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É preciso interromper a tragédia humanitária na terra ianomâmi (O Globo)


Malu Gaspar

Por Editorial 15/04/2022 00:00

Ianomâmis (Reuter) Ianomâmis (Reuter) | Reuters

São contundentes as conclusões do relatório da Hutukara Associação Yanomami sobre os efeitos nocivos do garimpo ilegal na maior reserva do país, que reúne cerca de 30 mil indígenas numa área de 9 milhões de hectares entre Amazonas e Roraima. Como mostrou O GLOBO, em apenas um ano (de 2020 a 2021), a devastação cresceu 46%, maior taxa desde a demarcação das terras ianomâmis em 1992. A destruição, evidenciada pelas crateras no meio da floresta e pelos rios contaminados com mercúrio, pode ser a ponta mais visível, mas não é a única tragédia. Com o desmatamento, forasteiros levam doenças, violência, drogas e terror.

Segundo o relatório, as aldeias enfrentam uma explosão de casos de malária — em algumas regiões, o aumento foi de mais de 1.000% em dois anos. Comida é outro problema crônico. Estudos mostram que 60% das crianças estão desnutridas. No fim do ano passado, imagens de crianças ianomâmis com as costelas à mostra chocaram o mundo. A situação é agravada pela estrutura precária de saúde e pelas grandes distâncias que separam as aldeias dos postos de atendimento médico.

Estima-se que existam 20 mil garimpeiros ilegais nas terras ianomâmis, sob vista grossa dos órgãos ambientais. Nesse cenário sem lei, os indígenas se tornam presas fáceis de esquemas criminosos. Há relatos de aliciamento de menores, abuso sexual de mulheres e crianças e oferecimento de drogas e bebidas alcoólicas aos indígenas. De acordo com a Hutukara, ao menos três crianças já foram mortas depois de ser abusadas por garimpeiros ilegais.

Não surpreende que a violência impere nesse ambiente de anomia. Na segunda-feira, um conflito entre indígenas numa área de garimpo dentro da terra ianomâmi deixou dois mortos (um indígena e um garimpeiro) e cinco feridos. Segundo relatos, índios tireis, apoiados por garimpeiros, invadiram a aldeia pixanehabi, contrária à exploração mineral na reserva.

Seria incorreto dizer que o Ibama e a Polícia Federal não agem. Na terça-feira, foi deflagrada a Operação Escudo de Palha, para combater o desmatamento ilegal numa comunidade indígena de Mato Grosso. Mas essas ações esporádicas são insuficientes. Além disso, são notórios o desmonte da fiscalização ambiental e a falta de empenho do governo para enfrentar madeireiros, grileiros e garimpeiros ilegais. Infelizmente, a sinalização que emana do Palácio do Planalto é outra.

Durante uma pajelança no Ministério da Justiça no mês passado, o presidente Jair Bolsonaro foi condecorado com a Medalha do Mérito Indigenista, concedida pela Funai “pelos serviços relevantes relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas”. Bolsonaro foi um dos 26 agraciados, entre os quais estavam dez integrantes do primeiro escalão do governo. Para fazer jus à homenagem, presidente e ministros poderiam se esforçar para interromper a tragédia humanitária que se abate sobre os ianomâmis e envergonha o país.

Crise do clima aprofunda desigualdades e viola direitos humanos, diz ONG (Folha de S.Paulo)

Anistia Internacional aponta efeitos desproporcionais da mudança climática, que prejudica mais grupos vulneráveis

13.ago.2021 às 3h00

Fernanda Mena – São Paulo

A crise climática é uma crise de direitos humanos, cujas emergências já estão afetando de maneira desproporcional os países mais vulneráveis e os grupos sociais mais discriminados e marginalizados, aprofundando desigualdades.

É isso o que indica o relatório “Parem de Queimar Nossos Direitos”, lançado nesta sexta-feira (13) globalmente pela Anistia Internacional.

