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A notável atualidade do Animismo (Outras Palavras)

Ele foi visto pela velha antropologia como “forma mais primitiva” de religião. Mas, surpresa: sugere respostas a questões cruciais de hoje: o divórcio entre cultura e natureza e a tendência da ciência a tratar como objeto tudo o que não é “humano”

Publicado 02/09/2021 às 17:46 – Atualizado 02/09/2021 às 18:00

Por Renato Sztutman, na Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras

Muito se tem falado hoje em dia sobre o animismo. E mais, muito se tem falado sobre uma necessidade de retomar o animismo – uma forma de responder ao projeto racionalista da modernidade, que transformou o ambiente em algo inerte, opaco, sinônimo de recurso, mercadoria. Em tempos de pandemia, constatamos que algo muito importante se perdeu na relação entre os sujeitos humanos e o mundo que eles habitam, e isso estaria na origem da profunda crise que vivemos.

Animismo é, em princípio, um conceito antropológico, proposto por Edward Tylor, em Primitive Culture (1871), para se referir à forma mais “primitiva” de religião, aquela que atribui “alma” a todos os habitantes do cosmos e que precederia o politeísmo e o monoteísmo. O termo “alma” provém do latim anima – sopro, princípio vital. Seria a causa mesma da vida, bem como algo capaz de se desprender do corpo, viajar para outros planos e tempos. O raciocínio evolucionista de autores como Tylor foi refutado por diferentes correntes da antropologia ao longo do século 20, embora possamos dizer que ainda seja visto entranhado no senso comum da modernidade. A ideia de uma religião embrionária, fundada em crenças desprovidas de lógica, perdeu lugar no discurso dos antropólogos, que passaram a buscar racionalidades por trás de diferentes práticas mágico-religiosas.

Uma reabilitação importante do conceito antropológico de animismo aparece com Philippe Descola, em sua monografia “La nature domestique” (1986), sobre os Achuar da Amazônia equatoriana. Descola demonstrou que, quando os Achuar dizem que animais e plantas têm wakan (“alma” ou, mais precisamente, intencionalidade, faculdade de comunicação ou inteligência), isso não deve ser interpretado de maneira metafórica ou como simbolismo. Isso quer dizer que o modo de os Achuar descreverem o mundo é diverso do modo como o fazem os naturalistas (baseados nos ditames da Ciência moderna), por não pressuporem uma linha intransponível entre o que costumamos chamar Natureza e Cultura. O animismo não seria mera crença, representação simbólica ou forma primitiva de religião, mas, antes de tudo, uma ontologia, modo de descrever tudo o que existe, associada a práticas. Os Achuar engajam-se em relações efetivas com outras espécies, o que faz com que, por exemplo, mulheres sejam tidas como mães das plantas que cultivam, e homens como cunhados dos animais de caça.

Para Descola, a ontologia naturalista não pode ser tomada como único modo de descrever o mundo, como fonte última de verdade. Outros três regimes ontológicos deveriam ser considerados de maneira simétrica, entre eles o animismo. Esse ponto foi desenvolvido de maneira exaustiva em Par-delà nature et culture (2005), no qual o autor se lança em uma aventura comparatista cruzando etnografias de todo o globo. O animismo inverte o quadro do naturalismo: se neste último caso a identificação entre humanos e não humanos passa pelo plano da fisicalidade (o que chamamos corpo, organismo ou biologia), no animismo essa mesma identificação se dá no plano da interioridade (o que chamamos alma, espírito ou subjetividade). Para os naturalistas, a alma seria privilégio da espécie humana, já para os animistas é uma mesma “alma humana” que se distribui entre todos os seres do cosmos.

A ideia de perspectivismo, que autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima atribuem a cosmologias ameríndias, estende e transforma a de animismo. O perspectivismo seria, grosso modo, uma teoria ou metafísica indígena que afirma que (idealmente) diferentes espécies se têm como humanas, mas têm as demais como não humanas. Tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas todos não podem ser sujeitos ao mesmo tempo, o que implica uma disputa. Diz-se, por exemplo, que onças veem-se como humanas e veem humanos como presas. O que os humanos veem como sangue é, para elas, cerveja de mandioca, bebida de festa. Onças e outros animais (mas também plantas, astros, fenômenos meteorológicos) são, em suma, humanos “para si mesmos”. Um xamã ameríndio seria capaz de mudar de perspectiva, de se colocar no lugar de outrem e ver como ele o vê, portanto de compreender que a condição humana é partilhada por outras criaturas.

Como insiste Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem (2002), a perspectiva está nos corpos, conjuntos de afecções mais do que organismos. A mudança de perspectiva seria, assim, uma metamorfose somática e se ancoraria na ideia de um fundo comum de humanidade, numa potencialidade anímica distribuída horizontalmente no cosmos. Se o perspectivismo é o avesso do antropocentrismo, ele não se separa de certo antropomorfismo, fazendo com que prerrogativas humanas deixem de ser exclusividade da espécie humana, assumindo formas as mais diversas.

O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2010), traz exemplos luminosos desses animismos e perspectivismos amazônicos. Toda a narrativa de Kopenawa está baseada em sua formação como xamã yanomami, que se define pelo trato com os espíritos xapiripë, seres antropomórficos que nada mais são que “almas” ou “imagens” (tradução que Albert prefere dar para o termo utupë) dos “ancestrais animais” (yaroripë). Segundo a mitologia yanomami, os animais eram humanos em tempos primordiais, mas se metamorfosearam em seus corpos atuais. O que uniria humanos e animais seria justamente utupë, e é como utupë que seus ancestrais aparecem aos xamãs. Quando os xamãs yanomami inalam a yãkoana (pó psicoativo), seus olhos “morrem” e – mudando de perspectiva – eles acessam a realidade invisível dos xapiripë, que se apresentam em uma grande festa, dançando e cantando, adornados e brilhosos. O xamanismo yanomami – apoiando-se em experiências de transe e sonho – é um modo de conhecer e descrever o mundo. É nesse sentido que Kopenawa diz dos brancos, “povo da mercadoria”, que eles não conhecem a terra-floresta (urihi), pois não sabem ver. Onde eles identificam uma natureza inerte, os Yanomami apreendem um emaranhado de relações. O conhecimento dessa realidade oculta é o que permitiria a esses xamãs impedir a queda do céu, catalisada pela ação destrutiva dos brancos. E assim, insiste Kopenawa, esse conhecimento passa a dizer respeito não apenas aos Yanomami, mas a todos os habitantes do planeta.

Embora distintas, as propostas de Descola e de Ingold buscam na experiência animista um contraponto às visões naturalistas e racionalistas, que impõem uma barreira entre o sujeito (humano) e o mundo. Como propõe Viveiros de Castro, essa crítica consiste na “descolonização do pensamento”, pondo em xeque o excepcionalismo humano e a pretensão de uma ontologia exclusiva detida pelos modernos. Contraponto e descolonização que não desembocam de modo algum na negação das ciências modernas, mas que exigem imaginar que é possível outra ciência ou que é possível reencontrar o animismo nas ciências. Tal tem sido o esforço de autores como Bruno Latour e Isabelle Stengers, expoentes mais expressivos dos science studies: mostrar que a ciência em ação desmente o discurso oficial, para o qual conhecer é desanimar (dessubjetivar) o mundo, reduzi-lo a seu caráter imutável, objetivo.

No livro Sobre o culto moderno dos deuses “fatiches” (1996), Latour aproxima a ideia de fetiche nas religiões africanas à ideia de fato nas ciências modernas. Um fetiche é um objeto de culto (ou mesmo uma divindade) feito por humanos e que, ao mesmo tempo, age sobre eles. Com seu trabalho etnográfico em laboratórios, Latour sugeriu que os fatos científicos não são meramente “dados”, mas dependem de interações e articulações em rede. Num laboratório, moléculas e células não seriam simplesmente objetos, mas actantes imprevisíveis, constantemente interrogados pelo pesquisador. Em seu pioneiro Jamais fomos modernos (1991), Latour assume que fatos científicos são em certo sentido feitos, e só serão aceitos como fatos quando submetidos à prova das controvérsias, isto é, quando conseguirem ser estabilizados como verdades.

Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na história das ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas. Segundo ela, as ciências modernas se estabelecem a partir da desqualificação de outras práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela acompanha, por exemplo, como a química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da hipnose. Em suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. E isso, segundo Stengers, não pode ser dissociado do lastro entre a história das ciências e a do capitalismo. Em La sorcellerie capitaliste (A feitiçaria do capitalismo, 2005), no diálogo com a ativista neopagã Starhawk, Stengers e Philippe Pignarre lembram que o advento da ciência moderna e do capitalismo nos séculos 17 e 18 não se separa da perseguição às práticas de bruxaria lideradas por mulheres. Se o capitalismo, ancorado na propriedade privada e no patriarcado, emergia com a política dos cercamentos (expulsão dos camponeses das terras comuns), a revolução científica se fazia às custas da destruição de práticas mágicas. Stengers e Pignarre encontram no ativismo de Starhawk e de seu grupo Reclaim, que despontou na Califórnia no final dos anos 1980, um exemplo de resistência anticapitalista. Para Starhawk, resistir ao capitalismo é justamente retomar (reclaim) práticas – no caso, a tradição wicca, de origem europeia – que foram sacrificadas para que ele florescesse.

Retomar a magia, retomar o animismo seria, para Stengers, uma forma de existência e de resistência. Como escreveu em Cosmopolíticas (1997), quando falamos de práticas desqualificadas pelas ciências modernas, não deveríamos apenas incorrer em um ato de tolerância. Não se trata de considerar a magia uma crença ou “cultura”, como fez-se na antropologia da época de Tylor e até pouco tempo atrás. Ir além da “maldição da tolerância” é levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida ou uma árvore pensa. Stengers não está interessada no animismo como “outra” ontologia: isso o tornaria inteiramente exterior à experiência moderna. Ela tampouco se interessa em tomar o animismo como verdade única, nova ontologia que viria desbancar as demais. Mais importante seria experimentá-lo, seria fazê-lo funcionar no mundo moderno.

Que outra ciência seria capaz de retomar o animismo hoje? Eis uma questão propriamente stengersiana. Hoje vivemos mundialmente uma crise sanitária em proporções jamais vistas, que não pode ser dissociada da devastação ambiental e do compromisso estabelecido entre as ciências e o mercado. A outra ciência, diriam Latour e Stengers, seria a do sistema terra e do clima, que tem como marco a teoria de Gaia, elaborada por James Lovelock e Lynn Margulis nos anos 1970. Gaia é para esses cientistas a Terra como um organismo senciente, a Terra como resultante de um emaranhado de relações entre seres vivos e não vivos. Poderíamos dizer que Gaia é um conceito propriamente animista que irrompe no seio das ciências modernas, causando desconfortos e ceticismos. O que Stengers chama de “intrusão de Gaia”, em sua obra No tempo das catástrofes (2009), é uma reação ou resposta do planeta aos efeitos destruidores do capitalismo, é a ocorrência cada vez mais frequente de catástrofes ambientais e o alerta para um eventual colapso do globo. Mas é também, ou sobretudo, um chamado para a conexão entre práticas não hegemônicas – científicas, artísticas, políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e imaginar novos mundos.

O chamado de Stengers nos obriga a pensar a urgência de uma conexão efetiva entre as ciências modernas e as ciências indígenas, uma conexão que retoma o animismo, reconhecendo nele um modo de engajar humanos ao mundo, contribuindo assim para evitar ou adiar a destruição do planeta. Como escreve Ailton Krenak, profeta de nosso tempo, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”. Em outras palavras, quando desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um poder mortífero. Retomar o animismo surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir.

Viveiros, indisciplina-te! (GEAC)

Posted on Fevereiro 12, 2016

viveiros

Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo

Enquanto agita a bandeira da descolonização do pensamento e nos alimenta com uma fonte inesgotável de alteridade radical, Viveiros de Castro permanece aferrado à disciplina antropológica e ao senso comum policialesco que a sustenta. Fora da academia, contudo, sua obra vem sendo reconectada à ação política transformadora. Resta-nos, então, a esperança de que Viveiros indiscipline-se

* * *

A minha hipótese é que as teorias e disciplinas reagirão de modo não-teórico e não disciplinar quando forem objeto de questões não previstas por elas. 

Boaventura de Sousa Santos

Como eu “vivo a política?” Ora, vtnc.

Viveiros de Castro

Quando fazemos uso de nomes próprios e referências diretas a determinadas declarações públicas não estamos buscando discutir características pessoais, mas sim a relevância e o poder de interpelação de determinadas posturas teórico-políticas.

I.

Faz quarenta anos que a prática antropológica em geral e especificamente as práticas da antropologia disciplinar vêm sendo problematizadas a partir de enfoques variados em diversos países. O triunfo dos movimentos de libertação nacional em África, Ásia e Oceania, associado aos processos de descolonização epistêmica que problematizaram os regimes de representação da alteridade enraizados nas academias metropolitanas, desencadeou um movimento reflexivo que repercutiu com força nas antropologias hegemônicas. O antropólogo haitiano Michel Trouillot caracterizou tal processo como o esvaziamento empírico do “nicho do Selvagem”: enquanto disciplina, a antropologia dependia do Selvagem-objeto, mas este agora enunciava a si mesmo, sua história e seus projetos em primeira pessoa. Para Trouillot, a antropologia surgiu no final do século XIX incumbida de disciplinar o “nicho do Selvagem”, anteriormente objeto de especulações em novelas utópicas, relatos de viagens ao Novo Mundo e informes para-etnográficos. Dentro do esquema discursivo evidenciado pelo autor, o Selvagem é aquele que alimenta diferentes Utopias destinadas a refundar a Ordem, entendida como expressão da universalidade legítima. A tríade Ordem-Utopia-Selvagem que sustentava as metanarrativas ocidentais estava, no entanto, dissolvendo-se e tal processo ameaçava a autossuficiência da disciplina antropológica.

Abalados pelo impacto da crítica pós-colonial, os domínios da disciplina pareciam inférteis aos olhos daqueles que ainda cultuavam a velha e boa Antropologia, outrora presidida sem embaraço pelos mandarins de Cambridge. O setor mais cético e enclassado da disciplina manteve uma desconfiança profunda em relação a qualquer tipo de engajamento intelectual que se deixasse afetar – no tocante às suas preocupações e aos seus objetivos – por vetores políticos extra-acadêmicos. Para referido setor o panorama desolador do período que poderíamos definir como “pós-crítica” exigia Restauração. A avidez por restaurar a Antropologia encontrou eco, num primeiro momento, no cinismo de tipo geertziano. Hermenêutica em punho, Geertz profetizou que o novo destino da Antropologia seria contribuir para a expansão dos horizontes da racionalidade humana através da tradução intercultural. Malgrado seu passado colonial, a disciplina antropológica preservaria uma tendência inata de valor não desprezível: a capacidade de ouvir o outro e decodificar sua cultura. Não era exatamente disso que precisávamos num mundo marcado pela intolerância e pela incompreensão?

As alternativas a la Geertz não bastavam, contudo, para devolver à Antropologia sua antiga auto-suficiência. Passar o resto da vida operando traduções interculturais para mitigar as catástrofes da modernidade tardia não parecia um destino à altura daquela disciplina que havia dispendido boa parte do século XX na ousada tarefa de confrontar o narcisismo moderno com a imagem desafiadora do seu outro selvagem. Entretanto, a “linha forte” do restauracionismo disciplinar teria de esperar até os anos noventa para encontrar no perspectivismo ameríndio um dos seus mais promissores cavalos de batalha. A potência do paradigma esgrimido por Viveiros de Castro residia em sua capacidade de matar dois coelhos numa cajadada só: ao passo que flertava com o espírito do seu tempo, respondendo ao compromisso político com a descolonização da disciplina, também restaurava o “nicho do selvagem”, objeto que, como apontou Trouillot, havia sido herdado e nunca verdadeiramente questionado pelas expressões hegemônicas da antropologia. Na “geografia da imaginação” que engendrou o Ocidente e a antropologia disciplinar, o Selvagem foi frequentemente uma projeção utópica. “Agora, como então – diz Trouillot –, o Selvagem é apenas evidência num debate cuja importância ultrapassa não só seu entendimento, mas também sua existência. Assim como a Utopia pode ser oferecida como uma promessa ou como uma ilusão perigosa, o Selvagem pode ser nobre, sábio, bárbaro, vítima ou agressor, dependendo do debate e dos propósitos dos interlocutores” (p.67 [acessar texto aqui])

Diante do encerro de alguns antropólogos nos corredores da academia e do desinteresse de outros em vincular sua produção a grandes debates estruturais, foi Viveiros quem soube construir uma ponte entre o discurso antropológico e a formulação de enunciados políticos radicais e abrangentes. Por outro lado – e paradoxalmente – Viveiros erigiu seu lugar de fala sobre o velho “nicho do selvagem”, que agora retorna a nós em sua faceta utópica, capaz de iluminar alternativas imediatas e anistóricas às vicissitudes da modernidade ocidental. Reivindicado em entrevistas e ensaios teóricos, o Pensamento Selvagem serve de “controle” para imaginar Utopias – virtualidades que poderiam ser atualizadas em “nossa” própria antropologia, em “nosso” próprio mundo, etc. Aqui cabe recuperar novamente a súplica de Michel Trouillot: os sujeitos históricos com voz própria aos quais se reporta Viveiros merecem muito mais do que um “nicho”; merecem ser muito mais do que a projeção das ânsias de refundar a metafísica. Para o autor, devemos ser capazes de desestabilizar e, eventualmente, destruir o “nicho do Selvagem” para poder relacionar-nos com a alteridade em sua especificidade e legitimidade histórica, que sempre escapam ao universalismo. A dicotomia “nós e o resto”, implícita na ordem simbólica que engendra a ideia de Ocidente, é um construto ideológico, afinal “não há apenas um Outro, mas multidões de outros que são outros por diferentes razões, a pesar das narrativas totalizantes, incluindo a do capital” (p. 75).

Ao lançar mão do recurso ao nicho do Selvagem, Viveiros provoca um efeito de sedução que resulta não tanto das suas manobras conceituais, mas da necessidade que temos de alimentar a fonte inesgotável de exterioridade radical que poderia nos salvar do Ocidente. A outridade termina, assim, subsumida à mesmidade dos projetos de sempre – transformar a Antropologia, por exemplo. Em tal cenário, a disciplina antropológica é chamada a continuar seu trabalho, reassumindo a vocação de perscrutar fielmente o Outro selvagem refratado pela teoria de Viveiros de Castro. Trouillot vaticina: “enquanto o nicho [do Selvagem] existir, no melhor dos casos o Selvagem será uma figura de fala, uma metáfora num argumento sobre a natureza e o universo, sobre o ser e a existência – em suma, um argumento sobre o pensamento fundacional” (p. 68).

II.

Deixemos que Viveiros fale um pouco mais sobre a forma como concebe o promissor entrelaçamento entre a “nossa” Antropologia e o Pensamento Selvagem: “por transformações indígenas da antropologia entendo as transformações da estrutura conceitual do discurso antropológico suscitadas por seu alinhamento em simetria com as pragmáticas reflexivas indígenas, isto é, com aquelas etno-antropologias alheias que descrevem nossa própria (etno-) antropologia precisamente ao e por divergirem dela” (p.163 [acessar texto aqui]). O pensamento ameríndio consistiria, ele próprio, em uma ontologia política do sensível que, ao se alinhar com o discurso antropológico, se tornaria capaz de redefini-lo e de convertê-lo em enunciador de uma antropologia outra. Neste sentido, o conhecimento antropológico não operaria sobre um repertório cultural fechado em si mesmo, mas sim em meio a outro movimento reflexivo – o ameríndio – que é concebido como dinâmica ontológica transformacional capaz de instaurar, pelo menos no plano do conceito, uma mundaneidade completamente nova e potencialmente transgressora dos parâmetros epistemológicos da nossa etno-antropologia.

O problema começa quando dizemos que a dinâmica transformacional inerente à ontologia ameríndia possui um modus operandi determinado que nós, antropólogos, poderíamos abstrair mediante procedimento de “coloração contrastiva” (p.157). Procedendo assim, o antropólogo transforma a transformação outra em algo completamente desencarnado – fruto da construção artificial, laboratorial, em suma, contrastiva da alteridade radical. Na verdade essas dinâmicas transformacionais outras nas quais o discurso antropológico supostamente se imiscui não são outra coisa senão o resultado de um procedimento enunciativo disciplinar e disciplinador que submete a experiência ao conceito (“A revolução, ou a essa altura será melhor dizer, a insurreição e a alteração começam pelo conceito”, Viveiros, p. 155).

O “perspectivismo imanente” depreendido por Viveiros da análise formal dos mitos só pode existir enquanto subproduto da alteridade radical laboratorialmente forjada por uma antropologia que se obstina em negar a experiência e a voz própria dos homens e mulheres que são os verdadeiros sujeitos da história. Mesmo abundantes, os eufemismos de Viveiros são insuficientes para dissimular o recurso ao “nicho do selvagem” que abastece sua máquina textual. No final das contas, Viveiros quer comparar “transformações” – outro nome para cultura – e depois mobilizá-las na construção de enunciados políticos que suspendem a política, que nos conclamam ao estarrecimento resmungão e, no pior dos casos, nos transformam em moralistas que repetem insistentemente que as coisas poderiam – ou deveriam – ser diferentes do que são sem saber como, objetivamente, engajar-se nas dinâmicas transformacionais imanentes à realidade.

A ideia de transformação da antropologia enunciada por Viveiros de Castro é caudatária da ego-política do conhecimento. Nesta perspectiva profundamente desencarnada, a antropologia aparece como uma “estrutura conceitual” – e não como a expressão localizada de certo processo de institucionalização – que pode sofrer alinhamentos com a “pragmática reflexiva” indígena. Quem promove esses alinhamentos? Viveiros não explicita, mas só podemos concluir que são os próprios antropólogos que o fazem. Se now is the turn of the native, quem distribui os “turnos” na fila da legitimidade epistêmica (ou ontológica) é o próprio antropólogo.

No sentido oposto ao da ego-política do conhecimento, o Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC) retomou a noção descolonial de corpo-política do conhecimento. Esta noção nos leva a definir a transformação da antropologia como um processo localizado de disputa encarnada – corporalizada – pela construção de outros lugares de enunciação e de novas formas de produzir efeitos de verdade. Pensar com os outros, como propõe Viveiros, significa, para nós algo muito mais radical. Significa pensar na presença concreta do outro, engajados corpo-politicamente com ele. O resultado disso não precisa ser, necessariamente, “antropologia”, “etnografia” ou qualquer outra forma de subsunção da radicalidade da ação histórica e da especificidade dos sujeitos à mesmidade do texto acadêmico. Não vemos necessidade de construir, laboratorialmente e por contraste, o pensamento do outro – ou, sendo fiéis a Viveiros, as formas outras de empreender a transformação – para, só depois, proceder à construção do comum.

III.

Viveiros quer transformar as estruturas conceituais da antropologia e colocá-las a serviço da descolonização do pensamento. Nós perguntamos: é possível fazê-lo sem abrir mão das formas específicas de exercício do poder que a antropologia avaliza enquanto disciplina? Viveiros reforça um senso comum de longa data cujo efeito é a neutralização de quaisquer práticas intelectuais dissidentes. Ele agita a bandeira da descolonização do pensamento sem prestar atenção às bases institucionais conservadoras sobre as quais repousa comodamente. Evidência disso é a facilidade com que o antropólogo descolonizador ironizou a interpelação que lhe fizemos anos atrás (acessar texto aqui) recorrendo àquela pergunta tão frequente nos espaços mais policialescos da disciplina: onde está a etnografia dessa gente?

Quando Viveiros procura deslegitimar nossa interpelação recorrendo à pergunta irônica sobre as “etnografias” que fomos ou não capazes de produzir, ele se inscreve completamente na história da qual pretende emancipar a disciplina. Uma história que erigiu a etnografia (o texto) em única expressão legítima do enunciado antropológico. Isso para não falar da leitura completamente narcísica feita por ele de nossa intervenção. Para Viveiros, tudo o que dissemos era a reprodução do discurso de nossos “orientadores” ou, até mesmo, uma tentativa de atacá-lo para salvar o Partido dos Trabalhadores (!). Enquanto líamos essas assertivas, nos lembrávamos da forma como alguns docentes reagiram à greve dos estudantes de mestrado em antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2011. Incrédulos diante das críticas que os estudantes faziam ao produtivismo acadêmico desenfreado, à escassez de bolsas e à nula participação discente na definição das políticas do programa de pós-graduação, determinados professores só puderam explicar o acontecimento recorrendo à lógica da cooptação: era o Partido Comunista (!) que estava por trás daquela imensa insensatez. A voz própria enunciada em primeira pessoa continua a ser desacreditada fortemente nos domínios da disciplina: não há sujeito histórico verdadeiramente autêntico, sempre “há algo” por trás que o explica e conduz. Reações desta ordem, que se recusam a reconhecer a autenticidade da fala do outro, são sintomas de um narcisismo antropológico-disciplinar que priva a si mesmo da possibilidade de mudar a própria perspectiva sobre as coisas: “ao adentrarmos o espaço da exterioridade e da verdade, só conseguimos ver reflexos e simulacros obsedantes de nós mesmos” (p.23 [acessar texto aqui]). Tudo aquilo que o establishment disciplinar contempla não pode ser outra coisa senão o reflexo da sua própria lógica de funcionamento.

Ao mesmo tempo que Viveiros atualiza em sua performance acadêmica as hierarquias silenciadoras e os sistemas de visibilidade que sustentam a disciplina que o legitima, ele também nos entrega, paradoxalmente, uma retórica descolonizadora. Sua crítica aguda e implacável à fé cega nas ideias-força da modernidade capitalocêntrica possui, sem dúvidas, uma potência suscetível de ser atualizada por quem deseja incidir nas relações de força concretas. Não só no Brasil, mas também em outros países da América do Sul, os enunciados produzidos por Viveiros de Castro são constelados em agenciamentos coletivos que ensaiam uma ruptura pragmática com o consenso das commodities e inauguram, assim, renovados espaços de imaginação política. Nestes casos, Viveiros é vivificado pela ação coletiva; sua crítica se associa com os imperativos das lutas atuais e é potencializada por uma poética materialista capaz de desenterrar outro mundo possível das entranhas deste mundo subsumido pelo capital. Peter Perbart tem razão: “ainda os que costumam planejar uma abstração radical (…) podem ser reconectados à terra ao entrar em contato com uma situação real e deixar para trás a imagem da qual muitas vezes são prisioneiros e na qual o poder insiste em enclausurá-los” (acessar texto).

Viveiros é vivificado pela política fora da academia. Dentro dela, no entanto, é disciplinado e sabe disciplinar. Aprisiona entre aspas todas as palavras que correm o risco de serem abastardadas pelo uso canalha (“grupo” de “antropologia” “crítica” – dizia no twitter). Insinua que por detrás da interpelação crítica a ele destinada se oculta o repreensível desejo de “aparecer”. É que ao atrair para si uma atenção da qual a priori não são merecedores, os responsáveis pela mais mínima inversão dos regimes convencionais de visibilidade acadêmica só podem ser encarados como usurpadores.

Nós questionamos estas tendências e procuramos problematizá-las através do espaço autônomo de diálogo e reflexão que é o GEAC. Enquanto a “filosopausa” não chega – e com ela a possibilidade de publicar textos aforísticos em revistas indexadas – decidimos construir, de direito próprio, um lugar amigável para desenvolver engajamentos e debates cuja emergência costuma ser obturada pelos estabelecimentos antropológicos mais conservadores.

Apesar da deriva filosófica, Viveiros de Castro continua aferrado à disciplina antropológica e ao senso comum que a sustenta. Resta-nos a esperança de que as ruas e a história o absolvam.  E de que Viveiros indiscipline-se.

Antropologia renovada (Cult)

Jan. 2015

Eduardo Viveiros de Castro é reconhecido por ter renovado o pensamento antropológico


Juvenal Savian Filho e Wilker Sousa
Fotos: Lucas Zappa

“Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual.” Essas palavras são do antropólogo e pensador francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) a respeito da obra do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Professor de antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele é reconhecido nacional e internacionalmente por seus estudos em etnologia indígena – o ensaio “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio”, publicado em 1996, recebeu traduções para diversas línguas e foi incluído em duas antologias britânicas de textos-chave da disciplina, a primeira centrada na antropologia da religião, a outra dedicada à teoria antropológica geral. Em 2009, publicou na França o livro Métaphysiques Cannibales, no qual resume as implicações filosóficas e políticas de suas pesquisas entre os povos indígenas brasileiros. No Brasil, seu livro mais conhecido é A Inconstância da Alma Selvagem, publicado em 2002, que reúne estudos escritos ao longo de sua carreira até então. Uma segunda coleção, trazendo seus ensaios mais recentes, está em preparação, devendo ser publicada pela editora CosacNaify em 2012, sob o título A Onça e a Diferença.

Seu currículo inclui atividades intelectuais em âmbito mundial. Foi professor-associado nas universidades de Manchester e Chicago e ocupou a cátedra Simón Bolívar de Estudos Latino-americanos da Universidade de Cambridge. Foi diretor de pesquisas no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, tornando-se membro permanente da Equipe de Pesquisa em Etnologia Ameríndia. Ainda na França, foi agraciado em 1998 com o Prix da La Francophonie, concedido pela Academia Francesa.

Aos 59 anos de idade, construiu uma obra potente e irretocável. Viveiros de Castro recebeu a reportagem da CULT em sua sala no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e falou sobre seu trabalho, a atual política indigenista, a crise ambiental e a inserção do Brasil na economia mundial.

CULT – Como se dá seu trabalho de campo e com que regularidade o senhor visita as comunidades indígenas?
Eduardo Viveiros de Castro –
 O principal de minhas pesquisas de campo com os povos indígenas da Amazônia fez-se entre os anos 1975 e 1988. Estive por breves períodos entre os Yawalapiti do Parque do Xingu, em Mato Grosso (hoje o estado deveria ser chamado de Mato Ralo), os Kulina do Rio Purus, no Acre, os ianomâmis da Serra de Surucucus, em Roraima, e finalmente entre os Araweté do Igarapé Ipixuna, no Médio Xingu, Pará. Apenas entre os Araweté realizei o que se pode chamar de uma pesquisa etnográfica, que requer uma convivência demorada com o povo estudado, o aprendizado da língua nativa (no meu caso, bem incipiente) e o envolvimento emocional e cognitivo – o compromisso existencial – com as questões e preocupações da vida da comunidade que generosamente aceitou receber o antropólogo. Minha estada com os Araweté não foi tão longa quanto deveria: morei no Ipixuna por cerca de dez meses, entre 1981 e 1983, quando precisei deixar a área por motivos de saúde (malárias repetidas). Depois voltei algumas vezes, em visitas curtas, perfazendo 14 meses até 1995. Isto é, na melhor das hipóteses, a metade do que se precisa para fazer um bom trabalho de campo. Mas cada um faz o que pode. Há quem aprenda mais depressa, outros precisam de mais tempo. Além disso, há povos que demandam muitos anos de convivência até que as coisas comecem a fazer sentido para o pesquisador, e outros que são mais abertos e mais diretos. Por fim, tudo depende daquilo que se quer estudar. De qualquer maneira, não me vejo como um grande pesquisador de campo. Sou um etnógrafo apenas razoável.

Há cerca de um mês, após 15 anos de ausência, voltei ao Ipixuna para uma rápida visita. A desculpa para uma ausência tão demorada, a rigor indesculpável, foi que a vida me levou para longe da Amazônia: ensino, família, períodos de residência no exterior, o lento trabalho da escrita, o peso da idade… Isso para não mencionar algumas dificuldades que acabei tendo com a autoridade indigenista local, em Altamira (PA), por causa das empresas evangélicas que queriam se instalar entre os Araweté. Aos olhos desses missionários, eu era uma espécie de Satã que estava ali entravando a almejada conquista espiritual dos índios. Assim que parei de ir com mais frequência ao Ipixuna, esses missionários conseguiram se insinuar nas aldeias, com a complacência da administração indigenista. O estrago que causaram, até agora, ainda não parece ter sido grande demais. O mérito, naturalmente, é dos próprios Araweté.

Retornei a convite dos Araweté – não foi o primeiro que me fizeram, nesses 15 anos – e da nova administração da Funai em Altamira, com quem tenho a firme intenção de colaborar, nessa fase histórica tão difícil que se abre agora para os povos indígenas do Médio Xingu, com a construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte. Está na hora também de passar o bastão e apresentar alguns de meus estudantes do Museu Nacional aos Araweté, para que possam continuar o trabalho.

O senhor concorda que, nas últimas duas ou três décadas, os “índios” têm aparecido mais no debate político e nos veículos de comunicação? Por que isso demorou tanto tempo?
Em seu livro Tristes Trópicos, Lévi-Strauss conta uma anedota reveladora. Era o começo dos anos 1930, ele estava de partida para o Brasil, onde ia ensinar sociologia na USP. Lévi-Strauss encontra o embaixador brasileiro na França, Luiz de Souza Dantas, em um jantar de cerimônia, e lhe pergunta sobre os índios brasileiros, que já então muito lhe interessavam. Ao perguntar ao embaixador como deveria proceder para visitar alguma comunidade indígena, este lhe respondeu: “Ah, meu senhor, no Brasil há muito tempo não há mais índios. Essa é uma história muito triste, mas o fato é que os índios foram exterminados pelos portugueses, pelos colonizadores, e hoje não há mais índios no Brasil. É um capítulo muito triste da história brasileira. Há muitas coisas apaixonantes a serem vistas no Brasil, mas índios, não há mais um só…” Lévi-
-Strauss conta que, naturalmente, quando chegou ao Brasil, descobriu que não era bem assim.

Isso não quer dizer que o embaixador (cuja aparência física, diz maliciosamente Lévi-Strauss, indicava uma óbvia contribuição indígena) estivesse mentindo deliberadamente, procurando negar uma realidade vergonhosa mas sabida. De fato, o embaixador não sabia que havia índios no Brasil; o Brasil que ele representava diplomaticamente não continha índios. O Brasil era um país desesperado para ser moderno, então não havia, porque não podia haver, mais selvagens aqui. Outro fato curioso: em 1970 (portanto, 40 anos depois do diálogo de Lévi-Strauss com o embaixador), o censo indígena da Funai indicava, para o estado do Acre, a notável população de “zero indivíduo”. Oficialmente, não havia mais índios no Acre. Aí começam a abrir as estradas por lá, a derrubar a mata, a botar boi, e eis que começam a aparecer índios a atravancar a expansão dos pastos e a destruição da floresta. (Junto com índios, como se sabe, começaram também a aparecer os seringueiros, que se imaginava como mais outra “raça” em extinção. E bem que se tentou extingui-los naquela época – lembrem-se de Chico Mendes.) Ora, índios sempre houve lá no Acre, todo mundo no Acre sabia que eles estavam lá, mas eles não existiam em Brasília, ou melhor, para Brasília. Agora sabe-se e aceita-se que o estado do Acre abriga, atualmente, 14 povos indígenas, alguns de significativa expressão demográfica, como os Kaxinauá e os Kulina. O Acre é um estado profundamente indígena, dos pontos de vista cultural, histórico e demográfico. Na verdade, ele é hoje o principal exportador de práticas e símbolos indígenas (mais ou menos transformados) para o Brasil urbano atual.

A que mais se deve essa redescoberta dos índios nas últimas décadas?
Tudo começou com uma iniciativa fracassada do governo militar, em 1978, que visava extinguir os índios, entenda-se, acelerar o processo de desconhecimento da população indígena, consagrar seu não reconhecimento como um componente diferenciado dentro da chamada “comunhão nacional”. Completar o processo de “assimilação”, isto é, de desindianização, que se entendia como inexorável e desejável ao mesmo tempo. O governo propôs um projeto de lei para “emancipar” os índios, isto é, extinguir a tutela oficial do Estado que os protegia. O verdadeiro objetivo da medida era liberar as terras indígenas, terras públicas, de domínio da União, inalienáveis, para que entrassem no mercado fundiário capitalista. Ao declarar que esta ou aquela população indígena não “era mais” índia, porque seus membros falavam português, ou usavam roupa etc., o que o projeto de lei pretendia era entregar as terras públicas de posse dos índios nas mãos dos interesses proprietariais particulares. Simplesmente se queria tirar os índios da frente do trator do capital: em vez de índio, que venham o gado, a soja, os madeireiros, o latifúndio, o mercado de terras, a mineração, a estrada, a poluição e tudo que vem junto. E que muitos chamam de “desenvolvimento”.

Mas, naquele momento, os idos de 1978, quando estava se consolidando a resistência organizada à ditadura, muito da insatisfação política da classe média, dos intelectuais principalmente, se cristalizou em torno da questão indígena, como se ela fosse uma espécie de emblema do destino de todos os brasileiros. É também nesse momento que tomam ímpeto o movimento negro, o movimento feminista, a politização ativa da orientação sexual, a emergência de diversas minorias, diversas diversidades por assim dizer: étnicas, locais, sexuais, ocupacionais, culturais etc. A luta de classes assumia cada vez mais o caráter de uma integração parcial de uma série de diferenciais traçados sobre outros eixos que a economia pura e simples (as relações de produção). Começam a surgir outros atores políticos. É o momento da especulação e da experimentação generalizadas: outras práticas do laço social, outras imagens da sociedade, que não se reduzem ao par Estado-classes sociais, mas que envolvem outras formas de vida, outros territórios existenciais. Os índios foram importantes por sua força exemplar, seu poder de condensação simbólica. Eles apareceram como portadores de outro projeto de sociedade, de outra solução de vida que contraprojetava uma imagem crítica da nossa.

Mas, desde o século 16, a vida indígena aparece como uma imagem crítica da vida “ocidental”.
Sim, sem dúvida. Há uma frase de um jovem filósofo que eu admiro muito, Patrice Maniglier, um grande especialista em Lévi-Strauss, aliás: “A antropologia nos devolve uma imagem de nós mesmos na qual nós não nos reconhecemos”. É por isso que ela é importante, porque nos devolve algo, ela nos “reflete”. Mas a gente vê essa imagem e não se reconhece nela. “Então nós, humanos, somos assim também? Podemos ser isso? Somos isso, em potência? Temos em nós a capacidade de viver assim? Essa é uma solução de vida ao nosso alcance, como espécie?” Em suma: “É possível ser feliz sem carro, geladeira e televisão?”. Isso nos dá um susto, um susto com valor de conhecimento. Os índios, desde o século 16, desempenharam essa função para a reflexão político-filosófica ocidental (para uma muito pequena parte dela, na verdade). E essa mesma função, mas modernizada, especificada e tornada mais evidente pelo fato de que os índios brasileiros da década 1970 – a década que inicia a ocupação destrutiva em larga escala da Amazônia – eram nossos conterrâneos e nossos contemporâneos, eles nos ensinavam algo não só sobre nós mesmos como sobre nosso projeto de país, o Brasil que queríamos, e que não era certamente o Brasil que tínhamos. Então, foi em torno das sociedades indígenas como diferença emergente que se constituiu a resistência contra o projeto de emancipação: uma resistência contra o projeto de privatização econômica, o branqueamento político e a estupidificação cultural do Brasil.

Os antropólogos, nesse contexto, começam a se organizar como categoria, aliando-se aos índios como atores políticos. Houve, é claro, antropólogos que tiveram um papel importantíssimo na história não só da causa indígena, mas da própria República, como Roquette Pinto ou Darcy Ribeiro, antes de (e durante) essa época. Mas naquele momento, no fim da década de 1970, os antropólogos se constituem como corporação para interpelar o governo e se opor ao projeto de emancipação. Essa mobilização sensibilizou a sociedade, entenda-se, outros intelectuais, militantes políticos de outras causas, advogados, juristas, artistas, e também as camadas médias urbanas, os estudantes… Ao mesmo tempo, e muito mais importante, os índios como que “acordaram” para seu poder de intervenção nos circuitos nacionais e internacionais de comunicação. Eles deixavam ali de ser um elemento do folclore nacional, de um passado vago e distante, e passavam a atores políticos do presente, signos críticos e urgentes de uma ultracontemporaneidade: signos do futuro, na verdade.

Enfim, é nesse momento, fim dos anos 1970, que ganha vulto todo o movimento de auto-organização de coletivos que não são mais redutíveis nem aos partidos nem aos sindicatos: a célebre “sociedade civil organizada”. É então também que começam a aparecer figuras indígenas individuais com destaque político. A primeira delas foi Mário Juruna, um deputado que foi tratado folcloricamente pela imprensa, mas que teve um papel estratégico para a emergência dos índios no cenário político-ideológico nacional e internacional (lembremos do Tribunal Russell). Juruna, que marcou presença por alguns gestos muitos simples, de grande “pega” midiática, ficou famoso com seu gravador – um edificante signo do poder da “tecnologia” nas mãos de um “selvagem”; melhor ainda, e agora de verdade, um dispositivo que preservava a potência e a imediatez da oralidade, o registro semiótico em que os indígenas se sentem completamente em casa – que armazenava as promessas e declarações de autoridades e políticos. Depois, promessa quebrada, declaração falseada pelos fatos, Juruna tocava seu gravador na frente da “otoridade” e dizia: “Mas não foi o contrário que o senhor falou?” “O senhor não havia prometido isso?” Depois de Mário Juruna, o protagonismo indígena, coletivo e individual, proliferou: associações, federações, líderes de grande expressão como Ailton Krenak e David Kopenawa.

Qual o papel da Constituinte de 1988 nesse processo?
Esse processo do fim da década de 1970 culminou em 1988, com a Constituinte e a Constituição, que tiveram um papel fundamental para formalizar a presença dos índios dentro da comunhão nacional. É aqui que se começa a reconhecer direitos coletivos, coisa que, salvo engano, mal existia no Brasil: direitos difusos, direitos coletivos, comunidades sujeitos de direito, índios, quilombolas. Uma vitória imensa, atestável no ódio que a Constituição de 1988 desperta na direita, sempre à espreita de uma oportunidade para “reformar” a Constituição, isto é, para desfigurá-la, e sempre eficaz na protelação da indispensável regulamentação de diversos artigos constitucionais.

O senhor vê com bons olhos as políticas de proteção dos direitos indígenas na era Lula?
Houve grandes conquistas, a mais importante, sem dúvida, o reconhecimento da terra indígena Raposa Serra do Sol. Mas manteve-se, ou mais, acentuou-se o projeto de governo baseado na equação falaciosa entre desenvolvimento e crescimento, em uma ideia de crescimento a qualquer preço e, nesse sentido (eu sublinho: apenas nesse sentido), o governo Lula manteve sua continuidade com todos os governos anteriores, pelo menos até Vargas e incluindo os governos da ditadura. Uma ideia de que é preciso conquistar o Brasil, ocupá-lo, civilizá-lo, modernizá-lo, desenvolvê-lo, implicando com isso a ideia de que os índios não são brasileiros, não estão lá, não vivem em suas terras segundo seus próprios esquemas civilizacionais, não possuem uma cultura viva e eficaz. Tudo isso se baseia em um modelo cultural falido, a ideia de modernidade.

E qual é esse modelo?
É o modelo de industrialização intensiva, poluente, de exportação maciça de matéria-prima, monocultura, agronegócio, transgênicos, agrotóxicos, petróleo… Ele bate de frente com os interesses das populações indígenas e, arrisco-me a dizer, com as perspectivas de toda a população do país e do planeta. O que precisamos é imaginar uma forma econômica com algum futuro, capaz de assegurar o suficiente para todos, uma vida que seja boa o bastante para as gerações vindouras. Então, eu tenho sérias restrições não à política indigenista do governo Lula – aliás, o atual presidente da Funai [Márcio Augusto Freitas de Meira] é um colega que admiro e respeito –, mas o problema é que essa política indigenista sempre teve de se dobrar aos imperativos de uma geopolítica nacional e internacional ambientalmente desastrosa. Toda vez que algum setor do governo ameaçou criar dificuldades para essa geopolitica desenvolvimentista, foi obrigado a entrar na linha, ou sair de cena. Veja Marina Silva. No caso da Funai, a tendência foi seguir os limites estreitos de manobra deixados pela Casa Civil e seu implacável desenvolvimentismo.

Qual seria, então, a alternativa a esse modelo?
O Brasil tem a oportunidade única de ser um dos poucos lugares da Terra onde um novo modelo de sociedade e de civilização poderia se constituir. Somos um dos poucos países do mundo que tem recursos suficientes para inventar outra ideia e outra prática de desenvolvimento. Parece que aprendeu muito pouco com a história recente do mundo. Quando se exporta soja e gado, está se exportando o quê? O solo, a água do país. Para fazer 1 quilo de carne, são necessários 15 mil litros de água; para 1 quilo de soja, são necessários 1.800 litros. O Brasil é o maior exportador de “água virtual” do mundo. Isso para não falarmos nos insumos venenosos: hormônios para o gado, fertilizantes, agrotóxicos… O Brasil é o maior consumidor de defensivos agrícolas do planeta. Imagine o risco sanitário a que estamos expostos. Todas essas maravilhas que tanto aumentam a produtividade agrícola (e ao mesmo tempo baixam a qualidade e a segurança dos alimentos) são-nos enfiadas garganta abaixo por grandes companhias transnacionais como a Monsanto, cuja ficha ambiental e política é mais que suja, é imunda.

E está em curso a polêmica sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Quando se fala em hidrelétricas, bem, de fato talvez seja melhor do que a energia nuclear – em princípio, uma vez que a questão do lixo nuclear está bem longe de ser resolvida, além dos problemas de segurança –, mas quais são as implicações do ponto de vista, por exemplo, do abastecimento de água? E, aliás, para quem vai o principal da energia elétrica que é produzida por uma grande hidrelétrica como Tucuruí, ou Belo Monte? Vai para a população ou para as fábricas de alumínio, os projetos de extração e processamento de cobre e níquel da Amazônia? O que fazem essas fábricas de alumínio? Latas de saquê e cerveja, principalmente. Por que as fábricas de alumínio estão aqui? Por que países como o Japão não querem gastar uma imensa quantidade de energia para mover as cubas eletrolíticas onde se funde o alumínio? É melhor que um país grande, periférico e perdulário detone seus rios. A usina de Tucuruí, concebida durante o regime militar, significou 2 bilhões de reais de subsídio para as indústrias de alumínio, como constatou um especialista recentemente. O destino real da energia produzida pelo Complexo Hidrelétrico de Belo Monte ainda é uma espécie de segredo de Estado. Mas parece que essa energia virá principalmente para o Sul e o Sudeste, ou servirá para alimentar novas indústrias eletrointensivas – cobre, bauxita, níquel – no Norte, algumas aliás
não nacionais (a direita vive falando no perigo de uma invasão estrangeira da Amazônia; ela já aconteceu, mas como é uma invasão do capital, parece que pode…). Os benefícios para a população, e especialmente para a população local, são muito duvidosos.

Como se deu seu contato com o pensamento de Lévi-Strauss?
Meu contato com Lévi-Strauss antecede meu contato com a antropologia. Foi enquanto eu fazia ciências sociais, em um curso de teoria literária dado por Luiz Costa Lima. Foi ele quem me aconselhou a fazer antropologia. Isso foi nos idos de 1969, 1970. Naquele momento, o estruturalismo antropológico estava penetrando em diversas áreas das ciências humanas, como a psicanálise e a crítica literária, então o Costa Lima, professor de literatura e grande teórico da área, resolveu dar um curso sobre As Mitológicas na sociologia da PUC-Rio, onde eu estudava.

O senhor poderia apresentar-nos o conceito do perspectivismo indígena?
Esse é um assunto sobre o qual hesito um pouco em falar, porque o termo “perspectivismo indígena” se tornou excessivamente popular no meio antropológico, e a ideia que ele designa começa a sofrer o que sofre toda ideia que se difunde muito e rapidamente: banalização, de um lado, despeito, de outro. Passa a servir para tudo, ou a não servir para nada. De qualquer forma, não fui eu quem inventou sozinho a teoria do perspectivismo indígena; foi um trabalho de grupo, em que se destaca a colaboração formativa que mantive com minha colega Tânia Stolze Lima. Tomamos emprestado do vocabulário filosófico esse termo de perspectivismo para qualificar um aspecto marcante de várias, senão de todas, as culturas nativas do Novo Mundo. Trata–se da noção de que o mundo é povoado por um número indefinidamente indeterminado de espécies de seres dotadas de consciência e cultura. Isso está associado à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é uma “roupa” que oculta uma forma interna humanoide, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Até aqui, nada de muito característico: a ideia de que a espécie humana não é um caso à parte dentro da criação, e de que há mais gente, mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias, é muito difundida entre as culturas tradicionais de todo o planeta.

O que distingue as cosmologias ameríndias é um desenvolvimento sui generis dessa ideia, a saber, a afirmação de que cada uma dessas espécies é dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, é constituída como um ponto de vista singular. Assim, o modo como os seres humanos veem os animais e outras gentes do universo – deuses, espíritos, mortos, plantas, objetos e artefatos – é diferente do modo como esses seres veem os humanos e veem a si mesmos. Cada espécie de ser, a começar pela nossa própria espécie, vê-se a si mesma como humana. Assim, as onças, por exemplo, se veem como gente: cada onça individual vê a si mesma e a seus semelhantes como seres humanos, organismos anatômica e funcionalmente idênticos aos nossos. Além disso, cada tipo de ser vê certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem objetos culturalmente elaborados: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos que os espectros dos mortos comem são vistos por estes como peixes assados etc. Em contrapartida, os animais não veem os humanos como humanos. As onças, assim, nos veem como animais de caça: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes também se veem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas, enquanto veem a nós humanos como se fôssemos espíritos canibais – pois os matamos e comemos.

E o que é o humano?
É essa capacidade de socialidade. Antes, tudo era transparente a tudo, os futuros animais e os futuros humanos, vamos chamar assim, se entendiam, todos se banhavam num mesmo universo de comunicabilidade recíproca. Lévi-Strauss tem uma definição muito boa, dada numa entrevista. O entrevistador pergunta: “O que é um mito?”. Lévi-Strauss responde: “Bom, se você perguntasse a um índio das Américas, é provável que ele respondesse: ‘Um mito é uma história do tempo em que os animais falavam’”. Essa definição, que parece banal, na verdade é muito profunda. O que ele está querendo dizer é que o mito é uma história do tempo em que os homens e os animais estavam em continuidade, se comunicavam entre si. Na verdade a humanidade nunca se conformou por ter perdido essa transparência com as demais formas de vida, e os mitos são uma espécie de nostalgia da comunicação perdida.

Essa é de fato uma noção universal no pensamento ameríndio, a de um estado originário de coacessibilidade entre os humanos e os animais. As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam atributos humanos e não humanos, em um contexto de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. O propósito da mitologia, com efeito, é narrar o fim desse estado: trata-se da célebre separação entre “cultura” e “natureza” analisada nas Mitológicas de Lévi-Strauss. Mas não se trata aqui de uma diferenciação do humano com base no animal, como é o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. Os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos; os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais. Se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido “completamente” animais, permanecemos, “no fundo”, animais –, o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmo continuam a ser humanos, mesmo que de modo não evidente.

Se tudo está impregnado de humanidade, quais são as consequências disso para o modo de vida indígena?
Se tudo é humano, nós não somos especiais; esse é o ponto. E, ao mesmo tempo, se tudo é humano, cuidado com o que você faz, porque, quando corta uma árvore ou mata um bicho, você não está simplesmente movendo partículas de matéria de um lado para o outro, você está tratando com gente que tem memória, se vinga, contra-ataca, e assim por diante. Como tudo é humano, tudo tem ouvidos, todas as suas ações têm consequências.

Suando no apocalipse (Folha de S.Paulo)

24/10/2014 02h00

Michel Laub

Num ensaio sobre “Júlio César”, filme de Joseph Mankiewicz baseado em Shakespeare, Roland Barthes vê na transpiração dos personagens um sinal de moralidade. “Todos suam porque debatem algo consigo mesmos”, escreve o pensador francês. Homens até então virtuosos, como Brutus, demonstram o “enorme trabalho fisiológico” que dá abandonar princípios para cometer um crime.

Se há uma moral no suor derramado em São Paulo, que teve dias de 37 graus em meio a uma crise hídrica sem precedentes, ela também deveria vir de uma espécie de culpa: a lembrança de que o clima excêntrico dos últimos anos nasce de uma responsabilidade coletiva, dos danos que nosso estilo de vida causa à natureza segundo a quase unanimidade dos cientistas.

É sobre a dificuldade de reconhecermos isso, entre outros temas, que trata uma entrevista recente do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e da filósofa Déborah Danowski à jornalista e escritora Eliane Brum. Se um utopista consegue imaginar coisas grandes e abstratas, como o tal do mundo melhor, mas não implementá-las na prática, hoje seríamos o contrário: tecnicamente capazes de fazer drones e bombas, mas não de conceber –ao menos em empatia– a hipótese concreta de seus efeitos.

Daí nasce a leviandade com que seguimos tratando florestas, rios e cidades, apesar dos múltiplos alertas. Na entrevista, publicada no site do “El País”, o cenário em que estamos prestes a entrar –uma megalópole sem água– é descrito como uma versão real da ficção maia do fim do mundo, uma narrativa sem redenção em que “nosso primeiro pé já encontrou o nada”.

A saída para amenizar o estrago seria a superação de um modelo baseado na “acumulação de lixo como principal produto”. Aqui entra o lado político de Viveiros de Castro, que desagrada petistas, tucanos e qualquer um que celebre a entrada de milhões de brasileiros no mercado consumidor. Na campanha que se encerra domingo, os argumentos do antropólogo foram compreensivelmente ignorados.

Segundo ele, a visão do pobre como um “nós de segunda classe”, alguém que deve ser melhorado para se tornar no futuro o que somos hoje –com nossas geladeiras, carros, comida transgênica barata e farta, Netflix sob o ar-condicionado silencioso–, é parte do problema. Não há recursos que deem conta de tanta demanda sem causar desmatamento, poluição, fluxos migratórios forçados e trágicos.

Um otimista à esquerda dirá que o caminho não é o crescimento sem limites, e sim uma distribuição radical da riqueza. Viveiros de Castro usa a expressão “superdesenvolvido” para nações como os Estados Unidos, onde o gasto individual é o equivalente ao de 32 pessoas do Quênia. Já um otimista à direita dirá que o capitalismo sempre criou tecnologias que o salvaram de impasses como o atual.

Tendo como parâmetro a história, na qual também há tragédias suficientes geradas pelo igualitarismo puro e duro (e que não é igualitarismo, vide a ex-URSS), o segundo cenário é mais possível. Difícil imaginar o Primeiro Mundo abrindo mão de sua riqueza voluntariamente e no prazo necessário. Ou países com imensas dívidas sociais –Brasil, Índia, China– desistindo de sua chance de desenvolvimento tardio.

O problema é que “possível” é diferente de “provável”. O otimismo gosta de se alimentar da falta de informação. Ou de uma ingenuidade teimosa em relação à boa fé e visão de longo prazo de quem nos dirige. A usina nuclear de Fukushima foi construída numa área sujeita a tsunamis. No circo negacionista da Sabesp, somos palhaços por motivos eleitorais.

Num outro ensaio de Barthes, igualmente sobre um tema a calhar aqui –o plástico–, o milagre é definido como uma “conversão brusca da natureza”. O mesmo daria para dizer de seu avesso, a catástrofe. Déborah Danowski acredita que a dúvida não é mais sobre se ela vai acontecer, e sim sobre sua dimensão –a diferença entre um aquecimento de dois, quatro ou seis graus na Terra, entre uma vida “difícil” e uma “hostil à espécie humana”.

Diante disso, acrescenta Viveiros de Castro, nos restará pouco além de aprender com aqueles que, sem sonhos produtivos e consumistas, são o oposto dos pobres: os índios. No Brasil, eles experimentam o apocalipse desde 1500. Se há algo que conhecem bem, é como tentar “viver melhor num mundo pior”, num presente/futuro que foi “roubado por nós mesmos de nós”

A gaiatologia por vir (Partes sem um todo)

Publicado em 27 de agosto de 2014

capaandre

Sobre Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, livro de Déborah Danwoski e Eduardo Viveiros de Castro

Segundo Bruno Latour, a catástrofe ambiental em curso faz com que “nos sintamos transportados de volta para o clima do século XVI. Uma outra Era do Descobrimento”: “nos encontramos exatamente em uma Era similar àquela de Colombo, quando sua viagem encontrou um continente inteiramente novo”. E como o “problema”, a “solução” também lhe parece semelhante: tratar-se-ia de estabelecer um novo “Nomos da Terra”, nome cunhado por Carl Schmitt para designar a ordem jurídica mundial estabelecida com a Conquista (o “descobrimento”), e que consistiria na divisão do mundo em duas zonas: a Europa, em que vigeriam as regras do direito de guerra, ou seja, o espaço de normalidade; e o mar e as zonas “livres” – o Novo e Novíssimo Mundo –, que podiam ser simplesmente apropriáveis pelas potências europeias e sua “superioridade espiritual”, espaço de excepcionalidade em que não haveria mitigação da guerra. Nesse sentido, se há algum Nomos da Terra que se avizinha, este parece ser a ordem (de pânico) que Isabelle Stengers visualiza no horizonte: a formação de uma espécie de governo de caráter global (espaço normal), legitimado a agir excepcionalmente (isto é, a intervir) sobre países e coletivos sob o imperativo da urgência da crise. É evidente que Latour toma o conceito do “tóxico” Schmitt com pinças, buscando uma outra idéia de Nomos, mas será que é possível fazê-lo, tendo como ponto de partida a analogia com o “descobrimento”? Será que é possível no cenário atual retomar a oposição amigo-inimigo schmittiana, oposição narcisista em que o inimigo é definido como “negação existencial” do amigo, isto é, seu mero negativo, sem consistência própria? Os Terranos (amigo?) de que fala tão belamente Latour seriam apenas a negação dos Humanos (inimigo?)?

A questão maior talvez seja a do ponto de vista: Nós quem, cara pálida?, parecem perguntar ao seu principal interlocutor, de modo sutil mas provocante ao longo desse ensaio, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, os quais, americanos não-atacados pela síndrome de Estocolmo como grande parte da esquerda, rejeitam a posição universalista que o Ocidente se adjudicou a si e insistem a todo momento em colocar o dedo na ferida: quem é esse nós (o “sujeito” que se vê novamente na Era do Descobrimento, o mesmo “sujeito” do Descobrimento), quem é o anthropos do Antropoceno? E quem são os outros, quem são esses “nós-outros” que estavam do lado de lá (de cá) do Descobrimento, para os quais este foi uma Conquista, um primeiro – de muitos – fim de mundo?Há mundo por vir? Ensaio sobre o medo e os fins, ao passar em revista algumas formulações – estéticas, filosóficas, etc. – da mitologia contemporânea em torno do fim do mundo, tornada realidade tangível (a “mitofísica” contemporânea, pra usar uma expressão genial dos autores), não adota a posição do demiurgo criador da ordem (Nomos), mas do deceptor que confunde as divisões (amigo-inimigo), que divide as divisões, que desobedece as hierarquias: um exercício de bricolagem em que se encontram os Singularitanos e os Maya, formulações de Meillassoux e um mito aikewara, Melancholia e Chiapas, Gaia e Pachamama. O encontro promovido pela “descoberta”, lembra Oswald de Andrade, não era apenas do europeu com um “continente inteiramente novo” a ser apropriado, mas com uma “humanidade inteiramente nova”, isto é, “uma humanidade diferente da que era então conhecida” pelos europeus – e a expressão máxima de tal encontro seriam as Utopias, resultado da percepção sensível da contingência das formações político-econômico-metafísicas ocidentais, isto é, a possibilidade de um outro mundo, de outros mundos possíveis, incluindo aí, uma outra concepção do homem. Se o Nomos representou uma “saída” (pra que tudo continuasse igual) do beco-sem-saída da mitigação da guerra, as Utopias significavam, por sua vez, uma linha de fuga. E são justamente linhas de fuga (e não identidades e oposições) que Danowski e Viveiros de Castro apresentam a partir desses encontros de fins de mundo: a possibilidade (e talvez a necessidade) de um “bom encontro” da nossa (?) mitologia com a ameríndia, para se contrapor ao “mau encontro” da Descoberta (o genocídio americano, mas também a polícia mundial que a nova Era pode trazer). Não se trata, porém, de um encontro pacífico, mas cheio de faíscas, beligerante, mas não de uma guerra narcísica, e sim de uma guerrilha de resistência, contra o Estado, contra a forma-Estado de pensamento. O que se questiona é a própria oposição binária (o princípio da não-contradição) das identificações: o que está em jogo é um exercício de descentramento, em que o “ser-enquanto-outro” do pensamento ameríndio permite repotencializar também aqueles momentos do pensamento ocidental em que o Ocidente difere de si mesmo (Deleuze e Guattari, a monadologia panpsiquista de Gabriel Tarde, a cosmologia de Peirce – e, eu acrescentaria, talvez mesmo a oikeiosis estóica, já que estamos falando de ecologia), em que a alteridade deixa vestígios erráticos que são roteiros de um mundo por vir. E um desses roteiros talvez seja a biografiade Thoreau – o qual dizia ser apenas “um hóspede da Natureza” –, sobre quem Virginia Wolff pergunta se sua “simplicidade é algo que vale por si mesmo” ou seria “antes um método de intensificação, um modo de pôr em liberdade a complicada e delicada máquina da alma, tornando-se assim seus resultados o contrário do simples?” Pergunta retórica, evidentemente: Thoreau, como poucos (ocidentais), soube limitar o limite, isto é, viver a partir do limite, mas no limite, isto é: convertendo o limite, de impedimento extensional, em via de acesso à intensidade. Para dizê-lo com uma expressão de Viveiros de Castro: soube viver/fazer a “poesia do mundo”. Nesse sentido, se “É difícil saber”, como afirma Wolff, “se devemos considerá-lo o último de uma linhagem mais antiga de homens, ou o primeiro de uma ainda por vir”, índio ou moderno, isso se deve ao fato de que o agenciamento, a composição de Thoreau inopera o binarismo: é um velho que devém jovem, um moderno que devém índio. Dito de outro modo: os Terranos de Danowski e Viveiros de Castro não são uma identidade ou uma essência ou uma substância, mas um devir: são aqueles que, segundo Juliana Fausto, dizem, com Bartleby, I would prefer not, e que devêm, eu arriscaria afirmar, nesse gesto e enquanto dura esse gesto, gaiatos. De fato, há mundo por vir parece apresentar como ciência por vir nesses tempos sombrios de homens sombrios isso que poderíamos chamar de “gaiatologia”, a feliz ciência não do homem, mas do gaiato, não dessa espécie envelhecida e que envelhece o planeta, mas daquele ainda por vir jovem habitante de Gaia, a ciência do bricoleur, da gambiarra (conceito tomado a partir de Fernanda Bruno, e que tem um lugar de destaque ao final do livro, enquanto técnica de agenciamento natural-cultural). O mundo está acabando, mas a alegria continua a ser a prova dos nove.

