Arquivo da tag: Huni Kuin

Marcelo Leite: Virada Psicodélica – Artigo aponta injustiça psicodélica contra saber indígena (Folha de S.Paulo)

www1.folha.uol.com.br

Marcelo Leite

7 de março de 2022


A cena tem algo de surreal: pesquisador europeu com o corpo tomado por grafismos indígenas tem na cabeça um gorro com dezenas de eletrodos para eletroencefalografia (EEG). Um membro do povo Huni Kuin sopra rapé na narina do branco, que traz nas costas mochila com aparelhos portáteis para registrar suas ondas cerebrais.

A Expedition Neuron aconteceu em abril de 2019, em Santa Rosa do Purus (AC). No programa, uma tentativa de diminuir o fosso entre saberes tradicionais sobre uso da ayahuasca e a consagração do chá pelo chamado renascimento psicodélico para a ciência.

O resultado mais palpável da iniciativa, até aqui, apareceu num controverso texto sobre ética, e não dados, de pesquisa.

O título do artigo no periódico Transcultural Psychiatry prometia: “Superando Injustiças Epistêmicas no Estudo Biomédico da Ayahuasca – No Rumo de Regulamentação Ética e Sustentável”. Desde a publicação, em 6 de janeiro, o texto gerou mais calor que luz –mesmo porque tem sido criticado fora das vistas do público, não às claras.

Os autores Eduardo Ekman Schenberg, do Instituto Phaneros, e Konstantin Gerber, da PUC-SP, questionam a autoridade da ciência com base na dificuldade de empregar placebo em experimentos com psicodélicos, na ênfase dada a aspectos moleculares e no mal avaliado peso do contexto (setting) para a segurança do uso, quesito em que cientistas teriam muito a aprender com indígenas.

Entre os alvos das críticas figuram pesquisas empreendidas na última década pelos grupos de Jaime Hallak na USP de Ribeirão Preto e de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da UFRN, em particular sobre efeito da ayahuasca na depressão. Procurados, cientistas e colaboradores desses grupos não responderam ou preferiram não se pronunciar.

O potencial antidepressivo da dimetiltriptamina (DMT), principal composto psicoativo do chá, está no foco também de pesquisadores de outros países. Mas outras substâncias psicodélicas, como MDMA e psilocibina, estão mais próximas de obter reconhecimento de reguladores como medicamentos psiquiátricos.

Dado o efeito óbvio de substâncias como a ayahuasca na mente e no comportamento da pessoa, argumentam Schenberg e Gerber, o sistema duplo-cego (padrão ouro de ensaios biomédicos) ficaria inviabilizado: tanto o voluntário quanto o experimentador quase sempre sabem se o primeiro tomou um composto ativo ou não. Isso aniquilaria o valor supremo atribuído a estudos desse tipo no campo psicodélico e na biomedicina em geral.

Outro ponto criticado por eles está na descontextualização e no reducionismo de experimentos realizados em hospitais ou laboratórios, com o paciente cercado de aparelhos e submetido a doses fixadas em miligramas por quilo de peso. A precisão é ilusória, afirmam, com base no erro de um artigo que cita concentração de 0,8 mg/ml de DMT e depois fala em 0,08 mg/ml.

A sanitização cultural do setting, por seu lado, faria pouco caso dos elementos contextuais (floresta, cânticos, cosmologia, rapé, danças, xamãs) que para povos como os Huni Kuin são indissociáveis do que a ayahuasca tem a oferecer e ensinar. Ao ignorá-los, cientistas estariam desprezando tudo o que os indígenas sabem sobre uso seguro e coletivo da substância.

Mais ainda, estariam ao mesmo tempo se apropriando e desrespeitando esse conhecimento tradicional. Uma atitude mais ética de pesquisadores implicaria reconhecer essa contribuição, desenvolver protocolos de pesquisa com participação indígena, registrar coautoria em publicações científicas, reconhecer propriedade intelectual e repartir eventuais lucros com tratamentos e patentes.

“A complementaridade entre antropologia, psicanálise e psiquiatria é um dos desafios da etnopsiquiatria”, escrevem Schenberg e Gerber. “A iniciativa de levar ciência biomédica à floresta pode ser criticada como uma tentativa de medicalizar o xamanismo, mas também pode constituir uma possibilidade de diálogo intercultural centrado na inovação e na resolução de ‘redes de problemas’.”

“É particularmente notável que a biomedicina se aventure agora em conceitos como ‘conexão’ e ‘identificação com a natureza’ [nature-relatedness] como efeito de psicodélicos, mais uma vez, portanto, se aproximando de conclusões epistêmicas derivadas de práticas xamânicas. O desafio final seria, assim, entender a relação entre bem-estar da comunidade e ecologia e como isso pode ser traduzido num conceito ocidental de saúde integrada.”

As reações dos poucos a criticar abertamente o texto e suas ideias grandiosas podem ser resumidas num velho dito maldoso da academia: há coisas boas e novas no artigo, mas as coisas boas não são novas e as coisas novas não são boas. Levar EEG para a floresta do Acre, por exemplo, não resolveria todos os problemas.

