The Vatican formally repudiated the “Doctrine of Discovery” that legitimized the colonial-era seizure of Native lands. (Gregorio Borgia/AP)
Using 15th-century papal decrees, European colonial powers captured and claimed Indigenous land in the Americas and elsewhere. Now, in a significant move centuries later, the Vatican on Thursday rejected the contentious “Doctrine of Discovery,” addressing a long-standing demand led by Indigenous groups in Canada.
The church acknowledged in a statement that these papal bulls “did not adequately reflectthe equal dignity and rights of indigenous peoples,” and said that the doctrine is not part of the teaching of the Catholic Church.
Indigenous groups have argued that European explorers used the principle of discovery — which was based on the presumed superiority of European Christians — to legally and morally justify the subjugation and exploitation Indigenous communities, and to rule over them.
The Vatican statement also recognized that acts of violence were committed against Indigenous communities by colonial settlers, and asked for forgiveness for “the terrible effects of the assimilation policies and the pain” they experienced. The doctrine of discovery was previously rejected by several faith communities in the United States and Canada.
The Canadian Minister for Justice David Lametti credited the Vatican’s declaration to the hard work of Indigenous communities. “A doctrine that should have never existed. This is another step forward,” he said in a tweet.
The latest move follows the reconciliation that Pope Francis sought in Canada during his visit last year, when he apologized for the role Christians played in the tragic history of its residential school systems, many of which were run by the Catholic Church in the 19th and 20th centuries.
Indigenous children in Canada were forcibly removed from their families to integrate them into a Euro-Christian society, where they had to give up their language and culture; many were sexually abused. Thousands of children died at these schools and their unmarked graves continue to be discovered.
During his trip last year, Francis was confronted by protesters holding banners calling on him to rescind the discovery doctrine.
The announcement this week was greeted by Indigenous advocates. The news was “wonderful,” Phil Fontaine, a former national chief of the Assembly of First Nations in Canada, told the Associated Press.
“The church has done one thing, as it said it would do, for the Holy Father,” said Fontaine, who was part of the First Nations delegation that met with Francis.“Now the ball is in the court of governments, the United States and in Canada, but particularly in the United States where the doctrine is embedded in the law.”
In a landmark 1823 case, U.S. Supreme Court Chief Justice John Marshall invoked the papal discovery doctrine to rule that Indigenous people only had rights of occupancy and not ownership. This jurisprudence on Native American lands has persisted through the years and was referred to as recently as 2005.
A New York court, in the case of City of Sherrill v. Oneida Nation, relied on the earlier acceptance of the discovery doctrine by courts. Those rulings inferred that land titles were vested with European colonists, and later, the U.S. government.
In recent years, the movement to reclaim Native American lands has grown in the United States. In January 2022, 523 acres of redwood forest in Mendocino County, Calif., were transferred to the InterTribal Sinkyone Wilderness Council and, in April, the Rappahannock Tribe reacquired 460 acres of ancestral land in Virginia after 350 years.
Most Native American lands are trust lands, the U.S. government says — lands where the title is held by the federal government but the beneficial interests are with the tribes.
TheUnited Nations said in 2012 that international law demands that governments rectify the wrongs caused by such colonial doctrines, “including the violation of the land rights of indigenous peoples, through law and policy reform.”
Na peça ‘Can I Live?’, Fehinti Balogun, com rap, animação e poesia, apresenta a colonização e a exploração de países africanos como temas centrais na discussão
Cristiane Fontes
2 de novembro de 2022
Foi em 2017, durante a preparação para a peça “Myth”, uma parábola climática da Royal Shakespeare Company, que o artista Fehinti Balogun acabou se dando conta da gravidade da crise do clima.
“Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história”, lembra o ator e dramaturgo britânico. “E, pela primeira vez, percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes”, completa.
Com isso, veio o choque: “Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada”.
Balogun se juntou ao grupo ativista Extinction Rebellion, participou de diversos protestos e organizou uma palestra sobre o tema. Essa jornada o levou à produção de uma peça teatral que, durante a pandemia, foi transformada em um filme.
O ator britânico Fehinti Balogun, que criou a peça ‘Can I live?’, sobre mudanças climáticas. Fonte: New York Times/Tom Jamieson, 29.out.2021
Intitulada “Can I Live?” (posso viver?), a produção explica as mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra, usando diversas performances musicais.
A mãe de Balogun, imigrante nigeriana, é quem guia a história. Fora da tela, também foi ela quem inspirou a criação do texto, a partir de questionamentos ao filho —que ele gravou secretamente para escutar de novo e pensar a respeito.
“Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?”, ela perguntava.
Mesmo discordando, o filho reconheceu na indignação da mãe um ponto muito importante: a discussão climática ficou elitizada e branca e ainda não foi capaz de incluir os segmentos mais pobres da população.
“Can I Live?”, pelo contrário, se propõe a não só trazer os dilemas pessoais do autor, que se misturam aos problemas mundiais e aos dados científicos, como é didática e criativa ao explicar, por exemplo, o efeito estufa em forma de rap. Criado com a companhia de teatro britânica Complicité, o filme mescla linguagens como animação, poesia e música.
“O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas”, define Balogun.
Depois de uma turnê online, o filme foi exibido em eventos como a COP26 (conferência da ONU sobre mudanças climáticas realizada em 2021 na Escócia) e a London Climate Action Week.
A ideia, diz Balogun, é fazer “Can I Live?”, que ainda não foi lançado no Brasil, chegar a movimentos de base, para estimular conversas sobre a crise climática entre aqueles que não costumam se conectar com o assunto.
Quando perguntado sobre a agenda climática no Reino Unido, o autor é categórico: “Temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria. Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser”.
Quando e por que você se envolveu com a agenda da crise climática?
Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história, depois de outro ano ter sido o ano mais quente da história, depois de o último antes disso ter sido o mais quente… E, pela primeira vez, eu percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes. Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada.
Então comecei a tentar me envolver em diferentes projetos e me juntei ao [grupo ativista] Extinction Rebellion. E comecei a discutir tudo com minha mãe, que perguntava: “Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?”. E eu pensava: “Não, essa é a única coisa importante que estou fazendo”. E nós continuamos discutindo muito isso tudo.
Eu gravei secretamente tudo o que ela me disse, peguei os pontos importantes dela e transformei numa apresentação sobre o clima, porque percebi que meu papel era poder usar meu privilégio de ser um ator e ter essa formação.
Eu não sou de uma família particularmente rica. Cresci sem muito dinheiro, morando em habitação social, e o que eu tenho agora é devido ao meu trabalho como ator, aos meus contatos e a todas essas perspectivas diferentes. Então eu montei essa palestra, que é como um TED Talk, usando as mensagens de voz da minha mãe.
Esse trabalho decolou, uma coisa levou à outra e começamos a trabalhar em uma peça, que depois virou um filme, “Can I Live?”. Foi assim que essa jornada climática de repente tomou conta da minha vida.
Sua mãe é a verdadeira estrela do filme. Quais foram as coisas importantes que ela levantou sobre o assunto?
Muitas. Uma delas é exatamente o que significa resistir quando você é uma minoria, e o que significa para a sua criação. Isso afeta não apenas o seu futuro, mas também a ideia que foi passada a pessoas como minha mãe, minhas tias, meus tios sobre o que é o “bom imigrante”.
Não é algo que ela tenha me dito explicitamente, mas que eu intuí de tudo o que ela estava me dizendo. Você não é capaz de reagir porque tem sorte de ter o que tem, entende? Ela dizia: “Há pessoas que estão esperando para entrar no país. Há pessoas que estão esperando conseguir a cidadania. E você acha que eles vão criticar aquele país que diz que eles não deveriam estar lá?”.
Para o público no Brasil que ainda não teve a chance de assistir ao filme, como você o descreveria?
Basicamente, o filme é uma explicação das mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra. O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas.
Eu quero que as pessoas assistam e vejam a si mesmas no filme todo ou em algumas partes, ou que vejam sua mãe ou sua avó ou seus amigos nas conversas. O filme tinha como objetivo levar as pessoas por essa jornada histórica até onde estamos agora e descobrirem o que podem fazer.
Colocamos o filme para distribuição online durante a pandemia. As pessoas pagavam o que podiam. A ideia era tentar torná-lo o mais acessível possível. Não foi algo como: “Ei, nós fizemos uma obra de arte!”, mas ela é exibida num teatro muito metido onde as pessoas se sentem desconfortáveis e têm dificuldades para acessar.
A ideia foi descentralizar esta obra e distribuí-la para o maior número de pessoas possível, e oferecê-la a movimentos de base, para que pudessem exibi-lo e conversar a partir disso e incluir nessas conversas pessoas que não costumavam se conectar.
A propósito, como envolver nas questões climáticas pessoas que estão lutando para sobreviver?
Acho que a coisa mais importante que aprendi sobre me comunicar com as pessoas é que você precisa ir ao encontro delas. Você não pode chegar em alguém esperando que essa pessoa tenha o seu mesmo nível de entusiasmo ou raiva, ou desgosto, ou desdém, porque todo mundo tem algo acontecendo em suas vidas.
O que temos no sistema é que constantemente nos dizem que temos que consertar algo individualmente, e que é nossa culpa individual. O fato de você estar passando por tanta insegurança alimentar é porque você não trabalhou duro o suficiente, ou porque 20 anos atrás você não economizou isso, ou fez aquilo. E se você tivesse feito todas essas coisas, você estaria bem e a culpa é sua e blá, blá, blá.
Você tem de olhar para essa questão de um ponto de vista estrutural. Estrutural e espiritual. Eu posso despejar todas as minhas ideias sobre estrutura e coisas de ativismo em cima de você, mas, no final das contas, se seu prato está cheio, seu prato está cheio; você já chegou no seu limite. A questão é muito mais profunda, e é muito solitário e difícil saber que você tem muitos problemas que precisa consertar. No final, o que está mesmo no centro disso é ter uma comunidade.
E como você descreveria o debate sobre mudanças climáticas no Reino Unido no momento?
Essa é uma pergunta difícil! Agora no Reino Unido temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria.
Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser, na verdade. Mas, se estivermos falando de pensamentos e sentimentos em relação às mudanças climáticas, as pessoas sabem disso, embora não saibam o que fazer.
Na COP26, no ano passado, você participou de eventos com artistas e ativistas indígenas brasileiros. Como o discurso deles ecoou com você e no Reino Unido?
A COP é um evento decepcionante, via de regra. Não me inspirou nem um pouco. O que foi inspirador foram todos os ativistas que estavam lá e pessoas diferentes de muitos países diferentes, fazendo coisas incríveis e falando sobre tantas coisas. É uma comunidade muito forte.
Mas é muito difícil no Reino Unido. O patriotismo está apenas conectado a um ponto de vista ideológico e imperialista do mundo, que diz: “Eu sou superior a você”. Então por que aprender com aquele ativista brasileiro diferente? Já os indígenas eram o oposto disso. A mensagem deles era: “Estes somos nós! E vamos compartilhar isso com vocês! Vamos proteger isso para as gerações futuras!”.
Na sua visão, como fortalecer o movimento global de justiça climática, considerando o atual contexto político?
Parte do movimento dos direitos civis estava ligado à educação, à educação em massa e para certas comunidades. A ideia não é trabalhar com o medo, mas sim trabalhar através do medo para chegar a soluções.
Então, para fortalecer o movimento, [precisamos de] educação em massa, especificamente em certas zonas; e precisamos que diferentes movimentos de base se unam.
Em termos de mudança na narrativa, quais são as estratégias que você considera mais importantes?
Precisamos mudar a narrativa sobre riqueza e propriedade. Nós realmente precisamos entender que a crise climática é uma crise de classes, e dentro dessa crise de classes, há uma interseccionalidade muito racista.
Simplesmente entender essas coisas eu acho que vai ajudar muito; e é muito difícil, porque dentro do ideal capitalista, [a economia] só funciona se você sentir falta de alguma coisa. Eles só podem vender maquiagem para você se você acreditar que precisa de maquiagem. Eu não estou dizendo que as pessoas não devem usar maquiagem, mas, sim, que você só vai comprar algo se achar que precisa daquilo.
São essas mudanças de narrativas sobre o que achamos que é necessário e o que é, na verdade, necessário.
E precisamos de bondade radical. Radical no sentido de que não somos uma cultura muito indulgente.
O debate político anda muito polarizado, inclusive no Brasil, como você deve saber. Você poderia descrever melhor a ideia de bondade radical?
O que quero dizer com bondade radical não é apenas ser radicalmente gentil com a pessoa com opiniões opostas, mas também ser radicalmente gentil consigo mesmo.
Por que estou tentando fazer com que alguém que, fundamentalmente, me odeia goste de mim? Como isso me ajuda ou ajuda a outra pessoa? No final das contas, independentemente de eles terem dito que gostavam ou não de mim, eles vão embora e eu fico com esse sentimento. A única maneira de lidar com isso é ter uma comunidade atrás de você que esteja disposta a compartilhar isso com você.
Você sabe o que isso significa? Significa se afastar da postura individual de “eu vou consertar o mundo” para algo como “estas são as pessoas que eu preciso para poder fazer isso”.
Eu sempre falo, você tem que fazer uma escolha quando você fala com alguém, especialmente com alguém com uma opinião oposta a você que não tem interesse direto no assunto, como por exemplo, racismo, sexismo, ou mesmo mudanças climáticas.
Quando a pessoa não é afetada emocional, física e praticamente pela coisa e argumenta contra você, você tem que se perguntar: “Eu tenho condições de me envolver nisso hoje? Até onde quero ir? Vou ter alguém cuidando de mim quando a conversa terminar?”. Então a bondade radical não é apenas ter um espaço para a outra pessoa: é para você mesmo.
Raio-X
Fehinti Balogun
Ator, dramaturgo, escritor e pintor britânico de origem nigeriana, nascido em Greenwich, em Londres. Além de “Can I Live?”, participou de peças como “Myth” (mito), “The Importance of Being Earnest” (a importância de ser prudente) e “Whose Planet Are You On?” (você está no planeta de quem?). No cinema, fez trabalhos como “Juliet, Nua e Crua”, “Duna” e “Walden”. Na TV, participou das séries “I May Destroy You” (posso te destruir), “Informer” (informante) e “O Filho Bastardo do Diabo”, cuja primeira temporada estreia no fim de outubro na Netflix no Brasil.
Professor reúne textos de 34 autores negros e negras tomando como base o bicentenário da independência do Brasil
Gabriel Araújo
18 de outubro de 2022
O professor e consultor em desenvolvimento humano Helio Santos, autor de “A Busca de um Caminho para o Brasil: A Trilha do Círculo Vicioso” (ed. Senac, 2001), prefere usar o termo “sistêmico” a “estrutural” para descrever o racismo no país. À expressão, ele ainda acrescenta a palavra “inercial”.
“Sistêmico não apenas porque é recorrente, mas por perpassar toda a sociedade e suas instituições”, ele escreve. “Inercial porque, como ensina a primeira lei de Newton, trafega numa direção de maneira uniforme ante a inação para contê-lo. Avassala, segue impune e resoluto”.
Trata-se de uma coletânea com 33 textos, entre artigos acadêmicos e textos literários, de 34 autores negros e negras. Ao tomar como ponto de partida o marco do bicentenário da independência do Brasil, os textos discutem aspectos sociais, culturais, históricos e econômicos do país por meio de uma perspectiva racializada.
“É uma coletânea que tem lado e nasce num momento bastante interessante da sociedade brasileira, de grandes carências”, afirma Santos. “O bicentenário não deve ser celebrado sem que o país faça uma autocrítica em relação à maioria da população.”
Ativista da questão racial desde a década de 1970, Santos foi, em 1984, presidente fundador do Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, iniciativa pioneira dedicada a pensar políticas para a comunidade negra da região. Hoje, ele preside o conselho deliberativo do Fundo Baobá, organização voltada para a promoção da equidade racial.
Além dos ensaios, há também poemas escritos pela atriz Elisa Lucinda e pelo escritor Luiz Silva, conhecido como Cuti.
Juntos, os autores condensam reflexões urgentes sobre o enfrentamento do racismo no Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão. “Para cada dez anos de Brasil, sete aconteceram sob o signo da escravidão”, afirma Santos.
A questão se agrava quando é analisado o modo como a pessoa negra foi tratada após a lei Áurea, de 1888. Enquanto nenhuma política compensatória foi planejada tendo como foco a população negra (a lei de cotas, por exemplo, que visa mitigar a desigualdade na educação superior brasileira, é de 2012), o Estado brasileiro promoveu apoios, inclusive financeiros, para imigrantes residirem e trabalharem no país.
“Esse apoio era necessário, pois eram colonos que vinham ocupar um país gigante”, diz o professor, lembrando que essas pessoas eram, em sua maioria, empobrecidas e de ocupação rural. “O absurdo é que essas iniciativas não tenham sido também destinadas aos negros, que já estavam no Brasil. O nosso apartheid se desencadeia a partir daí.”
Para Santos, o período que vai de 1911, ano de assinatura do decreto de incentivo à imigração, a 2022 “ampliou a defasagem socioeconômica entre os grupos étnico-raciais que constituem o país”.
No último capítulo do livro, o professor se vale de sua experiência na gestão pública e das reflexões suscitadas pelos demais autores da obra para propor um Novo Acordo para a Equidade Racial, que ele denomina de Naper.
“O racismo sistêmico inercial requer política pública, que é o meu foco”, ele diz, propondo um “New Deal customizado, adequado para um país de maioria negra”. O organizador faz referência à experiência norte-americana de intervenção econômica para consolidar, na década de 1930, um Estado de Bem-Estar Social no país.
“Nós temos que criar o estado do bem-estar sociorracial”, afirma Santos. “Isso leva o país para um patamar civilizatório avançado. Eu insisto nessa ideia: longe de ser um problema, a questão racial é parte da solução.”
Para levar o novo acordo a cabo, o professor lista dez sugestões de ações afirmativas sistêmicas para a promoção da equidade mencionada. Há ideias para diminuir as desigualdades na educação, programas de apoio para garantir autonomia às famílias negras, e propostas para reduzir a violência e manter a juventude negra viva.
Prevê políticas afirmativas financeiras, de modo semelhante ao que, no século 20, foi feito com os imigrantes, e um programa de apoio à economia informal.
Santos também sugere a ampliação das cotas raciais, que deveriam valer até 2042. “A razão é simples: ações tão tardias somente causarão impacto numa sociedade apartada racialmente, como a nossa, se perdurarem por um tempo adequado, para que possam consolidar uma mudança efetiva.”
Como o professor aponta, é estratégico o lançamento da coletânea em meio aos debates do segundo turno da eleição brasileira. “O fortalecimento geral da população negra também vai levar a uma maior participação política”, acredita.
A cena tem algo de surreal: pesquisador europeu com o corpo tomado por grafismos indígenas tem na cabeça um gorro com dezenas de eletrodos para eletroencefalografia (EEG). Um membro do povo Huni Kuin sopra rapé na narina do branco, que traz nas costas mochila com aparelhos portáteis para registrar suas ondas cerebrais.
A Expedition Neuron aconteceu em abril de 2019, em Santa Rosa do Purus (AC). No programa, uma tentativa de diminuir o fosso entre saberes tradicionais sobre uso da ayahuasca e a consagração do chá pelo chamado renascimento psicodélico para a ciência.
O resultado mais palpável da iniciativa, até aqui, apareceu num controverso texto sobre ética, e não dados, de pesquisa.
Os autores Eduardo Ekman Schenberg, do Instituto Phaneros, e Konstantin Gerber, da PUC-SP, questionam a autoridade da ciência com base na dificuldade de empregar placebo em experimentos com psicodélicos, na ênfase dada a aspectos moleculares e no mal avaliado peso do contexto (setting) para a segurança do uso, quesito em que cientistas teriam muito a aprender com indígenas.
