>
Após os atentados de 11 de setembro de 2001, a fé de 1,5 bilhão de pessoas vem sendo estigmatizada por conta das atrocidades de uma minoria.
Bruno Franco
Jornal da UFRJ, No. 55, julho-agosto 2010, pág. 26-27
Após os atentados terroristas ao edifício World Trade Center, símbolo do capitalismo, no coração de Nova Iorque, e ao Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, o mundo entrou em uma nova era geopolítica – a guerra ao terror – capitaneada pelos norte-americanos, vítimas desses grandes atentados, que tiveram a maior repercussão na história. A agressão foi planejada, financiada e conduzida pela al-Qaeda, organização terrorista até então praticamente desconhecida, liderada pelo milionário saudita Osama bin Laden. Dezenove terroristas, 15 dos quais sauditas, sequestraram quatro aviões. Dois chocaram-se com as torres gêmeas do World Trade Center, um contra o Pentágono e o quarto caiu na Pensilvânia antes de atingir seu alvo, possivelmente o Capitólio, em Washington.
A reação dos EUA foi endossada pela ampla maioria da comunidade internacional, que apoiou a invasão do Afeganistão, país no qual o governo extremista Talibã abrigava e praticava treinamentos conjuntos com diversos grupos terroristas como a al-Qaeda e o Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU), que supostamente representa uma ameaça à estabilidade não apenas da república uzbeque como às demais nações da Ásia Central.
O 11 de setembro e o seu corolário, a guerra ao terror, não tiveram apenas conseqüências militares. Os check-ins dos aeroportos norte-americanos tornaram-se mais rigorosos para viajantes do mundo todo, sobretudo a revista aos passageiros muçulmanos, ou somente de aparência muçulmana. Nos EUA, até mesmo sikhs, confundidos com muçulmanos pelo uso do turbante, foram vítimas de agressões, e na Europa, nos países que contam com significativas minorias islâmicas, a animosidade cresceu.
Os injustificáveis atos de uma minoria extremista têm sido associados a um dos maiores grupos religiosos do planeta, reforçando preconceitos, estereótipos e fomentando discriminação e hostilidade, em uma espiral de irracionalidade na qual mídia e opinião pública nutrem-se mutuamente.
Mas a idéia de que o islamismo está associado à intolerância e à violência é contradita pelo próprio significado do Islã, uma palavra que deriva de salaam, ou seja, paz, no idioma árabe. Como explica Sami Isbelle, diretor pedagógico da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ) e autor dos livros Islam: a sua crença e a sua prática e O Estado islâmico e a sua organização (ambos da editora Azaan), muçulmano é todo aquele que se submete voluntariamente à vontade de Deus e assim está em paz consigo mesmo, com a sociedade ao seu redor e com Deus. “A primeira palavra que o muçulmano diz pela manhã é salaam e a saudação entre muçulmanos é Assalamu Alaikum (Que a paz esteja sobre vós!), com a resposta Alaikum Assalam (E sobre vós a paz!). A paz é o que norteia esta religião, e não a guerra, o terrorismo”, ensina o pedagogo.
Inquisição e Cruzadas: o Ocidente esqueceu?
O estereótipo da intolerância islâmica frente às demais culturas é desmentido pela história, tal como ela é conhecida por qualquer ocidental. Durante oito séculos, parte do atual território espanhol (a Andaluzia) esteve sob domínio muçulmano. A liberdade de culto de judeus e cristãos foi preservada durante todo esse tempo, bem como foram respeitadas igrejas e sinagogas. A ocupação islâmica deixou um significativo legado na Arte, na Arquitetura, na Álgebra, na Geometria e na Química. “Quando os cristãos reconquistaram a região, não procederam da mesma forma, mas perseguiram todos os que professavam outras religiões, os convertiam à força ou os matavam e instauraram a Inquisição”, relembra Isbelle.
O mesmo se deu na Palestina, à época das Cruzadas, onde cristãos e judeus tinham garantida sua liberdade de culto e de construção de templos, embora o governo fosse islâmico. “Quando os cruzados chegaram, os historiadores, mesmos os cristãos, relatam os massacres que impuseram não apenas a muçulmanos e judeus, mas mesmo aos cristãos que não seguiam a fé católica, como os ortodoxos. Quando chegaram a al-Aqsa, o sangue derramado de suas vítimas batia nos joelhos de seus cavalos e não faziam distinção se eram idosos, mulheres ou crianças”, relata o diretor da SBMRJ.
O terrorismo não é justificado, nem aceito pelo clero muçulmano. Em sermão proferido em agosto de 2008, o principal líder religioso saudita, o mufti Abdulaziz bin Abdala al Sheikh, enfatizou que nem o Islã nem Alá apóiam o terrorismo e missões suicidas. “O terrorismo é um problema internacional […]. O dever do muçulmano é se opor a isso”, afirmou o xeque, na mesquita de Namira, local em que, segundo a crença, o profeta Maomé pronunciou seu último sermão.
Mídia como reprodutora de preconceitos
A concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos empresários faz com que as informações das grandes agências de notícias sejam reproduzidas quase literalmente por veículos do mundo todo. Essa é a visão de Isbelle, para quem a mídia passa uma mensagem subliminar. “Bate na mesma tecla e as pessoas desenvolvem aversão ao Islã e nem mesmo querem saber do que se trata. As primeiras coisas que lhes vêm à mente são terrorismo, Bin Laden, mulher oprimida. É isso o que a mídia veicula o tempo inteiro. Parece que há um objetivo de levar as pessoas à aversão completa ao Islã”, protesta o islamita.
O escritor adverte que um ato terrorista, quando realizado por um muçulmano, é sempre noticiado enfatizando-se a religião do criminoso. Mas, se o mesmo ato é feito por um não-muçulmano, a fé dessa pessoa não costuma ser mencionada: “Quando o Exército Republicano Irlandês (IRA) fazia algum atentado na Irlanda do Norte, não se falava em terrorismo católico. Agem como se o terrorismo fosse algo pregado pelo Islã. Hoje, somos mais de 1,5 bilhão de muçulmanos. Caso isso fosse algo pregado pela nossa religião, acho que já não existiria mais pedra sobre pedra. Não é?”.
Para Renzo Taddei, antropólogo e professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, tal representação feita pela mídia ocorre em um contexto específico e mesmo durante a primeira guerra do Golfo não era forte “essa balela de choque de civilizações”. Segundo Taddei, essa teoria (proposta pelo cientista político norte-americano Samuel Huntington, pela qual as diferenças culturais seriam a causa maior de conflitos), do ponto de vista antropológico, é completamente equivocada. “Não existem no mundo representações estanques. Impossível pensar isso no contexto atual de integração de comunicações, de finanças, de mercado de trabalho. Tampouco existe uma única coisa chamada islamismo. Existe uma infinidade de variações do islamismo da mesma forma que acontece com o cristianismo. Não há como contrapor mundo ocidental e mundo islâmico, pois não são blocos monolíticos”, explica o professor.
O fundamentalismo, de acordo com Taddei, é um problema comum ao islamismo, ao cristianismo e ao judaísmo. “Um dos maiores problemas do Estado de Israel é com o fundamentalismo judaico, responsável pela morte do ex-primeiro-ministro Yitzhak Rabin. Todos os grupos culturais têm problemas com fundamentalistas. A questão é o porquê de a mídia tratar os fundamentalistas como se fossem bons representantes da comunidade muçulmana, coisa que nunca faria com fundamentalistas cristãos”, critica o professor.
Como exemplo desses dois pesos e duas medidas da mídia, Taddei relembra um caso ocorrido quando morava nos EUA: “Um artista africano fez uma exposição no Museu de Arte do Brooklyn e um de seus quadros, uma Ave-Maria, cuja composição tinha excrementos de elefante, causou grande comoção em Nova Iorque. A exposição foi cancelada quase que imediatamente”. Comoção semelhante despertou a publicação de 12 charges, chamadas de “As Faces de Maomé”, pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten. As caricaturas levaram a protestos de ministros árabes e a passeatas pelas ruas de Copenhague. “A história do artista africano é muito parecida, mas afetando a sensibilidade cristã, e ninguém menciona a semelhança”, compara o antropólogo.
“A imprensa sofre cronicamente a ditadura do espaço”, analisa Taddei, para quem “às vezes o jornalista tem de se esforçar para preencher o espaço do jornal, mas é mais comum que ocorra o contrário.” Nesse panorama, o antropólogo considera difícil que a mídia dê conta de questões culturais complexas, buscando assim o lugar-comum. “O estereótipo é uma coisa ruim do ponto de vista ideológico, mas é conveniente do ponto de vista operacional. É um mecanismo de concisão coletiva, por mais distorcido que seja, e todos são. Ele faz com que a comunicação funcione de maneira mais rápida e tomando menos tempo e menos espaço”, analisa o professor.
Isso explica por que a mídia faz uso de estereótipos, e como eles refletem o senso comum; os jornalistas nem sempre percebem que fazem uso deles. “Quando se apresenta uma situação de complexidade cultural, a coisa fica mais difícil. Desmontar o estereótipo requer esforço intelectual, tempo”, conclui Taddei.
Um dos mais frequentes estereótipos associados ao Islã é o da submissão da mulher. Isbelle rebate mais essa caricaturização com argumentos históricos. “O Islã garantiu à mulher o direito a escolher seu marido, a receber herança, a divorciar-se, a ter prazer sexual, a estudar (uma obrigação religiosa, na verdade), a trabalhar e receber o mesmo salário que o homem, no exercício da mesma função, e de dispor de seus bens sem interferência do pai ou marido. A sociedade ocidental somente conferiu alguns desses direitos às mulheres no século passado”, explica o escritor.
Jihad
Um conceito islâmico que é constantemente distorcido e entendido como algo ruim é o jihad. Essa palavra, quase sempre traduzida como guerra santa (harb al makadass), na realidade significa empenho. O Islã distingue o conceito em duas variantes. No livro Jihad (ed. Cosac & Naify), o jornalista Ahmed Rashid ensina que “o grande Jihad, na explicação do profeta Muhammad, é, em primeiro lugar, uma busca interior: implica o esforço de cada muçulmano para se tornar um ser humano melhor, a luta para melhorar a si mesmo”.
O jihad menor, por sua vez, é extremamente amplo. “É desde tirar uma pedra do caminho para outra pessoa não tropeçar, até conceder uma entrevista para esclarecer o que é o Islã”, explica Isbelle. Como reforça Rashid em seu livro, “em parte alguma dos escritos ou da tradição muçulmana o Jihad sanciona a matança de homens, mulheres ou crianças inocentes, muçulmanos ou não, com base em etnia, seita ou crença. É esse desvirtuamento do Jihad – como justificativa para massacrar inocentes – que em parte define o neofundamentalismo radical dos movimentos islâmicos mais extremistas da atualidade”.
O Islã permite ao muçulmano a autodefesa, mas não que inicie um combate, e caso o adversário cesse as hostilidades, o muçulmano deve fazer o mesmo. “O Corão antecipou em mais de 1.400 anos a Convenção de Genebra (que dispõe sobre o direito em conflitos armados) e muitos de seus artigos, na proibição de ataques a mananciais de água, a crianças, mulheres e idosos”, orgulha-se Isbelle.