O documento detalha como emergências climáticas têm consequências injustas entre países, entre diferentes populações e entre gerações e de que maneira elas comprometem a garantia de uma série de direitos fundamentais, como o direito à vida, à água, à alimentação, à moradia, à saúde, ao trabalho e à autodeterminação, entre outros.

O primeiro e mais elementar desses direitos é a face mais evidente e trágica da escalada de emergências climáticas que tomaram o noticiário ao longo do último ano. Tempestades devastadoras, recorde de furacões, ondas de calor e incêndios sem precedentes mataram pessoas da Austrália à Alemanha, passando por Bahamas, China e Canadá.

Segundo o documento, mais de 20 milhões de pessoas foram deslocadas internamente, em média, a cada ano entre 2008 e 2019 por causa de eventos relacionados ao clima. Parte desses eventos afetou a vida de milhões de pessoas ao destruir plantações e casas e queimar florestas e cidades inteiras, além de secar rios. O Brasil, por exemplo, vive a pior estiagem dos últimos 91 anos, o que compromete o abastecimento da população e o fornecimento de energia elétrica.

A ONG internacional reitera um alerta da comunidade científica: a temperatura do planeta já subiu, em média, 1,1ºC desde tempos pré-industriais, e os países precisam evitar que essa elevação dos termômetros ultrapasse 1,5º C. Para isso, precisam reduzir ao máximo, chegando a zero, suas emissões de carbono.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) estimou que manter o aumento da temperatura média global em 1,5°C, e não em 2°C, resultaria na proteção de 420 milhões de pessoas em relação a ondas de calor extremas e na redução de 50% no número de pessoas expostas ao estresse hídrico induzido pelo clima, além de diminuir o risco de inundações costeiras.

Estudo publicado na revista Nature calculou que, em 2050, a elevação do nível do mar por conta do derretimento de gelo nos pólos do planeta pode afetar mais de 1 milhão de brasileiros que vivem em regiões costeiras.

“As autoridades públicas no Brasil têm contribuído para que haja um desmonte da agenda ambiental, mas não há mais espaço para o negacionismo. A vida de brasileiros e brasileiras deve vir em primeiro lugar”, explica Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil.

Segundo Werneck, os Estados têm obrigações legais de enfrentar a crise do clima, de acordo com a normativa internacional dos direitos humanos. “Exigimos que o governo do presidente Jair Bolsonaro e o Congresso Nacional ajam para atenuar os efeitos das mudanças climáticas sobre a população brasileira e implementem políticas públicas de conservação da natureza e proteção dos direitos humanos.”

Para ela, o governo do Brasil não está fazendo o que é preciso para enfrentar a crise climática. “Muito pelo contrário, temos visto decisões equivocadas, perigosas e muita negligência. O governo não se coloca ao lado da proteção do ambiente natural nem dos sujeitos de grupos populacionais como indígenas, quilombolas e moradores das periferias das cidades para mitigar e superar os impactos da crise climática.”

Embora as mudanças climáticas sejam um fenômeno global, elas atingem países pobres e em desenvolvimento de maneira desproporcional, o que configura um aspecto injusto desse fenômeno.

O relatório afirma que os países e blocos que mais emitiram CO2 na história —EUA, União Europeia, China, Rússia e Japão— têm uma responsabilidade histórica e precisam agir em seu território e no exterior, mas não são os únicos que devem responder ao imperativo de mudanças.

“Para resolver essa crise, que é global, é preciso que a responsabilidade de agir seja compartilhada por todos e todas. Todos os países precisam fazer alguma coisa urgente, sejam os países mais ricos do mundo, sejam aqueles em desenvolvimento, como o Brasil, sejam os países mais pobres do mundo. Todo mundo tem o que fazer, todo mundo deve fazer. Se omitir nesse momento é extremamente violador dos direitos humanos”, afirma a diretora-executiva da Anistia no Brasil.

