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Suicide Risk Linked to Rates of Gun Ownership, Political Conservatism (Science Daily)

Apr. 4, 2013 — Residents of states with the highest rates of gun ownership and political conservatism are at greater risk of suicide than those in states with less gun ownership and less politically conservative leanings, according to a study by University of California, Riverside sociology professor Augustine J. Kposowa.

UCR study links risk of suicide with rate of gun ownership and political conservatism at the state level. (Credit: Image courtesy of University of California, Riverside)

The study, “Association of suicide rates, gun ownership, conservatism and individual suicide risk,” was published online in the journal Social Psychiatry & Psychiatric Epidemiology in February.

Suicide was the 11th leading cause of death for all ages in the United States in 2007, the most recent year for which complete mortality data was available at the time of the study. It was the seventh leading cause of death for males and the 15th leading cause of death for females. Firearms are the most commonly used method of suicide by males and poisoning the most common among females.

Kposowa, who has studied suicide and its causes for two decades, analyzed mortality data from the U.S. Multiple Cause of Death Files for 2000 through 2004 and combined individual-level data with state-level information. Firearm ownership, conservatism (measured by percentage voting for former President George W. Bush in the 2000 election), suicide rate, church adherence, and the immigration rate were measured at the state level. He analyzed data relating to 131,636 individual suicides, which were then compared to deaths from natural causes (excluding homicides and accidents).

“Many studies show that of all suicide methods, firearms have the highest case fatality, implying that an individual who selects this technique has a very low chance of survival,” Kposowa said. Guns are simply the most efficient method of suicide, he added.

With few exceptions, states with the highest rates of gun ownership — for example, Alaska, Montana, Wyoming, Idaho, Alabama, and West Virginia — also tended to have the highest suicide rates. These states were also carried overwhelmingly by George Bush in the 2000 presidential election.

The study also found that:

  • The odds of committing suicide were 2.9 times higher among men than women
  • Non-Hispanic whites were nearly four times as likely to kill themselves as Non-Hispanic African Americans
  • The odds of suicide among Hispanics were 2.3 times higher than the odds among Non-Hispanic African Americans
  • Divorced and separated individuals were 38 percent more likely to kill themselves than those who were married
  • A higher percentage of church-goers at the state level reduced individual suicide risk.

“Church adherence may promote church attendance, which exposes an individual to religious beliefs, for example, about an afterlife. Suicide is proscribed in the three monotheistic religions: Judaism, Christianity and Islam,” Kposowa noted in explaining the finding that church membership at the state level reduces individual risk of suicide. “In states with a higher percentage of the population that belong to a church, it is plausible that religious views and doctrine about suicide are well-known through sacred texts, theology or sermons, and adherents may be less likely to commit suicide.”

Kposowa is the first to use a nationally representative sample to examine the effect of firearm availability on suicide odds. Previous studies that associated firearm availability to suicide were limited to one or two counties. His study also demonstrates that individual behavior is influenced not only by personal characteristics, but by social structural or contextual attributes. That is, what happens at the state level can influence the personal actions of those living within that state.

The sociologist said that although policies aimed at seriously regulating firearm ownership would reduce individual suicides, such policies are likely to fail not because they do not work, but because many Americans remain opposed to meaningful gun control, arguing that they have a constitutional right to bear arms.

“Even modest efforts to reform gun laws are typically met with vehement opposition. There are also millions of Americans who continue to believe that keeping a gun at home protects them against intruders, even though research shows that when a gun is used in the home, it is often against household members in the commission of homicides or suicides,” Kposowa said.

“Adding to the widespread misinformation about guns is that powerful pro-gun lobby groups, especially the National Rifle Association, seem to have a stranglehold on legislators and U.S. policy, and a politician who calls for gun control may be targeted for removal from office in a future election by a gun lobby,” he added.

Although total suicide rates in the U.S. are not much higher than in other Western countries, without changes in gun-ownership policies “the United States is poised to remain a very armed and potentially dangerous nation for its inhabitants for years to come.”

Journal Reference:

  1. Augustine J. Kposowa. Association of suicide rates, gun ownership, conservatism and individual suicide risk.Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 2013; DOI:10.1007/s00127-013-0664-4

On the end of the world / sobre o fim do mundo (21.12.2012)

O mundo não acabou (Folha de S.Paulo)

Contardo Calligaris – 27/12/2012 – 03h00

Pode ser que o mundo acabe entre hoje (segunda, dia em que escrevo) e quinta, 27, dia em que seria publicada esta coluna. Em tese, eu não devo me preocupar: meu título não será desmentido –pois, se o mundo acabar, não haverá mais ninguém para verificar que eu me enganei.

Tudo isso, em termos, pois o fim do mundo esperado (mais ou menos ansiosamente) por alguns (ou por muitos) não é o sumiço definitivo e completo da espécie. Ao contrário: em geral, quem fantasia com o fim do mundo se vê como um dos sobreviventes e, imaginando as dificuldades no mundo destruído, aparelha-se para isso.

Na cultura dos EUA, os “survivalists” são também “preppers”: ou seja, quem planeja sobreviver se prepara. A catástrofe iminente pode ser mais uma “merecida” vingança divina contra Sodoma e Gomorra, a realização de uma antiga profecia, a consequência de uma guerra (nuclear, química ou biológica), o efeito do aquecimento global ou, enfim (última moda), o resultado de uma crise financeira que levaria todos à ruina e à fome.

A preparação dos sobreviventes pode incluir ou não o deslocamento para lugares mais seguros (abrigos debaixo da terra, picos de montanhas que, por alguma razão, serão poupados, lugares “místicos” com proteção divina, plataformas de encontro com extraterrestres etc.), mas dificilmente dispensa a acumulação de bens básicos de subsistência (alimentos, água, remédios, combustíveis, geradores, baterias) e (pelo seu bem, não se esqueça disso) de armas de todo tipo (caça e defesa) com uma quantidade descomunal de munições -sem contar coletes a prova de balas e explosivos.

Imaginemos que você esteja a fim de perguntar “armas para o quê?”. Afinal, você diria, talvez a gente precise de armas de caça, pois o supermercado da esquina estará fechado. Mas por que as armas para defesa? Se houver mesmo uma catástrofe, ela não poderia nos levar a descobrir novas formas de solidariedade entre os que sobraram? Pois bem, se você coloca esse tipo de perguntas, é que você não fantasia com o fim do mundo.

Para entender no que consiste a fantasia do fim do mundo, não é preciso comparar os diferentes futuros pós-catastróficos possíveis. Assim como não é preciso considerar se, por exemplo, nos vários cenários desolados do dia depois, há ou não o encontro com um Adão ou uma Eva com quem recomeçar a espécie. Pois essas são apenas variações, enquanto a necessidade das armas (e não só para caçar os últimos coelhos e faisões) é uma constante, que revela qual é o sonho central na expectativa do fim do mundo.

Em todos os fins do mundo que povoam os devaneios modernos, alguns ou muitos sobrevivem (entre eles, obviamente, o sonhador), mas o que sempre sucumbe é a ordem social. A catástrofe, seja ela qual for, serve para garantir que não haverá mais Estado, condado, município, lei, polícia, nação ou condomínio. Nenhum tipo de coletividade instituída sobreviverá ao fim do mundo. Nele (e graças a ele) perderá sua força e seu valor qualquer obrigação que emane da coletividade e, em geral, dos outros: seremos, como nunca fomos, indivíduos, dependendo unicamente de nós mesmos.

Esse é o desejo dos sonhos do fim do mundo: o fim de qualquer primazia da vida coletiva sobre nossas escolhas particulares. O que nos parece justo, no nosso foro íntimo, sempre tentará prevalecer sobre o que, em outros tempos, teria sido ou não conforme à lei.

Por isso, depois do fim do mundo, a gente se relacionará sem mediações –sem juízes, sem padres, sem sábios, sem pais, sem autoridade reconhecida: nós nos encararemos, no amor e no ódio, com uma mão sempre pronta em cima do coldre.

E não é preciso desejar explicitamente o fim do mundo para sentir seu charme. A confrontação direta entre indivíduos talvez seja a situação dramática preferida pelas narrativas que nos fazem sonhar: a dura história do pioneiro, do soldado, do policial ou do criminoso, vagando num território em que nada (além de sua consciência) pode lhes servir de guia e onde nada se impõe a não ser pela força.

Na coluna passada, comentei o caso do jovem que matou a mãe e massacrou 20 crianças e seis adultos numa escola primária de Newtown, Connecticut. Pois bem, a mãe era uma “survivalist”; ela se preparava para o fim do mundo. Talvez, junto com as armas e as munições acumuladas, ela tenha transmitido ao filho alguma versão de seu devaneio de fim do mundo.

*   *   *

Are You Prepared for Zombies? (American Anthropological Association blog)

By Joslyn O. – December 21, 2012 at 12:52 pm

 

In light of all the end of the world talk, a repost of this Zombie preppers post from last spring:

Today’s guest blog post is by cultural anthropologist and AAA member, Chad Huddleston. He is an Assistant Professor at St. Louis University in the Sociology, Anthropology and Criminal Justice department.

Recently, a host of new shows, such as Doomsday Preppers on NatGeo and Doomsday Bunkers on Discovery Channel, has focused on people with a wide array of concerns about possible events that may threaten their lives.  Both of these shows focus on what are called ‘preppers.’ While the people that may have performed these behaviors in the past might have been called ‘survivalists,’ many ‘preppers’ have distanced themselves from that term, due to its cultural baggage: stereotypical anti-government, gun-loving, racist, extremists that are most often associated with the fundamentalist (politically and religiously) right side of the spectrum.

I’ve been doing fieldwork with preppers for the past two years, focusing on a group called Zombie Squad. It is ‘the nation’s premier non-stationary cadaver suppression task force,’ as well as a grassroots, 501(c)3 charity organization.  Zombie Squad’s story is that while the zombie removal business is generally slow, there is no reason to be unprepared.  So, while it is waiting for the “zombpacolpyse,” it focuses its time on disaster preparedness education for the membership and community.

The group’s position is that being prepared for zombies means that you are prepared for anything, especially those events that are much more likely than a zombie uprising – tornadoes, an interruption in services, ice storms, flooding, fires, and earthquakes.

For many in this group, Hurricane Katrina was the event that solidified their resolve to prep.  They saw what we all saw – a natural disaster in which services were not available for most, leading to violence, death and chaos. Their argument is that the more prepared the public is before a disaster occurs, the less resources they will require from first responders and those agencies that come after them.

In fact, instead of being a victim of natural disaster, you can be an active responder yourself, if you are prepared.  Prepare they do.  Members are active in gaining knowledge of all sorts – first aid, communications, tactical training, self-defense, first responder disaster training, as well as many outdoor survival skills, like making fire, building shelters, hunting and filtering water.

This education is individual, feeding directly into the online forum they maintain (which has just under 30,000 active members from all over the world), and by monthly local meetings all over the country, as well as annual national gatherings in southern Missouri, where they socialize, learn survival skills and practice sharpshooting.

Sound like those survivalists of the past?  Emphatically no.  Zombie Squad’s message is one of public education and awareness, very successful charity drives for a wide array of organizations, and inclusion of all ethnicities, genders, religions and politics.  Yet, the group is adamant on leaving politics and religion out of discussions on the group and prepping. You will not find exclusive language on their forum or in their media.  That is not to say that the individuals in the group do not have opinions on one side or the other of these issues, but it is a fact that those issues are not to be discussed within the community of Zombie Squad.

Considering the focus on ‘future doom’ and the types of fears that are being pushed on the shows mentioned above, usually involve protecting yourself from disaster and then other people that have survived the disaster, Zombie Squad is a refreshing twist to the ‘prepper’ discourse.  After all, if a natural disaster were to befall your region, whom would you rather be knocking at your door: ‘raiders’ or your neighborhood Zombie Squad member?

And the answer is no: they don’t really believe in zombies.

 

A burocracia e as violências invisíveis (Canal Ibase)

Renzo Taddei – Colunista do Canal Ibase

2 de agosto de 2012

matéria de capa da revista Time da semana passada chama a atenção para dados impressionantes sobre o suicídio entre militares norte-americanos. Desde 2004, o número de militares americanos que se suicidaram é maior do que os que foram mortos em combate no Afeganistão. Em média, um soldado americano na ativa se suicida por dia. Dentre os veteranos, um suicídio ocorre a cada 80 minutos. Entre 2004 e 2008, a taxa de suicídio entre militares cresceu 80%; só em 2012, esse crescimento já é de 18%. O suicídio ultrapassou os acidentes automobilísticos como primeira causa de morte de militares fora de situação de combate.

Foto: Matthew C. Moeller (Flickr)

O exército americano naturalmente busca, preocupado, identificar as causas do problema – até o momento sem sucesso. O problema está longe de ser óbvio, no entanto. Um terço dos suicidas nunca foi ao Afeganistão ou ao Iraque. 43% só foram convocados uma vez. Apenas 8,5% dos suicidas foram convocados três vezes ou mais. E, em sua maioria, são casados. Ou seja, nem todos os suicídios estão relacionados com traumas de campos de batalha.

Como é de se esperar, a burocracia militar busca um diagnóstico burocrático, para que a solução seja burocrática – de modo que não seja necessário cavar muito fundo na questão. O exército americano não tem psiquiatras e profissionais de serviço social suficientes. Muitos soldados se suicidam na longa espera por uma consulta psiquiátrica; outros, após terem sido receitados soníferos e oficialmente diagnosticados como “não sendo um perigo para si ou para os demais”. A cultura militar estigmatiza demonstrações de fraqueza, de modo que muitos evitam procurar ajuda a tempo. Viúvas acusam o exército de negligência; oficiais militares dizem que os soldados se suicidam devido a problemas conjugais.

Enquanto eu refletia sobre o assunto, chegou até mim a indicação de um livro chamadoDays of Destruction, Days of Revolt, do jornalista americano Chris Edges. O livro descreve a situação de algumas das cidades mais pobres dos Estados Unidos e chega à conclusão de que a pobreza de tais cidades não tem ligação com a ideia de subdesenvolvimento, mas sim ao que se poderia chamar de contra-desenvolvimento: são cidades que foram destruídas pela exploração capitalista.

Uma dessas cidades, Camden, no estado de Nova Jersey, é velha conhecida: durante meu doutorado nos Estados Unidos, trabalhei como fotógrafo para complementar minha renda, e estive em Camden várias vezes. Sempre me impressionaram os sinais explícitos de decadência do lugar: gente vivendo em prédios em ruínas; equipamentos públicos em decomposição; tráfico de droga à luz do dia. Agora descubro que se trata nada menos da cidade com menor renda per capita do país.

Chris Edges chama tais cidades de zonas de sacrifício do capitalismo. Ou seja, para que a exploração capitalista possa ocorrer sem impedimentos, o capital se move de um lugar para outro assim que os recursos ou as oportunidades se esgotam, deixando para trás cidades fantasmas, desemprego e depressão. A lógica desse padrão de exploração é bem conhecida desde Marx, pelo menos. O que Chris Edges faz é, com a ajuda do artista gráfico e também jornalista Joe Sacco, dar nova visibilidade a um problema que a burocracia oficial e a mídia fazem questão de não enxergar.

Que relação há entre os suicídios militares e a pobreza urbana dos Estados Unidos? Na verdade, me dei conta que há uma analogia fundamental entre os dois casos: em ambos há a conjugação do fato de que para que o sistema funcione – e estamos falando de sistemas diferentes para cada caso – alguém tem que ser sacrificado; e esse sacrifício e suas vítimas sacrificiais devem permanecer invisíveis para a maioria da população. O esforço dos Estados Unidos para manter sua hegemonia militar produz de forma sistemática a morte de uma imensa quantidade de gente, dentre americanos e seus supostos inimigos. E, para que a lucratividade se mantenha alta, florestas, cidades e empregos são destruídos, também de forma sistemática. Uma das expressões usadas nas ciências sociais para descrever esse estado de coisas é violência estrutural.

A invisibilidade dessas coisas é imprescindível – só assim pessoas bem intencionadas e de boa fé podem participar do sistema perverso, sem enxergar sua perversidade. Por isso, por exemplo, o governo Bush (pai) articulou com a imprensa americana um pacto para que não fossem publicadas fotos de caixões de soldados mortos em combate na primeira Guerra do Golfo. O pacto esteve em vigor por quase vinte anos, até que foidesfeito por Obama em 2009.

Mas a forma mais comum, e eficaz, de produzir as formas de violência estrutural que reproduzem desigualdades de forma invisível é a burocracia. E isso se dá, como nos lembra David Graeber, em razão do fato de que é função da burocracia ignorar as minúcias da vida cotidiana e reduzir tudo a fórmulas mecânicas e estatísticas. Isso nos permite focar nossas energias em um número menor de variáveis, e assim realizar coisas grandiosas e incríveis – para o bem e para o mal. O papel que a burocracia tem na produção da invisibilidade que mantém violências estruturais em funcionamento pode ser exemplificado através do uso de estatísticas em políticas públicas, por exemplo. Um dos programas oficiais de apoio à população rural do Nordeste mais importantes da atualidade, o Garantia Safra – em que pequenos agricultores adquirem um seguro e são indenizados em caso de perda de safra -, sistematicamente exclui agricultores em função de miopia burocrática. Para que os agricultores de um município recebam a indenização, as regras do programa exigem que haja 50% de perda da safra de todo o município. No entanto, basta ver a dimensão e os contornos dos municípios brasileiros para rapidamente concluir que não há relação necessária entre os limites municipais e os fenômenos meteorológicos. Há municípios que, de tão extensos, apresentam variações climáticas dramáticas dentro de suas fronteiras. Nesses casos, é comum que muitos agricultores com grandes perdas não recebam qualquer indenização, se outras regiões do município tiverem perdas menores. Por que é que o município tem que ser tomado como unidade de referência nesse caso? Porque há um aparato burocrático municipal para gerir o programa, e não há níveis burocráticos oficiais em escala menor. Ou seja, o sistema é burro mesmo que ninguém o seja, e quem sofre as consequências são os agricultores.

De forma correlata, índices nacionais ou estaduais de desemprego, crescimento do PIB e do PIB per capita, são unidades de referência centrais das políticas públicas atuais, ainda que sejam médias que não levem em consideração as situações extremas onde efetivamente existe vulnerabilidade socioeconômica. É como se o ditado que diz que “a corda sempre se parte no lado mais fraco” fosse sistematicamente ignorado. A vulnerabilidade de qualquer sistema – uma máquina, por exemplo – é definida pelo seu componente mais frágil. Qualquer engenheiro sabe disso; na verdade, a ideia é tão óbvia que qualquer um sabe disso. É ai que entra a burocracia: . Nesse contexto, não importa muito o que as pessoas sabem ou não: elas não serão capazes de identificar como a burocracia produz inconsistências e violência estrutural, a menos que sejam diretamente afetadas. Dessa forma, cidades como Camden ficam sistematicamente fora do radar, camufladas por estatísticas de âmbito estadual ou nacional.

Isso tudo está relacionado a outra notícia veiculada nos jornais na semana passada: a posição do Brasil nos debates na ONU sobre a regulação do comércio mundial de armas. Apesar das evidências de que as armas fabricadas no Brasil foram e continuam sendo vendidas a governos com histórico de violação dos direitos humanos, o Brasil se colocou frontalmente contra a regulação e criação de mecanismos que deem transparência a esse mercado. A justificativa, como não poderia deixar de ser, é burocrática: a disseminação de informações sobre capacidade bélica “poderia expor os recursos e a capacidade dos países […] de sustentar um conflito prolongado”. Colocar isso como argumento que tem precedência sobre a necessidade de proteger os direitos humanos é um escândalo. Por trás dessa desculpa esfarrapada, está a intenção de proteger a lucrativa indústria bélica brasileira. O que faz a história toda mais indigesta é o fato da Dilma ter sido vítima de tortura, durante o período em que o Brasil era dirigido pela burocracia militar. Como pode a mesma presidente que criou aComissão da Verdade ser conivente com uma indústria e um mercado manchados de sangue?

Esse episódio mostra que, em termos éticos, há menos diferença entre Estados Unidos e Brasil do que os brasileiros gostam de acreditar. Para proteger o capitalismo – já não mais num campo de luta ideológica, como à época da guerra fria, mas na forma de interesses privados reais e específicos de empresas norte-americanas -, os Estados Unidos passam a ser um perigo não apenas para nações vulneráveis não-alinhadas, mas a si mesmo, como revela a epidemia de suicídios entre militares. Da mesma forma, e pelas mesmas razões – ou seja, na caminhada rumo à sua consolidação como poder imperialista – o Brasil se preocupa com seus mortos políticos, e estrategicamente finge não ver que, para a engorda do seu PIB e para a prosperidade de sua indústria bélica, uma imensa quantidade de vidas – na África, no Oriente Média, no sul do Pará e nos morros cariocas –  é sacrificada.

Renzo Taddei é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em antropologia pela Universidade de Columbia, em Nova York. Dedica-se aos estudos sociais da ciência e tecnologia.

As armas do vazio mental (FSP)

26/07/2012 – 03h00

Janio de Freitas

Mais duas explicações estão lançadas em socorro à recusa do governo brasileiro, agora mesmo na ONU, de votar a favor da transparência no comércio internacional de armas.

Diz um dos dois argumentos que já está em prática, na indústria bélica, a inscrição indelével, a laser e em cada arma e projétil, indicando sua procedência. Assim será possível saber, quando de violações das normas internacionais e transgressão dos direitos humanos, o país que forneceu as armas em uso.

Belo e carinhoso consolo, sem dúvida, para as crianças que perderem seus pais e para os pais que perderem seus filhos estilhaçados por armamentos, agora sim, de procedência inapagável. Para usufruir do consolo, porém, resta ainda um pequeno problema que a inventividade dos engenheiros da matança, por certo, vai resolver.

Fatos atuais ajudam a expor a questão pendente. Há 24 horas noticia-se, inclusive com fotos e vídeos, o recurso do ditador sírio Bashar Assad ao bombardeio aéreo de cidades do seu país.

É um reforço mais drástico e preciso aos tiros de canhões, no entanto continuados. E às metralhas pesadas e também canhões dos tanques.

A população civil vê e ouve os aviões, e vê as bombas em direção a suas casas, suas famílias, à vizinhança. Não vê os canhões e não é certo que ouça os seus estrondos, mas ouve o silvo fino e feroz de suas balas cortando o ar. Todas essas peças assassinas com sua procedência devidamente identificada. Ainda a tinta ou talvez já a laser.

A população vê e ouve os sinais do sofrimento e da morte. Mas lerá a inscrição dos petardos em seu voo? E depois de bombas, balas e foguetes destruídos por sua própria explosão, onde estarão as inscrições para a comprometedora “identificação de quem os forneceu”? É provável que parte deles até ostentasse o nosso “made in Brazil”. Impossível afirmar ou negar: sabemos estar entre os exportadores de bombas terríveis, mas estamos proibidos de saber para quem as exportamos.

Não se sabe se o outro argumento foi criado pelo mesmo vácuo mental que invocou a “inscrição identificadora”, ou se foi um dos prodígios intelectuais que a adotam no Itamaraty, nas Forças Armadas, no jornalismo. A suposição de que os outros também padecemos de idiotia é a mesma, nos dois argumentos.

Eis o segundo: o sigilo das exportações de armas é necessário porque os compradores querem segredo do tipo e quantidade de seus armamentos.

Antes de tudo: nem sempre. Com a ideia fixa (da qual emanava certo cheiro de charuto cubano) de que os Estados Unidos usariam a Colômbia para atacar a Venezuela, Hugo Chávez tratou de alardear suas grandes compras militares. Se houve, o risco arrefeceu e foi silenciado pelo novo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, mais lúcido do que o antecessor Uribe.

Acima de tudo, a conveniência militar alheia não é problema a ser resolvido pelo Brasil. Ainda mais se o pretendente a comprador é uma ameaça a relações normais com seus vizinhos ou à liberdade e aos direitos humanos em seu país.

Esta regra essencial no Estado de Direito é transgredida pelo Brasil, com suas exportações de bombas condenadas e outras armas para o Oriente Médio e para ditaduras africanas. E ainda em operações triangulares: a exportação para a ditadura de Robert Mugabe, do Zimbábue, no governo Fernando Henrique, foi tornar mais feroz a terrível guerra civil no Congo. Mas, nas organizações internacionais, e em casa mesmo, o governo brasileiro mostrava-se muito condoído com o genocídio congolês.

 

Sobre as bombas fabricadas no Brasil, e as tentativas de regulação do comércio mundial de armas (FSP)

Folha de S.Paulo – 25/07/2012 – 03h00

Matias Spektor

Armas do Brasil

Negocia-se esta semana na ONU um Tratado de Comércio de Armas. É a primeira tentativa de regulação do lucrativo mercado global de armamentos.

O texto ora negociado afeta em cheio os interesses do Brasil emergente. Trata-se de uma área em que campeões da indústria estão em franca via de internacionalização. Além das gigantescas Embraer e Odebrecht, existe a Taurus, maior fabricante mundial de armas curtas. Exporta para 44 países, detém 20% do mercado de pistolas nos Estados Unidos e espera um lucro bruto para este ano de R$150 milhões de reais. Ainda entram na lista Avibrás (veículos não-tripulados e foguetes), Mectron (mísseis), Helibrás (helicópteros) e Companhia Brasileira de Cartuchos (munições). A Condor vende 100 produtos de “tecnologias não-letais”.

Essas empresas preferem um tratado minimalista. Não querem explicar publicamente suas vendas nem revelar a lista de clientes. Tampouco enfrentar questionamentos caso suas armas sejam utilizadas para desestabilizar uma região, violar direitos humanos, fomentar o crime transnacional e o terrorismo, ou atrapalhar o combate à pobreza. Isso é compreensível – elas querem fazer negócio.

Assim, o governo brasileiro trabalha para deixar o tratado livre de mecanismos intrusivos. Nem precisa fazer força para isso – há muitos países dispostos a fazê-lo em seu lugar. Irã, Síria, Cuba, Venezuela e Paquistão têm a dianteira. A Índia joga no mesmo time; muitas vezes, os Estados Unidos também. Na sexta-feira, estará provavelmente garantido o triunfo total da posição brasileira.

Em Brasília fomenta-se o êxito dessas indústrias, que geram divisas e empregam milhares de pessoas em áreas de alta tecnologia. Daí a lei de março passado, que outorga crédito fácil e isenção de PIS/Pasep, Cofins e IPI.

Ninguém no governo questionou a Avibrás por vender 18 sistemas de “bombas cluster” para a Malásia, a Mectron por seus 100 mísseis anti-radar para o Paquistão ou a Condor por sua exportação de gás lacrimogêneo para a Síria de Bashar al-Assad. O tema simplesmente não está na agenda, e todos os incentivos de hoje apontam para mais do mesmo.

Entretanto, há uma pequena ameaça no horizonte. Grandes indústrias de armamento europeias e americanas começaram a ajustar sua posição. Como elas enfrentam controles cada vez mais estreitos para suas exportações, buscam meios de moldar o novo ambiente regulatório em benefício próprio.

Segundo elas, um tratado internacional decente seria bom para quem quer ganhar dinheiro. Criaria um controle de qualidade parecido à ISO, padronização de produtos comandada pelo setor privado que facilita a abertura de mercados.

Também estabeleceria códigos de conduta comuns, algo valioso em mercados cheios de clientes de caráter duvidoso, onde uma venda inapropriada pode ferir o interesse de acionistas e macular a reputação das empresas e de países.

Se essas regras pegarem e nossa indústria continuar apostando contra a transparência, todos perdem. Sobretudo o cidadão brasileiro, que é obrigado a custear um negócio sobre o qual ninguém o consultou.

 

Elio Gaspari

De SaddamHussein@org para Dilma@gov

Estimada presidente Dilma Rousseff,

Outro dia jantei com o Che Guevara e o Laurent Kabila, aquele presidente do Congo que foi assassinado em 2001. A senhora deve se recordar que o Che andou pela África e deu-se mal.

No meio da conversa Che perguntou-lhe se era verdade que em 2001 o Robert Mugabe, o soba do Zimbábue, tinha ajudado sua facção na guerra civil congolesa repassando-lhe bombas incendiárias e de fragmentação fabricadas no Brasil. Ele desconversou. O Che ficou perplexo, imaginou Lula vendendo esse tipo de armas para africanos. São bombas que incendiam a mata ou, ao explodir, soltam dezenas de milhares de esferas de aço. Destinam-se a matar indiscriminadamente combatentes e civis. Como um jornalista chamado Rubens Valente achou um pedaço dessa história, resolvi escrever-lhe, pois não quebrarei o sigilo do que se aprende por aqui. Ele contou que o Brasil vendeu 726 bombas ao Mugabe. Faturou US$ 5,8 milhões para matar africanos miseráveis. Eles morreriam nas rebeliões congolesas ou no próprio Zimbábue. Dias depois o Che me procurou, explicando que o negócio não foi feito pelo Lula, mas por Fernando Henrique Cardoso. Estava de alma leve, mas esse Guevara é um sonhador. Ele não sabe das coisas do mundo.

Eu sei, presidente Dilma, e sei que a senhora está abrindo o cofre do BNDES para o que acha que será o reerguimento da indústria bélica brasileira. Sete grandes empreiteiras já se habilitaram num programa de incentivos e, novamente, a Federação das Indústrias de São Paulo alavanca o projeto. No varejo, já se acharam bombas de gás lacrimogênio brasileiras no Bahrein e na Turquia (jogadas contra refugiados sírios).

Isso vai acabar mal. Eu vi como acabou a última iniciativa do gênero, ocorrida entre os anos 70 e 80. Os brasileiros viraram piada. Nós trocaríamos petróleo por armas e compramos blindados leves e algumas baterias de foguetes. A senhora acredita que em 1979 um industrial paulista foi a Bagdá e ofereceu tecnologia nuclear para a minha bomba atômica? Eu disse a um embaixador brasileiro que o moço não devia vender o que não tinha. Quase dois anos depois vocês voltaram a mesma história, mais um míssil capaz de transportar a bomba. Deu em nada, até porque os sionistas bombardearam meu reator e deram um tranco num poderoso general brasileiro. O Muammar Gaddafi me contou que o mesmo paulista vendia-lhe blindados e queria fabricar um tanque, acho que se chamava Osório, financiado pelos sauditas. O “reis dos reis” sabia que, se a casa de Saud financiasse uma arma, seria para matá-lo. Procure saber quanto essa operação custou. Durante minha guerra com o Irã vocês me ofereciam blindados e queriam vender metralhadores para o aiatolá. Pode? A única vítima dessas aventuras foi um jornalista brasileiro. Ele se chamava Alexandre von Baumgarten. Falou demais a respeito de uma pasta de urânio que nós compramos em 1981. No ano seguinte foi passear de barco, encontrou uma lancha com amigos, convidou-os para um copo e foram metralhados. Ele, a mulher e o barqueiro.

O homem da bomba faliu, e vocês tomaram um calote de US$ 200 milhões.

Respeitosamente,

Saddam Hussein.

 

24/07/2012 – 03h00
Janio de Freitas

A transparência opaca

A presidente Dilma Rousseff está sob o risco iminente de perder o direito moral de cobrar transparência, como princípio e exigência do seu governo, a quem quer que seja. O Brasil faz uso, neste momento, de uma falácia primária para opor-se, em reunião da ONU, a um acordo que estabeleça transparência nas exportações de armas.

A política externa proclamada pelo governo, e fiel ao que se entende como índole brasileira, é contrária a confrontos armados entre nações ou como solução de dissensões internas. Logo, não pode favorecer a realidade de que a busca dos altos lucros da exportação sigilosa de armas, além de ser o sustentáculo de ditaduras sanguinárias, está na raiz das matanças de populações civis, condenadas pelo Brasil –na europeia Bósnia, no Oriente Médio, nas infindáveis guerras da África, na Ásia, agora mesmo na Síria.

O argumento do governo brasileiro na reunião da ONU, destinada a tentar um Tratado sobre Comércio de Armas, foi transcrito, no essencial, pelo repórter Rubens Valente (Folha de domingo): a transparência das exportações de armas “poderia expor os recursos e a capacidade dos países […] de sustentar um conflito prolongado”.

Mas a capacidade bélica de um país depende do seu arsenal e da relação entre qualidade e quantidade de suas tropas. Um grande exportador pode ter arsenal insignificante, dando prioridade aos lucros do comércio legal ou não, e descuidar daquela relação.

Da mesma maneira, baixa ou nenhuma exportação não significa que um país não produza armas e não tenha Forças Armadas bem equipadas e preparadas. E ainda há os que têm “capacidade de sustentar um conflito prolongado” com armamento importado às claras, o que parece ser o caso, na América do Sul, da Venezuela, por exemplo.

O argumento brasileiro é falso. Porque infundado e porque adotado para esconder o fato de que o Brasil exportador de armas está envolvido em monstruosidades que finge condenar. O trabalho excelente de Rubens Valente revela que o governo de Fernando Henrique Cardoso autorizou a produção e venda de bombas de fragmentação ao Zimbábue do ditador Robert Mugabe.

Ou seja, a uma ditadura sanguinária, conduzida por ideias psicopáticas como a da necessidade de exterminar os brancos, remanescentes da antiga Rodésia. E ainda algumas das tribos locais.

As bombas de fragmentação são proibidas por acordo internacional: não têm alvo preciso, desabrocham no ar em milhares de bolas de aço que atingem a população civil em áreas imensas. Israel foi acusado de lançar tais bombas sobre a população palestina de Gaza, e, se o fez, o acusado de produzir e exportar as bombas foi o Brasil. Cujo governo posou de contrário aos ataques à população palestina.

Os mutilados por pisar inadvertidamente em mina camuflada, resto de algum conflito estúpido, compõem uma tragédia africana que tem comovido o mundo. Crianças, em geral, esses mutilados são os que escapam da mortandade feita pelas minas deixadas no chão de vários países. Em grande parte das minas recuperadas, graças sobretudo a entidades de benemerência europeias, está preservada a inscrição: “Made in Brazil”.

Podemos ostentar um orgulho internacional: nós também temos nossos criminosos de guerra. Gente que não escaparia no Tribunal Penal Internacional de Haia, por fomentar a morte de populações civis inocentes, e com isso lucrar fortunas.

É a esse Brasil opaco que a falta de transparência dá proteção. Como sua continuidade permitirá que a Rússia arme Bashar al Assad, e os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, e o Brasil também, façam o mesmo pelo mundo todo.

22/07/2012 – 05h15

Brasil se opõe a “transparência total” em debate de armas na ONU

RUBENS VALENTE

DE BRASÍLIA

Em declaração escrita apresentada à ONU, o Brasil atacou “a transparência absoluta” no tema da exportação de armas. Representantes de 193 países participam de uma negociação na sede da ONU, em Nova York, até o próximo dia 27, para tentar estabelecer um inédito Tratado de Comércio de Armas.

Segundo a declaração brasileira, de 2 de julho e apresentada no encontro pelo representante nas negociações, embaixador Antonio Guerreiro, o acesso livre “poderia expor os recursos e as capacidades dos países […] de sustentar um conflito prolongado”.

“Obrigações relativas a relatórios e transparência deverão ser tratadas com os necessários bom senso e precaução”, diz o texto.

Daniel Mack, coordenador de Políticas de Controle de Armas do Instituto Sou da Paz, de São Paulo, que acompanha as negociações sobre o tratado, classificou a preocupação como “anacrônica”.

“Transparência é o ‘calcanhar de Aquiles’ da posição brasileira, o que não deixa de ser altamente irônico e contraditório, considerando a nova Lei de Acesso à Informação. […] Dos maiores exportadores, o Brasil tem a pior transparência, não só em relação aos países europeus e aos EUA, mas também em comparação com a África do Sul e a Sérvia”, disse Mack.

RASTREABILIDADE

Embora avesso à transparência nas exportações, o Brasil quer dar o exemplo no tema da rastreabilidade das munições e armas, aspecto elogiado por Mack.

O país afirma que a indústria nacional já consegue fazer marcações a laser de armas e munições, à prova de raspagem, de forma a possibilitar a imediata identificação do fabricante e do destinatário final do produto.

A medida poderia coibir desvios de armamentos e ajudar a apurar crimes contra direitos humanos.

Na declaração, o Brasil diz ser preciso um esforço internacional conjunto para prevenir, combater e erradicar o contrabando de armas.

 

Brasil vendeu bombas condenadas a ditador do Zimbábue

RUBENS VALENTE
DE BRASÍLIA

Documentos inéditos sobre a exportação de material bélico brasileiro, um dos segredos militares mais bem guardados pelo país, revelam que o Brasil vendeu ao ditador Robert Mugabe, do Zimbábue, um tipo de bomba condenada pela comunidade internacional.

Após negar duas vezes um pedido da Folha com base na Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Defesa voltou atrás e liberou 1.572 páginas de documentos secretos.

São registros de 204 operações de exportação de armas e munição, no total de US$ 315 milhões, de janeiro de 2001 a maio de 2002, os mais recentes disponibilizados. Os papéis, diz a pasta, manterão sigilo de no mínimo dez anos.

É a primeira vez que o órgão libera o acesso a documentos do gênero.

Entre os registros está a revelação de que o Brasil vendeu ao Zimbábue, em agosto de 2001, US$ 5,8 milhões em bombas de fragmentação e incendiárias.

Foram vendidas 340 bombas completas, além de componentes para a montagem de outras 426 bombas de fragmentação e 605 incendiárias.

Na época da aquisição, Mugabe, no poder desde 1980, era acusado de ajudar uma guerra no vizinho Congo e enfrentava distúrbios na zona rural do país, com a morte de fazendeiros brancos.

A venda pelo Brasil das bombas de fragmentação era uma antiga suspeita de ONGs que monitoram o uso dessas munições, conhecidas como “de dispersão”.

A bomba é assim chamada porque, ao ser detonada, espalha de 14 mil a 120 mil esferas de aço, a depender do modelo, que podem atingir indistintamente combatentes e população civil.

As esferas de bombas maiores podem se espalhar por área equivalente a sete campos de futebol.

Em 2008, mais de cem países assinaram convenção que veta a fabricação e venda do tipo de bomba. Brasil, EUA e Rússia, dentre outros, recusaram-se. “A transparência do Brasil na matéria é historicamente muito ruim”, diz Cristian Wittmann, de uma coalizão de ONGs contra esse tipo de munição.

O diretor de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, o general de brigada Aderico Mattioli, disse que muitas vendas “chamam a atenção” por indicarem munição pesada, mas podem estar relacionadas a treinamento de militares. “É uma munição, diga-se de passagem, de um material antigo”, disse.

RANKING

Os dados obtidos pela Folha eram desconhecidos por ONGs que estudam o comércio de armas. No ranking do Sipri (Instituto Internacional de Estocolmo para Pesquisa sobre a Paz), uma referência no tema, o Brasil aparece em 2001 no 46º lugar, o último, ao lado de países que não venderam material bélico.

Eles revelam a venda total de US$ 287,4 milhões em 2001, o que projetaria o Brasil para a décima posição no ranking liderado pelos EUA, que venderam US$ 6 bilhões.

A Sipri cita que o Brasil vendeu US$ 26 milhões em 2002, menos que as vendas de apenas quatro meses daquele ano: US$ 27,6 milhões.