Schenberg é o elo de ligação entre o artigo na Transcultural Psychiatry e a Expedition Neuron, pois integrou a incursão ao Acre em 2019 e colabora nesse estudo de EEG com o pesquisador Tomas Palenicek, do Instituto Nacional de Saúde Mental da República Checa. Eis um vídeo de apresentação, em inglês:

“Estamos engajados, Konstantin e eu, em projeto inovador com os Huni Kuin e pesquisadores europeus, buscando construir uma parceria epistemicamente justa, há mais de três anos”, respondeu Schenberg quando questionado sobre o cumprimento, pelo estudo com EEG, das exigências éticas apresentadas no artigo.

Na apresentação da Expedition Neuron, ele afirma: “Nessa primeira expedição curta e exploratória [de 2019], confirmamos que há interesse mútuo de cientistas e uma cultura indígena tradicional da Amazônia em explorar conjuntamente a natureza da consciência e como sua cura tradicional funciona, incluindo –pela primeira vez– registros de atividade cerebral num cenário que muitos considerariam demasiado desafiador tecnicamente”.

“Consideramos de supremo valor investigar conjuntamente como os rituais e medicinas dos Huni Kuin afetam a cognição humana, as emoções e os vínculos de grupo e analisar a base neural desses estados alterados de consciência, incluindo possivelmente experiências místicas na floresta.”

Schenberg e seus colaboradores planejam nova expedição aos Huni Kuin para promover registros de EEG múltiplos e simultâneos com até sete indígenas durante cerimônias com ayahuasca. A ideia é testar a “possibilidade muito intrigante” de sincronia entre cérebros:

“Interpretada pelos Huni Kuin e outros povos ameríndios como um tipo de portal para o mundo espiritual, a ayahuasca é conhecida por fortalecer intensa e rapidamente vínculos comunitários e sentimentos de empatia e proximidade com os outros.”

Os propósitos de Schenberg e Gerber não convenceram a antropóloga brasileira Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco (EUA). “Indígenas não parecem ter sido consultados para a produção do texto, não há vozes nativas, não são coautores, e não temos propostas específicas do que seria uma pesquisa verdadeiramente interétnica e intercultural.”

Para a antropóloga, ainda que a Expedition Neuron tenha conseguido autorização para a pesquisa, algo positivo, não configura “epistemologia alternativa à abordagem cientificista e etnocêntrica”. Uma pesquisa interétnica, em sua maneira de ver, implicaria promover uma etnografia que levasse a sério a noção indígena de que plantas são espíritos, têm agência própria, e que o mundo natural também é cultural, tem subjetividade, intencionalidade.

“Todos sabemos que a bebida ayahuasca não é a mesma coisa que ayahuasca freeze dried [liofilizada]; que o contexto importa; que os rituais e coletivos que participam fazem diferença. Coisas iguais ou análogas já haviam sido apontadas pela literatura antropológica, cujas referências foram deixadas de lado pelos autores.”

Labate também discorda de que os estudos com ayahuasca no Brasil negligenciem o reconhecimento de quem chegou antes a ela: “Do ponto de vista global, é justamente uma marca e um diferencial da pesquisa científica brasileira o fato de que houve, sim, diálogo com participantes das religiões ayahuasqueiras. Estes também são sujeitos legítimos de pesquisa, e não apenas os povos originários”.

Schenberg e Palenicek participaram em 2020 de um encontro com outra antropóloga, a franco-colombiana Emilia Sanabria, líder no projeto Encontros de Cura, do Conselho Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ao lado do indígena Leopardo Yawa Bane, o trio debateu o estudo com EEG no painel virtual “Levando o Laboratório até a Ayahuasca”, da Conferência Interdisciplinar sobre Pesquisa Psicodélica (ICPR). Há vídeo disponível, em inglês:

Sanabria, que fala português e conhece os Huni Kuin, chegou a ser convidada por Schenberg para integrar a expedição, mas declinou, por avaliar que não se resolveria a “incomensurabilidade epistemológica” entre o pensamento indígena e o que a biomedicina quer provar. Entende que a discussão proposta na Transcultural Psychiatry é importante, apesar de complexa e não exatamente nova.

Em entrevista ao blog, afirmou que o artigo parece reinventar a roda, ao desconsiderar um longo debate sobre a assimilação de plantas e práticas tradicionais (como a medicina chinesa) pela ciência ocidental: “Não citam a reflexão anterior. É bom que ponham a discussão na mesa, mas há bibliografia de mais de um século”.

A antropóloga declarou ver problema na postura do artigo, ao apresentar-se como salvador dos nativos. “Não tem interlocutor indígena citado como autor”, pondera, corroborando a crítica de Labate, como se os povos originários precisassem ser representados por não índios. “A gente te dá um espacinho aqui no nosso mundo.”

A questão central de uma colaboração respeitosa, para Sanabria, é haver prioridade e utilidade no estudo também para os Huni Kuin, e não só para os cientistas.

Ao apresentar esse questionamento no painel, recebeu respostas genéricas de Schenberg e Palenicek, não direta e concretamente benéficas para os Huni Kuin –por exemplo, que a ciência pode ajudar na rejeição de patentes sobre ayahuasca.