Neste sentido, o relatório da organização aponta que a omissão de países em tomar medidas audaciosas para enfrentar a crise do clima é, em si, uma violação de direitos humanos porque tem impactos concretos sobre direitos com um escopo ainda maior que outros tipos de violações.

Isso porque, além do desequilíbrio entre nações, os efeitos das emergências climáticas também estão ligados às desigualdades e privilégios de parcelas da população mundial.

De acordo com o relatório da Anistia, de 1990 a 2015, os 10% mais ricos da população mundial (cerca de 630 milhões de pessoas) foram responsáveis por mais da metade das emissões acumuladas de carbono, enquanto os 50% mais pobres (cerca de 3,1 bilhões de pessoas) foram responsáveis por apenas 7% das emissões acumuladas.

Estudos já identificaram que existem recortes étnicos, raciais e de gênero nas pessoas mais afetadas, entre elas, mulheres, pessoas negras e povos indígenas, além de outros grupos que vivem em moradias mais precárias, em localidades de risco ou em áreas mais expostas à poluição e menos servidas de saneamento, por exemplo.

Por isso, ao mesmo tempo que o relatório convoca os países a reduzir drasticamente a queima de combustíveis fósseis e a acelerarem suas transições para matrizes energéticas limpas, a Anistia chama a atenção para a necessidade de cuidar das pessoas mais vulneráveis. Para tanto, recomenda a criação de mecanismos de financiamento internacional para que se adote medidas de mitigação da crise e de adaptação das populações a emergências climáticas.

Além disso, de acordo com a ONG, esses projetos de mitigação e de adaptação muitas vezes ocorrem em contextos de violação de direitos, seja no campo do trabalho ou da alimentação, no caso das monoculturas de biocombustíveis.

“Há uma profunda injustiça permeando toda essa crise climática. Porque é uma minoria das pessoas do mundo e dos países do mundo que produzem um excesso de gases de efeito estufa, que estão na origem da crise climática. E são aqueles que são excluídos e marginalizados que já estão pagando o preço mais alto dessa crise”, avalia Werneck.

“Portanto, a resposta à crise precisa ser coordenada e ter enfoque em direitos humanos. Precisa garantir que as medidas de reparação e de correção de rota sejam rápidas, mas também sejam justas.”

Prominent Anthropologist Welcomes Football Team Name Trademark Cancellation (American Anthropological Association)

by Damon

June 18, 2014 at 4:31 pm

In a move that was hailed by the anthropological community, the U.S. Patent and Trademark Office announced on Wednesday morning that it had canceled six federal trademark registrations for the name “Washington Redskins” citing testimony and evidence that the Washington, DC- based football team’s name is “disparaging to Native Americans” and thus in violation of federal trademark laws banning offensive terms and language.

While the decision today means that the team can continue to use the term, the phrase is no longer owned by the organization, meaning it will be difficult to stop others from using the term, and thus limiting its financial benefit to the club.

Dr. Bernard C. Perley, a Native American and anthropologist, released the following statement in the wake of the government’s decision:

Today, I am celebrating the US Patent and Trademark Office’s decision to cancel the six trademark registrations of the NFL Washington professional football team. The Patent and Trademark Office made their decision based on evidence and concluded that the trademark (the “r word”) is “disparaging to Native Americans at the respective times they were registered”.

This decision represents the best values of the American people as established in the founding documents of the United States. It also echoes the work of generations of anthropologists who have worked and continue to work with Native American communities to promote social justice for the first peoples of the Americas.

Unfortunately, there are many Americans who will make any excuse to support the NFL and the Washington team in their defense of the disrespectful name. The ruling does not prevent the team from continuing to use the derogatory term and it is likely the team will appeal the decision.

The US Patent and Trademark decision is good news but there is still much work to be done. The public debate over the “r word” has contributed to the growing awareness of the American public regarding the derogatory aspect of the term to many Native Americans. Anthropology can support and enhance that awareness by making public the ongoing work of anthropologists and Native American community leaders in promoting respect and understanding. We can accomplish this by disseminating the inspiring stories of Native American resilience and their contributions to the American experience.”