Entre os alvos das críticas figuram pesquisas empreendidas na última década pelos grupos de Jaime Hallak na USP de Ribeirão Preto e de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN, em particular sobre efeito da ayahuasca na depressão. Procurados, cientistas e colaboradores desses grupos não responderam ou preferiram não se pronunciar.
O potencial antidepressivo da dimetiltriptamina (DMT), principal composto psicoativo do chá, está no foco também de pesquisadores de outros países. Mas outras substâncias psicodélicas, como MDMA e psilocibina, estão mais próximas de obter reconhecimento de reguladores como medicamentos psiquiátricos.
Dado o efeito óbvio de substâncias como a ayahuasca na mente e no comportamento da pessoa, argumentam Schenberg e Gerber, o sistema duplo-cego (padrão ouro de ensaios biomédicos) ficaria inviabilizado: tanto o voluntário quanto o experimentador quase sempre sabem se o primeiro tomou um composto ativo ou não. Isso aniquilaria o valor supremo atribuído a estudos desse tipo no campo psicodélico e na biomedicina em geral.
Outro ponto criticado por eles está na descontextualização e no reducionismo de experimentos realizados em hospitais ou laboratórios, com o paciente cercado de aparelhos e submetido a doses fixadas em miligramas por quilo de peso. A precisão é ilusória, afirmam, com base no erro de um artigo que cita concentração de 0,8 mg/ml de DMT e depois fala em 0,08 mg/ml.
A sanitização cultural do setting, por seu lado, faria pouco caso dos elementos contextuais (floresta, cânticos, cosmologia, rapé, danças, xamãs) que para povos como os Huni Kuin são indissociáveis do que a ayahuasca tem a oferecer e ensinar. Ao ignorá-los, cientistas estariam desprezando tudo o que os indígenas sabem sobre uso seguro e coletivo da substância.
Mais ainda, estariam ao mesmo tempo se apropriando e desrespeitando esse conhecimento tradicional. Uma atitude mais ética de pesquisadores implicaria reconhecer essa contribuição, desenvolver protocolos de pesquisa com participação indígena, registrar coautoria em publicações científicas, reconhecer propriedade intelectual e repartir eventuais lucros com tratamentos e patentes.
“A complementaridade entre antropologia, psicanálise e psiquiatria é um dos desafios da etnopsiquiatria”, escrevem Schenberg e Gerber. “A iniciativa de levar ciência biomédica à floresta pode ser criticada como uma tentativa de medicalizar o xamanismo, mas também pode constituir uma possibilidade de diálogo intercultural centrado na inovação e na resolução de ‘redes de problemas’.”
“É particularmente notável que a biomedicina se aventure agora em conceitos como ‘conexão’ e ‘identificação com a natureza’ [nature-relatedness] como efeito de psicodélicos, mais uma vez, portanto, se aproximando de conclusões epistêmicas derivadas de práticas xamânicas. O desafio final seria, assim, entender a relação entre bem-estar da comunidade e ecologia e como isso pode ser traduzido num conceito ocidental de saúde integrada.”
As reações dos poucos a criticar abertamente o texto e suas ideias grandiosas podem ser resumidas num velho dito maldoso da academia: há coisas boas e novas no artigo, mas as coisas boas não são novas e as coisas novas não são boas. Levar EEG para a floresta do Acre, por exemplo, não resolveria todos os problemas.
Schenberg é o elo de ligação entre o artigo na Transcultural Psychiatry e a Expedition Neuron, pois integrou a incursão ao Acre em 2019 e colabora nesse estudo de EEG com o pesquisador Tomas Palenicek, do Instituto Nacional de Saúde Mental da República Checa. Eis um vídeo de apresentação, em inglês:
“Estamos engajados, Konstantin e eu, em projeto inovador com os Huni Kuin e pesquisadores europeus, buscando construir uma parceria epistemicamente justa, há mais de três anos”, respondeu Schenberg quando questionado sobre o cumprimento, pelo estudo com EEG, das exigências éticas apresentadas no artigo.
Na apresentação da Expedition Neuron, ele afirma: “Nessa primeira expedição curta e exploratória [de 2019], confirmamos que há interesse mútuo de cientistas e uma cultura indígena tradicional da Amazônia em explorar conjuntamente a natureza da consciência e como sua cura tradicional funciona, incluindo –pela primeira vez– registros de atividade cerebral num cenário que muitos considerariam demasiado desafiador tecnicamente”.
“Consideramos de supremo valor investigar conjuntamente como os rituais e medicinas dos Huni Kuin afetam a cognição humana, as emoções e os vínculos de grupo e analisar a base neural desses estados alterados de consciência, incluindo possivelmente experiências místicas na floresta.”
Schenberg e seus colaboradores planejam nova expedição aos Huni Kuin para promover registros de EEG múltiplos e simultâneos com até sete indígenas durante cerimônias com ayahuasca. A ideia é testar a “possibilidade muito intrigante” de sincronia entre cérebros:
“Interpretada pelos Huni Kuin e outros povos ameríndios como um tipo de portal para o mundo espiritual, a ayahuasca é conhecida por fortalecer intensa e rapidamente vínculos comunitários e sentimentos de empatia e proximidade com os outros.”
Os propósitos de Schenberg e Gerber não convenceram a antropóloga brasileira Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco (EUA). “Indígenas não parecem ter sido consultados para a produção do texto, não há vozes nativas, não são coautores, e não temos propostas específicas do que seria uma pesquisa verdadeiramente interétnica e intercultural.”
Para a antropóloga, ainda que a Expedition Neuron tenha conseguido autorização para a pesquisa, algo positivo, não configura “epistemologia alternativa à abordagem cientificista e etnocêntrica”. Uma pesquisa interétnica, em sua maneira de ver, implicaria promover uma etnografia que levasse a sério a noção indígena de que plantas são espíritos, têm agência própria, e que o mundo natural também é cultural, tem subjetividade, intencionalidade.
“Todos sabemos que a bebida ayahuasca não é a mesma coisa que ayahuasca freeze dried [liofilizada]; que o contexto importa; que os rituais e coletivos que participam fazem diferença. Coisas iguais ou análogas já haviam sido apontadas pela literatura antropológica, cujas referências foram deixadas de lado pelos autores.”
Labate também discorda de que os estudos com ayahuasca no Brasil negligenciem o reconhecimento de quem chegou antes a ela: “Do ponto de vista global, é justamente uma marca e um diferencial da pesquisa científica brasileira o fato de que houve, sim, diálogo com participantes das religiões ayahuasqueiras. Estes também são sujeitos legítimos de pesquisa, e não apenas os povos originários”.
Schenberg e Palenicek participaram em 2020 de um encontro com outra antropóloga, a franco-colombiana Emilia Sanabria, líder no projeto Encontros de Cura, do Conselho Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ao lado do indígena Leopardo Yawa Bane, o trio debateu o estudo com EEG no painel virtual “Levando o Laboratório até a Ayahuasca”, da Conferência Interdisciplinar sobre Pesquisa Psicodélica (ICPR). Há vídeo disponível, em inglês:
Sanabria, que fala português e conhece os Huni Kuin, chegou a ser convidada por Schenberg para integrar a expedição, mas declinou, por avaliar que não se resolveria a “incomensurabilidade epistemológica” entre o pensamento indígena e o que a biomedicina quer provar. Entende que a discussão proposta na Transcultural Psychiatry é importante, apesar de complexa e não exatamente nova.
Em entrevista ao blog, afirmou que o artigo parece reinventar a roda, ao desconsiderar um longo debate sobre a assimilação de plantas e práticas tradicionais (como a medicina chinesa) pela ciência ocidental: “Não citam a reflexão anterior. É bom que ponham a discussão na mesa, mas há bibliografia de mais de um século”.
A antropóloga declarou ver problema na postura do artigo, ao apresentar-se como salvador dos nativos. “Não tem interlocutor indígena citado como autor”, pondera, corroborando a crítica de Labate, como se os povos originários precisassem ser representados por não índios. “A gente te dá um espacinho aqui no nosso mundo.”
A questão central de uma colaboração respeitosa, para Sanabria, é haver prioridade e utilidade no estudo também para os Huni Kuin, e não só para os cientistas.
Ao apresentar esse questionamento no painel, recebeu respostas genéricas de Schenberg e Palenicek, não direta e concretamente benéficas para os Huni Kuin –por exemplo, que a ciência pode ajudar na rejeição de patentes sobre ayahuasca.
Na visão da antropóloga, “é linda a ideia de levar o laboratório para condições naturalistas”, mas não fica claro como aquela maquinaria toda se enquadraria na lógica indígena. No fundo, trata-se de um argumento simétrico ao brandido pelos autores do artigo contra a pesquisa psicodélica em ambiente hospitalar: num caso se descontextualiza a experiência psicodélica total, socializada; no outro, é a descontextualização tecnológica que viaja e invade a aldeia.
Sanabria vê um dilema quase insolúvel, para povos indígenas, na pactuação de protocolos de pesquisa com a renascida ciência psicodélica. O que em 2014 parecia para muitos uma nova maneira de fazer ciência, com outros referenciais de avaliação e prova, sofreu uma “virada capitalista” desde 2018 e terminou dominado pela lógica bioquímica e de propriedade intelectual.
“Os povos indígenas não podem cair fora porque perdem seus direitos. Mas também não podem entrar [nessa lógica], porque aí perdem sua perspectiva identitária.”
“Molecularizar na floresta ou no laboratório dá no mesmo”, diz Sanabria. “Não vejo como reparação de qualquer injustiça epistêmica. Não vejo diferença radical entre essa pesquisa e o estudo da Fernanda [Palhano-Fontes]”, referindo-se à crítica “agressiva” de Schenberg e Gerber ao teste clínico de ayahuasca para depressão no Instituto do Cérebro da UFRN, extensiva aos trabalhos da USP de Ribeirão Preto.
A dupla destacou, por exemplo, o fato de autores do estudo da UFRN indicarem no artigo de 2019 que 4 dos 29 voluntários no experimento ficaram pelo menos uma semana internados no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal. Lançaram, com isso, a suspeita de que a segurança na administração de ayahuasca tivesse sido inadequadamente tratada.
“Nenhum desses estudos tentou formalmente comparar a segurança no ambiente de laboratório com qualquer um dos contextos culturais em que ayahuasca é comumente usada”, pontificaram Schenberg e Gerber. “Porém, segundo nosso melhor conhecimento, nunca se relatou que 14% das pessoas participantes de um ritual de ayahuasca tenham requerido uma semana de hospitalização.”
O motivo de internação, contudo, foi trivial: pacientes portadores de depressão resistente a medicamentos convencionais, eles já estavam hospitalizados devido à gravidade de seu transtorno mental e permaneceram internados após a intervenção. Ou seja, a internação não teve a ver com terem tomado ayahuasca.
Este blog também questionou Schenberg sobre o possível exagero em pinçar um erro que poderia ser de digitação (0,8 mg/ml ou 0,08 mg/ml), no artigo de 2015 da USP de Ribeirão, como flagrante de imprecisão que poria em dúvida a superioridade epistêmica da biomedicina psicodélica.
“Se dessem mais atenção aos relatos dos voluntários/pacientes, talvez tivessem se percebido do fato”, retorquiu o pesquisador do Instituto Phaneros. “Além da injustiça epistêmica com os indígenas, existe a injustiça epistêmica com os voluntários/pacientes, que também discutimos brevemente no artigo.”
Schenberg tem vários trabalhos publicados que se encaixariam no paradigma biomédico agora em sua mira. Seria seu artigo com Gerber uma autocrítica sobre a atividade pregressa?
“Sempre fui crítico de certas limitações biomédicas e foi somente com muito esforço que consegui fazer meu pós-doc sem, por exemplo, usar um grupo placebo, apesar de a maioria dos colegas insistirem que assim eu deveria fazer, caso contrário ‘não seria científico’…”.
“No fundo, o argumento é circular, usando a biomedicina como critério último para dar respostas à crítica à biomedicina”, contesta Bia Labate. “O texto não resolve o que se propõe a resolver, mas aprofunda o gap [desvão] entre epistemologias originárias e biomédicas ao advogar por novas maneiras de produzir biomedicina a partir de critérios de validação… biomédicos.”
Fifty years of patient advocacy, including the shocking discovery of mass graves at Kamloops, have secured once-unthinkable gains.
Credit: Darryl Dyck/The Canadian Press, via Associated Press
June 17, 2021
When an Indigenous community in Canada announced recently that it had discovered a mass burial site with the remains of 215 children, the location rang with significance.
Not just because it was on the grounds of a now-shuttered Indian Residential School, whose forcible assimilation of Indigenous children a 2015 truth and reconciliation report called “a key component of a Canadian government policy of cultural genocide.”
That school is in Kamloops, a city in British Columbia from which, 52 years ago, Indigenous leaders started a global campaign to reverse centuries of colonial eradication and reclaim their status as sovereign nations.
Their effort, waged predominantly in courts and international institutions, has accumulated steady gains ever since, coming further than many realize.
It has brought together groups from the Arctic to Australia. Those from British Columbia, in Canada’s mountainous west, have been at the forefront throughout.
Only two years ago, the provincial government there became the world’s first to adopt into law United Nations guidelines for heightened Indigenous sovereignty. On Wednesday, Canada’s Parliament passed a law, now awaiting a final rubber stamp, to extend those measures nationwide.
It was a stunning victory, decades in the making, that activists are working to repeat in New Zealand — and, perhaps one day, in more recalcitrant Australia, Latin America and even the United States.
“There’s been a lot of movement in the field. It’s happening with different layers of courts, with different legislatures,” said John Borrows, a prominent Canadian legal scholar and a member of the Chippewa of the Nawash Unceded First Nation.
The decades-long push for sovereignty has come with a rise in activism, legal campaigning and historical reckonings like the discovery at Kamloops. All serve the movement’s ultimate aim, which is nothing less than overturning colonial conquests that the world has long accepted as foregone.
Credit: Shingwauk Residential Schools Center, via Reuters
No one is sure precisely what that will look like or how long it might take. But advances once considered impossible “are happening now,” Dr. Borrows said, “and in an accelerating way.”
A Generational Campaign
The Indigenous leaders who gathered in 1969 had been galvanized by an array of global changes.
The harshest assimilation policies were rolled back in most countries, but their effects remained visible in everyday life. Extractive and infrastructure megaprojects were provoking whole communities in opposition. The civil rights era was energizing a generation.
But two of the greatest motivators were gestures of ostensible reconciliation.
In 1960, world governments near-unanimously backed a United Nations declaration calling to roll back colonialism. European nations began withdrawing overseas, often under pressure from the Cold War powers.
But the declaration excluded the Americas, Australia and New Zealand, where colonization was seen as too deep-rooted to reverse. It was taken as effectively announcing that there would be no place in the modern world for Indigenous peoples.
Then, at the end of the decade, Canada’s progressive government issued a fateful “white paper” announcing that it would dissolve colonial-era policies, including reserves, and integrate Indigenous peoples as equal citizens. It was offered as emancipation.
Credit: Chris Helgren/Reuters
Other countries were pursuing similar measures, with the United States’ inauspiciously named “termination policy.”
To the government’s shock, Indigenous groups angrily rejected the proposal. Like the United Nations declaration, it implied that colonial-era conquests were to be accepted as forgone.
Indigenous leaders gathered in Kamloops to organize a response. British Columbia was a logical choice. Colonial governments had never signed treaties with its original inhabitants, unlike in other parts of Canada, giving special weight to their claim to live under illegal foreign occupation.
“It’s really Quebec and British Columbia that have been the two epicenters, going back to the ’70s,” said Jérémie Gilbert, a human rights lawyer who works with Indigenous groups. Traditions of civil resistance run deep in both.
The Kamloops group began what became a campaign to impress upon the world that they were sovereign peoples with the rights of any nation, often by working through the law.
They linked up with others around the world, holding the first meeting of The World Council of Indigenous Peoples on Vancouver Island. Its first leader, George Manuel, had passed through the Kamloops residential school as a child.
The council’s charter implicitly treated countries like Canada and Australia as foreign powers. It began lobbying the United Nations to recognize Indigenous rights.
It was nearly a decade before the United Nations so much as established a working group. Court systems were little faster. But the group’s ambitions were sweeping.
Legal principles like terra nullius — “nobody’s land” — had long served to justify colonialism. The activists sought to overturn these while, in parallel, establishing a body of Indigenous law.
“The courts are very important because it’s part of trying to develop our jurisprudence,” Dr. Borrows said.
The movement secured a series of court victories that, over decades, stitched together a legal claim to the land, not just as its owners but as sovereign nations. One, in Canada, established that the government had an obligation to settle Indigenous claims to territory. In Australia, the high court backed a man who argued that his family’s centuries-long use of their land superseded the government’s colonial-era conquest.
Activists focused especially on Canada, Australia and New Zealand, which each draw on a legal system inherited from Britain. Laws and rulings in one can become precedent in the others, making them easier to present to the broader world as a global norm.
Irene Watson, an Australian scholar of international Indigenous law and First Nations member, described this effort, in a 2016 book, as “the development of international standards” that would pressure governments to address “the intergenerational impact of colonialism, which is a phenomenon that has never ended.”
It might even establish a legal claim to nationhood. But it is the international arena that ultimately confers acceptance on any sovereign state.
Steps Toward Sovereignty
By the mid-1990s, the campaign was building momentum.
The United Nations began drafting a declaration of Indigenous rights. Several countries formally apologized, often alongside promises to settle old claims.
This period of truth and reconciliation was meant to address the past and, by educating the broader public, create support for further advances.
Credit: Dave Chan/Agence France-Presse — Getty Images
Judicial advances have followed a similar process: yearslong efforts that bring incremental gains. But these add up. Governments face growing legal obligations to defer to Indigenous autonomy.
The United States has lagged. Major court rulings have been fewer. The government apologized only in 2010 for “past ill-conceived policies” against Indigenous people and did not acknowledge direct responsibility. Public pressure for reconciliation has been lighter.
Still, efforts are growing. In 2016, activists physically impeded construction of a North Dakota pipeline whose environmental impact, they said, would infringe on Sioux sovereignty. They later persuaded a federal judge to pause the project.
Credit: Terray Sylvester/Reuters
Latin America has often lagged as well, despite growing activism. Militaries in several countries have targeted Indigenous communities in living memory, leaving governments reluctant to self-incriminate.
In 2007, after 40 years of maneuvering, the United Nations adopted the declaration on Indigenous rights. Only the United States, Australia, New Zealand and Canada opposed, saying it elevated some Indigenous claims above those of other citizens. All four later reversed their positions.
“The Declaration’s right to self-determination is not a unilateral right to secede,” Dr. Claire Charters, a New Zealand Māori legal expert, wrote in a legal journal. However, its recognition of “Indigenous peoples’ collective land rights” could be “persuasive” in court systems, which often treat such documents as proof of an international legal principle.
Few have sought formal independence. But an Australian group’s 2013 declaration, brought to the United Nations and the International Court of Justice, inspired several others to follow. All failed. But, by demonstrating widening legal precedent and grass roots support, they highlighted that full nationhood is not as unthinkable as it once was.
It may not have seemed like a step in that direction when, in 2019, British Columbia enshrined the U.N. declaration’s terms into provincial law.
But Dr. Borrows called its provisions “quite significant,” including one requiring that the government win affirmative consent from Indigenous communities for policies that affect them. Conservatives and legal scholars have argued it would amount to an Indigenous veto, though Justin Trudeau, Canada’s prime minister, and his liberal government dispute this.
Mr. Trudeau promised to pass a similar law nationally in 2015, but faced objections from energy and resource industries that it would allow Indigenous communities to block projects. He continued trying, and Wednesday’s passage in Parliament all but ensures that Canada will fully adopt the U.N. terms.
Mr. Gilbert said that activists’ current focus is “getting this into the national systems.” Though hardly Indigenous independence, it would bring them closer than any step in generations.
