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Zélio, o Caboclo das Sete Encruzilhadas: o fundador da umbanda que não é bem aceito por umbandistas atuais (BBC News Brasil)

bbc.com


Edison Veiga – De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

31 dezembro 2021

Retrato em preto e branco
Legenda da foto, Zélio, em foto publicada pelo jornal A Gazeta de São Gonçalo, extinto em 1937

Se a tentativa era criar uma espécie de mito da religião nacional por excelência, elementos simbólicos não faltam na história de como o médium fluminense Zélio Fernandino de Moraes (1891-1975) teria criado a umbanda.

A começar pela data: 15 de novembro de 1908. Sim, um 15 de novembro, aniversário da Proclamação da República, data portanto da criação do Brasil contemporâneo.

E também pela história: no transe vivido por Zélio, ele teria dialogado com espíritos de negros e indígenas e, por fim, incorporado um padre jesuíta italiano que havia pregado no Brasil colonial — e acusado de bruxaria.

Mais simbólico do sincretismo cultural, étnico e religioso do Brasil, impossível.

Por outro lado, e é esse o ponto que vem sendo revisto e muito criticado por pesquisadores contemporâneos da umbanda, considerar Zélio o precursor dessa religião é também resultado de um processo de embranquecimento — é negar que a umbanda já vinha sendo praticada por negros oriundos da África e seus descendentes em solo brasileiro, é entregar a primazia da religião afrobrasileira a um homem branco.

“Não é um assunto novo: a história de Zélio como fundador da umbanda vem sendo questionada. Eu não o considero fundador da umbanda porque a umbanda é muito anterior a isso”, crava o sociólogo Lucas de Lucena Fiorotti, autor da página Abrindo a Gira, no Instagram.

“Ele se tornou uma figura importante em função do embranquecimento [da umbanda]. Ele é importante para um tipo de umbanda, que no passado queriam chamar de ‘espiritismo de umbanda’. Quem o celebra como fundador da umbanda não tem culpa. A culpa é do projeto de país”, acrescenta Fiorotti.

Para o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em São Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, Zélio é “a representação de uma grande construção histórica”, do “mito de fundação que, a partir dos anos 1960, começa a se fazer no Rio”. “Uma grande mentira”, sentencia.

O que teria acontecido em 1908

Filho de uma família tradicional de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, Zélio estava se preparando para seguir carreira militar na Marinha quando foi acometido por uma paralisia. Ele tinha 17 anos. Acamado por alguns dias, teria declarado que “amanhã estarei curado” e, de fato, no dia seguinte levantou-se como se nada houvesse acontecido.

Diante da surpresa dos médicos, os familiares decidiram recorrer a padres católicos — que também não souberam explicar o que havia sucedido ao jovem.

Para a família, Zélio sofria de distúrbios espirituais. Então, por indicação de um amigo, levaram-no até a Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro, então sediada em Niterói.

O médium presidente da entidade teria organizado uma sessão espírita, com Zélio à mesa. Na ocasião, conforme relatos da época, houve a manifestação de espíritos de ancestrais africanos, os chamados “pretos-velhos”, e indígenas, os “caboclos”.

O dirigente da sessão, então, teria classificado tais espíritos como atrasados e solicitado que eles se retirassem. Foi quando Zélio acabaria incorporando uma entidade, o chamado “Caboclo das Sete Encruzilhadas”, em defesa dos pretos-velhos e dos caboclos. E disse que se ali não houvesse espaço para que negros e indígenas “cumprissem sua missão”, ele, o tal caboclo, fundaria no dia seguinte um novo culto — na casa de Zélio.

Seria então 15 de novembro de 1908. E, para muitos, se trata do marco fundador da umbanda, como uma nova religião do Brasil.

A partir do episódio, Zélio e o Caboclo das Sete Encruzilhadas seriam identidades indissociáveis. De acordo com o médium, a entidade seria a manifestação do padre jesuíta italiano Gabriel Malagrida (1689-1761), um missionário que chegou a andar pelo Brasil catequizando indígenas e, mais tarde, acusado de bruxaria e heresia, foi morto pela fogueira da Inquisição em Lisboa.

“Ele é caboclo mas, dentro do mito, também é um padre jesuíta. O que cria uma disforia total, uma loucura promovida pelo processo de embranquecimento [da umbanda]”, diz Fiorotti.

