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Antídoto onírico (451)

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Livro sobre sonhos Yanomami mostra que a escuta das vozes dos povos originários é um ensinamento político

Christian Dunker
01dez2022 05h51 (01dez2022 12h11)


O desejo dos outros se insere no debate brasileiro contemporâneo sobre psicanálise e antropologia para além de sua contribuição rigorosa para a descolonização do pensamento. A escuta das vozes dos povos originários não é apenas um benfazejo exercício para tratar nosso etnocentrismo, mas um ensinamento político para todos que se perguntam: onde está a porta pela qual posso sair da bolha? Ou: onde está a catraca reversa que me colocará no antropoceno real e não no metaverso do Brasil paralelo? Hanna Limulja responde que a saída começa pelo sonho. O sonho tem um sentido, diria Artemidoro de Daldis. Este sentido é dado pelo sonhador e referido ao seu desejo, diria Freud. O “eu” do sonhador é um Outro, diria Rimbaud. Desejo de se tornar outro, diria Madame Bovary. Desejo do outro, diria Hegel. Desejo de desejo do desejo do Outro, diria Lacan. Outro desejo, nos dizem os Yanomami.

O desejo dos outros, de Hanna Limulja, se insere no debate brasileiro contemporâneo sobre psicanálise e antropologia para além de sua contribuição rigorosa para a descolonização do pensamento

Sonhar, para eles, é “antes de tudo viajar longe” e “escapar do familiar”. É estar no limite no lugar dos mortos, representados pela noite, e também dos vivos que habitam outros lugares, representados pelo dia. Entre os dois mundos há a experiência da penumbra, da transição, da passagem. Lá está o reino das imagens. Assim como nossos artistas criam linguagens para um mundo que não está ainda presente, os sonhos Yanomami criam mundos para linguagens que ainda não existem. Tais linguagens são o que se pode chamar de perspectiva, ou seja, o ponto de vista que corresponde a este mundo. A grande torção não consiste apenas em perguntar que mundo quero para meu desejo, mas que desejo é preciso inventar para o mundo que vejo em meus sonhos.

O sonho é um intermediário epistêmico entre o que sei porque testemunhei e o que sei porque ouvi falar sobre. É uma negação dos dois modos de funcionamento pois é uma experiência profundamente minha, ocorrida na solidão da noite; mas, ali onde vivi aquilo, não era só este eu que me habitava. Inversamente, o sonho só se torna sonho verdadeiro quando contado, quando passa a ser um saber dos outros. As tragédias, os genocídios (como o de Haximu, em 1993), as mortes irreparáveis (como a de Chico Mendes), a invasão de mineradores são enfrentadas com o sonho. As decisões amorosas, os casamentos, as guerras e os adoecimentos também. O sonho é um método de conhecimento, não apenas a expressão de uma individualidade. Como tal, envolve uma epistemologia política da maior importância, não só como retrato pitoresco ou folclórico que afinal seria a “expressão” de um primitivismo alegórico e harmonioso, mas como forma de vida que pode efetivamente nos ajudar a enfrentar a crise bio-necropolítica de nossos tempos.

O antítodo oniropolítico começa pela ideia de tornar os mortos agentes políticos — aliás, como sempre foram —, mas aqui em um sentido algo diferente. Primeiro porque envolve uma outra concepção de tempo e em particular do futuro. Não se trata de ver no sonho uma prescrição, um destino ou uma escritura, mas uma experiência de conhecimento testemunhal, que orienta a ação coletiva das pessoas. Segundo porque, em contraste dos brancos que reservam os sonhos ao cuidado restrito e sigiloso dos psicanalistas, os Yanomami entendem que um sonho só se completa quando é contado, partilhado socialmente, às vezes contado de viva voz no meio da aldeia. Ao colocar o sonho “na roda” e ao relacioná-lo com problemas concretos da comunidade, cria-se uma espécie de jogo em que a mesma situação se apresenta em outras perspectivas, sugerindo assim novas soluções. Terceiro, novas soluções de nada adiantam se continuamos a ser as velhas pessoas. Neste sentido, a decomposição da pessoa Yanomami envolve versões de si que fariam inveja à qualquer teoria contemporânea do self: “o rosto que expressa pelo olhar” (pei pihi), o “espectro de si mesmo como morto” (né porepé), “a imagem interna de uma unidade corporal: sombra, reflexo, eco” (pei utupé), o “alter ego animal” (rixi).

Saber-fazer

Se todos sonham, nem todos têm o mesmo saber-fazer com os sonhos. Ainda que os xamãs sejam particularmente vocados nessa matéria, alguns ficarão fracos de tanto sonhar, outros serão assombrados pelos mortos, outros ainda nem se lembrarão dos sonhos. Para usar os sonhos de modo oniropolítico é preciso criar e cultivar seus próprios xapiri-pë, versões intermediárias de si, espíritos protetores ou vozes ajudantes que “trançam os fios da rede até o ponto delas se tornarem antenas para o céu”. Inversamente, durante os sonhos, eles nos protegem na convivência com os mortos, impedindo que “venham para cá” ou que, movidos por saudades, nós queiramos “ir para lá”. Eles são a voz que diz: “Voltaremos para vocês, é claro! Mas sem pressa! Retornem ao lugar de onde vieram!”.

O sonho não é um presságio, mas uma espécie de enigma sobre o qual se deve agir

Em uma cultura que partilha seus sonhos, a interpretação funciona de outra maneira. Menos do que um produto inesperado de si mesmo, as visões oníricas são parte de um mundo possível e real, eventualmente já acontecido ou em vias de acontecer. Por exemplo, sonhar com um sobrinho enfeitado com penas pode indicar que seu adoecimento é mais sério do que se pensava e ele pode morrer, porque é nesta condição que os corpos podem ser enfeitados. Porém o sonho não é um presságio, mas uma espécie de enigma sobre o qual se deve agir: procurar um xamã, mudar o caminho da cura ou realizar um rito protetivo.

Isso sugere uma homologia com a política que a psicanálise tem com o sonho: ele também é uma realização de desejo, mas, em vez de perguntar qual desejo foi suprimido neste mundo, os Yanomami perguntam: para este mundo, oniricamente revelado, qual é o desejo que lhe corresponde? Se na psicanálise perguntamos pela relação que as pessoas mantêm com seu desejo, o xamanismo Yanomami pergunta pela pessoa que você precisa ser se o mundo assim se apresentar. Se na psicanálise lemos os sonhos para entender qual passado sexual infantil e recalcado corresponde ao futuro realizado pelas imagens oníricas, no transe xapiri o espírito do xamã fala do passado mítico tendo em vista um futuro indeterminado. Por isso o modelo proposto por Limulja para pensar os sonhos dos Yanomami como uma fita de Moebius — ou seja, o sonho como ponto de torção entre vivos e mortos, dia e noite, sonho individual e mito coletivo — é também a chave para pensar transformações políticas e clínicas: “O próprio xamã vai elaborando seu repertório mítico e ampliando suas experiências oníricas. Seus sonhos transformam o mundo, mas isso só é possível porque ele mesmo é transformado por esta experiência”. Isso vale para as pequenas decisões do cotidiano, para as escolhas inerentes à arte da caça, para os cuidados com a segurança, mas sobretudo para os sonhos que permeiam o trabalho de luto e cercam a experiência da morte.

Uma mulher que perdera a filha e acabara de incinerar os ossos dela se alegra ao reencontrar a filha morta, que não entende o que está acontecendo e pergunta: “Mãe, por que seu rosto está pintado de preto?” Mas a mãe tenta a todo custo despistar a morta. Então ela olha para o cesto que contém seus ossos incinerados e pergunta: “Mãe, o que há dentro do cesto?”. E a mãe dissimula, mas os papagaios respondem: “Esses são seus ossos queimados”. Neste momento os Inhambu [pássaros associados com a morte e o entardecer] cantam e levantam voo.

O sonho se insere na vida como uma forma atenuada de morte. Numa sociedade na qual jamais se pronuncia o nome do morto e todo rastro de vida é apagado depois da festa fúnebre, a presença da morte não faz monumento, história ou escrita. A decisão que interpreta o sonho como uma imagem mítica do passado ou como um mundo possível no futuro é sobretudo um ato político. Vindo a morte sempre a partir de fora, seja este fora o inimigo terreno ou as voluptuosas almas dos mortos, os vivos têm menos domínios de sua vida do que gostariam. Aqui, mais do que nunca, confirmamos o dito de Lévi-Strauss para quem o psicanalista é um xamã moderno:

Se por um lado o sonho é sempre desencadeado pela vontade de um outro, e o sonhador aparece como uma “presa”, uma vítima, alguém à mercê do sentimento que lhe é alheio, por outro, o sonhador não está de forma alguma inteiramente subjugado ao sentimentos deste outro. Os vivos resistem aos apelos destes outros, e é porque resistem que eles podem continuar existindo Yanomami. 

Répteis têm atividade cerebral típica de sonhos humanos, revela estudo (Folha de S.Paulo)

Dr. Stephan Junek, Max Planck Institute for Brain Research
Sleeping dragon (Pogona vitticeps). [Credit: Dr. Stephan Junek, Max Planck Institute for Brain Research]
Estudo mostra que lagartos atingem padrão de sono que, em humanos, permite o surgimento de sonhos

REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

28/04/2016 14h56

Será que os lagartos sonham com ovelhas escamosas? Ninguém ainda foi capaz de enxergar detalhadamente o que acontece no cérebro de tais bichos para que seja possível responder a essa pergunta, mas um novo estudo revela que o padrão de atividade cerebral típico dos sonhos humanos também surge nesses répteis quando dormem.