Credit: Jennifer Gauthier/Reuters
As the past 50 years show, this could help pressure others to follow (New Zealand is considered a prime candidate), paving the way for the next round of gradual but quietly historical advances.
It is why, Mr. Gilbert said, “All the eyes are on Canada.”
No fim de 2016, o cientista político professor da universidade de Wisconsin-Milwalkee, Kennan Ferguson, publicou um artigo na revista da American Political Science Association com o título provocativo “ Why does Political Science hate American Indians?” (“Por que a Ciência Política odeia os índios norte-americanos?”, em tradução livre). O texto é uma espécie de ensaio crítico que parte do que o autor considera verdades incontroversas: 1. Há poucos professores indígenas nos departamentos de Ciência Política dos EUA; 2. Poucos assuntos indígenas são tomados, por cientistas políticos, como assuntos políticos importantes; 3. Poucos pontos de vistas de povos indígenas são considerados criticamente dentro da disciplina e; 4. Poucos intelectuais, acadêmicos ou discursos de ativistas indígenas são parte dos programas dos cursos da área.
Não é preciso uma investigação de muita envergadura para constatar que estes pontos se aplicam integralmente ao caso brasileiro. Você, cientista político que me lê, conhece algum colega professor que é indígena? Considera que a política indigenista ou qualquer outro tema ligado aos povos indígenas brasileiros é importante? Os pontos de vista indígenas estão incluídos criticamente em nossos programas de cursos? Se a resposta é negativa a todas essas perguntas – como eu tenho certeza de que são – talvez caiba perguntar, ecoando o texto de Ferguson: a Ciência Política brasileira também odeia os povos indígenas do país?
Nesse texto, busco apresentar brevemente as oito hipóteses de trabalho levantadas por Ferguson no referido texto para explicar o que ele denomina de “processo de eliminação” dos povos indígenas do radar disciplinar da Ciência Política. Devido ao escopo exíguo, o intuito aqui é tão somente o de iniciar algum debate entre nós. Em que pese o fato de que foram pensadas a partir da percepção de Ferguson para os Estados Unidos, como veremos a seguir, as reflexões do autor se aplicam, quase que sem necessidade de qualquer mediação, para o caso brasileiro.
Antes de adentrarmos na lista de hipóteses, duas palavras. Primeiramente, está para ser publicado na Revista Brasileira de Ciência Política meu artigo no qual traço um amplo diagnóstico do desinteresse da Ciência Política sobre questões indígenas. Nele também demonstro que há exemplos muito interessantes de cientistas políticos não- indígenas e indígenas – sim, eles existem, mas ainda não aqui no Brasil- fazendo trabalhos excepcionais no Canadá, país que parece ser o exemplo também para Ferguson. Aliás, cabe ressaltar que a Canadian Political Science Association talvez seja a única associação profissional do campo que tem um comitê de reconciliação com os povos indígenas do país e que oferece um conjunto de referências sistematizadas para que os professores possam incluir em seus cursos. “Fica a dica” para a Associação Brasileira de Ciência Política, e para conferirem o artigo.
Em segundo lugar, é forçoso reconhecer que as hipóteses de Ferguson são mais amplas do que as que eu estava desenvolvendo até o momento. Eu julgava que a Ciência Política brasileira não se interessava por povos indígenas basicamente por três motivos: 1. O processo progressivo de especialização das disciplinas científicas e a consequente eleição de certos “objetos” de pesquisa canônicos, quando a questão indígena virou tema cativo da antropologia; 2. O proverbial internalismo da disciplina, ou seja, sua dificuldade de dialogar com outros campos do conhecimento, especialmente a antropologia nacional e; 3. Racismo e ignorância puras e simples, fruto do completo desconhecimento da história e do presente dos povos indígenas brasileiros, o que facilita a perpetuação de uma série de estereótipos perniciosos ligados a uma suposta arcaicidade do modo de fazer política indígena.
Como veremos a seguir, há mais razões do que essas por mim elencadas. Vamos a elas.
As hipóteses de Ferguson sobre o processo de eliminação da temática indígena do campo disciplinar da Ciência Política
A disciplina é estruturada em torno do conceito de estado-nação, um conceito amarrado em torno de uma série de premissas sobre soberania territorial que exclui as vítimas do colonialismo: O conceito de estado-nação é certamente um dos mais importantes e centrais do campo, tomado como unidade de análise precípua de estudos quantitativos e qualitativos de todos os tipos. Ferguson chama a atenção para a necessidade de que falta à disciplina uma reflexão mais profunda e crítica sobre o conceito, de modo a trazer à baila a violência do processo colonial que expulsou indígenas de seus territórios tradicionais e exterminou-os quando possível. Ademais, um conceito monolítico de soberania territorial exclui da equação política o fato de que muitos povos indígenas nunca foram “conquistados” ou “cederam” suas terras para a potência colonizadora, e que remanescem se autocompreendendo como nações soberanas que têm direito a algum grau de controle sobre o território em que habitam. Colega cientista político, você conhece e saberia elencar os povos indígenas brasileiros e suas reivindicações por soberania territorial?
A Ciência Política sofre de um viés anti-histórico: segundo o autor, a Ciência Política mainstream tem uma parca compreensão dos fenômenos históricos e dificuldade de trabalhar com um conceito de “historicidade rica”. Ademais, ao se aproximar de disciplinas como a Economia, busca mais capacidade preditiva sobre o futuro do que a investigação consequente do passado. Por fim, em suas palavras, “a história para a Ciência Política é o historicismo Whig, uma forma de contar os eventos do passado como um conto procedimental de progressivo acúmulo de riqueza, felicidade e equidade” (p.1032, tradução nossa). Mais uma vez, você seria capaz de falar da história da relação do Estado brasileiro com os povos indígenas e sua evolução ao longo dos séculos?
A política dos grupos de interesse é o tema central para a Ciência Política e, sob esse prisma, os povos indígenas são apenas mais um grupo de interesse: enxergar os povos indígenas como um grupo de interesse “a mais” dentre os demais grupos políticos tem o condão de minimizar a distinção de suas demandas políticas. Estas, grosso modo, são caracterizadas, sobretudo, pela luta pelo reconhecimento de sua legitimidade enquanto atores que almejam deter algum grau de autodeterminação cultural e material em face à pressão por seu desaparecimento ou integração forçada à sociedade colonizadora. Caracterizados assim, grupos indígenas podem facilmente ser integrados a esquemas analíticos em pesquisas sobre “não-brancos”, o que diminui a capacidade de entendimento de suas demandas específicas. Você sabe qual é a pauta de reivindicações da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil?
A centralidade de análises a partir do sistema legal da sociedade nacional exclui as investigações sobre os sistemas legais criados pelos povos indígenas: Em que pese o fato de que o debate recente sobre o chamado Novo Constitucionalismo Latino-Americano tenha colocado em evidênciaas novas constituições da região que, em larga medida, incluíram dispositivos relativos aos direitos dos povos indígenas, a perspectiva de que cientistas políticos trabalhariam com outro paradigma constitucional que não do estado-nação é, para dizer o mínimo, pouco plausível. O debate sobre sistemas legais criados por povos indígenas ainda está confinado a algumas pesquisas no campo do Direito no Brasil e mais avançada em outros países. Colega cientista político, você conhece algum sistema legal instituído por algum povo indígena? Esses códigos legais são escritos ou orais? Em que medida eles se relacionam com o sistema político e jurídico da sociedade circundante?
Mesmo as disciplinas potencialmente mais abertas a receberem contribuições indígenas estão eivadas pelo pressuposto da superioridade europeia: Ferguson argumenta que há dois pressupostos conectados em certas disciplinas do currículo dos cientistas políticos que facilitam a exclusão dos povos indígenas: a ideia de que autores europeus construíram conceitos universais inquestionáveis e; a ideia de que o conhecimento válido é aquele em formato de texto, o que exclui toda a reflexão política indígena incorporada, por exemplo, em forma de pinturas, cantos ou objetos artesanais. De fato, hoje parece mais comum que o chamado “pensamento decolonial” se torne uma disciplina à parte no currículo dos cientistas políticos do que um componente que atravessa “por dentro” as formulações clássicas de autores tais como Locke, Hobbes e Rousseau. Por outro lado, também parece impensável a ideia de questionar o conceito de soberania territorial a partir, digamos, da exegese de uma “Wampum Belt” (cordões de contas utilizadas por indígenas canadenses para celebrar a realização de um tratado com a coroa britânica). Ou você, colega cientista político, está disposto a mergulhar profundamente no significado político das pinturas corporais de um determinado povo indígena para produzir conhecimento a partir dessa perspectiva?
As categorias consideradas políticas por excelência são de difícil tradução para os contextos indígenas: categorias tais como “líder político”, ou “propriedade fundiária individual”, por exemplo, são inexistentes em muitos povos indígenas. Cientistas políticos normalmente são ávidos por esculpir variáveis independentes e dependentes claramente separadas uma das outras, ou trabalhar com atores e instituições políticas monolíticas, artifícios redutores da complexidade inerente à organização política dos povos indígenas. Assim, um problema de incomensurabilidade conceitual pode ser um desafio a mais para indígenas que queiram adentrar o mundo do campo da Ciência Política e, inversamente, para analistas que possam se interessar pelo tema indígena.
O indivíduo liberal auto orientado da escolha racional como unidade de análise é uma abstração teórica que deslegitima as formas coletivas de pertencimento e de ação: se o Estado é uma ficção teórica que invisibiliza as violências cometidas contra os povos indígenas, assim o é a ideia de indivíduos racionais que agem motivados pela maximização de sua satisfação. A antropologia é pródiga em estudos demonstrando a complexidade das afiliações comunitárias e ontológicas dos povos indígenas brasileiros, e o pressuposto o indivíduo racional-maximizador deve ser profundamente revisto quando da realização de pesquisas relacionadas aos povos indígenas.
Por fim, a própria estrutura institucional do sistema universitário dificulta o acesso e a conexão dos povos indígenas à disciplina: em primeiro lugar, é evidente que muitas universidades estão localizadas distantes das terras indígenas, o que traz uma dificuldade real de presença de indígenas nos campi das instituições. Além disso, a despeito do fato de que já há uma razoável difusão de cotas para indígenas em cursos de graduação, estas ainda são pouco comuns em nível de pós-graduação. Em suma, há uma série de entraves estruturais para que povos indígenas formem seus intelectuais e possam pautar debates acadêmicos de dentro das universidades.
As hipóteses de Kennan Ferguson aqui apresentadas são provocativas e eu espero que possamos, enquanto grupo de scholars do campo da Ciência Política, refletir criticamente sobre cada uma delas. Assim, quem sabe, possamos ter menos receio, no futuro, de respondermos à pergunta que dá título a esse texto.
Referências
FERGUSON, Kennan. Why does Political Science Hate American Indians? In: Perspectives on Politics nº.14.vol. 4, 2016.
SOARES, Leonardo Barros Soares: A ausência eloquente: ciência política brasileira, povos indígenas e o debate acadêmico canadense contemporâneo. In: Revista Brasileira de Ciência Política. No prelo.
[1] Doutor em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Realiza Estágio pós-doutoral no Departamento de Estudos Latino-americanos da Universidade de Brasília (ELA/UnB). Membro do Laboratório e Grupo de Estudos em Relações Interétnicas (LAGERI/UnB) e do Réseau d’études Latinoamericaínes de Montréal (RÉLAM/Université de Montréal). E-mail: leobarros@ufpa.br.
Jean-Baptiste Debret. Pintura do francês Jean-Baptiste Debret de 1826 retrata escravos no Brasil.
“De igual modo, em virtude dos descobrimentos, movimentaram-se povos para outros continentes (sobretudo europeus e escravos africanos).”
É dessa forma – “como se os negros tivessem optado por emigrar em vez de terem sido levados à força” – que o colonialismo ainda é ensinado em Portugal.
Quem critica é a portuguesa Marta Araújo, pesquisadora principal do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
De setembro de 2008 a fevereiro de 2012, ela coordenou uma minuciosa pesquisa ao fim da qual concluiu que os livros didáticos do país “escondem o racismo no colonialismo português e naturalizam a escravatura”.
Além disso, segundo Araújo, “persiste até hoje a visão romântica de que cumprimos uma missão civilizatória, ou seja, de que fomos bons colonizadores, mais benevolentes do que outros povos europeus”.
“A escravatura não ocupa mais de duas ou três páginas nesses livros, sendo tratada de forma vaga e superficial. Também propagam ideias tortuosas. Por exemplo, quando falam sobre as consequências da escravatura, o único país a ganhar maior destaque é o Brasil e mesmo assim para falar sobre a miscigenação”, explica.
“Por trás disso, está o propósito de destacar a suposta multirracialidade da nossa maior colônia que, neste sentido, seria um exemplo do sucesso das políticas de miscigenação. Na prática, porém, sabemos que isso não ocorreu da forma como é tratada”, questiona.
Araújo diz que “nada mudou” desde 2012 e argumenta que a falta de compreensão sobre o assunto traz prejuízos.
“Essa narrativa gera uma série de consequências, desde a menor coleta de dados sobre a discriminação étnico-racial até a própria não admissão de que temos um problema de racismo”, afirma.
Jean-Baptiste Debret Image. Segundo Araújo, livros didáticos portugueses continuam a apregoar visão “romântica” sobre colonialismo português
‘Vítimas passivas?’
Para realizar a pesquisa, Araújo contou com a ajuda de outros pesquisadores. O foco principal foi a análise dos cinco livros didáticos de História mais vendidos no país para alunos do chamado 3º Ciclo do Ensino Básico (12 a 14 anos), que compreende do 7º ao 9º ano.
Além disso, a equipe também examinou políticas públicas, entrevistou historiadores e educadores, assistiu a aulas e conduziu workshops com estudantes.
Em um deles, as pesquisadoras presenciaram uma cena que chamou a atenção, lembra Araújo.
Na ocasião, os alunos ficaram surpresos ao saber de revoltas das próprias populações escravizadas. E também sobre o verdadeiro significado dos quilombos ─ destino dos escravos que fugiam, normalmente locais escondidos e fortificados no meio das matas.
“Em outros países, há uma abertura muito maior para discutir como essas populações lutavam contra a opressão. Mas, no caso português, os alunos nem sequer poderiam imaginar que eles se libertavam sozinhos e continuavam a acreditar que todos eram vítimas passivas da situação. É uma ideia muito resignada”, diz.
Araújo destaca que nos livros analisados “não há nenhuma alusão à Revolução do Haiti (conflito sangrento que culminou na abolição da escravidão e na independência do país, que passou a ser a primeira república governada por pessoas de ascendência africana)”.
Já os quilombos são representados, acrescenta a pesquisadora, como “locais onde os negros dançavam em um dia de festa”.
“Como resultado, essas versões acabam sendo consensualizadas e não levantam as polêmicas necessárias para problematizarmos o ensino da História da África.”
‘Visão romântica’
Araújo diz que, diferentemente de outros países, os livros didáticos portugueses continuam a apregoar uma visão “romântica” sobre o colonialismo português.
“Perdura a narrativa de que nosso colonialismo foi um colonialismo amigável, do qual resultaram sociedades multiculturais e multirraciais – e o Brasil seria um exemplo”, diz.
Ironicamente, contudo, outras potências colonizadoras daquele tempo não são retratadas de igual forma, observa ela.
“Quando falamos da descoberta das Américas, os espanhóis são descritos como extremamente violentos sempre em contraste com a suposta benevolência do colonialismo português. Já os impérios francês, britânico e belga são tachados de racistas”, assinala.
“Por outro lado, nunca se fala da questão racial em relação ao colonialismo português. Há despolitização crescente. Os livros didáticos holandeses, por exemplo, atribuem a escravatura aos portugueses”, acrescenta.
Segundo ela, essa ideia da “benevolência do colonizador português” acabou encontrando eco no luso-tropicalismo, tese desenvolvida pelo cientista social brasileiro Gilberto Freire sobre a relação de Portugal com os trópicos.
Em linhas gerais, Freire defendia que a capacidade do português de se relacionar com os trópicos ─ não por interesse político ou econômico, mas por suposta empatia inata ─ resultaria de sua própria origem ética híbrida, da sua bicontinentalidade e do longo contato com mouros e judeus na Península Ibérica.
Apesar de rejeitado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1930-1945), por causa da importância que conferia à miscigenação e à interpenetração de culturas, o luso-tropicalismo ganhou força como peça de propaganda durante a ditadura do português António de Oliveira Salazar (1932-1968). Uma versão simplificada e nacionalista da tese acabou guiando a política externa do regime.
“Ocorre que a questão racial nunca foi debatida em Portugal”, ressalta Araújo. Direito de imagem Marta Araújo Image caption Livro didático português diz que escravos africanos “movimentaram-se para outros continentes”
‘Sem resposta’
A pesquisadora alega que enviou os resultados da pesquisa ao Ministério da Educação português, mas nunca obteve resposta.
“Nossa percepção é que os responsáveis acreditam que tudo está bem assim e que medidas paliativas, como festivais culturais sazonais, podem substituir a problematização de um assunto tão importante”, critica.
Nesse sentido, Araújo elogia a iniciativa brasileira de 2003 que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.
“Precisamos combater o racismo, mas isso não será possível se não mudarmos a forma como ensinamos nossa História”, conclui.
Procurado pela BBC Brasil, o Ministério da Educação português não havia respondido até a publicação desta reportagem.
When historian Frederick Jackson Turner presented his famous thesis on the US frontier in 1893, he described the “coarseness and strength combined with acuteness and acquisitiveness” it had forged in the American character.
Now, well into the 21st century, researchers led by the University of Cambridge have detected remnants of the pioneer personality in US populations of once inhospitable mountainous territory, particularly in the Midwest.
A team of scientists algorithmically investigated how landscape shapes psychology. They analyzed links between the anonymised results of an online personality test completed by over 3.3 million Americans, and the “topography” of 37,227 US postal—or ZIP—codes.
The researchers found that living at both a higher altitude and an elevation relative to the surrounding region—indicating “hilliness”—is associated with a distinct blend of personality traits that fits with “frontier settlement theory”.
“The harsh and remote environment of mountainous frontier regions historically attracted nonconformist settlers strongly motivated by a sense of freedom,” said researcher Friedrich Götz, from Cambridge’s Department of Psychology.
“Such rugged terrain likely favored those who closely guarded their resources and distrusted strangers, as well as those who engaged in risky explorations to secure food and territory.”
“These traits may have distilled over time into an individualism characterized by toughness and self-reliance that lies at the heart of the American frontier ethos” said Götz, lead author of the study.
“When we look at personality across the whole United States, we find that mountainous residents are more likely to have psychological characteristics indicative of this frontier mentality.”
Götz worked with colleagues from the Karl Landsteiner University of Health Sciences, Austria, the University of Texas, US, the University of Melbourne in Australia, and his Cambridge supervisor Dr. Jason Rentfrow. The findings are published in the journal Nature Human Behaviour.
The research uses the “Big Five” personality model, standard in social psychology, with simple online tests providing high-to-low scores for five fundamental personality traits of millions of Americans.
The mix of characteristics uncovered by study’s authors consists of low levels of “agreeableness”, suggesting mountainous residents are less trusting and forgiving—traits that benefit “territorial, self-focused survival strategies”.
Low levels of “extraversion” reflect the introverted self-reliance required to thrive in secluded areas, and a low level of “conscientiousness” lends itself to rebelliousness and indifference to rules, say researchers.
“Neuroticism” is also lower, suggesting an emotional stability and assertiveness suited to frontier living. However, “openness to experience” is much higher, and the most pronounced personality trait in mountain dwellers.
“Openness is a strong predictor of residential mobility,” said Götz. “A willingness to move your life in pursuit of goals such as economic affluence and personal freedom drove many original North American frontier settlers.”