Crédito: Domínio Público. Ilustração antiga e recortada do padre Gabriel Malagrida, morto pela Inquisição em Lisboa

Segundo a narrativa de Zélio, na “última existência física”, Deus teria concedido a Malagrida “o privilégio de nascer como caboclo brasileiro”.

Com esse caldo cultural multiétnico, estava criado o mito da fundação da umbanda.

‘Embranquecimento’

Conforme explica o sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ciência da religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a história de Zélio pode ser vista sob duas óticas.

“A primeira traz sua vida contada por meio dos manuais de umbanda e mantida pela sua família, a qual assegura sua memória até os dias de hoje. Já a segunda é contada por meio de um mito de criação onde cada um que conta aumenta uma ponta, deixando na história contada uma lenda de existência questionável”, pondera ele.

Dias lembra que um dos relatos atesta que, entre a consulta médica, o conselho dos padres e a famosa sessão espírita, Zélio teria sido levado a uma benzedeira do Rio. E fora ela, incorporando um preto-velho, que dera a sentença: àquele jovem seria reservada uma grande missão pela frente.

O pesquisador ressalta que há ainda um fato importante que só reforça a ideia de que muitos detalhes não tenham passado de ficção para azeitar uma mitologia da fundação.

“Na ata de 15 de novembro de 1908 da citada federação [espírita] não há registros destes fatos, o nome do dirigente da suposta sessão não confere com a história, nem mesmo o nome de Zélio se faz presente”, afirma Dias.

Por fim, ele lembra ainda que a figura do Caboclo das Sete Encruzilhadas também apresenta “incongruências”.

Segundo especialistas, a história de Zélio como fundador da umbanda foi uma construção que passou a tomar forma nos anos 1960, quando o médium já era idoso.

Em 1961, a jornalista e umbandista Lilia Ribeiro publicou pela primeira vez essa versão no jornal informativo Macaia, ligado à Tenda de Umbanda Luz, Esperança e Caridade, da qual ela era dirigente.

Após a morte de Zélio, essa narrativa se consolidou. Em dezembro de 1978, por exemplo, a Revista Planeta, publicação da Editora Três que hoje não circula mais, trouxe uma grande reportagem intitulada Como surgiu a umbanda em nosso país: 70o. aniversário de uma religião brasileira, na qual todos os elementos dessa mitologia fundadora estavam presentes.

Fiorotti acredita que então Zélio se torna “uma figura importante para a umbanda hegemônica”.

Mas que tudo seria um esforço sistêmico para apagar as raízes realmente africanas — e anteriores ao século 20.

“Há indícios de que já havia práticas de umbanda muito semelhantes tanto em ritualística quanto em estética ao que acontece hoje muito antes de 1908”, diz ele.

“Essa umbanda que tem Zélio como fundador é uma umbanda muito associada ao espiritismo em si. Mas há diversos autores que se sentem contemplados por essa narrativa e eles são pessoas fortemente associadas ao espiritismo e a algumas ideias esotéricas, místicas. Fogem da vivência do terreiro de fato. A estrutura umbandista já existia no século 19.”

Crédito: Reprodução/Correios. Selo em homenagem a Zélio de Moraes

Watanabe lembra que a própria palavra umbanda vem das línguas quimbundo e umbundu da África Central e “significa algo como arte ou maneira de curar”.

“É uma palavra que existe há muito tempo e, como sendo arte ou maneira de curar, se trata de uma prática medicinal e espiritual feita por um médico feiticeiro”, contextualiza.

“Algo que já era praticado por centro-africanos desde muito tempo atrás e, a partir da diáspora, do tráfico de escravizados, acaba sendo trazido ao Brasil. Por isso, no Rio de Janeiro do século 19 já havia diversas casas de feiticeiros africanos.”

Para Fiorotti, a mitologia de Zélio é, na verdade, a tentativa do “embranquecimento da umbanda, dentro da ideia da democracia racial, de que não há racismo no Brasil, de que as relações raciais são simétricas”.

“Essa umbanda do Zélio está na esteira desse país que começa a se pensar como mestiço para disfarçar os problemas das relações sociais”, aponta.

Assim, Zélio teria sido “usado” como “uma história privilegiada para encarnar a umbanda da democracia racial”, enfatiza o pesquisador.

E a consolidação desse estilo deixou como legado uma série de “descaracterização das divindades, dos orixás, dos espíritos”.

“Por exemplo, ao dizer que um caboclo, que é indígena, pode ser um branco. Ou dizendo que um preto-velho pode ser uma pessoa branca. São absurdos. Mas a partir dessa umbanda [de Zélio], isso passou a ser possível”, exemplifica.