Dr. Perley is also a member of the Executive Board of the American Anthropological Association

US Scientists, Oil Giant Stole Indigenous Blood (Common Dreams)

Published on Wednesday, June 18, 2014 by Common Dreams

For years, scientists working with Maxus Energy took blood samples from hundreds of Amazonian tribal members

– Max Ocean, editorial intern

Members of the Ecuadorean indigenous group known as the Huaorani (Credit: Jean-François Renaud/cc/flickr)

U.S. scientists working together with oil company Maxus Energy took around 3,500 blood samples from the indigenous Amazonian tribe known as the Huaorani, Ecuador charged on Monday.

The Huaorani are known for a unique genetic makeup that makes them immune to certain diseases.

René Ramírez, the head of the Ecuadorian Ministry of Higher Education, Science and Technology, told Ecuador state TV on Monday that samples were taken from around 600 Huaorani, and that multiple pints of blood were taken from many members of the tribe. Ramírez said that it is not yet known whether the samples have resulted in any commercial gains, but that samples were sold for scientific research.

According to an initial investigation two years ago, “It was demonstrated that the Coriell Institute has in its stores samples (from the Huaorani) and that it sells genetic material from the Huaorani people.” Harvard University was among the purchasers. Specifically, the 2012 report found that since 1994, seven cell cultures and 36 blood samples were distributed to eight different countries.

In the same report the Huaorani said that scientists had tricked them into allowing their blood to be taken between 1990 and 1991; however, President Rafael Correa said that there is now evidence that samples were taken as far back as the 1970s “in complicity with the oil company operating in the area.”

The Huaorani allegedly agreed to give the blood samples because scientists lied to them about why the samples were being taken. They were told the samples were being taken for medical tests, but never received results.

According to the website Hispanically Speaking News, in his weekly radio address on Saturday, President Correa said that at least 31 research papers were written between 1989 and 2012 based on the blood samples obtained––all without the consent of the Huaorani or the royalty payments normally required.

The taking of the samples was illegal, as Ecuador’s constitution bans the use of scientific research including genetic material in violation of human rights.

According to AFP, when the allegations first emerged in 2012, the U.S. Embassy said it was not aware of the case, and they did not immediately issue a response after Ecuador brought the charges on Monday.

Facebook: um mapa das redes de ódio (Carta Capital)

Pesquisa vasculha território obscuro da internet: as comunidades que clamam por violência policial, linchamentos, mortes dos “esquerdistas” e novo golpe militar

por Patrícia Cornils — publicado 11/03/2014 15:13

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Imagem: Vitor Teixeira

Por Patrícia Cornils entrevistando Fabio Malini

No dia 5 de março o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo, publicou um mapa de redes de admiradores das Polícias Militares no Facebook. São páginas dedicadas a defender o uso de violência contra o que chamam de “bandidos”, “vagabundos”, “assaltantes”, fazer apologia a linchamentos e ao assassinato, defender policiais, publicar fotos de pessoas “justiçadas” ou mortas violentamente, vender equipamentos bélicos e combater os direitos humanos.

Para centenas de milhares de seguidores dessas páginas, a violência é a única mediadora das relações sociais, a paz só existe se a sociedade se armar e fizer justiça com as próprias mãos, a obediência seria o valor supremo da democracia. Dentro dessa lógica, a relação com os movimentos populares só poderia ser feita através da força policial. Qualquer ato que escape à ordem ou qualquer luta por direitos é lido como um desacato à sociedade disciplinada. Um exemplo: no sábado, dia 8 de março, a página “Faca na Caveira” publicou um texto sobre o Dia Internacional das Mulheres no qual manda as feministas “se foderem”. Em uma hora, recebeu 300 likes. Até a tarde de domingo, 1473 pessoas haviam curtido o texto.

Abaixo o professor Fábio Malini explica como fez a pesquisa e analisa o discurso compartilhado por esses internautas. “O que estamos vendo é só a cultura do medo midiático passando a ter os seus próprios veículos”, diz ele. Explore as redes neste link.

