundial, tem início o questionamento da reclusão do doente. Ao mesmo tempo, surgem novos psicofármacos, que provocam graves efeitos colaterais, levando muitos pacientes a recusar o tratamento. Como reação à psiquiatria da época, aparece a antipsiquiatria, que ganhou vulto nos anos 1960, no auge da contracultura. Alguns filmes retratam bem este momento, como Family life (1971), de Ken Loach; Uma mulher sob influência (1974), de John Cassavetes, e Um estranho no ninho (1975), de Milos Forman, criticando uma sociedade que prefere confinar os doentes em vez de ajudá-los a mitigar seu sofrimento, oferecendo como tratamento apenas a camisa de força, choques elétricos e drogas.

Estes filmes afirmam uma nova visão do cinema sobre a loucura, mais preocupados com o peso da sociedade sobre os indivíduos. Alguns deles interrogam a “loucura” desta sociedade, da família, levantando a questão da normalidade.

O grande precursor desta vertente é Ingmar Bergman, que fez da loucura um de seus temas obsessivos. Apesar das transformações na representação da loucura pelo cinema, a imensa maioria dos filmes continua a banalizar a loucura, com velhos clichês que fazem dos doentes mentais criminosos de filme policial ou abobalhados de comédia.

>Cinema, psicoses e neurônios reprogramados (CH)

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Em sua coluna de estreia, o biólogo Stevens Rehen aproveita o lançamento do filme ‘Cisne Negro’ no Brasil para falar das origens, desenvolvimento e efeitos da esquizofrenia, doença que atinge 1% da população mundial.

Por: Stevens Rehen
Publicado em 28/01/2011 | Atualizado em 28/01/2011

Natalie Portman em ‘Cisne Negro’. O filme, que estreia no Brasil no dia 4 de fevereiro, fala sobre situações que podem desencadear psicoses, transtornos mentais caracterizados por deterioração afetiva e perda do contato com a realidade. (foto: divulgação)

No próximo dia 4 de fevereiro estreia no Brasil Cisne Negro. Com seis indicações ao Oscar, o filme retrata as demandas físicas e emocionais que as bailarinas enfrentam no competitivo mundo do balé profissional.

O enredo do longa-metragem, dirigido por Darren Aronofsky, gira em torno do primeiro surto psicótico de Nina (Natalie Portman), dançarina que luta para se firmar como figura central de uma companhia de balé que ensaia uma nova versão do Lago dos Cisnes.

Cisne Negro é um retrato cinematográfico sobre situações que podem desencadear psicoses e, a reboque, suscita o interesse dos espectadores a respeito da esquizofrenia, um dos mais misteriosos transtornos mentais.

A incidência da esquizofrenia na população mundial é de 1%, com homens e mulheres igualmente afetados. Há mais pacientes esquizofrênicos do que doentes com Alzheimer ou esclerose múltipla, por exemplo.

Há mais pacientes esquizofrênicos do que doentes com Alzheimer ou esclerose múltipla

Os prejuízos sociais decorrentes do desenvolvimento da esquizofrenia são bastante significativos. A doença é caracterizada por delírios e alucinações que levam a uma deterioração afetiva e perda do contato com a realidade.

Os primeiros sintomas surgem na adolescência e começo da vida adulta. Há um forte componente genético associado à enfermidade, que, entretanto, não explica a maioria dos casos. Infecções virais durante o período perinatal, desnutrição materna e disfunções do sistema imunológico também são fatores de risco.

Atualmente, é considerada uma doença do desenvolvimento, associada à má formação do sistema nervoso. Apesar de não existir uma teoria de consenso capaz de explicar suas causas, há indícios de que o estresse oxidativo tenha papel fundamental na geração da patologia.

Entre o bem e o mal

O estresse oxidativo ocorre quando as defesas antioxidantes de nosso corpo falham em controlar as espécies reativas de oxigênio geradas pelo metabolismo normal de nossas células. Para entendermos como essa condição biológica está associada aos transtornos mentais, é preciso que conheçamos o “paradoxo do oxigênio”.

O oxigênio desempenha papéis contraditórios. É essencial para a vida e, ao mesmo tempo, pode ser tóxico. A molécula de oxigênio, formada por dois átomos, é quebrada durante a respiração, para a conversão de nutrientes em energia. Durante esse processo, subprodutos conhecidos como espécies reativas de oxigênio são gerados. Aí é que está o problema.