“Taken together, this psychological fingerprint for mountainous areas may be an echo of the personality types that sought new lives in unknown territories.”
The researchers wanted to distinguish between the direct effects of physical environment and the “sociocultural influence” of growing up where frontier values and identities still hold sway.
To do this, they looked at whether mountainous personality patterns applied to people born and raised in these regions that had since moved away.
The findings suggest some “initial enculturation” say researchers, as those who left their early mountain home are still consistently less agreeable, conscientious and extravert, although no such effects were observed for neuroticism and openness.
The scientists also divided the country at the edge of St. Louis—”gateway to the West”—to see if there is a personality difference between those in mountains that made up the historic frontier, such as the Rockies, and eastern ranges e.g. the Appalachians.
While mountains continue to be a “meaningful predictor” of personality type on both sides of this divide, key differences emerged. Those in the east are more agreeable and outgoing, while western ranges are a closer fit for frontier settlement theory.
In fact, the mountainous effect on high levels of “openness to experience” is ten times as strong in residents of the old western frontier as in those of the eastern ranges.
The findings suggest that, while ecological effects are important, it is the lingering sociocultural effects—the stories, attitudes and education—in the former “Wild West” that are most powerful in shaping mountainous personality, according to scientists.
They describe the effect of mountain areas on personality as “small but robust”, but argue that complex psychological phenomena are influenced by many hundreds of factors, so small effects are to be expected.
“Small effects can make a big difference at scale,” said Götz. “An increase of one standard deviation in mountainousness is associated with a change of around 1% in personality.”
“Over hundreds of thousands of people, such an increase would translate into highly consequential political, economic, social and health outcomes.”
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Talvez possamos aprender com os palestinos a lidar com o nosso momento, isto é com o desespero, o exílio e a tragédia
No momento em que se inaugura a revista Exilium, da comunidade intelectual árabe no Brasil, creio não haver nada mais oportuno do que evocar Mahamoud Darwich. Vivemos sob um governo de ultradireita cuja estratégia compreende, entre outros, dois temas cruciais que, interligados, tornam atualíssima, quiçá imprescindível, a leitura de sua obra. Pois com o bolsonarismo, estamos presenciando o ataque aberto aos povos indígenas e a adoção de uma política destrutiva com a terra, o lugar e o meio (veneno dos agrotóxicos nas plantações, desmatamento acelerado, mercúrio do garimpo nos rios, descaso com a poluição dos mares, lama de barragem rompida, desmantelamento das instituições de fiscalização e controle…) que merecem ser considerados à luz de seus escritos. Se percebermos as conexões entre tais temas e as questões que neles ressoam, através da vida e da poesia do poeta máximo da Palestina, talvez possamos aprender com os palestinos a lidar com o nosso momento, isto é com o desespero, o exílio e a tragédia, concebidos a partir de uma perspectiva vital.
São muitas as possíveis portas de entrada na poesia e na vida de Darwich. Como nossas experiências de vida parecem ser muito distantes das dele e dos Palestinos, escolho a que me parece mais próxima, a de maior ressonância. Aquela em que o poeta palestino se descobre índio na própria condição de poeta e de Palestino. Mais precisamente, Pele-Vermelha.
Preso duas vezes pelos israelenses por razões políticas em sua juventude, Darwich se viu como um espectro assombrando seus algozes. Em Presente ausência, sua última autobiografia poética publicada em 2006, dois anos antes de sua morte, o poeta escreve:
“Espectro que leva o guarda a vigiar. Chá e um fuzil. Quando o vigia cochila, o chá esfria, o fuzil cai de suas mãos e o Pele-Vermelha infiltra-se na história
A história, é que és um Pele-Vermelha
Vermelha de plumas, não de sangue. És o pesadelo do vigia
Vigia que caça a ausência e massageia os músculos da eternidade
A eternidade pertence ao guarda. Bem imobiliário e investimento. Se necessário, ele se torna um soldado disciplinado numa guerra sem armistício. E sem paz
Paz sobre ti, no dia em que nascestes e no dia em que ressuscitarás na folhagem de uma árvore
A árvore é um agradecimento erguido pela terra como uma confiança em seu vizinho, o céu (…)”[i].
“A história, é que és um Pele-Vermelha.” No início dos anos 90, em“Na última noite, nesta terra”, Darwich havia publicado o Discurso do homem vermelho, no qual abordava a problemática do Outro. Para escrevê-lo, havia lido uma vintena de livros sobre a história dos Pele-Vermelha e a literatura deles. Queria impregnar-se de seus textos, dos discursos dos chefes. Precisava conhecer suas roupas, os nomes de suas aldeias, a flora, os modos de vida, o ambiente, os instrumentos, as armas, os meios de transporte. Ora, por que esse interesse tão agudo nos povos indígenas norte-americanos, tão distantes no espaço e no tempo, aparentemente tão sem conexão com o que se passava na Palestina na segunda metade do século XX?
No material coletado para escrever seu Discurso, Darwich inspirou-se particularmente na fala do Cacique Seattle no Congresso norte-americano, em 1854, em resposta à proposta formulada por Isaac Stevens, governador do Território de Washington, de comprar as terras indígenas. Ali, o líder indígena dizia: “Cada parcela deste solo é sagrada na avaliação de meu povo. Cada encosta, cada vale, cada planície e arvoredo foi consagrado por algum acontecimento triste ou feliz nos dias que há tempos desvaneceram. Até as pedras, que parecem ser mudas e mortas como o calor sufocante do sol na praia silente, estremecem com as memórias de comoventes acontecimentos conectados com as vidas de meu povo, e até o pó sobre o qual agora erguei-vos responde mais amorosamente aos pés dele do que aos vossos, porque é rico com o sangue de nossos ancestrais, e nossos pés descalços são conscientes do toque empático. Nossos bravos falecidos, queridas mães, alegres e amorosas esposas, e até mesmo as criancinhas que viveram aqui e aqui se alegraram durante uma breve estação, amarão estas solidões sombrias e a cada entardecer saúdam os espíritos das sombras que retornam.E quando o último Pele-Vermelha terá desaparecido, e a memória de minha tribo terá se tornado um mito entre os Homens Brancos, estas praias fervilharão com os mortos invisíveis de minha tribo.” [ii].
Ora, a relação sagrada com a terra e o lugar é a mesma que encontramos no Discurso do homem vermelho. Vejamos dois pequenos trechos, traduzidos por Elias Sanbar para o francês: “Assim, somos o que somos no Mississipi. E cabem a nós as relíquias de ontem. Mas a cor do céu mudou e a Leste, o mar mudou. Ô senhor dos Brancos, domador dos cavalos, o que esperas dos que partem com as árvores da noite? Elevada é nossa alma e sagradas são as pastagens. E as estrelas são palavras que iluminam.. Escruta-ase lerás nossa história inteira: aqui nascemos entre fogo e água, e logo renasceremos nas nuvens às margens do litoral azulado. Não firas ainda mais a relva, ela possui uma alma que defende em nós a alma da terra. Ô domador dos cavalos, domestica tua montaria, que ela diga à alma da natureza seu pesar pelo que fizestes com nossas árvores. Árvore minha irmã. Eles te fizeram sofrer, como a mim. Não peças misericórdia para o lenhador de minha mãe e da tua (…)”.
“Há mortos que cochilam nos quartos que erguereis. Mortos que visitam seu passado nos lugares que demolireis. Mortos que cruzam as pontes que construireis. E há mortos que iluminam a noite das borboletas que chegam na aurora para tomar chá convosco, calmas como vossos fuzis que as abandonaram. Deixai então, ô convidados do lugar, alguns assentos livres para os anfitriões, que eles vos leiam as condições da paz com os defuntos.” [iii].
A boca do Pele-Vermelha, porém, porta a voz do chefe índio e do Palestino. Mais do que através de uma abstrata noção de pátria, a relação Pele-Vermelha–Palestino se desenha como intensidade de parentesco com o lugar, com a natureza, e seu caráter cósmico. Como o Cacique, o poeta palestino pertence à terra; e não a terra a ele. Assim, a carga poética da enunciação é a mesma nos dois discursos, e expressa a solenidade da locução, seu caráter sagrado, transcendente. Mas, ao mesmo tempo, os dois discursos se pretendem históricos, fazem História, são marcos de acontecimentos tremendos.
Escrevendo o Discurso do homem vermelho, Darwich levantou a questão do genocídio indígena nas Américas e da relação que ele tinha com o fim da presença árabe na Península Ibérica. Tratava-se de estabelecer o sentido da imposição do Ocidente e de sua cosmovisão. Com efeito, em entrevista a Subhi Hadidi e Basheer al-Baker, o poeta esclarece o motivo estético e político dessa incursão na História: “Distingo entre a crônica e o arquivo. Meus poemas dizem o direito, a recusa de que a força imponha seus “direitos”. Podem objetar-me que a História não passa de uma longa sucessão desses direitos nascidos do uso da força. Isso significa que o fraco é obrigado a aceitar sua ausência forçada, até a colaborar para o seu próprio desaparecimento? Muito ao contrário, não deve ele continuar combatendo para permanecer presente?
O registro histórico sobre o qual trabalho é aquele da defesa do direito, ainda que me digam que é pela espada que nascem os Estados. A poesia não pode conciliar-se com a força, pois ela é habitada pelo dever de criar sua própria força, fundando um espaço vital para a defesa do direito, da justiça e da vítima. A poesia é a aliada indefectível da vítima, e só pode encontrar terreno de entendimento com a História com base nesse princípio fundamental. É sob esse ângulo que precisamos compreender a temática dos Pele-Vermelha ou da queda de Granada, para propor, em 1992, uma leitura humanista de 1492.
Naquele ano, o mundo ocidental atrelou-se à interpretação do alcance histórico de 1492, e mais particularmente, de dois episódios fundadores para o Ocidente: a viagem de Colombo e a queda de Granada. O primeiro dos dois acontecimentosfoi uma conquista acompanhada de um projeto genocida, na linhagem do espírito das guerras cruzadas. O segundo consagrou definitivamente a ideia de Ocidente e expulsou os árabes do caminho que levava a esse mesmo Ocidente.
Sou um cidadão do mundo que eles destruíram, ou chutaram para fora da História. E sou uma vítima cujo único bem é a autodefesa. Mergulhei numa leitura aprofundada da história dos árabes na Espanha, e a dos índios e sua relação com a terra, os deuses e o Outro. O que me impressionou nos índios, é que eles apreenderam os acontecimentos como manifestações de um destino incontornável, e que os enfrentaram com o espanto daqueles que vêem a história geral se abater sobre a “história privada”.
A consagração do conceito de Ocidente exigiu o desaparecimento de setenta milhões de seres humanos, bem como uma guerra cultural furiosa contra uma filosofia intrinsecamente mesclada à terra e à natureza, às árvores, às pedras, à turfa, e à água. O homem vermelho desculpava-se com ardor de surpreendente poesia da árvore que ia cortar, explicando sua necessidade vital de sua casca, seu tronco, seus ramos; em seguida, lançava um pedaço de tronco na floresta para que a árvore renascesse… A máquina venceu essa santidade que o homem vermelho atribuía à sua terra, uma terra divinizada, pois não distinguia entre suas fronteiras e as dos deuses.
Coloquei-me na pele do índio para defender a inocência das coisas, a infância da humanidade; para alertar contra a máquina militar tentacular, que não vê limites para seu horizonte., mas arranca todos os valores herdados, e devora, insaciável, a terra e suas entranhas. (…) Meu poema tentou encarnar o Pele-Vermelha no momento em que ele olhou o derradeiro sol. Mas o “branco” não encontrará mais repouso nem sono, pois as almas das coisas, da natureza, das vítimas ainda volteiam sobre sua cabeça.” [iv].
Darwich extrai, assim, no passado, os acontecimentos que seguem ressoando no presente e vê com clareza como a condição agonizante do Palestino sobrepõe-se à do Índio; mas não é só a privação derradeira, a privação do direito de recusar uma vida e um estatuto abomináveis que o levam ao encontro do Índio; é preciso assinalar que é como poeta, como homem que busca a fonte da poesia no continuum da relação cósmica, mítica, com a natureza, que Darwich se vê na pele vermelha. O Pele-Vermelha infiltra-se na História como o selvagem resiste na “civilização” – ser poeta-índio e, ao mesmo tempo, índio-poeta, é assumir uma condição ontológica e epistemológica.
Mas é, também, ser um mistanenim, o Palestino-Árabe infiltrado em território ocupado e no pesadelo israelo-americano. E é aqui que a dimensão política da ressonância Pele-Vermelha-Palestino se explicita. Encontramos a chave dessa explicitação em Être arabe, livro de entrevistas de Christophe Kantcheff com Farouk Mardam-Bey e Elias Sanbar, dois amigos próximos de Darwich, tradutores de vários de seus livros para o francês e companheiros de seu longo exílio em Paris. Como o poeta,Sanbar foi e é um intelectual palestino que atuou como verdadeiro diplomata na Europa, defendendo a causa palestina nos campos da política, das ideias e da cultura. Como o poeta, Sanbar também pertencia à Organização de Libertação da Palestina (OLP).
A Palestina, observa Elias Sanbar, é uma nação sem Estado. Como pode, então, existir um sentimento nacional tão vivo, tão forte? Segundo ele, isso ocorre em virtude da centralidade da questão do lugar. Desde o início, no entender de Sanbar, tratou-se de uma substituição, não apenas de uma ocupação, nem de uma exploração colonial, ou de uma colonização clássica. Desde a Declaração Balfour, de 2 de Novembro de 1917, o projeto sionista consistiu na volatilização de uma terra árabe e sua substituição por uma outra.
“Portanto, diz Sanbar, os Palestinos serão submetidos a uma ofensiva de domínio dos lugares, um domínio no qual a apropriação da terra, que embora semelhante como duas gotas d’água a uma aquisição clássica, comum, de uma propriedade por uma pessoa privada ou uma pessoa moral – no caso, o “povo judeu” representado pela Agência judaica -, será na realidade apenas um elemento, importante, claro, mas elemento de um edifício visando não a constituição de uma imensa propriedade de 26.320 quilômetros quadrados, isto é a superfície da Palestina, mas o desaparecimento de um país” [v].
Um país, quer dizer, um espaço considerado por séculos pelos Palestinos como sua terra natal. Por isso mesmo, os filhos da terra, embora se considerassem Árabes e falassem árabe, se diziam “Árabes da Palestina”. Esse duplo pertencimento é constitutivo do seu ser. Por sua vez, como que para confirmar essa condição, todos os Árabes de outros países “verão no projeto anglo-sionista uma ofensiva contra um membro, no sentido fisiológico, de seu corpo. E como a própria posição da Palestina nos mapas ajuda, esta se verá espontaneamente assimilada como o mais vital dos órgãos, “o coração dos Árabes” [vi].
Com efeito, em Novembro de 1917 o povo palestino fica sabendo que o Ministro inglês James Balfour prometera seu país a um movimento vindo do Ocidente, comprometido com a ideia de promover o retorno dos judeus após um exílio de dois mil anos e de restaurar um “Estado dos judeus” na Palestina. Tem início, então, o conflito. Os Palestinos reagem imediatamente ao texto de Balfour. Mas, perplexos, caem numa armadilha, pois aceitam os termos da declaração que os designam como“comunidades não judaicas na Palestina”.
Assim, com Balfour, não só o “povo judeu” “volta” a um antigo território que haveria sido seu, como encontra ali não uma nação e um povo, mas “comunidades não judaicas”, isto é de uma outra religião, muçulmana e cristã. Desse modo, desmonta-se a identidade palestina secular. E isso tem como corolário o fato de que os Palestinos judeus não só deixam de existir como parecem nunca ter existido!
“Doravante, continua Elias Sanbar, tudo se passa entre o povo judeu que retorna e duas outras comunidades que esperam partir para ceder lugar, o seu lugar. A história contemporânea da Palestina reduzir-se-á então, sob diversas formas, a uma repetição permanente de um enunciado terrível: os Palestinos se encontram permanentemente em instância de ausência anunciada”[vii]. De nada adianta cristãos e muçulmanos reivindicarem o estatuto de “povo da Palestina” e afirmarem que já estavam lá antes dos judeus. Tampouco adianta afirmarem sua presença no lugar – os sionistas argumentam que na verdade a Palestina é um território vazio, um deserto, segundo a famosa frase de Israel Zangwill: “O sionismo é um povo sem terra que volta a uma terra sem povo”.
Conhecemos bem esse tipo de argumento, que também foi usado no Brasil da ditadura para justificar o projeto “desenvolvimentista” de “ocupação” e de “integração” da Amazônia, desconhecendo deliberadamente que ela era e é habitada por povos indígenas, a quem também os militares brasileiros negam o direito ao emprego do termo “povos”, visto que povo, nestas paragens, só existiria um, o brasileiro. Mas voltando à Palestina: cria-se uma diferença absoluta entre a vivência do colono israelense e a do cidadão palestino: o primeiro pensa que esteve lá há milênios e por isso pode voltar; o segundo sabe que nunca partiu, que tem o direito de viver ali… porque é dali!
Assim, desde o início do século XX, o projeto de constituição do Estado de Israel já preconiza a expulsão do povo palestino e institui a sua condição de refugiado em sua própria terra ou de exilado. Por isso, Sanbar vai afirmar: “O que marca e marcará profundamente o ser palestino, é que cedo essa sociedade sabe que está engajada num combate que ultrapassa a independência que ela reivindica. Ela luta para continuar a existir no lugar, seu lugar” [viii].
Ora, como bem sublinha Elias Sanbar, Israel nasce da mesma maneira que nasceram os Estados Unidos – os sionistas repetem a mesma lógica adotada pelos colonizadores na América; aos Palestinos caberá então o destino de se transformarem em Pele-Vermelha, isto é autóctones destinados à ausência. Como os Índios, os Palestinos ficam sem lugar.
Ao longo de todo o século XX, a questão, no fundo, sempre foi a mesma. De um lado, uma guerra de conquista do território, uma guerra de ocupação progressiva e negação da existência do autóctone; de outro, resistência e afirmação obstinada de existência do homem e do lugar. Não cabe aqui nos determos nas datas-chave desse conflito que oficialmente explode em 1948 com a criação do Estado de Israel e o desaparecimento da Palestina do mapa e dos dicionários enquanto país. Desde então a determinação israelense de fazer país e povo sumirem prolonga-se na Guerra dos Seis Dias, em 1967, estende-se na invasão do Líbano no início dos anos 80 com o massacre de Sabra e Chatila, ganha novos contornos com a Intifada e, posteriormente, com as intermináveis negociações de paz que nunca põem um fim ao avanço sistemático da colonização dos territórios ocupados…
Mas se há semelhança de destino entre os Pele-Vermelha e os Palestinos, também há diferença e ela precisa ser registrada. Numa conversa entre Elias Sanbar e Gilles Deleuze, publicada pelo jornal Libération, em 8-9 de Maio de 1982, o filósofo francês aborda o assunto: “Muitos artigos da Revue d’Etudes Palestiniennes lembram e analisam de uma maneira nova os procedimentos pelos quais os Palestinos foram expulsos de seus territórios. Isso é muito importante porque os Palestinos não se encontram na situação de gente colonizada, mas evacuada, expulsa. (…) É que há dois movimentos muito diferentes no capitalismo. Ora trata-se de manter um povo em seu território e de fazê-lo trabalhar, de explorá-lo, para acumular um excedente – é o que comumente se chama uma colônia. Ora, pelo contrário, trata-se de esvaziar um território de seu povo, para dar um salto adiante, trazendo uma mão-de-obra de outras partes. A história do sionismo e de Israel , como a da América, passou por isso: como criar o vazio, como esvaziar um povo?” [ix].