Viveiros de Castro: A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida (Público)

16 de março de 2014

ALEXANDRA LUCAS COELHO (no Rio de Janeiro)

Fome, secas, epidemias, matanças: a Terra aproxima-se do apocalipse. Talvez daqui a 50 anos nem faça sentido falar em Brasil, como Estado-nação. Entretanto, há que resistir ao avanço do capitalismo. As redes sociais são uma nova hipótese de insurreição. Presente, passado e futuro, segundo um dos maiores pensadores brasileiros

Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, é o mais reconhecido e discutido antropólogo do Brasil. Acha que “a ditadura brasileira não acabou”, evoluiu para uma “democracia consentida”. Vê nas redes sociais, onde tem milhares de seguidores, a hipótese de uma nova espécie de guerrilha, ou resistência. Não perdoa a Lula da Silva ter optado pela via capitalista e acha que Dilma Rousseff tem uma relação “quase patológica” com a Amazônia e os índios. Não votará nela “nem sob pelotão de fuzilamento”.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é autor de uma obra influente, que inclui “A Inconstância da Alma Selvagem” e “Araweté — O Povo do Ipixuna” DÉBORAH DANOWSKI

Professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, autor de uma obra influente (destaque para A Inconstância da Alma Selvagem ou Araweté — O Povo do Ipixuna, este último editado em Portugal pela Assírio & Alvim), Viveiros de Castro é o criador do perspectivismo ameríndio, segundo a qual a humanidade é um ponto de vista: a onça vê-se como humana e vê o homem como animal; o porco vê-se como humano e vê a onça como animal. Humano é sempre quem olha.

Nesta longa entrevista, feita há um mês no seu apartamento da Baía de Botafogo — antes ainda da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um exemplo de revolta bem sucedida — Viveiros foi da Copa do Mundo ao fim do mundo. Acredita que estamos à beira do apocalipse.

Vê sinais de uma revolta nas ruas brasileiras? Aquilo que aconteceu em 2013 foi um levantamento mas não uma revolta generalizada. Acha que isso pode acontecer antes da Copa, ou durante?

É muito difícil separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você deseja que vá acontecer.

Vamos separar. O que desejaria que acontecesse?

Revolta popular durante a Copa.

E isso significa o quê, exactamente?

Manifestação. Não estou imaginando a queda da Bastilha nem a explosão de nada, mas gostaria que a população carioca o deixasse muito claro. Embora a Copa vá acontecer em várias cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do problema da Copa, em parte porque o jogo final será no Maracanã.

Mesmo nas manifestações, o Rio foi a cidade mais forte.

São Paulo também teve manifestações muito importantes, mais conectadas com o Movimento Passe Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013 iniciaram os protestos contra o aumento dos transportes]. Voltando ao que eu desejaria: que a população carioca manifestasse a sua insatisfação em relação à forma como a cidade está sendo transformada numa espécie de empresa, numa vitrine turística, colonizada pelo grande capital, com a construção de grandes hotéis, oferecendo oportunidades às grandes empreiteiras, um balcão de negócios, sob a desculpa de que a Copa iria trazer dinheiro, visibilidade, para o Brasil.

O problema é que vai trazer má visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda para o Brasil. Primeiro, porque, se estou bem entendendo, vários compromissos contratuais com a FIFA não estão sendo honrados, atrasos muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que os brasileiros estão achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem aqui e baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai fazer muito bem à imagem do Brasil.

Outra coisa importante é que a Copa foi vendida à opinião pública como algo que ia ser praticamente financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está se vendo é o contrário, o governo brasileiro investindo maciçamente, gastando dinheiro para essas reformas de estádios, dinheiro dos impostos. Então, nós estamos pagando para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com as copas é a FIFA.

Desejaria que essa revolta impedisse mesmo a Copa?

Impedir a Copa é impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se seria bom, poderia produzir alguma complicação diplomática, ou uma repressão muito violenta dentro do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter Copa. O nome completo é: Sem Respeito aos Direitos Não Vai Ter Copa. No sentido desiderativo: não deveria haver, desejamos que não haja.

O que se está dizendo é que os direitos de várias camadas da população estão sendo brutalmente desrespeitados, com remoções forçadas de comunidades, desapropriando sem indemnização, modificando aspectos fundamentais da paisagem carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo está irritando a população.

Mas não é só isso: a insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras que vieram surgindo nos últimos anos, que envolvem categorias sociais diversas, e não estão sendo organizadas nem controladas pelos partidos. Essas manifestações têm de tudo, uma quantidade imensa de pautas [reivindicações]. Tem gente que quer só fazer bagunça, tem gente de direita, infiltrados da polícia, neonazistas, anarquistas. Um conjunto complexo de fenómenos com uma combinação de causas. Uma coisa importante é que são transversais: tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. Da classe média alta à [favela da] Rocinha.

Mas agora não são muito expressivas em termos de números. E não são as favelas que estão em massa na rua.

As famosas massas ainda não desceram, e provavelmente não vão descer durante a Copa. Nem sei se vão descer em alguma momento, se existe isso no Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de pequenas manifestações. Por exemplo, a Aldeia Maracanã [pequena comunidade de índios pressionada a sair, por causa das obras do estádio] produziu uma confusão muito grande, se você pensar no tamanho da população envolvida. Os moradores daquela casa eram 14 pessoas e não obstante mobilizaram destacamentos do Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem está, em grande parte, criando a movimentação popular é o estado, com a sua reacção desproporcional. O Movimento Passe Livre ganhou aquela explosão em São Paulo por causa da brutalidade da reacção policial. O Brasil nunca teve esse tipo de confronto entre a polícia e jovens manifestantes. A polícia não sabe como reagir, não tem um método, então reage de maneira brutal. Os próprios manifestantes não têm experiência de organização. O que estão chamando de black bloc não é a mesma coisa que black bloc na Dinamarca, na Alemanha ou nos Estados Unidos.

Mais volátil.

Ideologicamente pouco consistente. Sabemos que o black bloc europeu é essencialmente uma táctica de protecção contra a polícia. Noutros países, como os Estados Unidos, tem uma certa táctica de agressão a símbolos do capitalismo. Aqui no Rio está uma coisa meio misturada, ainda não se consolidou uma identidade, um perfil táctico claro para o que se chama de black bloc. E eles estão sendo demonizados. Acho até que, no caso do Brasil, o facto de que sejam black coloca uma pequena ponta de racismo nessa indignação. Não duvido de que no imaginário da classe média por trás da máscara negra esteja também um rosto negro. Pobres, bandidos, etc.

Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo que a polícia continua invadindo as favelas, matando 10, 12, 15 jovens por semana. Até recentemente esse comportamento clássico do estado diante da população muito pobre, isto é, mandar a polícia entrar e arrebentar, era algo que a classe média tomava como… [sinal de longínquo].

Porque se passava lá nos morros.

Quando a violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de borracha não seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala de verdade e o que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você pode matar com bala de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia começou a atacar tanto a rua quanto o morro houve um aumento da percepção da classe média em relação à violência da polícia nas favelas, o que é novidade. A imprensa fez uma imensa campanha para santificar a polícia com a coisa das UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, programa para acabar com o poder armado paralelo nas favelas, instalando a polícia lá dentro], mas todo o mundo está percebendo que essas UPP são no mínimo ambíguas. Basta ver o caso do [ajudante de pedreiro] Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto pela polícia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da imprensa.

Vinte e cinco policiais foram indiciados.

Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não foi a grande imprensa. Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa morte é absolutamente banal, acontece toda a semana nas favelas, mas calhou de acontecer na altura das manifestações, então foi capturada pelos manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o morro e a rua que foi inédita.

Num país como este, em que a desigualdade, a violência, continuam, porque é que as massas não saem?

Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz desde que existe no Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país muito diferente de todos os outros da América Latina, por exemplo da Argentina. Basta comparar a história para ver a diferença em termos de participação política, mobilização popular. Tenho impressão de que isso se deve em larga medida à herança da escravidão no Brasil. O Brasil é um país muito mais racista do que os Estados Unidos. Claro que é um racismo diferente. O racismo americano é protestante. Mas no Brasil há um racismo político muito forte, não só ideológico como o americano, interpessoal. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata. Você vê o caso do menino [mulato] amarrado no poste [no bairro do Flamengo, por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: mas meu senhor, eu não estava fazendo nada. Só essa expressão, “meu senhor”… O trágico foi essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era branco.

Como um DNA, algo que não acabou.

Não acabou, pois é. É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência mas sem revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a violência no sentido clássico, francês, revolucionário.

E toda a vez que acontecem coisas como essas manifestações de Junho, por exemplo, há aquela sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não desceu. Em parte porque já não é mais o morro, boa parte do morro é de classe média. Evidentemente, houve um crescimento económico. As favelas da minha infância, nos anos 50, eram completamente diferente, como essas vilas da Amazônia, feitas de lona preta. Hoje são casas de alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim a miséria continua. Quero dizer apenas que a distância entre a classe média e o morro diminuiu do ponto de vista económico.

Ao fazer ascender esses milhões da miséria, o PT neutralizou a revolução?

Em parte pode ser isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT, segundo a qual a única maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer na renda dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de onde é que eles estão tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio ambiente para poder vender soja, carne, para a China. Não está havendo redistribuição de renda, o que está havendo é aumento da renda produzida pela queima dos móveis da casa para aquecer a população, digamos. Está um pouquinho mais quente, não estamos morrendo de frio, mas estamos destruindo o Brasil central, devastando a Amazônia. Tudo foi feito para não botar a mão no bolso dos ricos. E não provocar os militares.

A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida pelos militares. Compare com a Argentina: porque é que no Brasil não houve julgamento dos militares envolvidos na tortura?  Porque os militares não deixam. Vamos ver o que vai acontecer agora, no dia 1 de Abril.

Com o aniversário do golpe militar.

Já existe uma campanha aí, subterrânea, para que no dia 31 de Março apaguem-se as luzes, toquem-se buzinas, para comemorar o 50º aniversário do golpe. Ou seja, existe uma campanha da direita para mostrar que a população ainda apoia a direita. Não sei que sucesso vai ter, mas não duvido que haja uma manifestação, oculta, pessoas que vão apagar as luzes das suas casas ou piscar as luzes à meia-noite, alguma coisa assim.

Mas nenhuma possibilidade de viragem à direita.

Não creio.

O actual regime não é uma democracia?

O Brasil é uma democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A abertura foi permitida pelos militares. A Lei da Amnistia foi imposta tal qual pelo governo militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados. Simplesmente foram amnistiados. E boa parte do projecto de desenvolvimento nacional gestado durante a ditadura militar está sendo aplicado com a maior eficiência.

Pela esquerda.

Pela chamada esquerda, pela coalisão que está no poder, na qual a esquerda é uma parte mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes empresários.

Está cumprindo um ideário que vem da ditadura?

O PT é um partido operário do século XIX. Eles têm um modelo que é indústria, crescimento, como se o Brasil fosse os Estados Unidos do século XXI. Com grande consumo de energia. Uma concepção antiga, fora de sintonia com o mundo actual. Agora está começando a mudar um pouco, mas a falta de sensibilidade do governo para o facto de que o Brasil é um país que está localizado no planeta Terra, e não no céu, é muito grande. Eles não percebem. Acham que o Brasil é um mundo em si mesmo.

Ou seja, que não vai ser afectado pelo aquecimento global, etc.

É, que todas essas coisas são com os outros. Um pouco como acontece nos Estados Unidos, em países muito grandes.

A única visão global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica. O Brasil, hoje, é um actor maior, de primeira linha, em Moçambique, em Angola, nos países latino-americanos. Está disputando com a China pedaços de Moçambique. A Odebrecht está construindo hidroeléctricas [barragens] em Angola e assim por diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir. Agora é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os brasileiros da vez vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que trabalham nas “sweetshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e etc. O PT nunca foi um partido de esquerda. É um partido que procurava transformar a classe operária numa classe operária americana.

E nunca o Brasil foi um país tão capitalista.

Minha mulher me contou que, conversando com um desconhecido, operador da bolsa de valores, isto em 2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser tão bom para nós jamais teria votado contra o Lula.

Onde está a esquerda? Qual é a sua opção de voto? Ou a opção deixou de ser votar?

Tanto a esquerda como a direita são posições políticas que você encontra dentro da classe média. A classe dominante é de direita de maneira genética, a grande burguesia, o grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora… se eu fosse fazer um juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por cento do Brasil estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse dinheiro para comprar geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem uma profunda desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas na rua, que seria a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.

Iapii-hi, índia Araweté, prepara doce de milho (fotografia de 1982) EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

Depois do garoto do Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais é que botar bandido na cadeia, fizeram foi pouco com ele.

Ou seja, é um país conservador, reaccionário, em que os pobres colaboram com a sua opressão. Não todos, mas existe isso. A escravidão venceu no Brasil, ela nunca foi abolida. Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo francamente. Em relação ao passado e ao futuro. Em relação ao passado no sentido de que é um país que jamais se libertou do ethos, do imaginário profundo da escravidão, em que o sonho de todo o escravo é ser senhor de escravos, o sonho de todo o oprimido é ser o opressor. Daí essa reacção: tem mais é que botar esses caras na cadeia. Em vez de se solidarizar. E podia ser o filho dele facilmente. E às vezes é o filho dele.

Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O Brasil nunca declarou a sua independência.” Em certo sentido é verdade, porque quem declarou a independência do Brasil foi Portugal, um rei português. Eu diria: e tão pouco aboliu a escravidão. Porque quem aboliu a escravidão foi a própria classe escravocrata. Não foi nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil.

E em relação ao futuro sou pessimista porque… talvez ainda tenha um pouco de esperança, mas acho que o Brasil já perdeu a oportunidade de inventar uma nova forma de civilização. Um país que teria todas as condições para isso: ecológicas, geográficas.

Uma espécie de terceira via do mundo?

É, outra civilização. Porque civilização não é necessariamente transformar um país tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja, de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e culturais completamente diferentes.

Lembremos que houve um projecto explícito no Brasil, e que deu certo, que está dando certo, por isso é que sou pessimista, que é o projecto iniciado com Pedro II, em parte inspirado pelo célebre teórico racista Gobineau, que era uma grande admiração de D. Pedro: o Brasil só teria saída mediante o braqueamento da população, porque a escravidão tinha trazido uma tara, uma raça inferior.

Havia que lavar o sangue.

É uma ideia antiga, que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que tinham de limpar o sangue. A gente sabe que quase toda a população portuguesa que se instalou no Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por cento desses brancos orgulhosos de serem brasileiros são judeus, marranos, convertidos a ferro e fogo pela Inquisição. Então, havia essa ideia de que o Brasil era um país racialmente inferior porque era composto de negros, índios, portugueses com essa origem um pouco duvidosa. E já Portugal em si não é…

A Holanda.

Exacto. Não é a coisa mais branca que podemos encontrar na Europa. A Península Ibérica é um pouco africana, foi dominada 800 anos pelos árabes. Então o Brasil só ia melhorar com branqueamento. Isso foi uma política de estado que durou décadas e trouxe para o Brasil milhões de imigrantes alemães, italianos, mais tarde japoneses. Com o propósito explícito de branquear, não só geneticamente, mas culturalmente e economicamente. E eles foram para o Sul, de São Paulo até ao Rio Grande. Mas, esse que é o ponto curioso, a partir do governo militar para cá essa população branca invadiu o Brasil, a Amazônia. A colonização da Amazônia a partir da década de 70 foi feita pelos gaúchos, muitos deles pobres, que foram expulsos, alemães pobres, italianos pobres, cujas pequenas propriedades fundiárias foram absorvidas pelos grandes proprietários, também gaúchos, também brancos, e que foram estimulados pelo governo, com subsídios, promessas mirabolantes, a irem para a Amazônia. Hoje, tem um cinturão de cidades no sul da Amazônia com nomes como Porto dos Gaúchos, Querência, que é um lugar onde se guarda o gado, típico do Rio Grande do Sul. Os gaúchos [de origem europeia] chegaram numa região temperada, subtropical [sul do Brasil] em que você podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura agrícola, de produção alimentar do país de origem. Só que na Amazônia isso é uma abominação. É um preconceito muito difundido essa ideia de que pessoal do Norte não sabe trabalhar, é preguiçoso. Você ouve muito isto no Paraná, no Rio Grande do Sul. Quem sabe trabalhar é o colono alemão, italiano.

Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de grande carrão, 4×4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um projecto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reaccionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do campesinato reaccionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral, índio no interior.

O censo da população dá por uma unha uma maioria não-branca.

O agronegócio é na verdade o modelo gaúcho, desenvolvido no pampa, nos campos do Rio Grande. Plantação extensa de monocultura, de soja, de arroz, de cana. Então o Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir como um novo modelo de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que fosse efectivamente multinacional. Um país que se constituiu em cima do genocídio indígena, da escravidão, da monocultura. Que continua fazendo o que fez desde que foi criado, exportando produtos agrícolas. Que continua a alimentar os países industrializados. Primeiro a Europa, depois os Estados Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do capitalismo.

E o matadouro.

O segundo maior rebanho bovino do mundo, depois da Austrália. Um país que se está destruindo a si mesmo para se transformar numa caricatura dos países que lhe servem de modelo cultural. Em vez de, ao contrário, saber utilizar a sua situação geográfica altamente privilegiada, a sua situação demográfica, uma população imensa, para construir um novo estilo de civilização.

O senhor está descrevendo a derrota do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade [visão de um Brasil que se torna forte por comer, absorver o outro]

É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem passa tanto pelo facto de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda poderia haver uma revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma questão que já não teria mais sentido colocar pelo simples facto de que estamos numa situação planetária em que a catástrofe já se iniciou. O mundo está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime ambiental que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo. Nessas circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento em que noções como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua nitidez. Pode ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum sentido. Que tenhamos que falar em Terra.

É um pré-apocalipse?

Dira que sim. Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é adequada porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos vivendo é uma situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver com ela para sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não haverá mais peixes, os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de refugiados que vão invadir a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a temperatura subir quatro graus, que é o que todos os climatologistas estão imaginando, isso vai produzir uma mudança total no que é viver na Terra. E a quantidade de africanos que vai invadir a Europa vai ser um pouco maior do que aqueles pobres que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os países ricos vão reagir? É uma questão interessante. Vai ser com armas atómicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo passa mais por aí.

No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma política? Vai ter revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade, fundamental, mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.

Não vê ninguém no Brasil, politicamente, que tenha uma visão ampla? O senhor votou na Marina Silva [nas últimas presidenciais].

Votei na Marina em 2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que votaria nela em 2014, talvez não.

Eduardo Campos [candidato pernambucano que fez uma aliança com Marina]?

De forma nenhuma. A Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.

Qual é a missão, o papel, a hipótese para alguém como o senhor? Virar uma espécie de guerrilheiro nas redes sociais?

É. Eu diria que a revolução antropofágica do Oswald de Andrade só é possível sob o modo da guerrilha. Estamos falando de uma coisa que foi pensada em 1928…

Mas que foi revivendo, anos 60, agora.

O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no Brasil como uma coisa sobre a qual você podia pôr e dispôr. Nesse sentido, ele pertence à geração dos teóricos do Brasil, que eram todos da elite dominante paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Eduardo Prado. Os modernistas eram uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser organizado, governado.

Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do declínio geral do planeta. Nessas condições é possível que haja esperança para os negros, os índios, os quilombolas [descendentes de escravos], os gays, os pobres desse planeta favela. Não esqueçamos que o mundo tem três bilhões e meio de habitantes vivendo em cidade, metade da população mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive em favelas. Ou seja, um sétimo da população mundial vive em favelas. O Brasil deve ter uma proporção maior que a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve andar na casa dos 30 milhões. [A população de] um bom país europeu.

Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma guerrilha virtual apenas?

Nem uma coisa nem outra. A existência da Internet mudou as condições da guerra, em geral, sim. O maior acto de guerra recente, no bom sentido, de que me consigo lembrar foi o Edward Snowden. Não mais os Estados Unidos espionando a Rússia, nem a Rússia espionando os Estados Unidos, mas o vazamento de informações secretas dos estados. Isso é muito significativo. Um jornalista morando aqui no Rio de Janeiro, que trabalha para um jornal inglês, que recebeu informações de um analista americano, que estava escondido em Hong Kong: isso só é possível com Internet. As redes sociais mudaram completamente as condições de resistência ao capitalismo.

Uma nova forma de guerrilha?

Que não é nececessariamente violenta, embora exista o problema do hacker, do bombardeio de sistema electrónico. Mas o que penso não é bem por aí. Quando penso em guerrilha, é no sentido de combates locais, ponto a ponto. Não estou falando de quebrar a porta do banco ou bater na polícia. Falo em combates em que você seja capaz de conectar combates locais através do mundo inteiro.

Existem formas novas de resistência e aliança entre as minorias étnicas, culturais, económicas do planeta que passam pela conectividade universal da rede, que é frágil, ao contrário do que se imagina, com pontos fracos, nós, gargalos, em que os Estados Unidos têm um poder muito grande. Mas eu diria que é muito difícil controlá-la até porque essa rede é indispensável para o capitalismo. Difícil o capitalismo danificá-la demais, senão vai perder seu principal instrumento hoje. Ainda que haja várias tentativas, no Brasil inclusive, de vigilância.

É possível que a gente passe para um estado de vigilância à la George Orwell. Tudo isso é possível. Mas acho também que a situação actual permite o desenvolvimento de uma guerrilha de informação, muito mais que de acção física, porque a informação hoje é uma mercadoria fundamental, estamos na economia do conhecimento, então a guerra é uma guerra também pela informação. É por aí que tenho alguma esperança, muito mais que numa saída nas ruas, com ancinhos, forcados, machetes.

Parar de imaginar uma luta de classes e imaginar uma guerrilha de classes. Classe definida, agora, não só de maneira classicamente económica mas no contexto da nova economia, que mudou a composição de classes. Vários intelectuais hoje pertencem à classe dominada, operária. Então, vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as guerras em geral terminam na constituição de um novo poder totalitário, um novo terror. O “Manifesto Antropófago” pode acabar se realizando mais por esse lado. O sonho clássico da revolução, como transformação de um estado A em estado B é um sonho pouco interessante.

Não há desfecho.

Não há desfecho. Prefiro falar em insurreição do que em revolução, hoje. Um estado de insurreição permanente como resistência. A palavra talvez seja mais resistência, insurreição, do que revolução e guerra. Guerrilha é sempre de resistência. O modelo da resistência francesa [na ocupação alemã], criar redes subterrâneas de comunicação. Estamos nessa posição, somos um planeta invadido por alienígenas, digamos, que é o grande capital, a TV Globo, o agronegócio, a hegemonia norte-americana sobre os sistemas de entretenimento; como é que você cria uma rede de resistência a esses “alemães”?

Sou um activista das redes, de facto. Mas não convoco para manifestações, não pertenço a nenhuma organização, estou um pouco velho para sair na rua.

Está com 62 anos.

É, mas para sair na rua como black bloc [sorriso]… Posso ir atrás do black bloc, na frente não dá.

Começou tarde a ser um activista/guerrilheiro. Porquê?

É uma questão interessante. A minha relação com o activismo na ditadura não foi receio físico. Não que eu não tivesse medo de enfrentar a repressão. Vi vários amigos presos, torturados, todo o mundo tinha medo. Mas não foi por isso que não entrei na luta contra a ditadura. Foi porque não acreditava nela, em tomar o poder para instituir uma nova ordem não muito diferente. Eu achava que era uma briga entre duas fracções da classe média alta para saber quem ia mandar no país. E eu não tinha a menor simpatia pela ideia de mandar no país. Tinha uma desconfiança, que infelizmente se confirmou, quando a gente vê que uma das pessoas que fez a luta armada está mandando no país. E ela está fazendo coisas muito parecidas com o que os militares queriam fazer, pelo menos na Amazônia. O projecto da Dilma na Amazônia é idêntico ao do Médici [terceiro presidente da ditadura, no período 1969-74].

O senhor se configura como um anarquista?

Talvez…

Fora do estado.

Digamos que sim. Mas não sou um anarquista daqueles que acham que a sociedade actual pode prescindir do estado. Acho isso um sonho um pouco infantil.

Acha que não pode prescindir do estado mas que é importante cultivar…

Uma oposição, sim. A ideia de uma abolição do estado nas presentes condições é fantasia. Existem algumas contradições que não podemos evitar. Por exemplo, o maior inimigo dos índios brasileiros, num certo plano, é o estado, que representa uma sociedade que os invadiu, exterminou, escravizou, expropriou de suas terras. Ao mesmo tempo, o estado brasileiro é a única protecção que os índios têm contra a sociedade brasileira. Se não fosse o estado, os fazendeiros já teriam aniquilado todos os índios. Mas é uma quimioterapia, como se o Brasil fosse o câncer e o estado fosse aquele remédio. Faz um mal horrível mas você tem de tomar, é o único jeito de ter esperança de se curar. Portanto, não posso ir contra o estado.

Tenho simpatia pela tese do [antropólogo francês Pierre] Clastres, “A Sociedade Contra o Estado”, um tipo de sociedade como ele entendia que era o caso de várias sociedades indígenas, mas não imagino que isso possa ser transferido para as nossas dimensões demográficas. Isto dito, não sei por quanto tempo vamos ter essas dimensões no planeta, estados-nação com milhões de habitantes. Precisamos guardar os anti-corpos contra o estado porque podemos precisar deles no futuro.

Defende que toda a lógica do que o Brasil poderia ser, oferecer, passaria por se tornar mais índio. Não os índios tornarem-se brasileiros mas o Brasil tornar-se índio, o que significaria uma outra forma de vida, não para produzir, não para consumir. Que significa isso na guerrilha das cidades e das redes? Como os índios podem estar presentes aí? O que podem dar à tal insurreição contínua?

Vou juntar isso com o final da pergunta anterior. Fui-me tornando mais activo nas redes porque apareceram, antes não existiam, e em função da minha enorme decepção com o final da ditadura, o facto de que continuamos reféns do grande capital, dos grandes clãs, dos capitães hereditários que continuam mandando no Brasil, José Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros. Essa aliança entre o mais arcaico, que é Sarney, e o mais moderno do capitalismo, que são esses agronegociantes de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul, todos eles combinados para manter a tranquilidade política: não deixemos as massas virem atrapalhar.

Então, a minha decepção com a trajectória depois da ditadura; a minha decepção maior ainda com a trajectória do PT, a partir da eleição do Lula, na qual ele escreveu uma carta aos brasileiros dizendo que não ia tocar no bolso dos ricos; a minha decepção ainda maior com a performance do governo Dilma em relação ao meio ambiente, à Amazônia, aos índios, a total incapacidade política da presidente para ter o mínimo de diálogo, por mais fictício que seja com as populações indígenas, ao contrário, ela demonstra um desprezo, um ódio mesmo, que me parece quase patológico; tudo isso me levou ao activismo.

Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como país preguiçoso, relaxado, laid back, onde tudo é mais devagar. E existe uma grande ambiguidade nossa em relação a essa imagem. Por um lado achamos interessante a imagem de um país easy going, por outro lado temos uma grande vergonha disso, nos queremos transformar num país performante, que vai para a frente, produtivo. A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial. Eu acho que devia continuar sendo sambista. Que a gente devia saber explorar as virtudes do não-produtivismo. A ética protestante, que nos deu o espírito do capitalismo, para falar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do Brasil, graças a vocês portugueses, que também não a tinham [risos]. Tiveram durante século e meio, mas depois… Então, por um milagre histórico fomos preservados dessa maldição que é a ética produtivista do capitalismo. Fomos capturados pelo capitalismo porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi possível porque a Europa invadiu a América. Se não fosse a America, a Europa não teria deixado de ser o que era na Idade Média, um fundo de quintal. Na Idade Média, as sociedades desenvolvidas eram o Islã, a India e a China. Os europeus eram um bando de bárbaros, sujos, mal vestidos, católicos. Mas por acaso os portugueses e os espanhóis deram de cara com o novo mundo e o capitalismo tornou-se possível. Porque foi o ouro do Novo Mundo, milhares de toneladas, e tudo o que saiu da América, novas plantas, novos recursos alimentares, que permitiu a expansão do capitalismo e  depois a revolução industrial. Se não tivesse havido invasão da América, destruição da América não teria havido Europa moderna. Hoje, no mundo, as principais plantas que servem de alimentação mundial são de origem ameríndia: o milho, que se planta em toda a parte, a batata, que permitu a revolução industrial inglesa, a mandioca, da qual toda a África do Oeste hoje vive. Só que a América já era, não tem mais Novo Mundo para descobrir, a terra fechou, arredondou, além de que o pólo dinâmico do capitalismo foi para a China.

Voltando aos índios.

O Brasil tem muito poucos índios comparado com os países andinos ou mezo-americanos. Estão na casa de um milhão, num país de 200 milhões. Mas têm um poder simbólico muito grande, até porque têm uma base muito grande, 12 por cento do território brasileiro. Está tudo invadido [por obras ou fazendeiros] mas oficialmente é terra indígena. Além de que têm um poder de sedução no imaginário ocidental. A Amazônia tem um poder simbólico imenso. Embora, ao contrário do que os brasileiros pensam, não seja só brasileira, a maior parte da Amazônia está no Brasil. E é um objecto transcendente, uma espécie de última chance, último lugar da terra. O que dá ao Brasil um poder simbólico que ele não sabe usar, ao contrário, a Amazônia tem servido para atacar o Brasil por não saber cuidar da Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe mesmo. E não está sabendo se valer da Amazônia como um trunfo mundial. Nem como um lugar onde poderia se desenvolver uma civilização menos estúpida, do ponto de vista tecnológico e social. Os índios aí servem como exemplo. Estão na Amazônia há pelo menos 15 mil anos. Boa parte da floresta amazónica foi criada pela actividade indígena. Boa parte do solo foi criado com cinza de fogueira, detritos humanos. A Amazônia é essa floresta luxuriante em parte por causa da acção humana, dos índios.

Perante isto, o modelo sulino, gaúcho, europeu, de ocupação da Amazônia, é um plano liso que você possa encher de fertilizante, para poder plantar plantas transgénicas, resistentes a herbicidas, para produzir soja para vender para China, para em seguida pegar esse dinheiro e dar Bolsa Família. Não seria mais simples fazer com que essas pessoas não precisassem de Bolsa Família dando para elas terra para plantar, fazendo a célebre reforma agrária que jamais foi feita no Brasil?

Estamos exportando terra, solo e água na forma de carne, de soja. Um quilo de carne precisa de 15 mil litros de água para ser produzido, um quilo de soja, 7500 litros. Essa água toda, que poderia estar sendo usada para plantar comida para nós, está sendo usada para produzir soja para alimentar gado europeu, ou em tofu e miso na China.

O Brasil destruiu mais de metade da sua cobertura vegetal, a Mata Atlântica, que era igual à Amazônia do ponto de vista ambiental, para plantar cana e café durante a colonização. E ficámos mais ricos? Agora estão devastando a Amazônia para produzir soja e gado. Estamos ficando mais ricos? Os pobres estão melhores porque está caindo mais migalha da mesa dos ricos, não porque vieram sentar na mesa.

Meninos a pescar no rio Xingu (1982) EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

Isso também afectou os índios, não? Em São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do Brasil [estado do Amazonas], um dos grandes problemas é o alcoolismo. Impressionante ver o estado em que muitos índios vivem em São Gabriel. É um resultado desse erro de tentar converter o índio em brasileiro nesse modelo que está a descrever?

O alcoolismo é uma praga da população indígena das três Américas. Tem a ver com várias coisas. Uma delas é genética, mesmo. Os índios têm, por razões de evolução, muito menos resistência ao metabolismo do açúcar no organismo. Por isso que eles têm essa tendência à obesidade e à diabetes. Segundo, os índios sempre tiveram álcool, na América do Norte menos, mas todos os índios da Amazônia preparavam bebidas fermentadas, etc. É a mesma coisa com o tabaco, só que ao contrário. O tabaco é indígena. Os índios fumavam, mas não tinham câncer, ou a taxa devia ser muito pequena, assim como o alcoolismo existe entre nós mas é muito menos violento. Porquê? Os índios, para fazerem o tabaco deles e a bebida deles, tinham que produzir à mão. Tabaco tinham de plantar, de enrolar, de fazer um charuto, levava cinco dias para fumar, eram objectos custosos. A cerveja que faziam levava semanas. Aí, chega de repente a cachaça, seis meses de trabalho indígena concentrado numa garrafa que custa dois reais. A mesma coisa com a gente: quando você pega num maço de cigarro que tem concentrado seis meses de trabalho indígena, você fuma um atrás do outro. Você morre de câncer aqui e os índios morrem de cirrose lá.

O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem. Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita. E eles não têm estrutura social, política, institucional. Vai levar séculos para que desenvolvam resistências. Todo o ser humano gosta de se drogar, alterar a consciência, desde o café até ao LSD, então nos índios o álcool entrou destruindo tudo. É certamente a coisa mais destrutiva em todos os índios das Américas.

Não há sociedades perfeitas. É preciso distinguir entre modelo e exemplo. Os índios são um exemplo, não um modelo. Jamais poderemos viver como os índios, por todas as razões. Não só porque não podemos como não é desejável. Ninguém está querendo parar de usar computador ou usar antibiótico, ou coisa parecida. Mas eles podem ser um exemplo na relação entre trabalho e lazer. Basicamente trabalham três horas por dia. O tempo de trabalho médio dos povos primitivos é de três, quatro horas no máximo. Só precisam para caçar, comer, plantar mandioca. Nós precisamos de oito, 12, 16. O que eles fazem o resto do tempo? Inventam histórias, dançam. O que é melhor ou pior? Sempre achei estranho esse modelo americano, trabalha 12 horas por dia, 11 meses e meio por ano, para tirar 15 dias de férias. A quem isso beneficia?

A única vantagem indiscutível que a civilização moderna produziu em relação às civilizações indígenas foram os avanços na medicina. Se você fosse viver o resto da vida no mato o que levaria? Penicilina. Foi de facto um avanço. Mesmo assim nossos avanços sempre avançam demais. Hoje preferimos manter uma pessoa de 90 anos sofrendo horrivelmente, tem de viver, tem de viver, a família vai à falência. Ou seja, não sabemos mais morrer. Todo o mundo antes do século XX sabia morrer.