Como você chegou a esse desenho das redes? O que ele representa?

É um procedimento simples em termos de pesquisa. O pesquisador cria uma fanpage no Facebook e passa a dar “like” num conjunto de fanpages ligada à propagação da violência. Em seguida, usamos uma ferramenta que identifica quais os sites que essas fanpages curtem. E, entre elas, quais estão conectadas entre si. Se há conexão entre uma página com outra, haverá uma linha. Se “Faca na Caveira” curte “Fardado e Armados˜há um laço, uma linha que as interliga. Quando fazemos isso para todas as fanpages, conseguimos identificar quais são as fanpages da violência (bolinhas, nós) mais conectadas e populares. Isso gera um grafo, que é uma representação gráfica de uma rede interativa. Quanto maior é o nó, mais seguida é a página para aquela turma. No grafo, “Polícia Unida Jamais será vencida” é a página mais seguida pela rede. Não significa que ela tem mais fãs. Significa que ela é mais relevante para essa rede da violência. Mas a ferramenta de análise me permite ver mais: quem são as páginas mais populares no Facebook, o que elas publicam, o universo vocabular dos comentários, a tipologia de imagens que circula etc.

O que você queria ver quando pesquisou esse tema? E o que achou de mais interessante?

Pesquisei durante apenas uma semana para testar o método de extração de dados. Descobri que o Labic, laboratório que coordeno, pode ajudar na construção da cultura de paz nesse país, desvelando os ditos dessas redes, que estão aí, lotadas de fãs e públicas no Facebook. Assustei-me em saber a ecologia midiática da repressão no Facebook, em função da agenda que esses sites estabelecem.

Primeiro há um horror ao pensamento de esquerda no país. Isso aparece com inúmeros textos e imagens que satirizam qualquer política de direitos humanos ou ligadas aos movimentos sociais. Essas páginas funcionam como revides à popularização de temas como a desmilitarização da Polícia Militar ou textos de valorização dos direitos humanos. Atualmente, muitas dessas páginas se articulam em função da “Marcha pela Intervenção Militar”. Um de seus maiores ídolos é o deputado Jair Bolsonaro.

Após os protestos no Brasil, a estrutura de atenção dos veículos de comunicação de massa se pulverizou, muito tráfego da televisão está escoando para a internet, o que faz a internet brasileira se tornar ainda mais “multicanal”, com a valorização de experiências como Mídia Ninja, Rio na Rua, A Nova Democracia, Outras Palavras, Revista Fórum, Anonymous, Black Blocs. São páginas muito populares. Mas não estão sozinhas. Há uma guerra em rede. E o pensamento do “bandido bom, bandido morto” hoje se conformou em votos. Esse pensamento foi capaz de construir redes sociais em torno dele.

A despolitização, a corrupção, os abusos de poder, a impunidade, estão na raiz da força alcançada por essas redes da violência e da justiça com as próprias mãos. E não tenho dúvida: essas redes, fortes, vão conseguir ampliar seu lastro eleitoral. Vão ajudar na eleição de vários políticos “linha dura”. Em parte, o crescimento dessas redes se explica também em função de forças da esquerda que passaram a criminalizar os movimentos de rua e ficaram omissas a um conjunto de violações de direitos humanos. O silêncio, nas redes, é resignação. O que estamos vendo é só a cultura do medo midiática passando a ter os seus próprios veículos de comunicação na rede.

Você escreveu que “é bom conhecer e começar a minerar todos os conteúdos que são publicadas nelas.” Por que?

Porque é preciso compreender a política dessas redes e seus temas prioritários. Instituir um debate por lá e não apenas ficar no nosso mundo. É preciso dialogar afirmando que uma sociedade justa é a que produz a paz, e não uma sociedade que só obedece ordens. Estamos numa fase de mídia em que se calar para não dar mais “ibope” é uma estratégia que não funciona. É a fala franca, o dito corajoso, que é capaz de alterar (ou pelo menos chacoalhar) o discurso repressor.

