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Esquerda e direita dirigem o mesmo trem colonialista, diz quilombola Antônio Bispo (Folha de S.Paulo)

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Autor de ‘A Terra Dá, a Terra Quer’ afirma não ver diferenças entre Lula e Bolsonaro quando o assunto é mineração em terras de quilombos

Marina Lourenço

28 de maio de 2023


Antonio Bispo dos Santos. Foto: Alexia Melo

Colonizar um povo é como adestrar um boi. Ambas ações consistem na remoção da identidade, mudança de território e condenação do modo de vida alheio. Essa é a associação que Antônio Bispo dos Santos, também conhecido como Nêgo Bispo, faz em “A Terra Dá, a Terra Quer”.

Lançado nesta segunda (29), o livro desmancha conceitos como ecologia, desenvolvimento e decolonialidade —a contraposição ao pensamento de perspectiva colonialista e eurocêntrica.

O autor propõe o que chama de contracolonialismo, que seria a recusa de um povo à colonização, o que, segundo ele, é praticado há séculos por africanos, indígenas e quilombolas.

Nascido na comunidade Saco do Curtume, no Piauí, Bispo ganhou notoriedade em movimentos sociais, na década de 1990, quando chegou a se filiar a partidos políticos, que abandonou anos depois. Desde então, se voltou para a defesa dos povos quilombolas.

Nesta entrevista, o autor comenta conceitos do novo livro, a polarização política no país, a relação do presidente Lula (PT) com os quilombos e programas como Minha Casa, Minha Vida.

Em “A Terra Dá, a Terra Quer”, o sr. critica o colonialismo e se opõe à chamada decolonialidade, termo cada vez mais usado em contraposição ao pensamento colonial. Em vez disso, fala em contracolonialismo. Por quê? Só pode ser decolonizado quem foi colonizado. Qualquer pessoa que se sinta colonizada pode lutar para ser um decolonial.

Mas decolonialidade é uma teoria, não trajetória. Nunca existiu um movimento decolonial que tenha atuado de forma resolutiva em prol de um povo. O contracolonialismo é diferente. Os quilombos não foram colonizados.

O povo da academia que se diz progressista e só lê autores europeus, sim, precisa se decolonizar.

O sr. também diz preferir usar ‘colonialismo’ a ‘racismo’. É bom discutir racismo, mas ele é apenas um dos elementos colonialistas. Quando se fala em racismo, habitualmente as pessoas pensam na sociedade eurocristã. O colonialismo vai além disso. É para todas as vidas existentes.

Como combater o colonialismo? Não queremos matar os colonialistas. Por isso, falo ‘contracolonialismo’. É uma fronteira que estamos estabelecendo entre nós e a sociedade eurocristã monoteísta.

[O extinto quilombo dos] Palmares poderia ter destruído o Recife, mas não devemos destruir nada. Nossa proposta é dizer: ‘Vivam do jeito de vocês e viveremos do nosso, mas, se porventura, perceberem que o nosso é bom, nos deixem ensinar’.

Além do contracolonialismo, o sr. destrincha o conceito de cosmofobia, que seria uma desconexão entre a humanidade e a natureza. Se opondo a essa lógica, diz, então, que não é humano, mas sim, quilombola. Em termos práticos, o que quer dizer? O povo eurocristão monoteísta tem medo do próprio Deus, da natureza, do cosmo. É tanto medo que tem dificuldade de se relacionar com rios, terra, vento —daí a palavra ‘cosmofobia’.

Em Gênesis, quando Adão e Eva estavam no caminho do Éden, interagiam com tudo, não precisavam trabalhar, se submeter a uma ordem externa. Mas Deus humaniza eles, cria o terror e diz que a terra será maldita porque comeram o fruto proibido. É a Bíblia que cria os seres humanos —e quem está fora dela é selvagem.

Nós, quilombolas, convivemos em harmonia com as demais vidas. Os quilombos são lugares de relacionamentos. As cidades, de civilizações. Precisamos animalizar a humanidade e desumanizar a animalidade.

Como assim? Só os humanos usam a linguagem escrita. Nós, outros seres, nos comunicamos de outras formas, inclusive sonora. Passamos a vida ouvindo esse povo das escrituras dizer que não sabemos ler. Ora, os humanos não sabem falar.

Ainda nessa linha de escrita versus oralidade, o sr. diz que em comunidades quilombolas as histórias são passadas de boca em boca, sem nenhuma monetização. Por que decidiu se tornar escritor? Não sou escritor. Sou uma pessoa que escreve para estabelecer uma fronteira entre os saberes. Sou um lavrador que também lavra palavras.

Quando a escola escrita chegou à nossa comunidade, no fim dos anos 1960, nosso povo se recusou a participar, mas ao ver que perderia tudo se continuasse assim, colocou as crianças para estudar a linguagem das escrituras. Entrei na escola para isso.

Me tornei um tradutor da comunidade. Não vou negar que sei falar e escrever muito bem. Mas decidi escrever somente três livros [dois foram lançados] porque sou mesmo da oralidade.

Ao traçar uma relação entre favelas e quilombos, o sr. critica programas como o Minha Casa, Minha Vida e o antigo Fome Zero, os classificando como colonialistas. Não há nada neles para elogiar? Nada é apenas bom ou apenas ruim. O problema desses programas é que tiram das pessoas o direito de arquitetar, compor e plantar o que querem. Claro, melhor ter Fome Zero do que deixar morrer de fome. É melhor ter o Minha Casa, Minha Vida do que ficar na rua. Mas não são coisas para festejar. São para escapar.

O Minha Casa, Minha Vida tirou a laje das favelas. As casas são pequenas, não têm quintal. As pessoas ficaram confinadas, sem festa.

No Piauí, o Fome Zero foi lançado em Guaribas [município que, na época, era considerado um dos mais pobres do país]. Nunca houve debate com as pessoas de lá. Falavam que ali era pobre porque não tinha nem restaurante nem hotel, mas gente rica não precisa disso.

O sr. também critica alguns discursos ambientalistas. O que o levou a isso? Tem muito ambientalista que vive nas cidades mas quer consertar a floresta. É engraçado. As cidades estão alagadas, cheias de lixo, mas querem mexer onde não sabem viver.

O livro traz a ideia de que, na prática, não há diferença entre gestão de esquerda e de direita. Nos últimos anos, o Brasil entrou numa crescente polarização política. Como analisa isso? A direita e a esquerda são maquinistas que dirigem o mesmo trem colonialista. Escolher o vagão permite decidir os passageiros com quem você vai viajar. Mas a viagem é a mesma, vai para o mesmo caminho.

É preciso uma mudança estrutural. Cabe a nós, quilombolas e indígenas, extrair tudo o que pudermos deste Estado para criar nossas próprias estruturas.

Lula não fez reforma agrária favorável aos agricultores familiares porque não teve coragem. Fez reforma agrária para o agronegócio. Ele diz que acabou com a fome do povo e fará isso de novo. Ora, o que acabou, acabou. Se voltou é porque não acabou.

E quanto à gestão Bolsonaro? Não tive a oportunidade de extrair tanto dele, mas pude conhecer melhor o Estado e certas pessoas. Foi um governo sem máscaras, literalmente —nem contra Covid nem política.

Também serviu para quebrar alguns intermediários. Tinham setores da esquerda que nunca protagonizavam a própria vida mas queriam mexer na nossa.

Para nós, quilombolas, foi o momento de preparar nossas defesas e refletir. Agora, ninguém trata Lula igual das outras vezes.

Há semelhanças entre Lula e Bolsonaro? Qual a diferença entre Bolsonaro e um governo que autoriza a mineração em território quilombola sem cumprir os protocolos da Convenção 169? Do ponto de vista da mineração, não há diferença. Quem manda são as mineradoras.

O que quero dizer é que, sim, Bolsonaro e Lula são diferentes, mas essas diferenças não são tão favoráveis.

O que Lula fez para o povo quilombola? Criou o quê? Qual é o nosso espaço de poder dentro deste governo? Pergunto porque é dos amigos que a gente deve cobrar o melhor acolhimento.

Apesar de hoje dizer que direita e esquerda caminham juntas para o mesmo destino, o sr. já foi filiado ao PSB e ao PT, considerados de esquerda. O que fez se desvincular desse meio? Atuei em movimento sindical, partido e movimentos sociais por um bom tempo. Ao contrário da minha criação, me deparei com um conhecimento todo escriturado. Tentaram me convencer de que a sociedade era composta por duas classes, a trabalhadora e a patronal. Eu nasci e me criei na roça, numa comunidade quilombola. Como lavrador, nunca fui ou tive patrão.

Também diziam que os quilombos são formados por povos que fugiram da escravidão. Isso é muito pouco. [Na época da escravidão] Você podia fugir e aceitar trabalhar na condição dos colonos, mas não foi o que aconteceu com os quilombolas. Os quilombos continuam resistindo ao sistema como um todo.

Desde então, qual sua relação com a política? A última vez que votei foi em 1996, e em 1998, me desvinculei do movimento sindical. Hoje participo de uma mobilização para estruturamos a nossa comunidade. Essa é a nossa grande luta de defesa.


RAIO-X | ANTÔNIO BISPO DOS SANTOS, 63
É membro da comunidade Saco do Curtume, no Piauí, onde atua em defesa dos povos quilombolas. Seus livros lançados são “Colonização, Quilombos, Modos e Significações” e “A Terra Dá, a Terra Quer”.

Mariana Belmont – Movimentos negro e indígena lançam ‘Declaração de Resistência’ na COP27 (ECOA Uol)

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OPINIÃO

Mariana Belmont – Colunista do UOL

10/11/2022 06h00

COP 27 acontece no Egito. Imagem: Sayed Sheasha/Reuters


Os integrantes dos povos indígenas de Abya Yala e dos povos negros e afrodescendentes em representação dos povos e comunidades e diásporas do Canadá, Estados Unidos, México, Chile, Honduras, Nicarágua, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Uruguai, Brasil, Haiti, Argentina, Guatemala, República Dominicana, Trinidad e Tobago, Panamá, Suriname, Jamaica, Porto Rico, Uganda, Cuba, Venezuela, no marco da rememoração dos 530 anos de resistência dos Povos Indígenas, Negros e Afrodescendentes lançam na COP27 a “Declaração de Resistência anticolonial indígena, negra e afrodescendente“, com uma lista importante de proposições para outros tempos no mundo.

A articulação se apresenta como um movimento anticolonial, antirracista, antixenofóbico, antipatriarcal, antihomofóbico e antilesbotransfóbico.

Como Movimento de Libertação Negra e Indígena, a nossa luta é interseccional, transeccional, antirracista, feminista comunitária, Afrofeminista, mulherista africana, de identidades políticas diversas em comunidade.

Buscamos evidenciar e questionar a inegável relação existente entre colonialismo, capitalismo, patriarcado e racismo. Reivindicando a autonomia de seus corpos e reconhecendo a complementaridade dos que habitam os territórios e a participação das mulheres e dissidências para a defesa da vida, o território e a preservação dos saberes e conhecimentos ancestrais.

Em busca da formação de uma plataforma sustentada em redes comunitárias sólidas, integradas por organizações e coletivos sociais indígenas, negros e afrodescendentes do continente, com o fim de favorecer o acionar coletivo, solidário, coordenado e organizado.

No Brasil organizações como Instituto de Referência Negra Peregum, Uneafro Brasil, Criola, Instituto Perifa Sustentável e Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) assinaram a declaração, reforçando a importância de um diálogo internacional entre os povos.

Entre as proposições estão que o dia 12 de outubro seja declarado como o dia da resistência ao extermínio dos Povos Indígenas, Negros e Afrodescendentes de Abya Yala. Declarando que a luta dos povos é articulada, diversa, continental, inclusiva e plural. Sendo considerados com urgência protagonistas em igualdade de direitos em qualquer processo ou projeto que afete as comunidades e territórios.

Criação de projetos e a implementação de ações diretas, políticas públicas, ações afirmativas e de reparação interculturais e interseccionais que garantam a distribuição justa e equitativa da riqueza, o acesso à saúde, à soberania alimentar, à água potável e de qualidade para que possamos viver em ambientes seguros e dignos.