Estrutura do ácido ascórbico, um conhecido antioxidante. Disfunções no sistema antioxidante estão relacionadas ao desenvolvimento da esquizofrenia. (foto: Wikimedia Commons)

Espécies reativas de oxigênio são capazes de interferir em processos inflamatórios e na diferenciação de neurônios, mas estão principalmente relacionadas a modificações deletérias de macromoléculas como ácidos nucleicos, proteínas e lipídeos.

Infelizmente, em pacientes com esquizofrenia, elementos essenciais que normalmente reagem ao estresse oxidativo encontram-se comprometidos. Há relatos de disfunção do sistema antioxidante nesses indivíduos e de pequenas alterações em seus genes que reduzem a capacidade de se protegerem da ação danosa dos radicais livres.

Estudos em animais e relatos de pacientes sugerem, inclusive, que o aumento induzido nos níveis de radicais livres causa alterações cognitivas em indivíduos saudáveis e exacerbam psicoses em pacientes esquizofrênicos.

Cérebro frágil

Curiosamente, o hábito de fumar é até três vezes mais comum em pacientes esquizofrênicos do que na população em geral. Há indícios de que tal hábito seja uma tentativa inconsciente de compensar a carência de receptores para nicotina em seus cérebros. Por outro lado, o fumo reduz drasticamente os níveis de antioxidantes, comprometendo mais ainda a capacidade desses pacientes em lidar com o acúmulo de espécies reativas de oxigênio.

Devido ao alto consumo de oxigênio, o cérebro é mais vulnerável ao estresse oxidativo do que outros órgãos do corpo. Alterações de expressão gênica e de proteínas causadas por radicais livres comprometem a plasticidade neural e o funcionamento do sistema nervoso.

Já há antioxidantes que previnem ou aliviam distúrbios associados à esquizofrenia

Em concordância com essas observações, há uma relação entre a eficácia de sistemas antioxidantes e a severidade dos sintomas da esquizofrenia, o que pode levar ao desenvolvimento de novos medicamentos.

Já há, inclusive, descrições sobre antioxidantes que previnem ou aliviam distúrbios associados à doença. Sua utilização aumentaria a eficácia dos antipsicóticos, melhorando o quadro clínico de pacientes com transtornos mentais.

Múltiplo impacto

De fato, há evidências que todo o metabolismo energético esteja comprometido nessas pessoas. As mitocôndrias, organelas essenciais à respiração celular, também parecem alteradas nos pacientes esquizofrênicos.

Para a geração de energia, além de oxigênio, é necessário açúcar. Em 1919, F.H. Kooy descreveu um aumento na incidência de hiperglicemia em pacientes esquizofrênicos, sugerindo que comportamentos depressivos influenciariam os níveis de glicose no sangue.

Mais recentemente, pôde-se comprovar uma maior prevalência de diabetes com resistência à insulina nesses pacientes. Há novas pesquisas avaliando a aplicação de medicamentos antidiabéticos como co-fatores no tratamento da esquizofrenia.

As principais evidências de alterações bioquímicas dos sistemas antioxidantes associadas à esquizofrenia foram obtidas a partir de fragmentos cerebrais de pacientes já falecidos.

O estabelecimento de novos modelos de estudo, como, por exemplo, neurônios reprogramados a partir de células da pele de pacientes esquizofrênicos, deverá contribuir para um melhor entendimento sobre a influência do estresse oxidativo no desenvolvimento do sistema nervoso desses indivíduos.

Neurônios reprogramados a partir de células da pele (na foto) de pacientes esquizofrênicos podem ajudar a explicar a influência do estresse oxidativo no desenvolvimento do sistema nervoso desses indivíduos. (foto: Bruna Paulsen/LaNCE-UFRJ)

Sem revelar mais detalhes sobre o filme, o surto psicótico da bailarina Nina deve ter sido provocado por uma combinação de herança genética, abuso na infância, estresse ambiental e má alimentação.

Apesar de ainda serem necessários muitos estudos para comprovar o papel das espécies reativas de oxigênios como agente causador da esquizofrenia, cabe dizer que Nina deveria ter se preocupado um pouco mais com a dieta, optando por alimentos saudáveis, principalmente numa fase da vida de estresse ambiental tão extremo. Melhor prevenir do que remediar.

Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro