Arquivo da tag: Perspectivismo

A notável atualidade do Animismo (Outras Palavras)

Ele foi visto pela velha antropologia como “forma mais primitiva” de religião. Mas, surpresa: sugere respostas a questões cruciais de hoje: o divórcio entre cultura e natureza e a tendência da ciência a tratar como objeto tudo o que não é “humano”

Publicado 02/09/2021 às 17:46 – Atualizado 02/09/2021 às 18:00

Por Renato Sztutman, na Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras

Muito se tem falado hoje em dia sobre o animismo. E mais, muito se tem falado sobre uma necessidade de retomar o animismo – uma forma de responder ao projeto racionalista da modernidade, que transformou o ambiente em algo inerte, opaco, sinônimo de recurso, mercadoria. Em tempos de pandemia, constatamos que algo muito importante se perdeu na relação entre os sujeitos humanos e o mundo que eles habitam, e isso estaria na origem da profunda crise que vivemos.

Animismo é, em princípio, um conceito antropológico, proposto por Edward Tylor, em Primitive Culture (1871), para se referir à forma mais “primitiva” de religião, aquela que atribui “alma” a todos os habitantes do cosmos e que precederia o politeísmo e o monoteísmo. O termo “alma” provém do latim anima – sopro, princípio vital. Seria a causa mesma da vida, bem como algo capaz de se desprender do corpo, viajar para outros planos e tempos. O raciocínio evolucionista de autores como Tylor foi refutado por diferentes correntes da antropologia ao longo do século 20, embora possamos dizer que ainda seja visto entranhado no senso comum da modernidade. A ideia de uma religião embrionária, fundada em crenças desprovidas de lógica, perdeu lugar no discurso dos antropólogos, que passaram a buscar racionalidades por trás de diferentes práticas mágico-religiosas.

Uma reabilitação importante do conceito antropológico de animismo aparece com Philippe Descola, em sua monografia “La nature domestique” (1986), sobre os Achuar da Amazônia equatoriana. Descola demonstrou que, quando os Achuar dizem que animais e plantas têm wakan (“alma” ou, mais precisamente, intencionalidade, faculdade de comunicação ou inteligência), isso não deve ser interpretado de maneira metafórica ou como simbolismo. Isso quer dizer que o modo de os Achuar descreverem o mundo é diverso do modo como o fazem os naturalistas (baseados nos ditames da Ciência moderna), por não pressuporem uma linha intransponível entre o que costumamos chamar Natureza e Cultura. O animismo não seria mera crença, representação simbólica ou forma primitiva de religião, mas, antes de tudo, uma ontologia, modo de descrever tudo o que existe, associada a práticas. Os Achuar engajam-se em relações efetivas com outras espécies, o que faz com que, por exemplo, mulheres sejam tidas como mães das plantas que cultivam, e homens como cunhados dos animais de caça.

Para Descola, a ontologia naturalista não pode ser tomada como único modo de descrever o mundo, como fonte última de verdade. Outros três regimes ontológicos deveriam ser considerados de maneira simétrica, entre eles o animismo. Esse ponto foi desenvolvido de maneira exaustiva em Par-delà nature et culture (2005), no qual o autor se lança em uma aventura comparatista cruzando etnografias de todo o globo. O animismo inverte o quadro do naturalismo: se neste último caso a identificação entre humanos e não humanos passa pelo plano da fisicalidade (o que chamamos corpo, organismo ou biologia), no animismo essa mesma identificação se dá no plano da interioridade (o que chamamos alma, espírito ou subjetividade). Para os naturalistas, a alma seria privilégio da espécie humana, já para os animistas é uma mesma “alma humana” que se distribui entre todos os seres do cosmos.

A ideia de perspectivismo, que autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima atribuem a cosmologias ameríndias, estende e transforma a de animismo. O perspectivismo seria, grosso modo, uma teoria ou metafísica indígena que afirma que (idealmente) diferentes espécies se têm como humanas, mas têm as demais como não humanas. Tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas todos não podem ser sujeitos ao mesmo tempo, o que implica uma disputa. Diz-se, por exemplo, que onças veem-se como humanas e veem humanos como presas. O que os humanos veem como sangue é, para elas, cerveja de mandioca, bebida de festa. Onças e outros animais (mas também plantas, astros, fenômenos meteorológicos) são, em suma, humanos “para si mesmos”. Um xamã ameríndio seria capaz de mudar de perspectiva, de se colocar no lugar de outrem e ver como ele o vê, portanto de compreender que a condição humana é partilhada por outras criaturas.

Como insiste Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem (2002), a perspectiva está nos corpos, conjuntos de afecções mais do que organismos. A mudança de perspectiva seria, assim, uma metamorfose somática e se ancoraria na ideia de um fundo comum de humanidade, numa potencialidade anímica distribuída horizontalmente no cosmos. Se o perspectivismo é o avesso do antropocentrismo, ele não se separa de certo antropomorfismo, fazendo com que prerrogativas humanas deixem de ser exclusividade da espécie humana, assumindo formas as mais diversas.