Na visão da antropóloga, “é linda a ideia de levar o laboratório para condições naturalistas”, mas não fica claro como aquela maquinaria toda se enquadraria na lógica indígena. No fundo, trata-se de um argumento simétrico ao brandido pelos autores do artigo contra a pesquisa psicodélica em ambiente hospitalar: num caso se descontextualiza a experiência psicodélica total, socializada; no outro, é a descontextualização tecnológica que viaja e invade a aldeia.

Sanabria vê um dilema quase insolúvel, para povos indígenas, na pactuação de protocolos de pesquisa com a renascida ciência psicodélica. O que em 2014 parecia para muitos uma nova maneira de fazer ciência, com outros referenciais de avaliação e prova, sofreu uma “virada capitalista” desde 2018 e terminou dominado pela lógica bioquímica e de propriedade intelectual.

“Os povos indígenas não podem cair fora porque perdem seus direitos. Mas também não podem entrar [nessa lógica], porque aí perdem sua perspectiva identitária.”

“Molecularizar na floresta ou no laboratório dá no mesmo”, diz Sanabria. “Não vejo como reparação de qualquer injustiça epistêmica. Não vejo diferença radical entre essa pesquisa e o estudo da Fernanda [Palhano-Fontes]”, referindo-se à crítica “agressiva” de Schenberg e Gerber ao teste clínico de ayahuasca para depressão no Instituto do Cérebro da UFRN, extensiva aos trabalhos da USP de Ribeirão Preto.

A dupla destacou, por exemplo, o fato de autores do estudo da UFRN indicarem no artigo de 2019 que 4 dos 29 voluntários no experimento ficaram pelo menos uma semana internados no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal. Lançaram, com isso, a suspeita de que a segurança na administração de ayahuasca tivesse sido inadequadamente tratada.

“Nenhum desses estudos tentou formalmente comparar a segurança no ambiente de laboratório com qualquer um dos contextos culturais em que ayahuasca é comumente usada”, pontificaram Schenberg e Gerber. “Porém, segundo nosso melhor conhecimento, nunca se relatou que 14% das pessoas participantes de um ritual de ayahuasca tenham requerido uma semana de hospitalização.”

O motivo de internação, contudo, foi trivial: pacientes portadores de depressão resistente a medicamentos convencionais, eles já estavam hospitalizados devido à gravidade de seu transtorno mental e permaneceram internados após a intervenção. Ou seja, a internação não teve a ver com terem tomado ayahuasca.

Este blog também questionou Schenberg sobre o possível exagero em pinçar um erro que poderia ser de digitação (0,8 mg/ml ou 0,08 mg/ml), no artigo de 2015 da USP de Ribeirão, como flagrante de imprecisão que poria em dúvida a superioridade epistêmica da biomedicina psicodélica.

“Se dessem mais atenção aos relatos dos voluntários/pacientes, talvez tivessem se percebido do fato”, retorquiu o pesquisador do Instituto Phaneros. “Além da injustiça epistêmica com os indígenas, existe a injustiça epistêmica com os voluntários/pacientes, que também discutimos brevemente no artigo.”

Schenberg tem vários trabalhos publicados que se encaixariam no paradigma biomédico agora em sua mira. Seria seu artigo com Gerber uma autocrítica sobre a atividade pregressa?

“Sempre fui crítico de certas limitações biomédicas e foi somente com muito esforço que consegui fazer meu pós-doc sem, por exemplo, usar um grupo placebo, apesar de a maioria dos colegas insistirem que assim eu deveria fazer, caso contrário ‘não seria científico’…”.

“No fundo, o argumento é circular, usando a biomedicina como critério último para dar respostas à crítica à biomedicina”, contesta Bia Labate. “O texto não resolve o que se propõe a resolver, mas aprofunda o gap [desvão] entre epistemologias originárias e biomédicas ao advogar por novas maneiras de produzir biomedicina a partir de critérios de validação… biomédicos.”

Nisun: A vingança do povo morcego e o que ele pode nos ensinar sobre o novo coronavírus, por Els Lagrou (BVPS)

Els 1

Por Els Lagrou[i]

Os Huni Kuin do Acre e do Leste da floresta amazônica peruana compartilham com muitos outros povos indígenas da região uma filosofia de vida que poderíamos chamar de ecosófica[ii] e que atribui a maior parte das doenças ao fato de comermos animais. As pessoas adoecem porque a caça e os peixes, mas também algumas plantas que consumimos e outros seres que agredimos ou com os quais interagimos, se vingam e mandam seu nisun, dor de cabeça e tonteira que pode resultar em doença e morte.

O xamanismo e o uso de plantas psicotrópicas, como tabaco e cipó, servem para descobrir a ação destes agentes invisíveis e de contra-efetuar, através do canto, do sopro, de perfumes e plantas medicinais, o movimento de captura do espírito da vítima por parte dos duplos dos animais mortos. O universo da floresta é, assim, habitado por uma multiplicidade de espécies que são sujeitos e negociam seu direito ao espaço e à própria vida. Neste universo a cosmopolítica dos humanos consiste em matar somente o necessário e em negociar com os donos das espécies ou com os próprios duplos dos animais. Tem-se a aguda (con)ciência de que para viver é preciso matar e de que toda ação, toda predação, desencadeia uma contra-predação.