Direito ao território é direito e eles reivindicam isso. “Todas as terras indígenas e territórios negros devem ser devolvidos aos seus legítimos donos. As terras devem ser devolvidas aos seus respectivos povos. Todas as comunidades negras e afrodescendentes devem ter livre titulação sobre as terras em que habitam. E livre acesso aos seus recursos naturais como praias, selvas, pântanos, bosques andinos, planícies, bacias, rios, glaciares, vales interandinos, pântanos em altura, lagos, pradarias, manguezais, baías, ladeiras, quebradas e terras não-cultivadas as quais não devem ser privatizadas nem exploradas de nenhuma forma”.

E reforçando que não pode existir justiça climática sem justiça racial. Entendendo que a justiça climática reconhece que a mudança climática tem impactos distintos de acordo às condições econômicas, sociais, raciais e de gênero. E que a justiça racial é um eixo fundamental na luta contra as desigualdades produto do sistema colonial, capitalista, extrativista e agroexportador.

Crise climática é crise de classes, diz ator britânico que aponta racismo no debate (Folha de S.Paulo)

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Na peça ‘Can I Live?’, Fehinti Balogun, com rap, animação e poesia, apresenta a colonização e a exploração de países africanos como temas centrais na discussão

Cristiane Fontes

2 de novembro de 2022


Foi em 2017, durante a preparação para a peça “Myth”, uma parábola climática da Royal Shakespeare Company, que o artista Fehinti Balogun acabou se dando conta da gravidade da crise do clima.

“Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história”, lembra o ator e dramaturgo britânico. “E, pela primeira vez, percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes”, completa.

Com isso, veio o choque: “Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada”.

Balogun se juntou ao grupo ativista Extinction Rebellion, participou de diversos protestos e organizou uma palestra sobre o tema. Essa jornada o levou à produção de uma peça teatral que, durante a pandemia, foi transformada em um filme.

O ator britânico Fehinti Balogun, que criou a peça ‘Can I live?’, sobre mudanças climáticas. Fonte: New York Times/Tom Jamieson, 29.out.2021

Intitulada “Can I Live?” (posso viver?), a produção explica as mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra, usando diversas performances musicais.

A mãe de Balogun, imigrante nigeriana, é quem guia a história. Fora da tela, também foi ela quem inspirou a criação do texto, a partir de questionamentos ao filho —que ele gravou secretamente para escutar de novo e pensar a respeito.

“Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?”, ela perguntava.

Mesmo discordando, o filho reconheceu na indignação da mãe um ponto muito importante: a discussão climática ficou elitizada e branca e ainda não foi capaz de incluir os segmentos mais pobres da população.

“Can I Live?”, pelo contrário, se propõe a não só trazer os dilemas pessoais do autor, que se misturam aos problemas mundiais e aos dados científicos, como é didática e criativa ao explicar, por exemplo, o efeito estufa em forma de rap. Criado com a companhia de teatro britânica Complicité, o filme mescla linguagens como animação, poesia e música.

“O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas”, define Balogun.

Depois de uma turnê online, o filme foi exibido em eventos como a COP26 (conferência da ONU sobre mudanças climáticas realizada em 2021 na Escócia) e a London Climate Action Week.

A ideia, diz Balogun, é fazer “Can I Live?”, que ainda não foi lançado no Brasil, chegar a movimentos de base, para estimular conversas sobre a crise climática entre aqueles que não costumam se conectar com o assunto.

Quando perguntado sobre a agenda climática no Reino Unido, o autor é categórico: “Temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria. Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser”.

Quando e por que você se envolveu com a agenda da crise climática?

Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história, depois de outro ano ter sido o ano mais quente da história, depois de o último antes disso ter sido o mais quente… E, pela primeira vez, eu percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes. Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada.

Então comecei a tentar me envolver em diferentes projetos e me juntei ao [grupo ativista] Extinction Rebellion. E comecei a discutir tudo com minha mãe, que perguntava: “Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?”. E eu pensava: “Não, essa é a única coisa importante que estou fazendo”. E nós continuamos discutindo muito isso tudo.

Eu gravei secretamente tudo o que ela me disse, peguei os pontos importantes dela e transformei numa apresentação sobre o clima, porque percebi que meu papel era poder usar meu privilégio de ser um ator e ter essa formação.