Até aí, estamos ainda no campo da semelhança. Mas, segundo Deleuze, quem demarcou o limite da comparação foi Yasser Arafat, ao apontar que existe um mundo árabe, enquanto os Pele-Vermelha não dispunham de nenhuma base ou força fora do território do qual eram expulsos. Sanbar concorda com essa análise: “Somos expulsos singulares porque não fomos deslocados para terras estrangeiras, mas para o prolongamento de nossa “casa”. Fomos deslocados em terra árabe, onde não só ninguém quer nos dissolver, mas essa própria ideia é uma aberração” [x].
Assim, os Palestinos não foram confinados em “reservas”, como os Pele-Vermelha. Deslocados “dentro de casa”, para o meio de povos irmãos e solidários, os Palestinos assumiram a condição do exílio de um modo muito particular. Como aponta Sanbar, todo exílio comporta duas rupturas: uma com o lugar de partida, outra com o lugar de chegada. “Ora, expulsos e forçados a se deslocar, os Palestinos continuavam sendo Árabes e em momento algum seu deslocamento suscitará uma diáspora, pois esta exige que se eleja residência numa terra estrangeira. O que precisamente não eram os países vizinhos que os acolheram.
Os Palestinos se encontravam refugiados, é claro, mas em sua continuidade territorial e identitária; deslocados, é claro, mas dentro de sua língua, sua cultura, sua cozinha, sua música, seu imaginário. Mais ainda: compartilhavam com os povos que os acolhiam o sonho da unidade em um grande Estado árabe” [xi]. Nesse sentido, “(…) os refugiados reagem como homens e mulheres/território, isto é estão convencidos de transportar com eles, neles, sua terra, esperando efetuar o Retorno e “repousá-la em seu lugar”[xii]. (Idem pp. 166-167) É essa condição complexa e trágica que faz com que Mahamoud Darwich, trinta anos depois de deixar a Palestina, se encontra em Gaza e escreve:
“Vim, mas não cheguei.
Estou aqui, mas não voltei!”
Com efeito, não se pode voltar de onde nunca se saiu, porque nunca se abandonou o lugar. Por isso, importa agora salientar que Darwich foi a voz que enunciou com todas as letras todas as camadas de sentido dessa complexa condição. Não foi à toa que se tornou um patrimônio coletivo do povo palestino, que o vê como seu porta-voz. A ponto dele escrever um comovente poema para sua mãe e todos os leitores/ouvintes lerem/ouvirem naquele termo a palavra Palestina.
É impressionante: percorrer sua obra é perceber que Darwich é Palestino, é Árabe, é o refugiado, é o exilado de dentro e o exilado de fora, é o infiltrado, é o Pele-Vermelha; mas é, também, o Troiano vencido que nenhum Homero cantou e o Cananeu cuja Bíblia se perdeu. Darwich é tudo isso porque é poeta que acessa diretamente apotência da matriz ancestral da poesia – a presente ausência de onde ela brota.
“Não te perguntas mais: O que escrever?, mas: Como escrever? Invocas um sonho. Ele foge da imagem. Solicitas um sentido. A cadência se torna estreita para ele. Crês que ultrapassastes o limiar que separa o horizonte do abismo, que te exercitastes a abrir a metáfora para uma ausência que se torna presença, para uma presença que se ausenta com uma espontaneidade de aparência dócil. Sabes que em poesia o sentido é movimento numa cadência. Nela a prosa aspira ao pastoral da poesia, e a poesia à aristocracia da prosa. Leva-me ao que não conheço dos atributos do rio… Leva-me. Uma linha melódica semelhante a esta abre seu caminho no curso das palavras, feto em devir que traça os traços de uma voz e a promessa de um poema. Mas ela precisa de um pensamento que a guie e que ela guia através das possibilidades, de uma terra que a porta, de uma inquietação existencial, de uma história ou de uma lenda. O primeiro verso é o que os perplexos nomearam, segundo sua origem, inspiração ou iluminação” [xiii].
É espantosa para nós, brasileiros, a determinação com que os palestinos se aferram à sua identidade, língua e lugar. Para nós, é quase incompreensível. Daí a importância de MahamoudDarwich como emblema do que não somos. Desde os anos 20 do século passado, os modernistas brasileiros se perguntaram: O que é “ser brasileiro”? e, na impossibilidade de reconhecer-se como tal: Como tornar-se brasileiro? Se a questão moderna brasileira é eminentemente ontológica e epistemológica, é porque interpela diretamente o ser e o devir. Mais do que interpelados, ameaçados de extinção enquanto povo, os Palestinos forjaram na luta uma resposta, pela boca de Darwich e de tantos outros.
Tentando responder, os modernistas brasileiros saíram em busca da “redescoberta” do Brasil e acabaram descobrindo o Outro, isto é os índios, que constituíam uma das três grandes correntes populacionais da formação do povo brasileiro (com os europeus e os africanos trazidos como escravos); mais ainda: descobriram que, apesar do genocídio inconfessado praticado desde 1500, muitos desses povos ainda sobreviviam no território nacional. Portanto, o Outro não era o de fora, o Outro era o Outro da própria terra, do lugar, presente e no entanto sistematicamente ignorado, “ausente”. E era esse Outro que fazia o brasileiro moderno perceber-se como um “desterrado em sua própria terra”, nos dizeres de Sérgio Buarque de Holanda.
Assim, nos anos 1920-30, ficou claro que, para saber o que é ser brasileiro ou como tornar-se um, seria preciso pôr sobre a mesa o que é ser índio, e como os brasileiros lidam, ou melhor não lidam com isso. No Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade, formulou a questão de maneira tremenda, emseu achado paródico do dilema hamletiano: “Tupy or not tupy, that is the question” [xiv].
Formulado em língua estrangeira, mais propriamente na língua de Shakespeare, o statement não poderia expressar melhora condição esquizofrênica do brasileiro moderno, pois este se encontra diante de um Double bind que, segundo Gregory Bateson [xv], não permite opção e decisão. Com efeito, quanto mais tentamos resolvê-lo, mais afundamos na armadilha. Isso ocorre porque tanto os brasileiros quanto os índios, tanto os selvagens quanto os civilizados, não podem ser eles mesmos sem “resolver” sua relação com o Outro, historicamente negada, e recalcada desde sempre. Pois o que dizem os brasileiros para os índios: “Vocês não podem ser brasileiros porque são índios!” E, ao mesmo tempo: “Vocês não podem ser índios porque são brasileiros!” Assim, índios e brasileiros têm o seu devir bloqueado pelo dilema Tupy or not Tupy…
Mahamoud Darwich deveria ser ensinado em nossas escolas. Para que nossas futuras gerações aprendessem o que é a paixão exemplar e irremissível de um povo pelo seu lugar no mundo.
*Laymert Garcia dos Santosé professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34).
Publicado originalmente no primeiro número da Exilium – Revista de Estudos da Contemporaneidade órgão da Cátedra Edward Saïd da Unifesp.
Notas
[i]Darwich, M. Présenteabsence. Col. Mondes árabes. Arles: Actes Sud, 2016. Tradução do árabe por FaroukMardam-Bey e EliasSanbar. Pp. 146-147.
[iv]Darwich, M. La Palestine comme métaphore. Entretiens. Col. Babel. Arles: Actes Sud, 1997. Tradução do árabe por Elias Sanbar e do hebraico por Simone Bitton. Pp. 78-80.
[v]Mardam-Bey, F. e Sanbar, E. Être árabe – Entretiens avec Christofe Kant cheff. Col. Sindbad. Arles: Actes Sud, 2005. Pp. 74-75.
[xiii]Darwich, M. Présente absence. Op. Cit. Pp. 80-81.
[xiv]Nunes, Benedito. “Antropofagia ao alcance de todos – Introdução”. In Andrade, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e àsUtopias – Obras Completas VI. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1972, p. XXVI.
[xv] Bateson, G. Double bind, Steps to na ecology of the mind: A revolutionary approach to man’s understanding of himself, 271-278. Chicago: University of Chicago Press, 1972, pp. 271-278.
Acervo Online | Brasil por Carla Rodrigues 19 de agosto de 2020
A história da minha educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser racista.
Sou branca e fui criada como branca. Mais do que isso, fui educada para saber identificar os fenótipos das pessoas negras, de modo a estabelecer rigorosas distinções entre pessoas brancas, pessoas então chamadas de “mulatas” e pessoas negras. Cresci aprendendo que pessoas negras são sujas e que a cor preta estava associada ao nojo, ao abjeto. Na escola progressista em que estudei, havia apenas duas pessoas negras, ambas filhas de funcionários. Durante décadas, escutei a exaltação dos ancestrais portugueses e italianos, que nos legaram pele branca, cabelos lisos e, no meu caso, olhos azuis, joia rara na família e objeto de disputa como signo da herança materna portuguesa ou da herança paterna italiana.
Fui ensinada a ser superior porque branca, embora a superioridade de uma mulher branca de família pequeno burguesa estivesse fundamentada na cor, não em privilégios de classe ou gênero. Quando analiso para a minha educação para ser racista, vejo retrospectivamente que as pessoas brancas da minha família de imigrantes pobres talvez precisassem afirmar o privilégio de cor para escapar da subalternidade justo por não terem o privilégio de classe.
Por isso, inclusive, além de racistas, eram também classistas e repetiam os estereótipos que o racismo usa ainda hoje: pessoas pretas e pobres são igualmente perigosas, eventualmente preguiçosas, embora as mulheres negras tenham sido sempre alocadas nos trabalhos braçais do cuidado da casa e no cuidado de crianças. Esta divisão marcou a minha infância. Quando criança, nunca entendi a divisão subjetiva entre não poder gostar de pessoas pretas e adorar a mulher preta que cuidava de mim quando minha mãe não estava.
Há muito tempo quero escrever sobre minha experiência pessoal de ter sido educada para ser racista e, portanto, ter chegado à vida adulta naturalizando a desigualdade racial. Do debate que se seguiu ao artigo de Lilia Schwarcz a respeito do novo vídeo da Beyoncé, foi o texto de Lia Vainer Schucman que me motivou a escrever. Isso porque considero o argumento dela irrefutável: “nossa racialidade está sendo marcada, algo que acontece há alguns séculos com negros e indígenas no Brasil, ou seja: é quando o grupo antecede o indivíduo (o que nomeamos de processo de racialização).” A história da minha educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser racista. Já Schucman defende uma racialização que, como reconhecimento de que todas as pessoas são marcadas, poderia nos levar ao fim do racismo. Parece contraditório, eu sei, mas vamos lá.
Há muitos anos tenho trabalhado para desconstruir as camadas de racismo que me foram sobrepostas. Aqui, uso o verbo descontruir como foi proposto pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, a quem dediquei minhas pesquisas de mestrado e doutorado e com quem comecei a aprender que quem fala, o faz a partir de algum lugar. Isso porque um dos objetivos da desconstrução é a crítica à suposição da neutralidade dos discursos, que serve como anteparo a todas as premissas ocultas que os discursos de saber-poder contém.
Como mulher, experimentei inúmeras vezes – e infelizmente ainda experimento – a diferença de poder entre o discurso masculino de autoridade e o meu. Como pesquisadora, fui aprendendo a perceber e denunciar que esse discurso masculino obtém sua autoridade de uma suposição de neutralidade do saber. Daí para a leitura da filósofa Donna Haraway e seu clássico “Saberes localizados” foi um passo curto. No ensaio, Haraway desconstrói a suposição de neutralidade do discurso da ciência e confere às feministas a responsabilidade de produzir conhecimento como saber situado. É o que venho tentando fazer há algum tempo, tanto na minha escrita quanto no meu trabalho de orientadora de pesquisas acadêmicas que, muitas vezes, procuram a neutralidade em busca de autoridade, mesmo que para isso acabe abrindo mão da autoria do texto.
Neste processo, ainda em curso, precisei aprender que branco também é cor. Enxergar-se branca é enxergar-se marcada pela própria branquitude. É este aspecto que me mobiliza no debate sobre lugar de fala: a desconstrução da suposição de neutralidade de qualquer discurso. Quem continua pretendendo se ver como neutro ou neutra é quem, por acreditar que não tem cor, pode continuar oprimindo – seja as pessoas negras, seja as pessoas brancas subalternizadas – por uma suposta neutralidade do saber.
Não por acaso, o livro de Djamila Ribeiro (“O que é lugar de fala”, editora Letramento, 2017) tem como epígrafe trecho de um artigo de Lélia Gonzalez: “Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos) que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.”
Aqui posso fazer Djamila e Lélia conversarem com Achille Mbembe de “Crítica da razão negra” (N-1 Edições, 2019), em que ele divide a razão negra em dois momentos: o primeiro, o da consciência ocidental do negro, orientando pela interpelação do colonizador com perguntas como “quem é ele?; como o reconhecemos?; o que o diferencia de nós? poderá ele tornar-se nosso semelhante? como governá-lo e a que fins?”. No segundo momento, Mbembe percebe que as perguntas são as mesmas, a mudança está em quem as enuncia: “Quem sou eu?; serei eu, de verdade, quem dizem que eu sou?; Será verdade que não sou nada além disto – minha aparência, aquilo que se diz de mim?; Qual o meu verdadeiro estado civil e histórico?”.
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Quando me reconheço portadora de uma cor – branca – também posso enunciar estas perguntas, de tal modo a não precisar mais sustentar a posição de ter que repetir ao outro as perguntas do colonizador. Eu sou branca, e quanto a isso não há opção. Mas quanto a continuar sendo herdeira da violência da tradição colonizadora, acredito que haja escolha possível e que esta passa pelo desejo de cura da ferida colonial.
Retomo então minha experiência. Foi o racismo que me ensinou que sou branca. Fui marcada como branca a fim de que esta marcação funcionasse como signo de superioridade. Mas a mim hoje parece fácil perceber que a necessidade de marcação de superioridade só existe para aquele que se sente inferior, que se sabe fora do lugar de superioridade que almeja. Numa formação social marcada pela violência colonial, sobreviver é, entre tantas outras coisas, escapar do lugar de subalternidade.
Refletir sobre a experiência de ter sido marcada com a cor branca me ajudou a fazer a distinção que estou propondo aqui entre suposição de neutralidade do branco – a “branquitude” que não pretende se assumir como tal – e a admissão de que branco também é uma cor, uma marcação ou, para falar em termos interseccionais, um marcador que, se existe negativamente para a pessoa negra no racismo estrutural da sociedade brasileira, existe positivamente para a pessoa branca.
Com essa diferença, esboço uma hipótese: a maior rejeição à ideia de que todo discurso é situado, e que certos discursos estão autorizados por estarem situados a partir de um lugar de poder, e outros estão desautorizados por estarem situados fora desses lugares, a maior reação vem de quem ainda não vê a sua branquitude por se acreditar “neutra”. Para isso, é preciso negar que branco seja cor. É desse lugar de neutro que intelectuais, mesmos os/as mais respeitados/as, parecem não poder abrir mão. E aí caem na pior armadilha: “sou branco/a mas sou legal” (uma espécie de versão atualizada de “tenho até amigo gay”).
Fui racializada como branca porque fui educada para ser racista, o que me obrigou a assumir a minha cor e a carregar com ela o peso do racismo estrutural brasileiro. Se hoje penso, escrevo, pesquiso e ensino contra o racismo é por não suportar mais o sofrimento de viver num país em que pessoas negras são brutalmente excluídas, violentadas e exterminadas em nome da minha suposta superioridade branca. Esta é a cor da minha pele. Já o meu desejo tem sido destruir o racismo que me impôs uma suposição de superioridade branca na qual não me reconheço.
Carla Rodrigues é professora de Ética no Departamento de Filosofia da UFRJ, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e bolsista de produtividade da Faperj.
WALLAGARAUGH, Australia — Bruce Pascoe stood near the ancient crops he has written about for years and discussed the day’s plans with a handful of workers. Someone needed to check on the yam daisy seedlings. A few others would fix up a barn or visitor housing.
Most of them were Yuin men, from the Indigenous group that called the area home for thousands of years, and Pascoe, who describes himself as “solidly Cornish” and “solidly Aboriginal,” said inclusion was the point. The farm he owns on a remote hillside a day’s drive from Sydney and Melbourne aims to correct for colonization — to ensure that a boom in native foods, caused in part by his book, “Dark Emu,” does not become yet another example of dispossession.
“I became concerned that while the ideas were being accepted, the inclusion of Aboriginal people in the industry was not,” he said. “Because that’s what Australia has found hard, including Aboriginal people in anything.”
The lessons Pascoe, 72, seeks to impart by bringing his own essays to life — and to dinner tables — go beyond appropriation. He has argued that the Indigenous past should be a guidebook for the future, and the popularity of his work in recent years points to a hunger for the alternative he describes: a civilization where the land and sea are kept healthy through cooperation, where resources are shared with neighbors, where kindness even extends to those who seek to conquer.
“What happened in Australia was a real high point in human development,” he said. “We need to go back there.” Writing, he added, can only do so much.
Terry Hayes, a Yuin man and one of Bruce Pascoe’s team members, works in the orchard and garden.Credit…AnnaMaria Antoinette D’Addario for The New York TimesHayes holds out yam daisy seedlings.Credit…AnnaMaria Antoinette D’Addario for The New York Times
“Dark Emu” is where he laid out his case. Published in 2014 and reissued four years later, the book sparked a national reconsideration of Australian history by arguing that the continent’s first peoples were sophisticated farmers, not roaming nomads.
Australia’s education system tended to emphasize the struggle and pluck of settlers. “Dark Emu” shifted the gaze, pointing to peaceful towns and well-tended land devastated by European aggression and cattle grazing. In a nation of 25 million people, the book has sold more than 260,000 copies.
Pascoe admits he relied on the work of formal historians, especially Rupert Gerritsen, who wrote about the origins of agriculture, and Bill Gammage, whose well-regarded tome, “The Biggest Estate on Earth: How Aborigines Made Australia” (2012), tracked similar territory. Both books cited early settlers’ journals for evidence of Aboriginal achievement. Both argued that Aboriginal people managed nature in a more systematic and scientific fashion than most people realized, from fish traps to grains.
What made Pascoe’s version a best seller remains a contentious mystery.
Critics, including Andrew Bolt, a conservative commentator for News Corp Australia, have accused Pascoe of seeking attention and wealth by falsely claiming to be Aboriginal while peddling what they call an “anti-Western fantasy.”
Asked by email why he’s focused on Pascoe in around a dozen newspaper columns since November, Bolt replied: “Have fun talking to white man and congratulating yourself on being so broad-minded as to believe him black.”
Pascoe said “Bolty” is obsessed with him and struggles with nuance. He’s offered to buy him a beer, discuss it at the pub and thank him: “Dark Emu” sales have doubled since Bolt’s campaign against Pascoe intensified.
His fans argue that kind of banter exemplifies why he and his book have succeeded. His voice, honed over decades of teaching, writing fiction and poetry — and telling stories over beers — is neither that of an academic nor a radical. He’s a lyrical essayist, informative and sly.
The Wallagaraugh River from Bruce Pascoe’s farm.Credit…AnnaMaria Antoinette D’Addario for The New York Times
To some Aboriginal readers, he’s too Eurocentric, with his emphasis on sedentary agriculture. “It is insulting that Pascoe attempts to liken our culture to European culture, disregarding our own unique and complex way of life,” wrote Jacinta Nampijinpa Price, a politician in the Northern Territory who identifies as Warlpiri/Celtic, last year on Facebook.
To others, Pascoe opens a door to mutual respect.
“He writes with such beautiful descriptions that let you almost see it,” said Penny Smallacombe, the head of Indigenous content for Screen Australia, which is producing a documentary version of “Dark Emu.” “It follows Bruce going on this journey.”
A telling example: Pascoe’s take on early explorers like Thomas Mitchell. He introduced Mitchell in “Dark Emu” as “an educated and sensitive man, and great company.” Later, he darkened the portrait: “His prejudice hides from him the fact that he is a crucial agent in the complete destruction of Aboriginal society.”