O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2010), traz exemplos luminosos desses animismos e perspectivismos amazônicos. Toda a narrativa de Kopenawa está baseada em sua formação como xamã yanomami, que se define pelo trato com os espíritos xapiripë, seres antropomórficos que nada mais são que “almas” ou “imagens” (tradução que Albert prefere dar para o termo utupë) dos “ancestrais animais” (yaroripë). Segundo a mitologia yanomami, os animais eram humanos em tempos primordiais, mas se metamorfosearam em seus corpos atuais. O que uniria humanos e animais seria justamente utupë, e é como utupë que seus ancestrais aparecem aos xamãs. Quando os xamãs yanomami inalam a yãkoana (pó psicoativo), seus olhos “morrem” e – mudando de perspectiva – eles acessam a realidade invisível dos xapiripë, que se apresentam em uma grande festa, dançando e cantando, adornados e brilhosos. O xamanismo yanomami – apoiando-se em experiências de transe e sonho – é um modo de conhecer e descrever o mundo. É nesse sentido que Kopenawa diz dos brancos, “povo da mercadoria”, que eles não conhecem a terra-floresta (urihi), pois não sabem ver. Onde eles identificam uma natureza inerte, os Yanomami apreendem um emaranhado de relações. O conhecimento dessa realidade oculta é o que permitiria a esses xamãs impedir a queda do céu, catalisada pela ação destrutiva dos brancos. E assim, insiste Kopenawa, esse conhecimento passa a dizer respeito não apenas aos Yanomami, mas a todos os habitantes do planeta.

Embora distintas, as propostas de Descola e de Ingold buscam na experiência animista um contraponto às visões naturalistas e racionalistas, que impõem uma barreira entre o sujeito (humano) e o mundo. Como propõe Viveiros de Castro, essa crítica consiste na “descolonização do pensamento”, pondo em xeque o excepcionalismo humano e a pretensão de uma ontologia exclusiva detida pelos modernos. Contraponto e descolonização que não desembocam de modo algum na negação das ciências modernas, mas que exigem imaginar que é possível outra ciência ou que é possível reencontrar o animismo nas ciências. Tal tem sido o esforço de autores como Bruno Latour e Isabelle Stengers, expoentes mais expressivos dos science studies: mostrar que a ciência em ação desmente o discurso oficial, para o qual conhecer é desanimar (dessubjetivar) o mundo, reduzi-lo a seu caráter imutável, objetivo.

No livro Sobre o culto moderno dos deuses “fatiches” (1996), Latour aproxima a ideia de fetiche nas religiões africanas à ideia de fato nas ciências modernas. Um fetiche é um objeto de culto (ou mesmo uma divindade) feito por humanos e que, ao mesmo tempo, age sobre eles. Com seu trabalho etnográfico em laboratórios, Latour sugeriu que os fatos científicos não são meramente “dados”, mas dependem de interações e articulações em rede. Num laboratório, moléculas e células não seriam simplesmente objetos, mas actantes imprevisíveis, constantemente interrogados pelo pesquisador. Em seu pioneiro Jamais fomos modernos (1991), Latour assume que fatos científicos são em certo sentido feitos, e só serão aceitos como fatos quando submetidos à prova das controvérsias, isto é, quando conseguirem ser estabilizados como verdades.

Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na história das ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas. Segundo ela, as ciências modernas se estabelecem a partir da desqualificação de outras práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela acompanha, por exemplo, como a química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da hipnose. Em suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. E isso, segundo Stengers, não pode ser dissociado do lastro entre a história das ciências e a do capitalismo. Em La sorcellerie capitaliste (A feitiçaria do capitalismo, 2005), no diálogo com a ativista neopagã Starhawk, Stengers e Philippe Pignarre lembram que o advento da ciência moderna e do capitalismo nos séculos 17 e 18 não se separa da perseguição às práticas de bruxaria lideradas por mulheres. Se o capitalismo, ancorado na propriedade privada e no patriarcado, emergia com a política dos cercamentos (expulsão dos camponeses das terras comuns), a revolução científica se fazia às custas da destruição de práticas mágicas. Stengers e Pignarre encontram no ativismo de Starhawk e de seu grupo Reclaim, que despontou na Califórnia no final dos anos 1980, um exemplo de resistência anticapitalista. Para Starhawk, resistir ao capitalismo é justamente retomar (reclaim) práticas – no caso, a tradição wicca, de origem europeia – que foram sacrificadas para que ele florescesse.

Retomar a magia, retomar o animismo seria, para Stengers, uma forma de existência e de resistência. Como escreveu em Cosmopolíticas (1997), quando falamos de práticas desqualificadas pelas ciências modernas, não deveríamos apenas incorrer em um ato de tolerância. Não se trata de considerar a magia uma crença ou “cultura”, como fez-se na antropologia da época de Tylor e até pouco tempo atrás. Ir além da “maldição da tolerância” é levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida ou uma árvore pensa. Stengers não está interessada no animismo como “outra” ontologia: isso o tornaria inteiramente exterior à experiência moderna. Ela tampouco se interessa em tomar o animismo como verdade única, nova ontologia que viria desbancar as demais. Mais importante seria experimentá-lo, seria fazê-lo funcionar no mundo moderno.

Que outra ciência seria capaz de retomar o animismo hoje? Eis uma questão propriamente stengersiana. Hoje vivemos mundialmente uma crise sanitária em proporções jamais vistas, que não pode ser dissociada da devastação ambiental e do compromisso estabelecido entre as ciências e o mercado. A outra ciência, diriam Latour e Stengers, seria a do sistema terra e do clima, que tem como marco a teoria de Gaia, elaborada por James Lovelock e Lynn Margulis nos anos 1970. Gaia é para esses cientistas a Terra como um organismo senciente, a Terra como resultante de um emaranhado de relações entre seres vivos e não vivos. Poderíamos dizer que Gaia é um conceito propriamente animista que irrompe no seio das ciências modernas, causando desconfortos e ceticismos. O que Stengers chama de “intrusão de Gaia”, em sua obra No tempo das catástrofes (2009), é uma reação ou resposta do planeta aos efeitos destruidores do capitalismo, é a ocorrência cada vez mais frequente de catástrofes ambientais e o alerta para um eventual colapso do globo. Mas é também, ou sobretudo, um chamado para a conexão entre práticas não hegemônicas – científicas, artísticas, políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e imaginar novos mundos.