Quando a quarentena foi anunciada no Brasil, meu amigo, o líder de canto do cipó, Ibã Sales Huni Kuin, se despediu por telefone: “Vamos nos retirar na floresta, vamos ficar quietos e não vamos deixar mais ninguém entrar, porque tudo isso é nisun”. Nada sabia, ainda, sobre as hipóteses de causa do novo vírus, que apontam de fato para o nisun de outras florestas. E apesar do nome dado aos Huni Kuin pelos seus inimigos ser Kaxinawa, povo morcego, não consomem estes animais porque os consideram seres que possuem yuxin, o poder de transformar a forma. O que pode um vírus, no entanto, Ibãe seus parentes indígenas sabem muito bem. Pois vírus importados, como a influenza e a varíola, causaram, no passado, mais mortes na sua população do que as guerras travadas contra eles na época de invasão de suas terras.

A narrativa científica mais aceita do momento, pelo que conseguimos deduzir da literatura disponível e de livre acesso durante a pandemia, atribui o novo corona à passagem do vírus de uma espécie de morcego (horseshoe bat) que vive nas florestas Chinesas para o ser humano[iii]. A hipótese se baseia no sequenciamento do genoma do vírus do COVID-19 e suas grandes semelhanças com um coronavírus presente nestes morcegos. Outro animal que hospeda um vírus geneticamente muito similar é o pangolim, um tipo de tatu asiático muito apreciado por grande parte da população chinesa como iguaria e remédio. Uma das hipóteses é que este poderia ter sido o hospedeiro intermediário do vírus entre o morcego e o humano[iv]; as últimas pesquisas, no entanto, afirmam que o vírus do morcego é mais próximo do COVID-19 do que aquele encontrado nos pangolins. Ambos os animais são consumidos na China e em outros países asiáticos. Os primeiros casos do novo corona vírus foram detectados em um grande mercado de Wuhan na China, onde se vende animais selváticos vivos, entre os quais morcegos e muitos pangolins, apesar de sua captura e comercialização serem proibidas.

O ‘zoonotic spillover’ de viroses que convivem com espécies selváticas, sem causar-lhes mal, para seres humanos, onde causam assustadoras pandemias, não começou nem terminará com o novo coronavírus. Outras epidemias recentes como a malária, a aids e a febre amarela foram resultado do spillover entre floresta e cidade.. O problema é especialmente interessante para a antropologia em geral e a etnologia em particular, porque nossa disciplina se interessou desde o começo pelas complexas relações entre humanos e animais, Natureza e Cultura, cidade e floresta. Agentes patogênicos, que convivem de forma simbiótica com seus hospedeiros animais, podem representar diferentes graus de perigo para os humanos, dependendo da cultura ou sociedade específica em questão. As regras de dieta e de negociação em torno da caça apontam para um saber acumulado, por parte dos povos da floresta, do potencial patogênico dos animais. Estes possuem seus próprios hábitos e habitats que precisam ser respeitados se quiserem que a caça não se vire contra o caçador.

Els 2

A novidade destas novas epidemias, argumentam epidemiólogos e biólogos, consiste na rapidez com que o vírus viaja e se multiplica no meio humano, por causa da grande aglomeração e circulação de seres da mesma espécie nas cidades e nas regiões transitórias entre as cidades e as florestas. A realidade relacional contemporânea de intensa circulação de pessoas, mercadorias e animais é o cronótopo perfeito para a disseminação desta nova ameaça mundial. Este cronótopo vai acompanhado de uma redução cada vez maior das áreas de floresta onde os hospedeiros dos agentes patogênicos conviviam com os vírus de modo que estes não lhes causavam doenças, nem o transmitiam para os seres humanos.

Em entrevista dada à CNN (20/03/2020), intitulada “the bats are not to blame”, “não são os morcegos os culpados”, Andrew Cunningham, Professor da Zoological Society de Londres, afirma que: “a causa do “zoonotic spillover”, ou o transfer de morcegos ou outras espécies selvagens, é quase sempre o comportamento humano”. O biólogo aponta algumas características interessantes dos morcegos que nos ajudam a entender sua importância e seus perigos para os humanos. Os morcegos são os únicos mamíferos que voam, o que faz com que eles possam cruzar grandes distâncias e disseminar muitos agentes patogênicos. Mas eles também são os polinizadores mais importantes da floresta tropical, e muitas espécies dependem exclusivamente dos morcegos para sobreviver. No mito de origem das plantas cultivadas dos Huni Kuin, foi um quatipuru transformado em homem que ensinou o cultivo das plantas aos humanos. O mesmo quatipuru, no entanto, sabia se transformar também em morcego. Os morcegos, como os humanos, gostam de viver em grandes grupos, o que facilita a disseminação de sementes, pólen e vírus. O voo do morcego requer muita energia, afirma Cunningham, o que produz altas temperaturas no animal, temperaturas que no ser humano significariam febre. É por esta razão que quando passa para o humano, o vírus é tão virulento. Outro elemento interessante é que, como os humanos, os morcegos sentem stress. Quando percebem seu habitat danificado pelo desflorestamento ou quando amontoados vivos em grandes feiras, juntos com outros animais, para serem sacrificados, o aumento do stress pressiona seu sistema imunológico e pode fazer com que um vírus latente se torne manifesto e mais contagioso.

Não é o fato dos humanos comerem caça a causa das epidemias. As epidemias são o resultado do desmatamento e da extinção dos animais que antes eram seus hospedeiros simbióticos. As epidemias são também o resultado de uma relação extrativista das grandes cidades com as florestas. Elas surgem nas franjas das florestas ameaçadas, nos interstícios da fricção interespécie e de lá são rapidamente transportadas para o mundo inteiro através de caminhões, barcos e aviões. E não é  somente a caça cujo stress causa pandemias, outros animais também sofrem e causam doenças. Estes são prisioneiros de outra área intersticial entre a floresta e a cidade, a área rural do grande agronegócio alimentício, notória para o surgimento de novas gripes virulentas que podem virar pandemias. É nas grandes criações industrializadas de galinhas e porcos confinados que surgiram há alguns anos a chamada ‘gripe suína’ e outras que foram um prenúncio do vírus que observamos hoje.

A grande rede que conecta humanos e não humanos é a causa e a solução para o problema. Vivemos, em escala planetária, um problema em comum; sua solução também terá de ser comum. Virá da troca interdisciplinar e internacional de informações, mas virá sobretudo do que podemos aprender de outras tradições de pensamento que não se construíram sobre a separação dualista entre natureza e cultura. A substituição de ontologias relacionais pela oposição entre “sujeito” e “objeto”, resultando numa ontologia dualista, possibilitou a empresa modernista e capitalista e sua invenção de uma máquina de conquista do mundo, capturando em suas engrenagens até as mais resistentes minorias humanas e não humanas, que tentam sobreviver em suas margens.

As ontologias dessas minorias, no entanto, falam uma linguagem que contém conhecimentos vitais para o planeta hoje e que precisamos traduzir, com urgência, para a linguagem da ciência. Assim, na sua videoconferência para o Colóquio “Os mil nomes de Gaia” (2014), Donna Haraway apelou para uma consciência renovada de como todos os seres, incluindo os humanos, são compostos de outros seres e emaranhados numa malha densa de devir-com. Em vez de inter-relacionalidade, estamos lidando com intra-relacionalidade; somos entidades compostas de relações, entrecruzadas por outras agências e habitadas por subjetividades diferentes. Somos múltiplos e divíduos em vez de indivíduos; somos fractais. Somos habitados por bactérias e vírus saudáveis e nocivos que travam batalhas intermináveis. Essas novas descobertas cientificas se aproximam cada vez mais do que as filosofias ameríndias há tempos tentam nos ensinar. “A noção de uma entidade somada ao meio ambiente não pode mais ser pensada […]. Temos o que os biólogos chamam de holobiontes, a coleção de entidades tomadas em conjunto na sua relacionalidade que constroem uma entidade boa o suficiente para sobreviver o dia”[v].

A reação em rede planetária à nova pandemia, que se espalha pelo ar em gotículas invisíveis, transforma nossos corpos em campos de batalha invisíveis onde é, às vezes, a própria autodefesa, a reação excessiva do nosso sistema imunológico aos invasores, que mata as células vitais e acaba destruindo nossos órgãos. Ou seja, quando o sistema está muito estressado ele se auto-consome. Não é o fato de comermos porcos, morcegos, galinhas ou pandolins que causa epidemias mundiais, mas o modo como a civilização mundial, que se alimenta do crescimento sem fim das cidades sobre as florestas, as árvores e seus habitantes, parou de escutar a revolta, não das coisas, mais dos animais, das plantas e de Gaia. Ou como diria Ailton Krenak, as pessoas foram alienadas e arrancadas da terra que é viva e com a qual é preciso dialogar, conviver[vi].

Els 3

__________

[i] Professora Titular de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, docente e pesquisadora no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ).

[ii] Termo usado por Kay Arhem em “Ecosofia Makuna”, 1993, In La Selva Humanizada: Ecologia Alternativa em el Trópico Húmedo Colombiano. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología, pp. 109-126.

[iii] Wallace, Rob; Liebman, Alex; Chaves, Luis Fernando; Wallace, Rodrick, April 1, 2020, “COVID-19 and Circuits of capital”, in Monthly Review, New York.

[iv] Tommy Tsan-Yuk Lam, Marcus Ho-Hin Shum, Hua-Chen Zhu, Yi-Gang Tong, Xue-Bing Ni, Yun-Shi Liao, Wei Wei, William Yiu-Man Cheung, Wen-Juan Li, Lian-Feng Li, Gabriel M. Leung, Edward C. Holmes, Yan-Ling Hu & Yi Guan. 28.03.2020,“Identifying SARS-CoV-2 related corona viruses in Malayan pangolins”, In Nature, www.nature.com.

[v] Donna Haraway, “Tentacular Worldings in the Chthulucene”, 2014. Videoconferência. Disponível em: <https://thethousandnamesofgaia.wordpress.com/&gt;. Acesso em: 01/12/2017.

[vi] Krenak, Ailton. 2019. Idéias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras.

As imagens que ilustram o post são, na ordem:

Ernst Haeckel. Chiroptera, 1904. In: Kunstformen der Natur, plate 67.

Toyohara Chikanobu. Henfuku – Small boys chasing bats in the evening, 1889. Japanese Art Open Database.

Ohara Koson. Flying bats, circa 1930. Artelino Japanese Prints.

Conhecimento indígena é preservado em livro de papel sintético (Fapesp)

Obra descreve 109 espécies de plantas medicinais e seus usos. Pajé da etnia Huni Kuĩ, no Acre, é idealizador do projeto e papel é resultado de pesquisa apoiada pela FAPESP (foto:Pascale/divulgação)

25/08/2014

Por Karina Toledo

Agência FAPESP – Um papel sintético feito de plástico reciclado – resultado de uma pesquisa desenvolvida com apoio da FAPESP – está ajudando a preservar o conhecimento sobre plantas medicinais transmitido oralmente há séculos pelos pajés do povo Huni Kuĩ do rio Jordão, no Acre.

Descrições de 109 espécies usadas na terapêutica indígena, bem como informações sobre a região de ocorrência e as formas de tratamento, foram reunidas no livro Una Isĩ Kayawa, Livro da Cura, produzido pelo Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IJBRJ) e pela Editora Dantes.

A obra teve uma tiragem de 3 mil exemplares em papel comum, cuchê, voltada ao grande público e lançada recentemente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Outros mil exemplares, destinados exclusivamente aos índios, foram feitos com papel sintético, que é impermeável e tem a textura de papel cuchê, com o intuito de aumentar a durabilidade no ambiente úmido da floresta. O lançamento foi realizado com uma grande festa em uma das aldeias dos Huni Kuĩ do rio Jordão.  

O trabalho de pesquisa e organização das informações durou dois anos e meio e foi coordenado pelo botânico Alexandre Quinet, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O grande idealizador do projeto, porém, foi o pajé Agostinho Manduca Mateus Ĩka Muru, que morreu pouco tempo antes de a obra ser concluída.

“O pajé Ĩka Muru era um cientista da floresta, observador das plantas. Há mais de 20 anos ele vinha reunindo esse conhecimento até então oral em seus caderninhos. Buscando informações com os mais antigos e transmitindo para os aprendizes de pajé. Ele tinha o sonho de registrar tudo em um livro impresso, como os brancos fazem, e deixar disponível para as gerações futuras”, contou Quinet.

Também conhecidos pelos nomes de “Kaxinawá” – termo que os índios não gostam – , “gente verdadeira” ou “gente do cipó”, os Huni Kuĩ formam o grupo indígena mais numeroso do Acre. Sua presença vai até parte do Peru. No Brasil, somam mais de 7 mil indivíduos, divididos em 12 diferentes terras. O “livro da cura” retrata a terapêutica praticada nas 33 aldeias de uma dessas terras indígenas que se estende pelo rio Jordão.

Além das informações sobre as plantas, a obra apresenta, por meio de relatos e desenhos, um pouco da cultura do povo Huni Kuĩ, como seus hábitos alimentares, suas músicas e suas concepções sobre doença e espiritualidade. Todo o conteúdo está escrito em “hatxa kuĩ” – língua falada nas aldeias do rio Jordão – e traduzido para o português.

De acordo com Quinet, foram feitas cinco viagens à região acreana para a realização da pesquisa, além de quatro períodos de residência de tradutores Huni Kuĩ no Rio de Janeiro.

“Realizamos uma oficina que durou 15 dias e reuniu os 22 pajés das aldeias do rio Jordão. Os capítulos do livro são, na verdade, transcrições literais dos temas abordados por eles, organizados dentro da sistemática indígena. Apenas sofreram revisões para facilitar a compreensão”, contou Quinet.

Das 351 espécies elencadas pelos pajés como medicinais, os pesquisadores coletaram 196 amostras – resultando na seleção das 109 plantas que integram o livro. O material botânico foi identificado de acordo com as técnicas taxonômicas e depositado no herbário do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

A partir do nome científico das espécies, os pesquisadores também levantaram na literatura científica, quando possível, o uso feito por outros povos do mundo. O trabalho contou com a colaboração de 21 taxonomistas de instituições brasileiras e internacionais.

“O objetivo inicial do pajé Ĩka Muru era criar um material de ensino para aprendizes de pajé, visando a facilitar a localização das plantas nos jardins medicinais. Mas o livro também tem o objetivo de difundir a cultura da tribo e a importância de preservar a floresta de forma ampla. Buscaram o Jardim Botânico para que esse conhecimento pudesse ser universalizado dentro de bases científicas”, disse Quinet.

Vitopaper

Para representar o conteúdo escrito em “hatxa kuĩ”, a editora Anna Dantes criou uma fonte tipográfica especial inspirada nas letras manuscritas nos cadernos indígenas. Também foi dela a ideia de produzir uma edição especial em papel sintético.

“Logo na primeira reunião feita com os pajés na floresta eu pude observar que os livros enviados para os povos indígenas sofrem muitos danos por causa da umidade e tornam-se muito perecíveis. As páginas vão entortando e grudando umas nas outras. Também são danificadas pela presença de pequenos animais, como cupins. Era um projeto muito ambicioso, que demandaria um grande esforço, e não poderíamos criar um produto que desapareceria em pouco tempo”, disse Dantes.

Dantes contou que foi a primeira vez que trabalhou com o Vitopaper, material produzido pela empresa Vitopel e originalmente desenvolvido por Sati Manrich, pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

“Quando iniciamos o projeto, em 2003, nossa ideia era encontrar uma solução comum a dois grandes problemas: derrubada de árvores para a produção de celulose e a dificuldade de dar um destino adequado ao grande volume de lixo plástico produzido nos centros urbanos”, contou Manrich.

No processo desenvolvido por ela na universidade, o plástico oriundo de embalagens de alimentos, produtos de limpeza ou garrafas de água é higienizado e moído. Recebe, então, a adição de partículas minerais para a obtenção de propriedades ópticas – como brilho, brancura, contraste, dispersão e absorção de luz – e resistência mecânica ao rasgamento, tração e dobras.

A mistura é colocada em uma máquina extrusora a altas temperaturas, onde amolece e se funde. No final, o material transforma-se em uma folha grande fina, semelhante a um papel fabricado com celulose, que é enrolada e cortada de acordo com a aplicação.

Segundo a Vitopel, para cada tonelada de Vitopaper produzido são retiradas das ruas e lixões 750 quilos de resíduos plásticos. Além disso, segundo Manrich, cerca de 30 árvores deixam de ser derrubadas.

“Gostaria que esse exemplo fosse adotado não apenas para imortalizar o conhecimento dos índios como também na produção de livros didáticos, pois eles teriam uma durabilidade muito maior”, afirmou Manrich.

Una Isĩ Kayawa, Livro da Cura
Organizadores: Agostinho Manduca Mateus Ĩka Muru e Alexandre Quinet
Lançamento: 2014
Preço: R$ 120,00
Páginas: 260

Mais informações: www.facebook.com/UnaIsiKayawa?fref=ts.

‘Livro da cura’ reúne conhecimento sobre plantas medicinais da tribo Huni Kuin, do Acre (O Globo)

Parque Lage, no Rio, recebe este fim de semana evento para divulgar a obra

POR FLÁVIA MILHORANCE

Chegada. Canto e prece para agradecer a vinda ao Rio e pedir proteção dos espíritos na oca montada no Parque Lage Foto: Agência O Globo
Chegada. Canto e prece para agradecer a vinda ao Rio e pedir proteção dos espíritos na oca montada no Parque Lage – Agência O Globo

RIO – Na entrada da oca de dez metros de altura feita de madeira e palha, uma placa tem os dizeres hanlishli kayanai. É um “espaço de cura” esse lugar erguido em pleno Parque Lage, no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio, para abrigar uma série de eventos que começa hoje e gira em torno do lançamento de “Una Isi Kayawa — Livro da cura” (Dantes Editora), uma publicação que apresenta informações detalhadas sobre o poder medicinal de plantas usadas há gerações pelo povo indígena Huni Kuin, do Acre.

São 32 tribos com cerca de 7.500 pessoas da etnia em torno do rio Jordão. Ontem, chegaram alguns de seus representantes e integrantes do projeto. Com rostos pintados, colares de miçangas e trajes de linhas coloridas, eles se reuniram para um canto de chegada. De mãos dadas, o pajé José Matus Itsairu puxava um rito, seguido pelos demais.

— É um canto para agradecer pela nossa vinda, além de chamar as forças dos espíritos para proteger esse lugar — explicou.

Itsairu é filho do pajé Agostinho Ïka Muru, o idealizador do projeto, que morreu em 2011 ainda durante a fase de pesquisa. Ele tinha cadernos de anotações cheios de desenhos de plantas, e seu sonho, conta Itsairu, era sistematizar e difundir o conhecimento ancestral não só para seus pares, mas abri-lo à sociedade.

— Agostinho era um cientista da floresta. Ele vinha há mais de 30 anos registrando informações e tinha medo de que o saber fosse perdido — comentou o taxonomista Alexandre Quinet, que se incumbiu da difícil tarefa de fazer a ponte entre o conhecimento indígena oral e a ciência tradicional. — São lógicas diferentes, por isso o que fizemos foram transcrições literais das palestras gravadas. Até porque o livro também é para eles.

Pintura. O casal Maria e Adelino Kaxinawá se prepara para o início dos eventos. Eles estão pela primeira vez no Rio e aproveitaram para conhecer o mar, – Agência O Globo

Não à toa, os primeiros mil exemplares foram produzidos com papel feito de garrafas PET para resistir à umidade das florestas. Foram necessárias várias viagens e oficinas, além de registros fotográficos e audiovisuais. Das 351 amostras dos cadernos do pajé, 109 estão descritas no livro, com informações catalogadas por taxonomistas do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico.