At the farm, tugging at his long white beard, Mr. Pascoe said he wanted to guide more than scold, letting people learn along with him. It’s apparently an old habit. He grew up working-class around Melbourne — his father was a carpenter — and after university taught at a school in rural Mallacoota, just down the winding river from where he now lives. He spent years guiding farm kids through “The Grapes of Wrath” while writing at night and editing a fiction quarterly, “Australian Short Stories,” with his wife Lyn Harwood.
“While the ideas were being accepted, the inclusion of Aboriginal people in the industry was not,” Pascoe said of the response to his book, “Dark Emu.” “That’s what Australia has found hard, including Aboriginal people in anything.”Credit…AnnaMaria Antoinette D’Addario for The New York Times
In his 30s, he said he started to explore his heritage after recalling a childhood experience when an Aboriginal neighbor yelled that she knew who his real family was so it was no use trying to hide. Talking to relatives and scouring records, he found Indigenous connections on his mother and father’s side. His publisher, Magabala, now describes him as “a writer of Tasmanian, Bunurong and Yuin descent.”
“Dark Emu” followed more than two dozen other books — fiction, poetry, children’s tales and essay collections. Pascoe said he had a hunch it would be his breakthrough, less because of his own talent than because Australia was, as he was, grappling with the legacy of the past.
In 2008, a year after his book about Australia’s colonial massacres, “Convincing Ground,” Prime Minister Kevin Rudd apologized to Indigenous people on behalf of the government. In the months before “Dark Emu” was published, all of Australia seemed to be debating whether Adam Goodes, an Aboriginal star who played Australian football for the Sydney Swans, was right to condemn a 13-year-old girl who had called him an ape.
“There was just this feeling in the country that there’s this unfinished business,” Pascoe said. Pointing to the protests in the United States and elsewhere over racism and policing, he said that much of the world is still trying to dismantle a colonial ideology that insisted white Christian men have dominion over everything.
The deep past can help by highlighting that “the way Europeans think is not the only way to think,” he said.
Yam daisy sprouts grow in the back of Pascoe’s farmhouse.Credit…AnnaMaria Antoinette D’Addario for The New York Times
Pascoe now plans to make room for a dozen people working or visiting his 140-acre farm. Teaming up with academics, Aboriginal elders and his wife and his son, Jack, who has a Ph.D. in ecology, he’s set up Black Duck Foods to sell what they grow.
The bush fires of last summer slowed them all down — Pascoe spent two weeks sleeping in his volunteer firefighter gear and battling blazes — but the small team recently completed a harvest. Over lunch, Pascoe showed me a container of the milled grain from the dancing grass, shaking out the scent of a deep tangy rye.
Out back, just behind his house, yams were sprouting, their delicate stems making them look like a weed — easy for the untrained eye to overlook, in the 18th century or the 21st.
Terry Hayes, a Yuin employee, explained that they grow underground in bunches. “If there are five, you’ll take four and leave the biggest one,” he said. “So they keep growing.”
A tree on Pascoe’s farm that burned and fell down during last season’s fires.Credit…AnnaMaria Antoinette D’Addario for The New York Times
That collective mind-set is what Pascoe longs to cultivate. He likes to imagine the first Australians who became neighbors, sitting around a fire, discussing where to set up their homes and how to work together.
That night, we sat on his porch and watched the sun set. On a white plastic table, in black marker, Pascoe had written Yuin words for what was all around us: jeerung, blue wren; marru, mountain; googoonyella, kookaburra. It was messy linguistics, with dirt and ashtrays on top of the translations — an improvised bridge between times and peoples.
Just like the Pascoe farm.
“I’d love people to come here and find peace,” he said, shaking off the evening chill after a long day of work that did not involve writing. “It would give me a lot of deep satisfaction for other people to enjoy the land.”
Damien Cave is the bureau chief in Sydney, Australia. He previously reported from Mexico City, Havana, Beirut and Baghdad. Since joining The Times in 2004, he has also been a deputy National editor, Miami bureau chief and a Metro reporter. @damiencave A version of this article appears in print on Aug. 21, 2020, Section C, Page 12 of the New York edition with the headline: Building a Future With the Indigenous Past.
20 de abril de 2020 – traduzido por Google Translator; revisado por Renzo Taddei
Você pode ouvir a entrevista completa, em francês, no artigo original.
Enquanto o mundo está parado, observamos a primavera florescer da nossa janela. E se, paradoxalmente, ser separado da natureza nos aproximar dela? Como repensar a coabitação entre homens e não-humanos?
Philippe Descola, antropólogo, professor emérito do Collège de France e titular da cadeira de antropologia da natureza, é o convidado especial nesta segunda-feira • Créditos: FREDERICK FLORIN – AFP
Embora o vínculo do homem com o meio ambiente esteja diretamente envolvido nessa crise de saúde, devemos repensar nosso relacionamento com a natureza? É o que propõe Philippe Descola, a quem estamos recebendo hoje. Em 1976, ele partiu como estudante para descobrir os Achuars, um povo Jivaro localizado no coração da Amazônia, entre o Equador e o Peru. A experiência gerou uma longa reflexão sobre o antropocentrismo que abre o caminho para uma nova relação entre os seres humanos e seu ambiente.
A epidemia é uma consequência da ação humana sobre a natureza? É uma doença do Antropoceno? O que podemos aprender com o vínculo que certas pessoas têm com o meio ambiente?
Philippe Descola é professor emérito do Collège France, titular da cadeira de antropologia da natureza de 2000 a 2019. Ele é o autor de Les natures en question (Ed. Odile Jacob, 2017).
Qual a resposta dos achuars às epidemias?
“Não há lembranças do desastre. Estima-se que cerca de 90% da população ameríndia desapareceu entre os séculos XVI e XIX. Existe uma espécie de imaginação implícita do contato com a doença dos “brancos”. Portanto, quando os “brancos” chegaram nos remotos ambientes ameríndios, o primeiro reflexo dos ameríndios foi a desconfiança e o distanciamento.”
A doença é apenas um elemento em uma procissão de abominações provocada pela colonização. Philippe Descola
“Cada povo reagiu às suas epidemias de acordo com sua concepção de contágio. A noção de contágio levou algum tempo para se espalhar na Europa, diferentemente dos povos ameríndios. Foi isso que lhes permitiu adotar as ações corretas.”
Falando em “natureza”: um erro?
“A natureza é um conceito ocidental que designa todos os não-humanos. E essa separação entre humanos e não-humanos resultou na introdução de uma distância social entre eles”.
Você pode pensar que o vírus é uma metáfora para a humanidade. Temos o mesmo relacionamento instrumental com a Terra que um vírus. De certa forma, os seres humanos são o patógeno do planeta. Philippe Descola
“Essa ideia muito humana de que a natureza é infinita resultou nesse sistema singular, baseado em produtividade e lucratividade, que causou uma catástrofe planetária”.
O ideal do “mundo depois”
“Espero que o próximo mundo seja diferente do anterior. A pandemia nos dá um marcador temporário. Essa transformação, eu vejo isso com interesse, está tomando forma e vínculos com seres não-humanos são tecidos novamente. Temos que viver com uma mentalidade que não destrua o meio ambiente “.
A idéia não é possuir a natureza, mas ser possuído por um ambiente. Philippe Descola
“O último passo da colonização é o que chamo Mente nullius: a colonização de nossas mentes”- Vandana Shiva
Muito antes de uma menina sueca de 15 anos e longas tranças decidir fazer greve às aulas para protestar contra as alterações climáticas, a ativista indiana Vandana Shiva já andava pelo mundo abraçando árvores (literalmente), guardando milhares de sementes num banco na Índia e lutando pelo futuro do planeta.
Conferencista do Fronteiras do Pensamento em 2012, Vandana Shiva é fundadora da Navdanya, ONG que promove a biodiversidade de sementes, as plantações orgânicas e os direitos de agricultores. No seu mais recente livro, que escreveu em colaboração com o filho, “Unidade contra o 1%: Quebrando Ilusões, Semeando a Liberdade”, confronta os seus leitores com uma dura oposição a grandes multinacionais, como a Monsanto, pela influência nefasta na agricultura. Também faz um feroz ataque aos “bilionários”, como Bill Gates e Mark Zuckerberg. No fim, quase como uma profecia promete com o seu sorriso incrível: “A verdade vai vencer.”
A colonização está por trás do seu livro mais recente “Unidade contra o 1%: Quebrando Ilusões, Semeando a Liberdade”. Como surgiu a ideia de falar sobre este tema?
Vandana Shiva: O livro é desencadeado por algumas perguntas. A primeira surgiu quando, no Acordo de Paris (2015), Bill Gates e Zuckerberg estavam no palco e todos os jornais estavam cobrindo mais o que eles diziam do que o resto.
Percebi que algo estranho tinha acontecido no mundo, onde eu via bilionários que não eram apenas iguais aos chefes de governo, mas que na verdade os substituíam. Foi nessa altura que decidi olhar mais de perto a ascensão dos bilionários.
Mas a sua luta não tem sido sobretudo contra a agricultura química?
Vandana Shiva: Desde 1984 que me dedico à indústria química que veio dos laboratórios de Hitler e dos campos de concentração, e que nos trouxe os gases venenosos, e depois uma agricultura química e a chamada Revolução Verde.
O meu país foi a primeira experiência da Revolução Verde com o Punjab e agora é uma terra arruinada, os solos desapareceram, as águas desapareceram. Escrevi um livro sobre isso chamado a Violência da Revolução Verde.
A dada altura, a antiga indústria química apareceu dizendo que precisavam deter a propriedade das sementes porque não estavam ganhando dinheiro suficiente com a venda de produtos químicos.
E a única maneira de possuir as sementes era com as sementes geneticamente modificadas para que pudessem alegar que inventaram algo, pedir uma patente, cobrar royalties aos agricultores. Mas ninguém inventa a vida. Para mim, foi muito claro que havia um processo de colonização na base disto tudo.
Colonização?
Vandana Shiva: Há três anos, a Monsanto foi comprada pela Bayer e nós tínhamos levado a Monsanto ao tribunal para ser julgada pelos seus crimes. Fiquei pensando: o que é que está acontecendo? Porque é que a Bayer está comprando a Monsanto?
Começamos a olhar para os padrões de propriedade, para os acionistas… e este meu novo livro é sobre como as empresas foram criadas para colonizar o mundo. A maioria das ações não pertence a indivíduos, mas às empresas de gestão de ativos dos maiores bilionários, como a BlackRock e a Vanguard.
São empresas que valem trilhões de dólares e que estão a financiando a queima da Amazônia. Eles querem negociar as funções da natureza e isso chama-se “financeirização”.
Portanto, já tinha duas coisas: uma era Bill Gates e Zuckerberg no palco, em Paris, com os chefes de Estado, e outra era a questão da Bayer que comprou a Monsanto. Então, percebi: este é um mundo novo, mas é o mundo antigo. Estamos perante os mesmos padrões da colonização.
Além de bilionário, Bill Gates é visto como um filantropo. Ele ajuda muitos países africanos…
Vandana Shiva: O que é que ele está fazendo? Uma Aliança para uma Revolução Verde na África. Os relatórios já mostram que 50% dos milhetes nutritivos desapareceram por causa da Revolução Verde na África. Bill Gates forçou a reescrita das leis de sementes para tornar ilegal guardar as sementes.
E qual é o objetivo?
Vandana Shiva: Um monopólio de sementes, que ao mesmo tempo é um monopólio de produtos químicos. Terra nullius era a jurisprudência legal na época de Colombo e na época da colonização britânica. Ou seja, a terra está vazia, não pertence a ninguém. Então, primeiro declara-se uma coisa vazia, nullius.
Depois coloniza-se?
Vandana Shiva: Primeiro justifica-se a exterminação para colonizar. As duas coisas têm de estar juntas. O vazio para o extermínio e para a colonização. Primeiro temos de esvaziar o lugar das pessoas originais para assumir o controle.
Como assim?
Vandana Shiva: Agora, a jurisprudência falsa da invenção da vida, que é onde está a Monsanto e Bill Gates, é aquela que chamo de Bio nullius, a vida está vazia até colocarmos um gene tóxico nela. O último passo da colonização é o que chamo Mente nullius: a colonização de nossas mentes.
Vão esvaziar as nossas mentes?
Vandana Shiva: A mente não está vazia. Qualquer coisa viva terá uma mente viva, mas você pode esvaziá-la. E toda a data mining que está acontecendo é um esvaziamento da mente, tal como se usa uma broca para extrair petróleo.
Isso é assustador. É um plano do mal…
Vandana Shiva: É um plano do mal, mas é um plano real. Os novos gigantes de dados digitais estão minando as nossas mentes, estão pegando-as, convertendo-as na chamada “big data” e vendendo-as de volta através do Facebook e WhatsApp e fazendo vigilância.
Essa é a sua luta agora?
Vandana Shiva: Tivemos movimentos libertários para lutar contra a tomada de posse das nossas terras, contra tomada de posse dos nossos corpos, o movimento antiabolicionista por causa dos escravos, e nos livramos dessas coisas.
Começamos a lutar contra as empresas de produtos químicos, o que chamo “cartel do veneno”, nos anos 80. Hoje, já conseguimos estabelecer no mundo que a agricultura ecológica é superior à química. O movimento que mais crescendo mais no mundo é a agricultura biológica, apesar de toda a propaganda. Nós ganhamos, na prática.
Como se luta contra a colonização da mente?
Vandana Shiva: A primeira coisa é recusar que sua mente seja usada, não participe da data mining, não participe na venda da mercadoria.
Sair das redes sociais?
Vandana Shiva: Não. Use as redes sociais como ferramentas sob o seu controle. Não permita que eles a controlem.
Mas esse controle não está à vista…
Vandana Shiva: A vigilância é intensa. E na Índia houve agora um enorme escândalo, onde mais de cem jornalistas, advogados de direitos civis e acadêmicos que trabalhavam para os dalits [os que se encontram no degrau mais baixo do sistema de castas na Índia, os “intocáveis”] tiveram os seus sistemas invadidos por um software de vigilância chamado Pegasus.
Ou seja, não estou a falando sobre um cenário futuro, nem sobre o possível, mas sobre o que está acontecendo hoje. Definitivamente, a nível do governo, precisamos de uma regulamentação muito forte.
Por exemplo?
Vandana Shiva: Precisamos de uma convenção sobre privacidade digital. Uma convenção global. E isso só acontecerá quando os movimentos crescerem, como o movimento para o direito ao esquecimento.
Temos que encontrar novas formas criativas de liberdade, novas ações para a liberdade, novas solidariedades pela liberdade, mas só podemos evoluir se soubermos o que está acontecendo. Pessoalmente, acredito que os bilionários são desonestos, são ladrões.
Ladrões?
Vandana Shiva: O que é que a Monsanto está fazendo? O que é que Bill Gates está fazendo? Estão recebendo impostos ou royalties das sementes que eram dos agricultores em primeiro lugar. Na Índia já perdemos 400 mil agricultores que se suicidaram por causa dos preços de sementes do algodão.
A Monsanto fica furiosa quando eu falo nisto. Estamos falando de um genocídio. Precisamos recuperar a nossa liberdade e dizer ao senhor Facebook “estes são os meus dados privados. Eles não são seus para vender à Cambridge Analytica”. Temos de recuperar as nossas comunicações, o nosso conhecimento, as nossas sementes, a biodiversidade, os alimentos. Não são propriedade destes piratas de hoje.
Alguma vez tentou falar com Bill Gates ou ele já a processou pelo que diz dele?
Vandana Shiva: Não. Ele nunca entrou com uma ação contra mim, porque finge ser filantropo. E sabe que no dia em que me processar será exposto. Por isso, tem mais a perder do que eu se algum processo for aberto.
Como vê o futuro?
Vandana Shiva: Temos uma bela frase indiana, que é o nosso slogan nacional, e que se traduz em algo como “a verdade ganha”. Acho que a verdade ganha sempre. Não hoje, nem amanhã. Mas a longo prazo, não importa quanta propaganda se faça. A falsidade, as relações públicas, a colonização, os mitos… todos caem por terra. Já vimos muitos impérios ruírem.
Bill Gates vai cair por terra?
Vandana Shiva: Vai, mesmo que não se faça nada quanto a isso, mas é nosso dever defender a integridade e a liberdade. Não se pode construir um império tão grande num castelo de cartas.
Parece que ele está sempre ganhando, mas as histórias das suas mentiras, falsidades e derrotas nunca são contadas na imprensa, porque ele também controla as mídias.
Durante todos estes anos de ativismo já mudou de ideia sobre alguma coisa?
Vandana Shiva: A minha mente sempre esteve evoluindo. Mas não mudei os princípios fundamentais do meu pensamento: nós dependemos da natureza, não somos superiores à natureza.
O antropocentrismo é uma ilusão, a minha tese em teoria quântica ensinou-me que tudo está ligado. Cresci com os valores do cuidado da natureza, da justiça e respeito por todos os seres. Nisso nunca mudei de ideais. Posso mudar táticas.
Como vê este movimento iniciado por Greta Thunberg?
Vandana Shiva: Conheci a Greta em Paris, ela quis me conhecer. E o mais interessante é que estavam falando em ir à Amazônia para salvá-la. E eu disse: não precisam ir para a Amazônia, porque as pessoas que estão destruindo-a estão aqui mesmo, na Europa. É a Bayer, a Monsanto que estão cultivando soja transgênica e tudo o que precisam fazer é parar essas pessoas e a Amazônia será salva.
Mas por que é que os jovens estão protestando mais?
Vandana Shiva: Eles conseguem ver onde tudo isto poderá levá-los. Eles estão testemunhando o colapso ecológico. Estas são crianças bem formadas, são privilegiados, estão lendo os relatórios dos cientistas, do IPCC, da convenção sobre biodiversidade.
Quando eu comecei, estava apenas protegendo uma floresta. Estes jovens nascem numa época em que o planeta inteiro está ardendo, é uma aceleração da destruição e eles estão assistindo a isso.
É só isso?
Vandana Shiva: Não. O colapso ecológico é só uma parte. Eles estão olhando em volta. Veem a decadência da sociedade. A Suécia, por exemplo, sempre foi uma sociedade tão pacífica e agora a ala direita está dominante em todo o lado, criando ódio. Ninguém sabe qual é a escola que vai ser alvo de violência, qual a mesquita que será queimada. Mas há também a questão do seu destino, não apenas ecológico, mas social e econômico.
A sua luta não é vamos usar a tecnologia para salvar o planeta, mas vamos atacar a tecnologia para salvar o planeta…
Vandana Shiva: Não, não digo isso. O que digo é: vamos salvar o planeta destruindo o mito de que a tecnologia é uma religião que não pode ser questionada.
É claro que isto tudo é sobre o planeta porque fazemos parte do planeta, mas também é sobre justiça humana e direitos humanos. E porque nós, como seres humanos, estamos sendo divididos, trata-se de encararmos a nossa humanidade com a sua diversidade. É sobre encontrar a unidade novamente.
It is worth noting that tribal peoples tend to feel that it is they who depict and we who symbolise. Thomas McEvilley, Doctor, Lawyer, Indian Chief
What does capitalism actually look like?
There’s a standard leftist answer to this question, from the great repertoire of standard leftist answers: we can’t know. Capitalism has us by the throat and wraps itself around our brain stem; we were interpellated as capitalist subjects before we were born, and from within the structure there’s no way to perceive it as a totality. The only way to proceed is dialectically and immanently, working through the internal contradictions until we end up somewhere else. But not everyone has always lived under capitalism; not everyone lives under capitalism today. History is full of these moments of encounter, when industrial modernity collided with something else. And they still take place. In 2007, Channel 4 engineered one of these encounters: in a TV show called Meet the Natives, a group of Melanasian villagers from the island of Tanna in Vanatu were brought to the UK, to see what they made of this haphazard world we’ve built. (It’s almost impossible to imagine anyone trying the same stunt now, just twelve years on. The whole thing is just somehow inappropriate: not racist or colonial, exactly, but potentially condescending, othering, problematic.) Reactions were mixed.