O chamado de Stengers nos obriga a pensar a urgência de uma conexão efetiva entre as ciências modernas e as ciências indígenas, uma conexão que retoma o animismo, reconhecendo nele um modo de engajar humanos ao mundo, contribuindo assim para evitar ou adiar a destruição do planeta. Como escreve Ailton Krenak, profeta de nosso tempo, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”. Em outras palavras, quando desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um poder mortífero. Retomar o animismo surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir.

Conceito de tecnologia deve ser pensado à luz da diversidade, diz filósofo chinês (Folha de S.Paulo)

www1.folha.uol.com.br

Ronaldo Lemos, 31 de janeiro de 2021


[resumo] Um dos mais originais pensadores contemporâneos, o chinês Yuk Hui refuta a ideia ocidental de que a tecnologia é um fenômeno único e universal guiado apenas pela racionalidade. Em entrevista, ele comenta o conceito de tecnodiversidade, tema de livro publicado agora no Brasil, no qual propõe uma visão mais plural do tema, encarando a tecnologia como resultante de conhecimentos e contextos locais variados, o que pode contribuir para formas de pensar que levem à superação de impasses políticos, sociais e ecológicos atuais.

O chinês Yuk Hui tornou-se um dos pensadores centrais para entender o mundo contemporâneo. A originalidade da sua obra consiste precisamente em inaugurar um olhar novo sobre a questão da tecnologia.

Enquanto nós, no Ocidente, nos encantamos com o poder das próprias plataformas tecnológicas que criamos, enxergando-as a partir de ideias reducionistas, como o conceito de singularidade (grosso modo descrito como o momento em que as máquinas adquirem inteligência), Yuk Hui foi para um outro lugar.

Abraçou o conceito da tecnodiversidade, no qual destrói a ideia da tecnologia como um fenômeno universal. Na sua visão, a forma como lidamos com ela é limitante e obscurece nossa relação com o “cosmos” e suas infinitas possibilidades.

Nesta entrevista, Yuk Hui comenta seu primeiro livro publicado no Brasil. Intitulado “Tecnodiversidade”, resulta de uma cuidadosa compilação de textos do pensador realizada pela editora Ubu, em contato diretamente com o autor.

A originalidade da sua obra confunde-se com a sua história pessoal. Nascido na China, formou-se em engenharia da computação em Hong Kong. Depois rumou para Londres, onde estudou no prestigioso Goldsmiths College. A partir daí, circulou por várias instituições europeias, incluindo o Instituto de Inovação do Centro Pompidou, em Paris, e as universidades Leuphana, em Luneburgo, e Bauhaus, em Weimar, ambas na Alemanha.

Voltou então para a China, onde passou a editar a coleção de filosofia da mídia e tecnologia da Academia de Ciências Sociais, em Xangai, e a dar aulas na Universidade de Hong Kong.

Em 2019 esteve no Brasil para conferências na UFPB, na UFRJ e no ITS Rio. Com isso, Hui tece um diálogo entre o pensamento oriental e o ocidental para enfrentar a principal charada dos nossos tempos: o que fazer com a tecnologia?

De Hong Kong, Hui concedeu a entrevista a seguir via aplicativo de chamada pela internet.

Você ocupa uma posição única como pensador. Nasceu na China, fala mandarim, cantonês, teochew, inglês, francês e alemão, trabalhou em instituições renomadas no Ocidente e no Oriente. Vou começar te perguntando se é mais fácil filosofar em chinês ou alemão? [Risos]. De fato, a filosofia é sobre articulação e elaboração de conceitos cujas possibilidades estão na própria linguagem. Não dá para pensar sem a linguagem e é por isso que, para os gregos, a ideia de logos também significa a capacidade de linguagem.

A língua alemã, assim como o grego antigo, tem a vantagem de permitir a articulação precisa de significados. É por isso que Martin Heidegger disse certa vez que essas duas línguas são as línguas da filosofia.

Já o chinês é uma língua baseada em pictogramas, consistindo em uma forma de pensar conduzida por imagens. No entanto, isso não significa que o chinês seja uma língua imprecisa. Nas línguas europeias a noção de tempo é expressa por meio de tempos verbais. Já no Chinês, o tempo não é expresso em verbos, mas em advérbios.

Curiosamente, é no japonês onde podemos encontrar uma combinação interessante de pictogramas (“kanji”) e a conjugação dos verbos. Nosso cérebro é moldado de acordo com a nossa experiência de aprender uma língua, que sintetiza modos diferentes de pensar.

Então, no final, não sei mais em que língua estou pensando. Como nesta entrevista em que estamos nos comunicando em inglês, mas não é realmente inglês que estamos “falando”.

Como o Ocidente e o Oriente percebem a ideia de tecnologia? A tecnologia é um conceito universal? Primeiro, acho que é importante esclarecer o termo universal. No pensamento tradicional, o universal se opõe ao particular, em uma dualidade entre isto ou aquilo. Quando entendemos o universal dessa forma, a afirmação “a tecnologia é um universal” torna-se problemática.

Ou ainda, acreditamos que o progresso da humanidade é definido por uma racionalidade universal, que se concretiza no tempo. No entanto, esse conceito de tecnologia é apenas um produto histórico da modernidade ocidental.

De fato, entre o conceito grego de “technē” e a tecnologia moderna encontra-se uma ruptura epistemológica e metodológica. Não há conceito singular de tecnologia, nem epistemologicamente nem ontologicamente. Podemos no máximo dizer que o conceito de tecnologia foi universalizado através da história da colonização e da globalização.

Arnold Toynbee certa vez perguntou: “Por que o extremo oriente fechou suas portas para os europeus no século 16, mas abriu essas portas para eles no século 19?”. Sua análise é que, no século 16, os europeus queriam exportar tanto a sua tecnologia quanto a sua religião para o Oriente. Já no século 19, sabendo que a religião pode ser um obstáculo, os europeus exportaram somente a tecnologia.

Isso decorre de um modo de pensar em que a tecnologia seria somente um reles instrumento, que poderia ser controlado com um modo de pensar próprio. Os japoneses chamaram essa ideia de “wakon yōsai” (“alma japonesa, conhecimento ocidental”). Os chineses chamaram de “zhōng ti xī yòng” (“adotar o conhecimento ocidental para seu uso prático, mantendo os valores e usos chineses”).

No entanto, olhando retrospectivamente, essa dualidade provou-se insustentável. Nós ainda não entendemos a tecnologia e, por causa disso, ainda não somos capazes de superar a modernidade.

Sua obra usa muitos conceitos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, como o perspectivismo ameríndio, para construir um entendimento maior sobre a tecnologia. Como o perspectivismo e Viveiros de Castro chegaram ao seu trabalho?Eu admiro o trabalho do professor Viveiros de Castro e o que ele chamou de multinaturalismo é muito inspirador. Ele e seus colegas, como Philippe Descola, têm tentando mostrar que a natureza não é um conceito universal.

Provavelmente, posso dizer que o que eu estava tentando fazer com o conceito de tecnologia é um eco da sua tentativa de longo prazo de articular um pluralismo ontológico. Meu sentimento é que, por causa da orientação e de conflitos de certas escolas da antropologia (por exemplo, entre Claude Lévi-Strauss e André Leroi-Gourhan), a questão da tecnologia não alcançou a clareza que ela merece.

Por isso, o pensamento sobre a natureza de alguma forma deixou esse seu outro aspecto subanalisado. Esse é um assunto que queria discutir com Viveiros de Castro há alguns anos. A novidade é que agora temos toda uma correspondência que trocamos e que será publicada na revista Philosophy Today a partir de abril deste ano.

O Ocidente está fascinado com a ideia de singularidade, que pode ser descrita como o momento em que as máquinas se tornam inteligentes e obtêm primazia sobre a humanidade, levando a um ponto de convergência. Versões dessa ideia aparecem em Ray Kurzweil, mas também no livro “Homo Deus”, no qual Yuval Harari basicamente desiste da ideia de humanismo em prol de uma tecnologia vindoura. Isso faz sentido? Esses discursos em torno da singularidade e do “homo deus” tornaram-se muito populares e perigosos. Eles revelam uma verdade parcial. E, por ser parcial, deixam de fora as questões mais fundamentais sem resposta. Do ponto de vista histórico, o processo de se tornar humano implica a invenção e o uso da tecnologia.

Assim, as teses de que os seres humanos fazem ferramentas e as ferramentas fazem os seres humanos são ambas válidas, como quando a paleontologia tem mostrado, em termos de continuidade e descontinuidade, a trajetória do zinjatropos aos neantropos (Homo sapiens).

O fato de a linguagem simbólica e a arte (como as pinturas rupestres) só terem aparecido entre os neantropos, mas não entre os paleantropos (neandertais), sugere que possa haver uma ruptura cognitiva e existencial. Esta consiste na capacidade de antecipação, de acordo com André Leroi-Gourhan ou, se seguirmos Georges Bataille em seu texto sobre as pinturas rupestres de Lascaux, no sul da França, na capacidade de reflexão sobre a própria morte.

Em outras palavras, a questão da mortalidade condiciona o horizonte de significados que definem o desenvolvimento da arte, da ciência e da política. A introdução da ideia de imortalidade, por meio de noções como a singularidade ou “homo deus”, pertencem a uma época em que a aceleração tecnológica constantemente é um elemento de disrupção dos nossos hábitos, abrindo caminho para a ficção científica tomar conta das nossas imaginações.

O Zaratustra de Nietzsche acabou se tornando, de forma inocente, o porta-voz desse negócio trans-humanista, que promove um otimismo a respeito da superação da humanidade por meio de aprimoramentos na duração da vida, na inteligência e na emoção.

Se for para nos tornarmos “homo deus” ou imortais, então teríamos de reavaliar todos os valores e significados condicionados pela mortalidade. Essas questões permanecem em silêncio no trans-humanismo e, portanto, o trans-humanismo é fundamentalmente uma forma de humanismo e de niilismo.

Para ser possível indagar sobre o futuro do humano ou do pós-humano, teremos de confrontar, em primeiro lugar, um niilismo do século 21. De outro modo, seremos apenas rebanhos participando de campanhas das empresas de biotecnologia e das editoras de livros.

Ainda faz sentido falar em distinções como orgânico e mecânico com o surgimento da tecnologia digital e do virtual?  A distinção entre orgânico e mecânico veio de uma necessidade histórica na Europa, especificamente o declínio no século 17 da filosofia mecanicista e a emergência da biologia no século 18, disciplina que só foi reconhecida no começo do século 19.

No pensamento chinês não é possível identificar uma trajetória similar, ainda que muita gente afirme que o pensamento chinês é orgânico —isso denota uma falta de compreensão sobre o assunto.

No meu livro “Recursivity and Contingency” (recursividade e contingência) —meu esforço de fornecer uma nova interpretação da história da filosofia europeia, desde o começo do período moderno até hoje—, explico que essa distinção era fundamental para os projetos filosóficos de Kant e de idealistas pós-kantianos, como Fichte, Schelling e Hegel.

Falo também como essa distinção foi colocada em questão pela cibernética, assim como da necessidade de formular uma nova condição filosófica para os nossos tempos. É por essa razão que a primeira frase desse meu livro declara que ele éum tratado sobre cibernética.

Há um enorme debate sobre as big techs, grandes empresas de tecnologia como Google, Facebook, Apple, Amazon etc. Na China há um ecossistema diferente, com empresas como Alibaba, Tencent, ByteDance e Baidu. A questão das big techs é a mesma no Ocidente e na China? De fato, o ecossistema chinês que você menciona não é tanto sobre inovação tecnológica, mas muito mais condicionado pelos sistemas social e político. Como consequência, os processos de normalização são diferentes entre si e cada um desses sistemas políticos e sociais.

Por normalização eu me refiro aos meios pelos quais se adquire legitimidade para se transformar em norma social. As pessoas no Ocidente tendem a pensar que os chineses não se importam com a privacidade, mas isso não é verdade. O fato é que na China o processo de normalização é em grande medida determinado pelo Estado e com isso vemos dinâmicas diferentes na recepção e no uso da tecnologia.


No entanto, como no Ocidente, as empresas de tecnologia usam a coleta de dados, construção de perfis e análises de comportamentos de um modo que ultrapassa a capacidade da administração estatal, o que pode se tornar uma ameaça ao poder do Estado. Acho que as acusações recentes de monopólio contra o Alibaba podem servir como um bom estudo de caso para essa questão.

Ao emergir como uma superpotência tecnológica, a China tem sido capaz de criar um modelo diferente de tecnologia e seus dispositivos ou é tudo a mesma coisa sob o sol, no Ocidente e no Oriente? Infelizmente, acho que não estamos testemunhando uma tecnodiversidade no seu sentido real. Certa vez eu fui a Hong Kong e Shenzhen com um grupo de estudantes russos que estava muito interessado em entender o desenvolvimento tecnológico na China.

No entanto, eles ficaram desapontados ao constatar que os aplicativos utilizados pareciam familiares, com a diferença de que a interface estava em chinês. Essa é outra razão pela qual a questão da tecnodiversidade ainda está por ser formulada.

Como o seu trabalho filosófico pode ser traduzido em ação? Existe um programa político que guie sua obra? Eu sou um filósofo, e o que posso fazer dentro da minha capacidade pessoal é formular questões que considero importantes e elaborar sobre a necessidade dessas questões.

Só posso desejar que o que eu tenho pensado possa ter ressonância sobre quem se preocupa com a questão da tecnologia e que possamos pensar juntos como um programa como esse poderia parecer e funcionar.

Se você me perguntar qual será o melhor caminho de começar algo assim, eu diria que precisamos reformar nossas universidades, em especial o sistema do conhecimento, suas divisões e estruturas, formas definidas séculos atrás.

No ano passado escutei sua conversa com Aleksandr Dugin, pensador a quem muita gente atribui, em uma simplificação grosseira, o rótulo de teórico do movimento antiglobalista contemporâneo. O que há de interessante no pensamento de Dugin e como ele se relaciona com o seu? A proposta de Aleksandr Dugin, bem como o legado da Escola de Kyoto, para mim é um assunto muito difícil de tratar. Quando digo difícil, não quero dizer que suas teorias sejam difíceis de entender, mas sim que é difícil desacreditá-los como fascistas e reacionários.

Se quisermos nos aproximar da questão do pluralismo, não podemos evitar as tensões entre essas diferenças. Desde o Iluminismo, a busca pelo universal tem sido central para o pensamento político. Aceitar com facilidade o universal elimina diversidades, reduzindo-as a meras representações, como no caso do multiculturalismo (o que Viveiros de Castro critica com razão).

A recusa fácil do universal em nome das particularidades também justifica o nacionalismo e a violência estatal. Não tenho a impressão de que Dugin ou os filósofos da Escola de Kyoto ignorem essa questão, no entanto tem havido obstáculos para o seu entendimento. Isso é o que eu chamo de “o dilema do retorno para casa” no meu livro sobre a questão da tecnologia na China. Penso que essa tem de ser a questão central da filosofia política no século 21.

Um dos pontos que chamam a atenção em Dugin é que a natureza em si não deveria ser um fenômeno universal. De forma grosseira, a visão dele acomodaria aqueles que acreditam que a terra é plana. No seu trabalho, você diz que a tecnologia não é um conceito universal. Como suas perspectivas se diferenciam? No meu debate com Dugin, ele elogiou o professor Eduardo Viveiros de Castro por sua ideia de multinaturalismo, mas seria inconcebível imaginar o professor Viveiros de Castro dizendo que a terra é plana. A natureza enquanto conceito, como a técnica, é uma construção histórica e cultural (geográfica).

No entanto, isso não significa que é uma construção puramente social e, desse modo, arbitrária. Quando eu digo que a tecnologia não é um universal, isso não significa que a teoria da causalidade aplicada para uma máquina mecânica é arbitrária ou que possamos reverter as causalidades. Rejeitar um conceito universal de natureza e de tecnologia não significa, de jeito nenhum, ser anticiência ou antitecnologia.

Minha sugestão é que, em vez de entender a tecnologia como uma substância universal sublinhada pela racionalidade, ela tem de ser entendida dentro de uma “gênesis”, por exemplo, em justaposição a outras formas de pensar, como a estética, a religião, a filosofia proposta por Gilbert Simondon, tudo sendo histórico e cultural.

Você esteve no Brasil, onde fez conferências na Paraíba e no Rio. Você tem hoje uma rede de interlocutores no país, como o professor Carlos Dowling, Hermano Vianna, Eduardo Viveiros de Castro e eu também. Quais foram suas impressões do Brasil e que papel nos cabe em termos de tecnologia? Foi minha primeira vez na América Latina, e isso me fez ter um entendimento melhor do legado colonial e também da inquietação social e política na região. Fiquei muito tocado com a recepção que tive no Brasil, e vejo que há muitas conversas por vir.

Acho que a América Latina em geral, e especialmente o Brasil, terá um papel muito importante a desempenhar no desenvolvimento de uma tecnodiversidade, a partir das necessidades de descolonização e das características próprias do seu pensamento.

Você mesmo me disse que há mais de uma década houve muitas tentativas no Brasil de articular uma tecnodiversidade [como no trabalho de Gilberto Gil no Ministério da Cultura], incluindo um trabalho sobre direitos autorais e sobre a perspectiva de grupos indígenas. Espero que surjam novos momentos para continuar esses trabalhos.

O seu livro “Tecnodiversidade” acaba de ser publicado no Brasil. É um livro único, no qual você trabalhou diretamente com a editora Ubu para compilar alguns dos seus trabalhos mais importantes, além de escrever uma introdução especial para o volume. O que você achou do resultado? A editora Florencia Ferrari foi muito gentil de ter se oferecido para publicar uma antologia dos meus textos. Tanto eu quanto ela temos de agradecer a você pelo texto de introdução.

Escolhi vários textos políticos e algumas conferências que realizei em Taipei em 2019, junto com o meu antigo orientador Bernard Stiegler. Fiquei feliz que esses artigos foram traduzidos para o português, uma vez que eles dão uma boa impressão da minha trajetória de 2016 a 2020, bem como quais seriam as implicações dos conceitos que venho desenvolvendo.

Uma pergunta pessoal: como você lida com a tecnologia? Você tem um smartphone? Está presente em redes sociais? Fica online por muito tempo ou tem algum tipo de compulsão para checar o celular o tempo todo, como todos nós? Minha primeira formação é como cientista da computação, então não sou realmente um ludita. Estou no Twitter, no Facebook, no WeChat e em outras mídias sociais. Se você quiser entender essas mídias, você tem de utilizá-las. Não pode criticá-las sem ao menos ter um conhecimento do que são, como muitos filósofos ainda fazem hoje.

No entanto, para conseguir me concentrar, somente me permito checar essas mídias sociais durante um período específico do dia. Em geral eu reservo as manhãs para estudar.

Você assistiu ao documentário “O Dilema das Redes”, na Netflix? Qual sua opinião? Assisti só a uma parte, mas, para mim, o problema não é tanto a questão da manipulação, mas sim a falta de alternativas. Em 2012, eu trabalhava no time do Bernard Stiegler em Paris para desenvolver uma alternativa a redes sociais como o Facebook. Seria o que chamei de rede social baseada em grupos, que possibilitaria um design alternativo.

O problema que vejo hoje é que não somos capazes de prover verdadeiras alternativas. Quando você está cansado do Facebook você muda para outro Facebook, que pode ser diferente apenas em sua política de dados e propriedade, mas você acaba fazendo as mesmas coisas lá e sofre dos mesmos problemas nessas novas plataformas. Criar alternativas faz também parte do que chamo de tecnodiversidade.

Quais sãos seus projetos atuais? Está dando aulas online? Como funciona isso para você? Estou aguardando a publicação de meu novo livro, “Art and Cosmotechnics” (arte e cosmotécnica) —espero que ele seja publicado a partir de abril de 2021. A partir daí, vou embarcar em outras aventuras. Atualmente estou dando aulas em Hong Kong.

Por causa da Covid-19, a maior parte tem sido online. É interessante que nesta época digital dar aulas face a face ainda seja considerado pela maioria das pessoas como mais “autêntico” e que ensinar online seja visto como secundário. Ao mesmo tempo, é espantoso que não haja mais ferramentas de ensino digital online e que todas as universidades acabem usando praticamente as mesmas ferramentas. Isso diz muitas coisas.

A pandemia foi um alarme para nos lembrar do nosso lugar na natureza e também no cosmos? Você acha que há alguma reconfiguração no pensamento por causa dela? Espero mesmo que seja um alarme. No entanto, isso não implica uma grande mudança na nossa orientação política. Ao contrário, pode ser o caso de que a recuperação econômica, social ou política apenas leve a formas ainda mais agressivas de exploração. Então, não é o caso de esperarmos o fim da pandemia para mudar algo.

Algumas novas orientações e estratégias têm de ser formuladas desde já. Ainda tenho esperança de que, com a tecnologia digital, possa haver algo que possamos fazer em termos de construir novas instituições e trocas.

A ideia de tecnodiversidade aplica-se às ciências da vida, como a pesquisa genética ou o desenvolvimento de vacinas? Faz sentido pensar em tecnodiversidade nesses casos? Em termos de tecnodiversidade, talvez possamos dizer que haja duas perspectivas, ainda que estejam inter-relacionadas.

Uma é a perspectiva da cultura, que elaborei no meu livro sobre a cosmotécnica, contra o conceito da universalidade da tecnologia. A outra é a perspectiva da epistemologia, como o que eu disse sobre as redes sociais. Diversificação é imperativo, não apenas da perspectiva do mercado, mas também da imaginação do futuro.

Qual o papel da religião no mundo de hoje? Se me lembro corretamente, você estudou em um colégio católico quando jovem. Além disso, a tecnologia é, de algum modo, uma nova forma ou um substituto para a religião? Depois do anúncio de Nietzsche sobre a morte de Deus, vemos que a religião cristã ainda existe, mas Nietzsche não está mais lá. A morte de Deus é para Nietzsche um momento de superar o conceito do humano, para inventar a ideia do “Übermensch”.

Deus é transcendência que não pode ser substituído pela tecnologia em si. No entanto, a fantasia sobre a tecnologia, como, por exemplo, a ideias de “homo deus”, de singularidade e outros termos que invocamos antes podem desempenhar esse papel.

Nosso conhecimento é limitado, muitas coisas são desconhecidas por nós. Com o avanço da ciência e da tecnologia, essas coisas passaram a parecer ainda mais místicas que antes. O desconhecido ocupa o lugar de Deus; alguns continuam a encontrá-lo na religião, alguns na poesia e alguns na arte. Para mim, a questão é qual a relação entre tecnologia e o desconhecido. Esse é o tema chave dos meus estudos no livro “Art and Cosmotechnics”.

Por fim, vivemos uma exaustão de paradigmas para entender o mundo? É necessário construir uma nova linguagem, baseada na ciência da computação, como propõe Stephen Wolfram, para explicar a natureza e o mundo? Ou ainda temos as ferramentas necessárias para isso? A linguagem para apreender as coisas em si, em sua totalidade, é chamada de metafísica. Nesse sentido, a cibernética, que entende o mundo através da retroalimentação de repetições e pela organização da informação, não apenas é metafísica, mas também sua completude, sua realização.

A linguagem cibernética hoje é concretizada em algoritmos, e algumas pessoas podem ser seduzidas pela ideia de que logo será possível decifrar os segredos do Universo, da mesma forma como se aspirou logo depois da descoberta do DNA. E, de fato, alguns biólogos hoje usam uma metáfora linguística para entender o DNA como se fossem algoritmos e informação codificada por meio dele.

No entanto, hoje vivemos em um mundo pós-metafísico, posterior à ideia da morte de Deus e posterior ao fim da metafísica e das batalhas do século 20. Vamos precisar de uma abertura para entender este mundo e procurar um lugar para nós mesmos no cosmos.

Não estou dizendo que não seja promissor entender o mundo através da ciência, ou que deveríamos abdicar da ciência ou da tecnologia. Isso de forma alguma é o que afirmo. Em vez disso, não importa o quão avançado seja nosso conhecimento, devemos sempre lembrar a nós mesmos da nossa própria finitude em face ao mundo. De outro modo, vamos apenas bater em retirada em direção à metafísica.

Algo parecido com o que Rainer Maria Rilke disse nas “Elegias de Duíno”: “Com todos os seus olhos, o mundo natural vê o Aberto. Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha se oculta em torno do livre caminho. O que está além, pressentimos apenas na expressão do animal; pois desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, ah, esse espaço profundo que há na face do animal”.

DESPRET: “TENER UN CUERPO ES APRENDER A AFECTARSE” (Networks & Matters)

07.25.14

por

Pensando en el activismo encarnado y la relación con la experiencia, creo que puede ser enormemente útil algunos de estos fragmentos de Despret que traduzco para activar el debate…

La postura que caracteriza a Despret y su particular lectura de William James (en castellano véase también el texto “El cuerpo de nuestros desvelos: Figuras de la antropozoogénesis“, incluído en el volumen 1 de la compilación Tecnogénesis) fue resumida brillantemente por Latour en un texto conmemorativo de la postura de Stengers-Despret (titulado How to talk about the body?): “[…] tener un cuerpo es aprender a afectarse, esto es a ‘efectuarse’, a ser movido, puesto en movimiento por otras entidades, humanas o no humanas”(p. 205, traducción propia).

Despret, V., & Galetic, S. (2007). Faire de James un “lecteur anachronique” de Von Uexküll: esquisse d’un perpectivisme radical. In D. Debaise (Ed.),Vie et Expérimentation: Peirce, James, Dewey (pp. 45–76). Paris: Vrin.

“[…] apelamos a [William] James y le reclutamos como lector anacrónico del naturalista [Von Uexküll]: él nos permite prolongar el interés de la práctica de von Uexküll, seguir los actos que crean los accesos a los mundos, que tejen la continuidad de las experiencias, sin recurrir a principios que escaparían a toda experiencia. Al subjetivismo que parecía imponer en teoría lo sustituimos por lo que llamamos un perspectivismo radical” (p.53)

“[La perspectiva] es a la vez una manera de ser afectado –esto es, cómo el mundo me toca–, una disponibilidad a ‘hacerse afectar’ –esto es, las pasiones que tengo que acoger– y una afectación voluntaria –esto es, éste es el mundo que querría habitar–. Es del orden del sentir como del actuar; cada una de estas vías nos conducirían al mismo punto de convergencia: el mundo es una perspectiva del cuerpo” (pp.56-57)

“El perspectivismo se reencuentra con el mundo que el subjetivismo había extraviado: nuestro cuerpo merece nuestra confianza. Porque él confía en el mundo; porque las cosas del mundo no son inertes, sino que actúan sobre él, porque le tocan en lo más íntimo, porque reivindican una importancia y una significación; porque el cuerpo es, sin duda, el que más puede reconocer ‘esa vida pública de las cosas’, esa actualidad presente por la que ellas nos confrontan [cita a W. James]’” (p.59)

“[…] Es a partir de la construcción de una comunidad de experiencia que cada cosa que experimentamos puede convertirse en mundo común” (p.61)

“La perspectiva no puede confundirse con el punto de vista: lugar de paso, promontorio [surplomb] transitorio. Estamos en el interior de un domus, por lo que se plantea la cuestión de cómo amueblarlo; y son las puertas que nos hemos dejado abiertas las que constituyen la perspectiva. De ahí el rol que pudiéramos atribuir al conflicto: el de ser una pragmática de la perspectiva. Un rol doble, de hecho: por una parte el de multiplicar las perspectivas; por otra, el de discriminarlas en función de su capacidad de acogida – ¿Estaremos bien ‘en casa’? ¿Con qué seres? ¿Qué debemos dejarnos fuera? Entonces, multipliquemos las perspectivas: porque qué hace el conflicto si no poblar la escena de actores, naturalezas, fragmentos del universo y dejarlos desplegar sus propuestas” (pp. 66-67)