REGISTRO DA TRADIÇÃO MILENAR

Há um mês, a presidente Dilma Rousseff encaminhou ao Congresso um anteprojeto de lei obrigando empresas interessadas nos conhecimentos de povos indígenas a obter a autorização deles. Esse livro, diz Quinet, dá poder às etnias e registra oficialmente sua sabedoria.

A programação intensa se estende de hoje ao dia 27 e inclui conversas, cantos, exposição fotográfica e exibição de vídeos de Zezinho Yube, ativista indígena:

— Eles contam a história do nosso povo, que vivia em malocas, teve contato com seringueiros no início do século XX, começou a trabalhar com isso e, depois, recuperou seu território e está revitalizando sua cultura.

Até o final da estada, o grupo aproveitará para conhecer o Rio. A primeira atividade do casal Adelino e Maria Kaxinawá (outro nome dado à tribo) foi ver o mar pela primeira vez:

— Era exatamente o que imaginava: o som, o movimento. Ficamos gratos com a experiência.

Read more: http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/livro-da-cura-reune-conhecimento-sobre-plantas-medicinais-da-tribo-huni-kuin-do-acre-13294753#ixzz37ql7zqpF

VEJA TAMBÉM

Jardim Botânico do Rio lança livro de plantas medicinais em tribo no Acre (EFE)

sáb, 17 de mai de 2014

Janaína Quinet.

Rio de Janeiro, 17 mai (EFE).- O Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IJBRJ) e a Editora Dantes lançaram nesta semana o livro “Una Isi Kayawa, Livro da Cura”, que documenta o conhecimento medicinal do povo Huni Kuin do Rio Jordão, no Acre.

O trabalho que durou cerca de dois anos e meio foi realizado através de pesquisas e oficinas com os pajés das 33 aldeias das três terras indígenas Kaxinawá, que, que se estendem pelo Rio Jordão.

Comandado pelo pesquisador do JBRJ, Alexandre Quinet, e com o apoio do Coordenador do Centro Nacional da Conservação da Flora Brasileira do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico, Gustavo Martinelli, o livro conta com 109 espécies de plantas com a descrição de seus usos medicinais em português e em “hatxa kuin”, língua falada na tribo.

A identificação do material botânico foi feita com a colaboração de 21 taxonomistas de instituições brasileiras e internacionais. A obra apresenta, além do conhecimento científico das plantas, a cultura do povo Huni Kuin por meio de relatos e desenhos, desde seus hábitos alimentares e artesanato como também as suas concepções espirituais.

Por conta do lançamento, foi organizada na Aldeia São Joaquim uma grande festa, reunindo a maior parte dos pajés das 33 aldeias, que realizaram seus rituais com a “nixi pae” (ayhausca) e rapé de tabaco. Todos vestiram suas roupas tradicionais, enfeitaram-se com seus cocares e, com urucum e jenipapo, desenharam em seus corpos os “kenes”, representações gráficas de conceitos sagrados.

Durante a entrega dos livros aos pajés de cada aldeia, Quinet declarou que o livro “é um registro fiel do que foi dito pelos pajés.

“Esse foi um processo todo participativo. Nós fomos apenas os costureiros. Essas palavras são de vocês, vocês são os autores e protagonistas deste livro feito por vocês e para vocês”, disse.

Já Martinelli afirmou que o acolhimento que o povo lhe proporcionou foi o melhor que ele recebeu em todas as suas viagens.

“Desde a primeira vez que eu vim aqui, nunca tinha me sentido tão bem acolhido. As pessoas estavam aqui me saudando, e nunca vou esquecer esse momento. Por isso eu quis retribuir, colaborando ao máximo para concretização desse projeto”, explicou.

Anna Dantes, que editou o livro acompanhando sua realização desde as oficinas, coordenando a tradução dos textos em “hatxa kuin” e selecionando com eles os desenhos, exaltou a iniciativa.

“Trabalho com a edição de livros há mais de 20 anos, para mim isso é pegar um sonho e fazer com que ele alcance outras pessoas. O livro vai durar mais tempo que a gente, o livro fica na história”, argumentou.

Ela ainda explicou que, para apresentar um conteúdo tão rico, foi criada uma fonte tipográfica a partir das letras manuscritas em cadernos, placas dos parques e quadros negros.

A fonte foi usada para a escrita do “hatxa kuin” e para todas as informações de autoria Huni Kuin no livro. Além disso, o papel utilizado na impressão é resistente e pode ser molhado, já que é feito de garrafas de plástico recicladas. O objetivo é que ele possa resistir às condições úmidas e permeáveis da floresta.

A realização deste livro é a concretização do sonho do pajé Agostinho Manduca Mateus Inka Muru.

Durante 20 anos, ele realizou a missão de reunir seu povo que estava disperso, de resgatar sua cultura, com seus cânticos, rituais, pinturas, tecelagem, desenhos, alimentos, histórias e lendas. Ele desejava perpetuar todo esse conhecimento em um livro, “como os brancos”, dizia ele, para que os mais jovens não esquecessem e pudessem passar adiante as tradições e a cultura Huni Kuin.

Dias após a realização da última oficina, tendo encaminhado sua missão de transmissão de conhecimento, enquanto terminava suas recomendações para o livro, o Pajé Ika Muru morreu nos braços de seus filhos. EFE