“Zélio é a história de um homem branco classe média que se apropria da cultura dos centro-africanos e seus descendentes”, resume o historiador Watanabe. “Além disso, apaga e invisibiliza a cultura dos centro-africanos ao se dizer fundador de algo que, na verdade, já existia.”

E de onde vêm as sete encruzilhadas? A resposta está na própria ideia umbandista do que é uma encruzilhada.

“É um conceito: estar na encruzilhada, ao contrário do que as pessoas costumam pensar, é desejável. Porque tudo é feito de caminhos. Um caminho reto, sem possibilidades, não é desejável. O desejável é estarmos na encruzilhada, onde não há caminho fechado”, explica o sociólogo Fiorotti.

“Sete encruzilhadas, assim, é o infinito de possibilidades”, conclui ele.

Neutralidade é um lugar que não existe (Le Monde Diplomatique Brasil)

Acervo Online | Brasil por Carla Rodrigues 19 de agosto de 2020

A história da minha educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser racista.

Sou branca e fui criada como branca. Mais do que isso, fui educada para saber identificar os fenótipos das pessoas negras, de modo a estabelecer rigorosas distinções entre pessoas brancas, pessoas então chamadas de “mulatas” e pessoas negras. Cresci aprendendo que pessoas negras são sujas e que a cor preta estava associada ao nojo, ao abjeto. Na escola progressista em que estudei, havia apenas duas pessoas negras, ambas filhas de funcionários. Durante décadas, escutei a exaltação dos ancestrais portugueses e italianos, que nos legaram pele branca, cabelos lisos e, no meu caso, olhos azuis, joia rara na família e objeto de disputa como  signo da herança materna portuguesa ou da herança paterna italiana.

Fui ensinada a ser superior porque branca, embora a superioridade de uma mulher branca de família pequeno burguesa estivesse fundamentada na cor, não em privilégios de classe ou gênero. Quando analiso para a minha educação para ser racista, vejo retrospectivamente que as pessoas brancas da minha família de imigrantes pobres talvez precisassem afirmar o privilégio de cor para escapar da subalternidade justo por não terem o privilégio de classe.

Por isso, inclusive, além de racistas, eram também classistas e repetiam os estereótipos que o racismo usa ainda hoje: pessoas pretas e pobres são igualmente perigosas, eventualmente preguiçosas, embora as mulheres negras tenham sido sempre alocadas nos trabalhos braçais do cuidado da casa e no cuidado de crianças. Esta divisão marcou a minha infância. Quando criança, nunca entendi a divisão subjetiva entre não poder gostar de pessoas pretas e adorar a mulher preta que cuidava de mim quando minha mãe não estava.

Há muito tempo quero escrever sobre minha experiência pessoal de ter sido educada para ser racista e, portanto, ter chegado à vida adulta naturalizando a desigualdade racial. Do debate que se seguiu ao artigo de Lilia Schwarcz a respeito do novo vídeo da Beyoncé, foi o texto de Lia Vainer Schucman que me motivou a escrever. Isso porque considero o argumento dela irrefutável: “nossa racialidade está sendo marcada, algo que acontece há alguns séculos com negros e indígenas no Brasil, ou seja: é quando o grupo antecede o indivíduo (o que nomeamos de processo de racialização).” A história da minha educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser racista. Já Schucman defende uma racialização que, como reconhecimento de que todas as pessoas são marcadas, poderia nos levar ao fim do racismo. Parece contraditório, eu sei, mas vamos lá.

Há muitos anos tenho trabalhado para desconstruir as camadas de racismo que me foram sobrepostas. Aqui, uso o verbo descontruir como foi proposto pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, a quem dediquei minhas pesquisas de mestrado e doutorado e com quem comecei a aprender que quem fala, o faz a partir de algum lugar. Isso porque um dos objetivos da desconstrução é a crítica à suposição da neutralidade dos discursos, que serve como anteparo a todas as premissas ocultas que os discursos de saber-poder contém.

Como mulher, experimentei inúmeras vezes – e infelizmente ainda experimento – a diferença de poder entre o discurso masculino de autoridade e o meu. Como pesquisadora, fui aprendendo a perceber e denunciar que esse discurso masculino obtém sua autoridade de uma suposição de neutralidade do saber. Daí para a leitura da filósofa Donna Haraway e seu clássico “Saberes localizados” foi um passo curto. No ensaio, Haraway desconstrói a suposição de neutralidade do discurso da ciência e confere às feministas a responsabilidade de produzir conhecimento como saber situado. É o que venho tentando fazer há algum tempo, tanto na minha escrita quanto no meu trabalho de orientadora de pesquisas acadêmicas que, muitas vezes, procuram a neutralidade em busca de autoridade, mesmo que para isso acabe abrindo mão da autoria do texto.