Trata-se do chamado sono REM (sigla inglesa da expressão “movimento rápido dos olhos”), que antes parecia ser exclusividade de mamíferos como nós e das aves. No entanto, a análise da atividade cerebral de um lagarto australiano, o dragão-barbudo (Pogona vitticeps), indica que, ao longo da noite, o cérebro do animal fica se revezando entre o sono REM e o sono de ondas lentas (grosso modo, o sono profundo, sem sonhos), num padrão parecido, ainda que não idêntico, ao observado em seres humanos.

Liderado por Gilles Laurent, do Instituto Max Planck de Pesquisa sobre o Cérebro, na Alemanha, o estudo está saindo na revista especializada “Science”. “Laurent não brinca em serviço”, diz Sidarta Ribeiro, pesquisador da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e um dos principais especialistas do mundo em neurobiologia do sono e dos sonhos. “Foi feita uma demonstração bem clara do fenômeno.”

A metodologia usada para verificar o que acontecia no cérebro reptiliano não era exatamente um dragão de sete cabeças. Cinco exemplares da espécie receberam implantes de eletrodos no cérebro e, na hora de dormir, seu comportamento foi monitorado com câmeras infravermelhas, ideais para “enxergar no escuro”. Os animais costumavam dormir entre seis e dez horas por noite, num ciclo que podia ser mais ou menos controlado pelos cientistas do Max Planck, já que eles é que apagavam e acendiam as luzes e regulavam a temperatura do recinto.

O que os pesquisadores estavam medindo era a variação de atividade elétrica no cérebro dos dragões-barbudos durante a noite. São essas oscilações que produzem o padrão de ondas já conhecido a partir do sono de humanos e demais mamíferos, por exemplo.

Só foi possível chegar aos achados relatados no novo estudo por causa de seu nível de detalhamento, diz Suzana Herculano-Houzel, neurocientista da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e colunista da Folha. “Estudos anteriores menos minuciosos não tinham como detectar sono REM porque, nesses animais, a alternância entre os dois tipos de sono é extremamente rápida, a cada 80 segundos”, explica ela, que já tinha visto Laurent apresentar os dados num congresso científico. Em humanos, os ciclos são bem mais lentos, com duração média de 90 minutos.

Além da semelhança no padrão de atividade cerebral, o sono REM dos répteis também tem correlação clara com os movimentos oculares que lhe dão o nome (os quais lembram vagamente a maneira como uma pessoa desperta mexe os olhos), conforme mostraram as imagens em infravermelho.

DORMIR, TALVEZ SONHAR

A primeira implicação das descobertas é evolutiva. Embora dormir seja um comportamento aparentemente universal no reino animal, o sono REM (e talvez os sonhos) pareciam exclusividade de espécies com cérebro supostamente mais complexo. “Para quem estuda os mecanismos do sono, é um estudo fundamental”, afirma Suzana.

Acontece que tanto mamíferos quanto aves descendem de grupos primitivos associados aos répteis, só que em momentos bem diferentes da história do planeta – mamíferos já caminhavam pela Terra havia dezenas de milhões de anos quando um grupo de pequenos dinossauros carnívoros deu origem às aves. Ou seja, em tese, mamíferos e aves precisariam ter “aprendido a sonhar” de forma totalmente independente. O achado “resolve esse paradoxo”, diz Ribeiro: o sono REM já estaria presente no ancestral comum de todos esses vertebrados.

O trabalho do pesquisador brasileiro e o de outros especialistas mundo afora tem mostrado que ambos os tipos de sono são fundamentais para “esculpir” memórias no cérebro, ao mesmo tempo fortalecendo o que é relevante e jogando fora o que não é importante. Sem os ciclos alternados de atividade cerebral, a capacidade de aprendizado de animais e humanos ficaria seriamente prejudicada.

Tanto Ribeiro quanto Suzana, porém, dizem que ainda não dá para cravar que lagartos ou outros animais sonham como nós. “Talvez um dia alguém faça ressonância magnética em lagartos adormecidos e veja se eles mostram a mesma reativação de áreas sensoriais que se vê em humanos em sono REM”, diz ela. “Claro que os donos de cachorro têm certeza que suas mascotes sonham, mas o ideal seria fazer a decodificação do sinal neural”, uma técnica que permite saber o que uma pessoa imagina estar vendo quando sonha e já foi aplicada com sucesso por cientistas japoneses.