Eu não sou de uma família particularmente rica. Cresci sem muito dinheiro, morando em habitação social, e o que eu tenho agora é devido ao meu trabalho como ator, aos meus contatos e a todas essas perspectivas diferentes. Então eu montei essa palestra, que é como um TED Talk, usando as mensagens de voz da minha mãe.

Esse trabalho decolou, uma coisa levou à outra e começamos a trabalhar em uma peça, que depois virou um filme, “Can I Live?”. Foi assim que essa jornada climática de repente tomou conta da minha vida.

Sua mãe é a verdadeira estrela do filme. Quais foram as coisas importantes que ela levantou sobre o assunto?

Muitas. Uma delas é exatamente o que significa resistir quando você é uma minoria, e o que significa para a sua criação. Isso afeta não apenas o seu futuro, mas também a ideia que foi passada a pessoas como minha mãe, minhas tias, meus tios sobre o que é o “bom imigrante”.

Não é algo que ela tenha me dito explicitamente, mas que eu intuí de tudo o que ela estava me dizendo. Você não é capaz de reagir porque tem sorte de ter o que tem, entende? Ela dizia: “Há pessoas que estão esperando para entrar no país. Há pessoas que estão esperando conseguir a cidadania. E você acha que eles vão criticar aquele país que diz que eles não deveriam estar lá?”.

Para o público no Brasil que ainda não teve a chance de assistir ao filme, como você o descreveria?

Basicamente, o filme é uma explicação das mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra. O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas.

Eu quero que as pessoas assistam e vejam a si mesmas no filme todo ou em algumas partes, ou que vejam sua mãe ou sua avó ou seus amigos nas conversas. O filme tinha como objetivo levar as pessoas por essa jornada histórica até onde estamos agora e descobrirem o que podem fazer.

Colocamos o filme para distribuição online durante a pandemia. As pessoas pagavam o que podiam. A ideia era tentar torná-lo o mais acessível possível. Não foi algo como: “Ei, nós fizemos uma obra de arte!”, mas ela é exibida num teatro muito metido onde as pessoas se sentem desconfortáveis e têm dificuldades para acessar.

A ideia foi descentralizar esta obra e distribuí-la para o maior número de pessoas possível, e oferecê-la a movimentos de base, para que pudessem exibi-lo e conversar a partir disso e incluir nessas conversas pessoas que não costumavam se conectar.

A propósito, como envolver nas questões climáticas pessoas que estão lutando para sobreviver?

Acho que a coisa mais importante que aprendi sobre me comunicar com as pessoas é que você precisa ir ao encontro delas. Você não pode chegar em alguém esperando que essa pessoa tenha o seu mesmo nível de entusiasmo ou raiva, ou desgosto, ou desdém, porque todo mundo tem algo acontecendo em suas vidas.

O que temos no sistema é que constantemente nos dizem que temos que consertar algo individualmente, e que é nossa culpa individual. O fato de você estar passando por tanta insegurança alimentar é porque você não trabalhou duro o suficiente, ou porque 20 anos atrás você não economizou isso, ou fez aquilo. E se você tivesse feito todas essas coisas, você estaria bem e a culpa é sua e blá, blá, blá.

Você tem de olhar para essa questão de um ponto de vista estrutural. Estrutural e espiritual. Eu posso despejar todas as minhas ideias sobre estrutura e coisas de ativismo em cima de você, mas, no final das contas, se seu prato está cheio, seu prato está cheio; você já chegou no seu limite. A questão é muito mais profunda, e é muito solitário e difícil saber que você tem muitos problemas que precisa consertar. No final, o que está mesmo no centro disso é ter uma comunidade.

E como você descreveria o debate sobre mudanças climáticas no Reino Unido no momento?

Essa é uma pergunta difícil! Agora no Reino Unido temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria.

Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser, na verdade. Mas, se estivermos falando de pensamentos e sentimentos em relação às mudanças climáticas, as pessoas sabem disso, embora não saibam o que fazer.

Na COP26, no ano passado, você participou de eventos com artistas e ativistas indígenas brasileiros. Como o discurso deles ecoou com você e no Reino Unido?