Neste processo, ainda em curso, precisei aprender que branco também é cor. Enxergar-se branca é enxergar-se marcada pela própria branquitude. É este aspecto que me mobiliza no debate sobre lugar de fala: a desconstrução da suposição de neutralidade de qualquer discurso. Quem continua pretendendo se ver como neutro ou neutra é quem, por acreditar que não tem cor, pode continuar oprimindo – seja as pessoas negras, seja as pessoas brancas subalternizadas – por uma suposta neutralidade do saber.

Não por acaso, o livro de Djamila Ribeiro (“O que é lugar de fala”, editora Letramento, 2017) tem como epígrafe trecho de um artigo de Lélia Gonzalez: “Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos) que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.”

Aqui posso fazer Djamila e Lélia conversarem com Achille Mbembe de “Crítica da razão negra” (N-1 Edições, 2019), em que ele divide a razão negra em dois momentos: o primeiro, o da consciência ocidental do negro, orientando pela interpelação do colonizador com perguntas como “quem é ele?; como o reconhecemos?; o que o diferencia de nós? poderá ele tornar-se nosso semelhante? como governá-lo e a que fins?”. No segundo momento, Mbembe percebe que as perguntas são as mesmas, a mudança está em quem as enuncia: “Quem sou eu?; serei eu, de verdade, quem dizem que eu sou?;  Será verdade que não sou nada além disto – minha aparência, aquilo que se diz de mim?; Qual o meu verdadeiro estado civil e histórico?”.

Ehimetalor Akhere Unuabona/ Unsplash

Quando me reconheço portadora de uma cor – branca – também posso enunciar estas perguntas, de tal modo a não precisar mais sustentar a posição de ter que repetir ao outro as perguntas do colonizador. Eu sou branca, e quanto a isso não há opção. Mas quanto a continuar sendo herdeira da violência da tradição colonizadora, acredito que haja escolha possível e que esta passa pelo desejo de cura da ferida colonial.

Retomo então minha experiência. Foi o racismo que me ensinou que sou branca. Fui marcada como branca a fim de que esta marcação funcionasse como signo de superioridade. Mas a mim hoje parece fácil perceber que a necessidade de marcação de superioridade só existe para aquele que se sente inferior, que se sabe fora do lugar de superioridade que almeja. Numa formação social marcada pela violência colonial, sobreviver é, entre tantas outras coisas, escapar do lugar de subalternidade.

Refletir sobre a experiência de ter sido marcada com a cor branca me ajudou a fazer a distinção que estou propondo aqui entre suposição de neutralidade do branco – a “branquitude” que não pretende se assumir como tal – e a admissão de que branco também é uma cor, uma marcação ou, para falar em termos interseccionais, um marcador que, se existe negativamente para a pessoa negra no racismo estrutural da sociedade brasileira, existe positivamente para a pessoa branca.

Com essa diferença, esboço uma hipótese: a maior rejeição à ideia de que todo discurso é situado, e que certos discursos estão autorizados por estarem situados a partir de um lugar de poder, e outros estão desautorizados por estarem situados fora desses lugares, a maior reação vem de quem ainda não vê a sua branquitude por se acreditar “neutra”. Para isso, é preciso negar que branco seja cor. É desse lugar de neutro que intelectuais, mesmos os/as mais respeitados/as, parecem não poder abrir mão. E aí caem na pior armadilha: “sou branco/a mas sou legal” (uma espécie de versão atualizada de “tenho até amigo gay”).

Fui racializada como branca porque fui educada para ser racista, o que me obrigou a assumir a minha cor e a carregar com ela o peso do racismo estrutural brasileiro. Se hoje penso, escrevo, pesquiso e ensino contra o racismo é por não suportar mais o sofrimento de viver num país em que pessoas negras são brutalmente excluídas, violentadas e exterminadas em nome da minha suposta superioridade branca. Esta é a cor da minha pele. Já o meu desejo tem sido destruir o racismo que me impôs uma suposição de superioridade branca na qual não me reconheço.

Carla Rodrigues é professora de Ética no Departamento de Filosofia da UFRJ, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e bolsista de produtividade da Faperj.