“Tantos afectos, tantos mundos. Con el conflicto [la polémique] no son tanto sistemas explicativos lo que se pone en juego, sino proposiciones de mundos a habitar, mundos afectados: perspectivas que están en conflicto [la polémique]” (p.68)

“[La perspectiva] es una actitud, es decir, una disposición a ser afectado y una manera de afectar. […] El mundo es una perspectiva del cuerpo. Porque es de él del que todo parte y al que todo vuelve. Él es a través del que el mundo nos toca. Él es el que, actuando, constituye un mundo común. Él es el garante de nuestra confianza. Una perspectiva […] es una manera de habitar el mundo” (p.70)

“[…] la perspectiva es el lugar a partir del cual el mundo se hace nuestro. […] Es a partir de las acciones, es decir, de las relaciones particulares que mantenemos con las cosas de la realidad, relaciones en las que esas cosas nos confrontan, que constituimos un mundo común” (p.71)

“El mundo común se constituye a la vez en el compartir y en la multiplicación de intereses o, más bien, debiéramos decir acción a acción” (p.74)

Um surto etnológico (OESP)

30 de abril de 2014 | 2h 07

Roberto Damatta – O Estado de S.Paulo

Um escritor advertia que o personagem central de um texto é o leitor. Sigo o conselho e explico o meu título: surto significa arrebatamento, transporte, rapto. Etnológico diz respeito ao estudo de sociedades tidas como “selvagens” ou “primitivas” porque não tinham escrita, desconheciam uma tecnologia onipotentemente destrutiva, sua sabedoria estava na cabeça de um punhado de idosos e, eis um escândalo: não cobriam seus corpos.

Discutiu-se se tinham alma e imaginou-se que habitavam uma variante do Éden, mas a convivência – essa rotina que transforma presidentes em donos de quitanda e deputados em canalhas logo mostrou que os “primitivos” eram humanos como nós e, como dizia Mark Twain, não pode haver nada pior do que ser um homem.

Surtado, perambulei pelas minhas notas de campo, escritas entre 1961 e a primeira quadra de 1970, quando vivi intermitentemente nas aldeias dos povos gaviões e apinaiés, falantes da língua jê. Na estação atual da minha vida, senti saudade de mim mesmo e fui em busca dos meus 20 e poucos anos, quando tinha uma letra bonita; e não havia experimentado sofrimento, morte e perigo. Sabia de sua existência, mas essas coisas não tocavam meu coração (que era maior do que o mundo) nem os planos de marcar a profissão que abracei com entusiasmo inocente e alucinado.

Queria descobrir se eu havia deixado passar em branco aquilo que meus colegas mais jovens haviam elaborado debaixo da liderança intelectual de Eduardo Viveiros de Castro, a quem eu dedico essa pequena memória.

Viveiros de Castro é um raro mestre pensador. Num ensaio de grande alcance intelectual, ele formulou uma relação que havia passado despercebida, a saber: no universo dos indígenas americanos, o denominador comum entre os seres vivos não era a natureza, mas a cultura.

Para nós, a humanidade é o centro definitivo e absoluto de consciência e vontade, mas não é assim entre os índios. Para eles, ser humano é um modo de ser entre outros. Talvez seja o mais visível, mas não é o mais central ou definitivo como dizem as cosmologias mais conhecidas e mais influentes, as quais asseveram que o ato final da criação são os humanos. Entre os ameríndios não há sete dias que culminam no Homem. Há uma multidão de narrativas reveladoras que as diferenças entre homens, bichos e plantas não é de substância.

Vejam o contraste. Do nosso ponto de vista, a sociedade humana é a herdeira de toda a criação. Homens, animais e plantas se unem pela sua “natureza” física. No mais, são radicalmente diferenciados, pois foi apenas a humanidade que recebeu o sopro divino.

Entre os “índios”, porém, a humanidade é um modo de ser, estar e perceber, entre outros. Eduardo Viveiros de Castro cunhou o conceito de “perspectivismo” para designar esses outros modos de enxergar a vida. Os mortos, os animais, as plantas e os fenômenos naturais seriam outras formas ou possibilidades de vivenciar a subjetividade que não seria algo exclusivo do humano.

Neste sentido, os mitos não são criações destinadas a explicar o inexplicável. São testemunhos de que somos parte de um imenso todo capaz de se comunicar o qual, em momentos memoráveis, se dividiu em entidades com uma aparência diferenciada, mas todas dotadas da capacidade de comunicação. Como pode adivinhar o leitor, tal reencontro se faz por meio de rituais ou em situações especiais – acima de tudo quando o ser (seja humano ou bicho) passa por um estado de extremada individualidade e solidão.

Consultando e lendo minhas notas de décadas passadas, colhidas na obstinação dos meus verdes anos, encontro muitas informações sobre animais. Esses atores fundamentais dos mitos que logram ou são logrados por algum humano e que, os meus professores nativos, repetiam para ouvidos moucos que eles eram iguais a nós e nos doaram o que sabemos.

Hoje, graças ao trabalho de Tania S. Lima, Aparecida Vilaça e Carlos Fausto – revejo meus dados e descubro como sol e lua, as estrelas, o sapo, os morcegos, o beija-flor e outros bichos são como nós e nós como eles. Eis um universo absolutamente relacional. Nele, ninguém tem o direito de ultrapassar um certo limite porque não há limites, mas modos de ser. Quanto a nós, que inventamos e legitimamos a “civilização” através da tecnologia (do uso dos talheres à bomba atômica), há muito vazamos todas as fronteiras.

Afinal, somos inventores e compradores de automóveis e, pior que isso, de refinarias.

(Se o surto continuar, eu continuo na próxima semana.)