A COP é um evento decepcionante, via de regra. Não me inspirou nem um pouco. O que foi inspirador foram todos os ativistas que estavam lá e pessoas diferentes de muitos países diferentes, fazendo coisas incríveis e falando sobre tantas coisas. É uma comunidade muito forte.

Mas é muito difícil no Reino Unido. O patriotismo está apenas conectado a um ponto de vista ideológico e imperialista do mundo, que diz: “Eu sou superior a você”. Então por que aprender com aquele ativista brasileiro diferente? Já os indígenas eram o oposto disso. A mensagem deles era: “Estes somos nós! E vamos compartilhar isso com vocês! Vamos proteger isso para as gerações futuras!”.

Na sua visão, como fortalecer o movimento global de justiça climática, considerando o atual contexto político?

Parte do movimento dos direitos civis estava ligado à educação, à educação em massa e para certas comunidades. A ideia não é trabalhar com o medo, mas sim trabalhar através do medo para chegar a soluções.

Então, para fortalecer o movimento, [precisamos de] educação em massa, especificamente em certas zonas; e precisamos que diferentes movimentos de base se unam.

Em termos de mudança na narrativa, quais são as estratégias que você considera mais importantes?

Precisamos mudar a narrativa sobre riqueza e propriedade. Nós realmente precisamos entender que a crise climática é uma crise de classes, e dentro dessa crise de classes, há uma interseccionalidade muito racista.

Simplesmente entender essas coisas eu acho que vai ajudar muito; e é muito difícil, porque dentro do ideal capitalista, [a economia] só funciona se você sentir falta de alguma coisa. Eles só podem vender maquiagem para você se você acreditar que precisa de maquiagem. Eu não estou dizendo que as pessoas não devem usar maquiagem, mas, sim, que você só vai comprar algo se achar que precisa daquilo.

São essas mudanças de narrativas sobre o que achamos que é necessário e o que é, na verdade, necessário.

E precisamos de bondade radical. Radical no sentido de que não somos uma cultura muito indulgente.

O debate político anda muito polarizado, inclusive no Brasil, como você deve saber. Você poderia descrever melhor a ideia de bondade radical?

O que quero dizer com bondade radical não é apenas ser radicalmente gentil com a pessoa com opiniões opostas, mas também ser radicalmente gentil consigo mesmo.

Por que estou tentando fazer com que alguém que, fundamentalmente, me odeia goste de mim? Como isso me ajuda ou ajuda a outra pessoa? No final das contas, independentemente de eles terem dito que gostavam ou não de mim, eles vão embora e eu fico com esse sentimento. A única maneira de lidar com isso é ter uma comunidade atrás de você que esteja disposta a compartilhar isso com você.

Você sabe o que isso significa? Significa se afastar da postura individual de “eu vou consertar o mundo” para algo como “estas são as pessoas que eu preciso para poder fazer isso”.

Eu sempre falo, você tem que fazer uma escolha quando você fala com alguém, especialmente com alguém com uma opinião oposta a você que não tem interesse direto no assunto, como por exemplo, racismo, sexismo, ou mesmo mudanças climáticas.

Quando a pessoa não é afetada emocional, física e praticamente pela coisa e argumenta contra você, você tem que se perguntar: “Eu tenho condições de me envolver nisso hoje? Até onde quero ir? Vou ter alguém cuidando de mim quando a conversa terminar?”. Então a bondade radical não é apenas ter um espaço para a outra pessoa: é para você mesmo.


Raio-X

Fehinti Balogun

Ator, dramaturgo, escritor e pintor britânico de origem nigeriana, nascido em Greenwich, em Londres. Além de “Can I Live?”, participou de peças como “Myth” (mito), “The Importance of Being Earnest” (a importância de ser prudente) e “Whose Planet Are You On?” (você está no planeta de quem?). No cinema, fez trabalhos como “Juliet, Nua e Crua”, “Duna” e “Walden”. Na TV, participou das séries “I May Destroy You” (posso te destruir), “Informer” (informante) e “O Filho Bastardo do Diabo”, cuja primeira temporada estreia no fim de outubro na Netflix no Brasil.