They liked ready meals, real ale, and the witchy animistic landscapes of the Hebrides. They were upset by street homelessness, confused by drag queens in Manchester’s Gay Quarter, and wryly amused by attempts at equal division in household labour. They understood that they were in a society of exchange-values and economic relations, rather than use-values and sociality. ‘There is something back-to-front in English culture. English people care a lot about their pets, but they don’t care about people’s lives.’ But there was only one thing about our society that actually appalled them, that felt viscerally wrong. On a Norfolk pig farm, they watched sows being artificially inseminated with a plastic syringe. This shocked them. They told their hosts to stop doing it, that it would have profound negative consequences. ‘I am not happy to see the artificial insemination. Animals and human beings are the same thing. This activity should be done in private.’
I was reminded of this episode quite recently, when reading, in an ‘indigenous critique of the Green New Deal‘ published in the Pacific Standard, that ‘colonists were warned by word and weapon that a system of individual land ownership would lead to ecological apocalypse, and here we are. What more could you ask from a system of truth and analysis than to alert you to a phenomenon like climate change before it occurs, with enough time to prevent it? That is significantly more than colonial science has offered.’
It’s not that the substance of this claim is entirely untrue (although it should be noted that many indigenous nations did have systems of private land ownership; land wasn’t denatured, fungible, and commodified, as it is in today’s capitalism, but then the same holds for European aristocracies, or the Nazis for that matter). Non-capitalist societies have persistently recognised that there’s an incredible potential for disaster in industrial modernity. Deleuze and Guattari develop an interesting idea here: capitalism isn’t really foreign to primitive society; it’s the nightmare they have of the world, the possibility of decoding and deterritorialisation that lurks somewhere in the dark thickets around the village. ‘Capitalism has haunted all forms of society, it is the dread they feel of a flow that would elude their codes.’ Accordingly, the development of capitalism in early modern Europe wasn’t an achievement, but a failure to put up effective defences against this kind of social collapse. You can see something similar in the response of the Tanna islanders to artificial insemination. What’s so horrifying about it? Plausibly, it’s that it denies social and bodily relations between animals, and social and bodily relations between animals and people. The animal is no longer a living thing among living things (even if it’s one that, as the islanders tell a rabbit hunter, was ‘made to be killed’), but an abstract and deployable quantity. It’s the recasting of the mysteries of fecund nature as a procedure. It’s the introduction of what Szerszynski calls the ‘vertical axis,’ the transcendence from reality in which the world itself ‘comes to be seen as profane.’ It’s the breakdown of the fragile ties that hold back the instrumental potential of the world. When people are living like this, how could it result in anything other than disaster?
This seems to be the general shape of impressions of peoples living under capitalism by those who do not. These strangers are immensely powerful; they are gods or culture heroes, outside of the world. (The people of Tanna revere Prince Philip as a divinity.) At the same time, they’re often weak, palsied, wretched, and helpless; they are outside of the world, and lost. In 1641, a French missionary recorded the response of an Algonquian chief to incoming modernity. One the one hand, he describes Europeans as prisoners, trapped in immobile houses that they don’t even own themselves, fixed in place by rent and labour. ‘We can always say, more truly than thou, that we are at home everywhere, because we set up our wigwams with ease wheresoever we go, and without asking permission of anybody […] We believe that you are incomparably poorer than we, and that you are only simple journeymen, valets, servants, and slaves.’ At the same time, the French are untethered, deracinated, endlessly mobile. The Algonquians territorialise; everywhere they go becomes a home. The Europeans are not even at home in their static houses. They have fallen off the world. ‘Why abandon wives, children, relatives, and friends? Why risk thy life and thy property every year, and why venture thyself with such risk, in any season whatsoever, to the storms and tempests of the sea?’ And this constant circulation is a profound danger. ‘Before the arrival of the French in these parts, did not the Gaspesians live much longer than now?’
There’s something genuinely fascinating in these encounters. Whenever members of non-capitalist societies encounter modernity, they see something essential in what’s facing them. (For instance, Michael Taussig has explored how folk beliefs about the Devil in Colombia encode sophisticated understandings of the value-form.) But it seems to me to be deeply condescending to claim that this constitutes an explicit warning about climate change, that the methods of ‘indigenous knowledge systems’ are the same as the physical sciences, and to complain that ‘Western science has a lot of nerve showing up just as we’re on the precipice of a biospheric death spiral to brandish some graphs.’ The argument that the transcendent vertical axis estranges human beings from the cycles of biological life, with potentially dangerous results, is simply not the same as the argument that increased quantities of atmospheric carbon dioxide will give rise to a greenhouse effect. It’s not that there’s nothing to learn from indigenous histories, quite the opposite. (I’ve written elsewhere on how the Aztecs – definitely not the romanticised vision of an indigenous society, but indigenous nonetheless – prefigured our contemporary notion of the Anthropocene.) But the claims in this essay set a predictive standard which ‘indigenous knowledge systems’ will inevitably fail; it refuses to acknowledge their actual insight and utility, and instead deploys them in a grudge match against contemporary political enemies.
Most fundamentally, the essay doesn’t consider this encounter as an encounter between modes of production, but an encounter between races. In the red corner, white people: brutally colonising the earth, wiping out all biological life, talking over BIPOC in seminars, etc, etc. In the blue corner, indigenous folk, who live in balance with the cycles of life, who feel the suffering of the earth because they are part of it, who intuitively understand climate atmospheric sciences because they’re plugged in to the Na’vi terrestrial hivemind, who are on the side of blind nature, rather than culture. This is not a new characterisation. The Algonquian chief complains that the French believe he and his people are ‘like the beasts in our woods and our forests;’ the Pacific Standard seems to agree.
This shouldn’t need to be said, but indigenous peoples are human, and their societies are as artificial and potentially destructive as any other. Being human means – Marx saw this very clearly – an essential disjuncture with essence and a natural discontinuity with nature. Ancient Amerindian beekeeping techniques are as foundationally artificial as McDonald’s or nuclear weapons. When humans first settled the Americas, they wiped out nearly a hundred genera of megafauna; the essay is entirely correct that ‘indigenous peoples have witnessed continual ecosystem and species collapse.’ Indigenous beliefs about the interconnectedness of life and social relations between humans and nonhumans are the mode of expression of their social forms in agrarian or nomadic communities. (Although some American societies were highly urbanised, with monumental earthworks, stratified class societies, and systemic religious practices. All of this is, of course, flattened under the steamroller of pacific indigeneity.) They are not transcendently true. They can not simply be transplanted onto industrial capitalism to mitigate its devastations.
The ‘indigenous critique’ suggests that, rather than some form of class-based mass programme to restructure our own mode of production, the solution to climate catastrophe is to ‘start giving back the land.’ (Here it’s following a fairly widespread form of reactionary identitarian discourse on indigineity.) Give it back to whom? To the present-day indigenous peoples of North America, who for the most part have cars and jobs and Social Security numbers, who have academic posts and social media, who do not confront capitalism from beyond a foundational ontological divide, but are as helplessly within it as any of the rest of us? (And meanwhile, what about Europe or China? Where are our magic noble savages?) Is ancestry or identity an expertise? Is living in a non-capitalist society now a hereditary condition?
Some indigenous beliefs about the interconnectedness of life and so on persist, long after the modes of production that gave rise to them have vanished. As we all know, the tradition of all dead generations weighs like a nightmare on the brains of the living. But they’re also an artefact of modernity, which ceaselessly produces notions of wholesome authentic mystical nature in tandem with its production of consumer goods, ecological collapse, and death. Unless this relation is established, beliefs are all we get. ‘Real solutions require a rethinking of our global relationship to the land, water, and to each other.’ Think differently, see things differently, make all the right saintly gestures, defer to the most marginalised, and change nothing.
This racialisation is particularly obscene when you consider who else has made dire warnings about the environmental effects of private ownership in land. The encounter between capitalist and non-capitalist society didn’t only take place spatially, in the colonial world, but temporally, during the transition from feudalism. And the same critiques made by the Ni-Vanatu, and the Algonquians, and many more besides, were also expressed by insurrectionaries within Europe. Take just one instance: The Crying Sin of England, of not Caring for the Poor, the preacher John Moore’s 1653 polemic against primitive accumulation and the enclosure of common land: this would, he promised, lead to catastrophe, the impoverishment of the earth, the fury of God, the dissolution of the social ties that keep us human, the loss of sense and reason, the decoding of all codes. The ruling classes, ‘by their inclosure, would have no poore to live with them, nor by them, but delight to converse with Beasts; and to this purpose turn Corne in Grasse, and men into Beasts.’ He, too, saw things as they were. And he was right. Here we are, in a world in which the ruling classes have disarticulated themselves from society in general, in which cornfields are swallowed up by the desert, in which people pretend to be like animals in order to be taken seriously. The solution is obvious. Find the descendants of John Moore, and give back Norfolk.
Em ato voluntário, Aldo Rebelo voltou a se aliar com ruralistas para colecionar delírios que seriam inadequados para um deputado; quanto mais à sua função no governo
No que se refere à questão agrária, tema que acompanho de perto, nenhuma vez fiquei tão constrangido ao ver a fala de um político quanto agora, ao assistir o vídeo de Aldo Rebelo na CPI da Funai, na quarta-feira. E olhem que ele tem sérios concorrentes. Tivemos o deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS) chamando índios, gays, quilombolas de “tudo que não presta”. E falas absurdas da ministra Kátia Abreu, principalmente do tempo em que era senadora; ou do líder da milícia UDR, hoje senador, Ronaldo Caiado (DEM-GO).
E por que a fala de Rebelo é pior?
Porque ele é ministro da Defesa. Suas curiosas concepções sobre “antropologia colonial” já seriam particularmente bizarras por ele se declarar comunista – ele é um dos líderes do PCdoB. Mas este é um assunto menor: que esses comunistas específicos se virem com sua consciência e com suas leituras, diante das diatribes do ex-deputado. Que se olhem no espelho e tentem encarar, depois disso, uma liderança indígena, um antropólogo sério, sem passar profunda vergonha. Agora, repito: Rebelo é ministro da Defesa.
E, por isso, sua fala é indefensável. Vejamos.
“Dos três troncos, o indígena é o mais sofrido, o mais esquecido pelo Estado brasileiro. Enquanto os outros troncos alcançaram, de certa forma, seu espaço na construção da sociedade nacional, os índios foram ficando à margem desse processo, e carregando maior as penas e o sofrimento da construção da nossa pátria. Cabe, portanto, esse registro pra que essa injustiça possa ser reparada, para que nós possamos, de forma consequente, socorrer, amparar essa parcela da nossa população. Exatamente para que ela não fique à mercê [eleva a voz] da manipulação de demagogos, da manipulação de interesses espúrios internos e externos, como, lamentavelmente, vem acontecendo.
É preciso que o Estado brasileiro ampare a população indígena do Brasil, para que organizações não-governamentais interesseiras, muitas vezes agentes do próprio Estado, agindo contra o Estado, manipulem o sofrimento e o abandono das populações indígenas. Falo, senhoras e senhores, com a experiência de quem palmilhou, nas fronteiras do Brasil mais remotas da Amazônia, as terras indígenas e quem pôde dialogar com suas populações. E de quem pôde testemunhar, exatamente, aquilo que acabo de dizer. (…)
Nossa tradição, naturalmente, não nega as violências, não nega as brutalidades, não nega as injustiças, não nega tudo que de errado nós fizemos contra as populações indígenas. Mas isso também afirma a natureza da nossa civilização de buscar incorporar, não apenas no sangue, mas na cultura, na história, na literatura, na culinária, no imaginário e na psicologia do nosso povo a presença dos nossos queridos e das nossas queridas irmãs e irmãos indígenas.
Por essa razão, senhores, é inaceitável [eleva novamente a voz] a doutrina esposada por certos setores da antropologia, principalmente da antropologia colonial, antropologia criada na França e na Inglaterra exatamente para melhor realizar o trabalho de dominação das chamadas populações aborígenes. Antropologia que depois foi incorporada pelos exércitos coloniais como parte do esquema de dominação. Essa corrente antropológica neocolonial é que procura apartar da sociedade nacional e da integração à sociedade nacional as populações indígenas. E é preciso que se denuncie com vigor e com coragem, para que o Brasil não se ponha no papel de vítima dos crimes que, de fato, ele não cometeu. Basta aqueles que nós já cometemos.
Essa antropologia que influencia estruturas do próprio Estado brasileiro, que incorpora setores importantes da nossa mídia, que incorpora setores importantes de correntes religiosas trata de estabelecer um abismo entre a sociedade nacional, entre o Brasil e as populações indígenas, contrapondo ao esforço de integração a ideia de segregação. Como se na escala evolutiva da humanidade o índio pudesse ser contido e parado nos estágios anteriores à evolução de toda a humanidade.
Tenho amigos europeus que fazem estudos em populações tribais e que descobriram, aqui na região da Amazônia, como é óbvio, uma população indígena que não sabe contar, que não domina a aritmética como qualquer povo ágrafo. Eu dizia para ele: seus antepassados também não sabiam contar. Contam no máximo 1, 2, 3 e muito. (…) O que eu perguntava para esse amigo antropólogo era o seguinte: as crianças dessa tribo devem ter o direito de aprender matemática? Ou elas devem ter negado esse direito, para que a antropologia continue dispondo de estudo de caso para registrar nas suas teses de mestrado ou doutorado? (…)
A manipulação das causas nobres e justas, como é a causa da proteção dos índios, não é a única no mundo. Ela tem paralelo com a manipulação da causa do meio ambiente. É muito parecido. As potências usam o meio ambiente, as causas indígenas, os direitos humanos, a democracia, a liberdade como usaram o anticomunismo no passado. O que era o anticomunismo? Era o pretexto para se fazer golpes de Estado, para defender interesses econômicos em função da defesa da liberdade e da democracia. Depois que o comunismo deixou de ser o pretexto, porque não era de fato ameaça, eles procuraram outros pretextos: a causa indígena é um deles, o ambientalismo é outro”.
E assim por diante, como se pode ver no vídeo. De forma voluntária, sem que o ministro Aldo Rebelo tivesse sido convidado ou convocado à CPI, instalada pelos ruralistas para combater direitos indígenas e a reforma agrária. Como porta-voz do governo, portanto?
Note-se que ele chega a combater a demarcação contínua da Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em determinado momento, pergunta: “Quem é índio e quem não é índio onde tudo já se misturou?” E cita um estudo de pedologia na Universidade Federal de Viçosa que considera não existir mais ali uma civilização indígena, “mas uma civilização miscigenada”.
É como resume o antropólogo Henyo Barretto Filho, do Instituto Internacional de Educação do Brasil: “Se o governo não desautorizar de modo igualmente público e expresso tal depoimento, fica sendo essa a versão do governo sobre os povos indígenas, a política indigenista e o papel da antropologia no reconhecimento dos direitos territoriais”.
A obra revela como o Sertão era habitado pelos índios, considerados nômades pelo fato de precisarem de todo o espaço necessário para sobreviver à ocupação violenta dos colonizadores brancos. Crédito: Arquivo/DP
A escassez de informações sobre o passado histórico do Sertão nordestino abre espaço para a reprodução de preconceitos com séculos de existência. Um conhecido mapa criado no século 16 pelo cartógrafo espanhol Diego Gutiérrez, por exemplo, generaliza a população sertaneja da época a índios canibais, representados em ilustrações de esquartejamento e assado humano. Para dar contornos mais claros à história brasileira, em especial referente ao território pernambucano mais ao oeste do país, duas gerações se uniram em um vasto estudo, agora disponível em livro. Mãe e filha, as historiadoras Socorro Ferraz e Bartira Ferraz Barbosa lançam, nesta quarta-feira (20), às 19h, na Arte Plural Galeria (Rua da Moeda, 140, Bairro do Recife), Sertão – Fronteira do medo (Editora UFPE, 283 páginas, R$ 75).
Crédito: Editora UFPE/divulgação
Na publicação, o Sertão dos tempos coloniais é descrito como uma fronteira física e, ao mesmo tempo, imaginária para a população do litoral. Era, portanto, representada graficamente pelos colonizadores, interessados em conquistar terras e riquezas em um local com características peculiares. “Há muitos trabalhos sobre a ocupação indígena litorânea e da Zona da Mata, mas muito poucas a respeito do Sertão, uma região onde a sobrevivência é mais difícil e, portanto, as informações não são tão fáceis de serem obtidas. Foi uma grande surpresa encontrar nos cartórios pesquisados livros de batismo de índios, negros e escravos brancos, com dados sobre como se batizava na época, sobre relações de parentesco, posse das terras”, relata Socorro Ferraz, doutora em história econômica pela Universidade de São Paulo e professora da UFPE.
Segundo a pesquisadora, a obra revela como o Sertão era habitado pelos índios, considerados nômades pelo fato de precisarem de todo o espaço necessário para sobreviver à ocupação violenta dos brancos. Esses colonizadores, ela esclarece, impingiram o medo para que a população indígena cedesse em muitos aspectos. Boa parte dela cedeu, negociou, tentou sobreviver de toda forma possível. Grande parte, contudo, foi extinta. Nesse contexto de adaptação, alguns índios chegaram, inclusive, a ter presença ativa no sistema colonial. Alguns foram capitães de milícias, outros tiveram cargos políticos, militares, serviram de intermediários para a própria conquista.
Para Bartira Ferraz, desde o século 16 os portugueses impuseram uma nova ordem política baseada em mecanismo de ocupação e controle, do vigiar e punir. “Os colonizadores vão primeiro punir, taxando os indígenas de selvagens, canibais, instalando um caos, que dá origem a guerras coloniais. Ocorreu a implantação brutal do sistema político por meio de um controle feito pela cruz e pela espada, com apoio do missionário e de tropas que controlavam essas populações”.
Autor do livro Direito e justiça em terras d’el rei na São Paulo colonial 1709 – 1822, Adelto Gonçalves fala sobre como a organização das estruturas de poder na sociedade, o funcionamento da Justiça paulista e a formação de privilégios da elite naquela época descrevem as raízes dos desmandos públicos no Brasil.
Nearly half a century ago, in what passed as outrage in pre-Internet times, people across the country became incensed by the latest edition of Time magazine. In place of the familiar portrait of a world leader — Indira Gandhi, Lyndon B. Johnson, Ho Chi Minh — the cover of the April 8, 1966, issue was emblazoned with three red words against a stark black background: “Is God Dead?”
Thousands of people sent letters of protest to Time and to their local newspapers. Ministers denounced the magazine in their sermons.
The subject of the fury — a sprawling, 6,000-word essay of the kind Time was known for — was not, as many assumed, a denunciation of religion. Drawing on a panoply of philosophers and theologians, Time’s religion editor calmly considered how society was adapting to the diminishing role of religion in an age of secularization, urbanism and, especially, stunning advances in science.
With astronauts walking in space, and polio and other infectious diseasesseemingly on the way to oblivion, it was natural to assume that people would increasingly stop believing things just because they had always believed them. Faith would steadily give way to the scientific method as humanity converged on an ever better understanding of what was real.
Almost 50 years later, that dream seems to be coming apart. Some of the opposition is on familiar grounds: The creationist battle against evolution remains fierce, and more sophisticated than ever. But it’s not just organized religions that are insisting on their own alternate truths. On one front after another, the hard-won consensus of science is also expected to accommodate personal beliefs, religious or otherwise, about the safety of vaccines, G.M.O. crops, fluoridation or cellphone radio waves, along with the validity of global climate change.
Like creationists with their “intelligent design,” the followers of these causes come armed with their own personal science, assembled through Internet searches that inevitably turn up the contortions of special interest groups. In an attempt to dilute the wisdom of the crowd, Google recently tweaked its algorithm so that searching for “vaccination” or “fluoridation,” for example, brings vetted medical information to the top of the results.
But presenting people with the best available science doesn’t seem to change many minds. In a kind of psychological immune response, they reject ideas they consider harmful. A study published this month in the Proceedings of the National Academy of Sciences suggested that it is more effective to appeal to anti-vaxxers through their emotions, with stories and pictures of children sick with measles, the mumps or rubella — a reminder that subjective feelings are still trusted over scientific expertise.
On a deeper level, characteristics that once seemed biologically determined are increasingly challenged as malleable social constructs. As she resigned from her post this summer, an N.A.A.C.P. local leader continued to insistshe was black although she was born white. Facebook now offers users a list of 56 genders to choose from. Transgender sits on the list, along with its opposite, cisgender — meaning that, like most people, you identify yourself as male or female according to the way the cells of your embryo unfolded in the womb.
Even conditions once certified as pathologies are redefined. While some parents cling to discredited research blaming vaccines for giving children autism, others embrace the condition as one more way of being and speak of a new civil rights movement promoting “neurodiversity,” the subject of a book by Steve Silberman, published this month.
While this has been a welcome and humane development for those diagnosed as “higher functioning” on the autism scale, parents of severely impaired children have expressed dismay.
Viewed from afar, the world seems almost on the brink of conceding that there are no truths, only competing ideologies — narratives fighting narratives. In this epistemological warfare, those with the most power are accused of imposing their version of reality — the “dominant paradigm” — on the rest, leaving the weaker to fight back with formulations of their own. Everything becomes a version.
Ideas like these have been playing out in the background as native Hawaiian protesters continue to delay the construction of a new telescope on Mauna Kea that they say would desecrate a mountaintop where the Sky Father and Earth Mother gave birth to humankind. Last month, they staged a demonstration at the annual meeting of the International Astronomical Union in Honolulu.
There are already 13 telescopes on the mountain, all part of the Mauna Kea Science Reserve, which was established by the state in 1968 on what is widely considered the premier astronomical vantage point in the Northern Hemisphere. After I wrote about the controversy last fall, I heard from young anthropologists, speaking the language of postmodernism, who consider science to be just another tool with which Western colonialism further extends its “cultural hegemony” by marginalizing the dispossessed and privileging its own worldview.
Science, through this lens, doesn’t discover knowledge, it “manufactures” it, along with other marketable goods.
Altruism and compassion toward the feelings of others represent the best of human impulses. And it is good to continually challenge rigid categories and entrenched beliefs. But that comes at a sacrifice when the subjective is elevated over the assumption that lurking out there is some kind of real world.
The widening gyre of beliefs is accelerated by the otherwise liberating Internet. At the same time it expands the reach of every mind, it channels debate into clashing memes, often no longer than 140 characters, that force people to extremes and trap them in self-reinforcing bubbles of thought.
In the end, you’re left to wonder whether you are trapped in a bubble, too, a pawn and a promoter of a “hegemonic paradigm” called science, seduced by your own delusions.
Projeto evidencia a importância da ideia profética de “esperança” nas relações entre Portugal, Holanda e Inglaterra no século XVII
JULIANA SAYURI | ED. 229 | MARÇO 2015
Era o despertar de um sonho. Um sonho impulsionado pelo padre português Antônio Vieira no século XVII: a esperança profética de um “Quinto Império”, inspirada no livro bíblico de Daniel, considerado apocalíptico por tratar dos acontecimentos relacionados ao fim do mundo. Vieira acreditava que, após os domínios dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos, era o momento do último reino na Terra, o Império Português. A essa trama ultramarina se dedicou o historiador Luís Filipe Silvério Lima, professor de História Moderna desde 2007 na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Guarulhos. “No século XVII ocidental, principalmente europeu, o sonho era uma ideia muito poderosa para explicar o próprio mundo. Era uma metáfora do que é a vida. Diversos autores, entre dramaturgos, filósofos, políticos, padres, pintores e poetas, usavam o sonho para dar sentido à realidade”, diz Lima.
Durante suas investigações, o pesquisador observou conexões entre a ideia de Quinto Império proposta por Portugal e a Quinta Monarquia idealizada na Inglaterra e partiu para um novo projeto de estudo sobre interpretações e leituras das profecias no século XVII. “Na época da elaboração do projeto, discutiam-se muito os limites metodológicos da história comparada. Eram propostas outras abordagens que permitissem pensar para além das fronteiras nacionais, como as histórias conectadas, as histórias cruzadas, emaranhadas. Assim, a partir dessas perspectivas, pretendi identificar possibilidades de conexões entre Portugal e Inglaterra nesse período, em torno das expectativas proféticas e os projetos de Quinta Monarquia que, quase simultaneamente, apareceram durante a Restauração Portuguesa e a Revolução Inglesa”, explica o historiador, autor de Padre Vieira: Sonhos proféticos, profecias oníricas. O tempo do Quinto Império nos sermões de Xavier Dormindo (Humanitas, 2004) e O império dos sonhos: Narrativas proféticas, sebastianismo e messianismo brigantino (Alameda, 2010), desdobramentos, respectivamente, de sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado, orientadas por José Carlos Sebe Bom Meihy e defendidas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
O rabino e o padre Nesse contexto, Lima identificou a Holanda como espaço privilegiado para vincular Portugal e Inglaterra. “O que é marcante, por exemplo, com o papel desempenhado pelo rabino Menasseh Ben Israel, um judeu de origem portuguesa que viveu na primeira metade do século XVII”, ilustra. Menasseh era de família cristã-nova portuguesa, cristãos de origem judaica convertidos compulsoriamente ao catolicismo. Assim como muitos judeus radicados em países católicos, como Portugal e Espanha, Menasseh migrou para França e depois para a Holanda para se reconverter ao judaísmo. Ali ajudou a fundar a Talmud Torá, também conhecida como Sinagoga Portuguesa. Nos tempos dominados pelo catolicismo, Amsterdã era uma das cidades onde se podia viver “publicamente” como judeu. “Era um porto relativamente seguro para quem quisesse professar a fé judaica. Muitos cristãos-novos portugueses foram para lá, fugidos ou não da Inquisição.”
O rabino Menasseh Ben Israel tornou-se uma referência para católicos e protestantes, reconhecido por seus conhecimentos bíblicos. Dialogou com outros expoentes da época, como o jesuíta Antônio Vieira, com quem certa vez teve um encontro e uma longa conversa sobre o fim do mundo, um tópico dominante nas discussões vigentes. Menasseh ainda despertou interesse de importantes círculos políticos, como os de Vasco Luís da Gama, conde de Vidigueira, depois marquês de Nisa, descendente direto do almirante português que descobriu o caminho marítimo para as Índias no século XV. Esses círculos estavam preocupados, entre outras coisas, com o papel possível dos judeus para a restauração da independência de Portugal de 1640, com a nova dinastia de dom João IV de Bragança, destacando o impacto negativo dos tribunais do Santo Ofício contra os cristãos-novos, alguns deles importantes mercadores. “A questão tinha uma dimensão religiosa e teológica, mas também política”, pondera.
A partir de suas pesquisas nos arquivos de Amsterdã, Lisboa, Londres e Washington, o historiador traçou conexões que permitem compreender as inquietações religiosas e políticas no século XVII, dominadas por uma ideia principal: a esperança. Entre 1649 e 1650, Menasseh Ben Israel escreveu o pequeno tratado Miqveh Israel ou esperança de Israel, por conta do interesse de milenaristas ingleses na suposta “descoberta”, relatada pelo cristão-novo Antonio de Montesinos, de uma das 10 tribos perdidas de Israel na América espanhola, mais especificamente na Amazônia. Na interpretação das páginas bíblicas, indicaria a vinda do Messias, a instauração do Quinto Império e, assim, a iminência do fim do mundo. A “notícia” parece não ter comovido particularmente a comunidade dos judeus-portugueses na Holanda, mas mobilizou os protestantes na Inglaterra. O livro do rabino foi traduzido para o latim (Spes Israelis) e para o inglês (Hope of Israel). “A América era o novo mundo, uma terra ainda desconhecida que se ‘encaixava’ perfeitamente na profecia. Quem eram esses americanos? Eram ou não descendentes de judeus? Se a Bíblia tinha todas as respostas, mas não tinha menções à América, quem eram então esses povos?”, diz o pesquisador, reverberando as questões que intrigavam os personagens daquele período. “Isso atraiu as atenções do mundo protestante, pois alguns milenaristas ingleses pensavam que também seria possível que os índios do norte da América fossem descendentes das tribos judaicas, além dos supostamente encontrados na Amazônia. Em parte devido a essas discussões, passou-se a reconsiderar a readmissão dos judeus na Inglaterra.”
Esperança Além do tratado Esperança de Israel impresso na Holanda, outros escritos da época se pautaram pela esperança profética, que se traduziram em projetos políticos diferentes. Em Portugal, a carta Esperanças de Portugal, escrita pelo padre Antônio Vieira em 1659, consolando a rainha por conta da morte do rei dom João IV, anunciava sua ressurreição e o início do reino de Cristo na terra com o Quinto Império português. Na Inglaterra, o panfleto Door of hope, documento de autoria desconhecida divulgado em 1661, anunciava o reino dos santos para derrubar o rei Carlos II, recém-restaurado no trono inglês, conclamando um levante da Quinta Monarquia liderado pelo tanoeiro Thomas Venner.
Um ponto comum desses escritos era a fonte bíblica: as visões e os sonhos do livro de Daniel sobre os cinco reinos. Segundo Lima, porém, eram diferentes interpretações, que serviram para diferentes propostas e justificativas teórico-ideológicas para intervenções políticas. “A discussão teológica tinha um rebatimento político muito forte. No fundo, a questão era: qual é o espaço da ação humana para um projeto de Deus? Qual é o cálculo político possível? Parafraseando uma narrativa de Vieira: o capitão perdeu a hora e não chegou a tempo no porto, assim o navio demorou e a frota se atrasou, assim a esquadra não chegou a tempo na Índia e não conseguiu socorrer um forte, assim se perdeu o domínio do campo, se perdeu o dinheiro e, por fim, se perdeu o império. Isto é, o império seria um projeto divino, mas a ação humana era importante para realizá-lo”, exemplifica.
Nos três casos – Portugal, Inglaterra e Holanda –, a esperança era a palavra-chave. Na pesquisa iconográfica, o historiador descobriu ainda alegorias, emblemas e símbolos para a esperança, intrinsecamente relacionados ao mar desbravado pelas navegações. Ao longo dos séculos XVI e XVII, a esperança era retratada com uma mulher e uma âncora, que simbolizariam um porto seguro e, ao mesmo tempo, uma bússola para atravessar os mares tempestuosos. “A esperança, afinal, era uma virtude que implicava a ‘espera’ de algo. Para os cristãos católicos e protestantes, era a espera pela segunda volta de Cristo, pela salvação ou pelo Juízo Final. Para os judeus, a vinda do Messias”, diz Lima. “Na bibliografia, muitas vezes os termos ‘messianismo’ e ‘milenarismo’ são usados indistintamente. Mas há diferenças”, diz o pesquisador. Por “messianismo” compreende-se a volta do Messias. “Milenarismo” refere-se à volta de Jesus Cristo para um reino de mil anos na Terra, o millenium. No século XVII, os movimentos do Quinto Império português e da Quinta Monarquia inglesa se fundamentavam nesses pensamentos proféticos. Essas diferenças entre messianismo e milenarismo, no entanto, alerta o pesquisador, não são tão importantes ou operacionais para a pesquisa.
A partir desse projeto de estudo, encerrado em 2014, Luís Filipe Silvério Lima desdobrou outras iniciativas. Por um lado, pretende escrever um novo livro sobre as considerações já desenvolvidas. Por outro, na Unifesp, consolidou o Grupo de Pesquisa CNPq Poder e Política na Época Moderna. O objetivo é estimular mais estudos e consolidar a área de História Moderna no campus da universidade federal. Também desse projeto saiu um colóquio em 2012 sobre messianismo no mundo ibérico, que deve resultar em um livro publicado no exterior, organizado com a professora Ana Paula Megiani, da Universidade de São Paulo (USP).
Projeto
As interpretações e leituras das profecias dos cinco reinos no século XVII (nº 09/53257-3); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadorresponsável Luís Filipe Silvério Lima (EFLCH-Unifesp); Investimento R$ 93.023,00 (FAPESP).
Others say that the industrial revolution or the first nuclear tests better signal the start of the Anthropocene.
While some believe the exact date for a new epoch can only be determined with the benefit of thousands or even millions of years of hindsight.
An international Anthropocene Working Group is currently reviewing the evidence and will announce its favoured start date next year.
We look for these golden spikes – a real point in time when you can show in a record when the whole Earth has changed” – Prof Mark Maslin, University College London
Golden spikes
Geologists carve up Earth’s history into chunks that reflect times of significant change on the planet, perhaps as a result of continental movement, a big asteroid strike, or a major shift in climate.
We are still formally in the Holocene Epoch. It started more than 11,500 years ago as the last Ice Age came to an end.
But now scientists say that humanity has dramatically altered the Earth again.
To pinpoint the start of this new phase, geologists are looking for a clear signal, described as a “golden spike”, that will be captured in rocks, sediments or ice.
Prof Mark Maslin, from University College London, a co-author of the paper, said: “We look for these golden spikes – a real point in time when you can show in a record when the whole Earth has changed.
“If you look back through the entire, wonderful geological timescale, we have defined almost every boundary in that way.”
The arrival of Christopher Columbus in the Americas started an exchange of people, crops – and disease
The study suggests that one such golden spike places the start of the Anthropocene in 1610.
The researchers say the arrival of the Europeans in the Americas 100 years earlier was the start of a major global transformation.
We saw these species jump continents, which is a geologically unprecedented impact, setting Earth off on a new evolutionary trajectory” – Dr Simon Lewis, UCL
Co-author Dr Simon Lewis, also from UCL, said: “The rapid global trade after that time moved species around.
“Maize from Central America was grown in southern Europe and Africa and China. Potatoes from South America were grown in the UK, and all the way through Europe to China. Species went the other way: wheat came to North America and sugar came to South America – a real mixing of species around the world.
“We saw these species jump continents, which is a geologically unprecedented impact, setting Earth off on a new evolutionary trajectory.”
Ancient pollen found in sediments provides a record of this change, but the team says another golden spike relates to deadly diseases brought into the Americas from Europe.
“And this farmland grew back to the original vegetation – tropical forest, dry forest or savannah. And about half the dry weight of a tree is carbon, so all that growing vegetation removed enough carbon from the atmosphere to see a pronounced dip in the global atmospheric carbon dioxide concentration that can be seen in ice core records.
“It provides an exact marker of the Anthropocene at 1610, the lowest point of CO2 in the ice-core record at that time.”
Nuclear weapons tests in the mid-20th Century have also left a clear signal of humanity’s impact on the Earth
The researchers also said another date for the new epoch could be 1964, when the nuclear tests of the 1940s, 50s and early 60s came to an end after a ban came into force.
A golden spike is provided by an increase in radioactive carbon in the atmosphere while the tests were taking place, followed by a very sharp drop off when they stopped.
It certainly adds positively to the overall debate on the Anthropocene, and to the growing number of suggestions about where it should start” – Dr Jan Zalasiewicz, Anthropocene Working Group
But Prof Maslin said that while the signal was very sharp, the radioactivity was not related to other great changes taking place at that time.
He explained: “In the mid-1960s, there is a huge change in everything around the planet, which is called the ‘great acceleration’ – with the population increasing by 2% per year, unprecedented changes in agriculture and food production – but the marker doesn’t link to that in any shape or form.”
Commenting on the research, Dr Jan Zalasiewicz, from the University of Leicester, who chairs the Anthropocene Working Group, said it was an interesting piece of work with some “intriguing ideas”.
“The working group will certainly be discussing them,” he told BBC News.
“It adds positively to the overall debate on the Anthropocene, and to the growing number of suggestions about where it should start.
“The 1610 suggestion clearly reflects a historically important event, though it would need more evidence, I think, whether the criteria they suggest would work better than the multiple signals now known to be associated with the mid-20th century ‘great acceleration’.”
Esqueletos foram descobertos há pouco tempo em um museu francês, mas caminho para repatriá-los não é fácil
Em agosto de 1880, oito Inuits da costa nordeste do Canadá aceitaram viajar para a Europa a fim de serem exibidos em um zoológico humano. Pouco depois, morriam de varíola, antes de retornar ao seu lar. Os esqueletos de Abraham Ulrikab e da maior parte dos seus companheiros foram descobertos há pouco tempo, montados completamente nos depósitos de um museu francês para serem exibidos. Os anciãos Inuits querem que os restos mortais de seu povo, até mesmo dos que morreram longe dos territórios de caça do Norte, nos séculos 19 e 20, voltem para o seu país. Mas isso levará muito tempo.
O governo de Nunatsiavut, uma região Inuit do norte do Labrador criada em 2005, já recuperou restos humanos de museus de Chicago e da Terranova. David Lough, vice-ministro da Cultura de Nunatsiavut, não sabe ao certo quantos outros há para serem reclamados. Mas ele acredita que, em 500 anos de contato entre o Labrador e o mundo exterior, muitas pessoas e artefatos foram parar do outro lado do oceano. Nancy Columbia fez parte de um grupo encarregado de apresentar a cultura Inuit na Feira Mundial de Chicago, e chegou a Hollywood, onde estrelou filmes western como princesa americana nativa.
Governo procura descendentes para definir o que será feito
Até pouco tempo atrás, os museus resistiam a devolver restos humanos, em nome da ciência e da preservação da cultura. As múmias egípcias do Museu Britânico e as tsantsas (cabeças encolhidas) do Amazonas, do Museu Pitt Rivers de Oxford, são as peças mais importantes de suas coleções. Mas, pressionados por grupos indígenas, começaram a ceder. A Declaração sobre os Direitos das Nações Indígenas da ONU, adotada em 2007, consagra o direito de reclamar restos humanos, assim como a legislação em Grã-Bretanha, Austrália e Estados Unidos (mas não a do Canadá). Dezenas de museus (incluindo o Museu Britânico e o Pitt Rivers) elaboraram políticas de repatriação e códigos éticos sobre o tratamento a ser dado a restos mortais. O Museu do Homem da França, onde os esqueletos de Abraham Ulrikab e seus companheiros estão guardados, pretende devolvê-los, afirma France Rivet, autora de um novo livro sobre a saga do grupo. “Eles aguardam apenas uma solicitação do Canadá”, afirma.
A solicitação não chegou, diz Lough, em parte porque “os Inuits querem que todos sejam consultados”. A frágil situação das comunidades Inuit torna isso difícil. Hebron, terra natal da família Ulrikab, foi fundada por missionários da Morávia. Mas o assentamento foi abandonado em 1959, quando a missão fechou; os descendentes da família se dispersaram. Eles deverão ser encontrados para ajudar a decidir onde os restos deverão ser sepultados e o tipo de cerimônia que será realizado. Nakvak, local de origem de outros integrantes do grupo original, agora fica no Parque Nacional das Montanhas Torngat, e existem obstáculos burocráticos para utilizá-lo como local de sepultamento.
Somente depois que os Inuits decidirem o que fazer com os restos mortais as negociações poderão começar entre os governos do Canadá e da França a respeito de sua devolução e do pagamento dos custos da repatriação. Em 2013, Stephen Harper, primeiro-ministro do Canadá, e o presidente da França, François Hollande, concordaram em colaborar para a repatriação. Mas a África do Sul esperou oito anos por Saartjie Baartman, a “Vênus hotentote”, depois que Nelson Mandela solicitou seu regresso, em 1994. Para Abraham Ulrikab e seus amigos, pelo menos, a jornada de volta começou.
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