É interessante, ao coletarmos e minerarmos os dados, notar que muitas dessas páginas articulam um discurso de Ode à Repressão com um outro pensamento: o religioso, cujo Deus perdoa os justiceiros. Isso se explica porque ambos são pensamentos em que o dogma, a obediência, constituem valores amplamente difundidos. Para essas redes, a defesa moral de uma paz, de um cuidado de si, viria da capacidade de os indivíduos manterem o estado das coisas sem qualquer questionamento, qualquer desobediência.

No lugar da Política enfrentar essas redes, para torná-las minoritárias e rechaçadas, o que vemos? Governantes que passam a construir seus discursos e práticas em função dessa cultura militarizada, dando vazão a projetos que associam movimentos sociais a terrorismo. Daí há uma inversão de valores: a obediência torna-se o valor supremo de uma democracia. E a política acaba constituindo-se naquilo que vemos nas ruas: o único agente do Estado em relação com os movimentos é a polícia.

O grafo mostra as relações entre os diversos nós dessa rede. Mas e se a gente quiser saber o que essas redes conversam? As PMs estão no centro de vários debates importantes hoje: o tema da desmilitarização. A repressão às manifestações. O assassinato de jovens pobres, pretos, periféricos. Esses nós conversam sobre essas coisas? Em que termos?

Sim, esses nós se republicam. Tal como páginas ativistas se republicam, tais como páginas de esporte se republicam. Todo ente na internet está constituindo numa rede para formar uma perspectiva comum. As ferramentas para coletar essas informaçoes públicas estão muito simplificadas e na mão de todos. Na tenho dúvida que as abordagens científicas das Humanidades serão cada vez mais centrais, pois a partir de agora o campo das Humanidades lidará com milhões de dados. É uma nova natureza que estamos vendo emergir com a circulação de tantos textos, imagens, comportamentos etc.

Você escreveu que “os posts das páginas, em geral, demonstram o processo de construção da identidade policial embasada no conceito de segurança, em que a paz se alcança não mediante a justiça, mas mediante a ordem, a louvação de armamentos e a morte do outro.” Pode dar exemplos de como isso aparece? E por que isso é grave? Afinal, na visão dos defensores e admiradores da polícia, as posições que defendem dariam mais “paz” à sociedade.

Sábado, 8 de março, foi o Dia Internacional da Mulher. Uma das páginas, a Faca na Caveira, deu parabéns às mulheres guerreiras. Mas mandaram as feministas se foderem. O post teve 300 likes em menos de meia hora e na tarde de domingo tinha 1473 likes. A paz só será alcançada com ordem e obediência, dizem. No fundo, essas redes revelam-se como repressoras de qualquer subjetividade inventiva. Por isso, são homofóbicas e profundamente etnocêntricas de classes. É uma espécie de decalque do que pensa a classe média conectada no Brasil, que postula que boné de “aba reta” em shopping é coisa da bandidagem.

Em Vitória, onde resido, em dezembro de 2013, centenas de jovens que curtiam uma roda de funk nas proximidade de um shopping tiveram que entrar nesse recinto para fugir da repressão da polícia, que criminaliza essa cultura musical. Imediatamente foi um “corre-corre” no centro comercial. Os jovens foram todos colocados sentados, sem camisa, no centro da Praça de Alimentação. Em seguida, foram expulsos em fila indiana pela polícia, sob os aplausos da população. Depois, ao se investigar o fato, nenhum deles tinha qualquer indício de estar cometendo crime. Essa cultura do aplauso está na rede e é forte. É um ódio à invenção, à diferença, à multiplicidade. É por isso que a morte é o elemento subjetivo que comove essa rede. Mostrar possíveis criminosos mortos, no chão, com face, tórax ou qualquer outro parte do corpo destruída pelos tiros, é um modo de reforçar a negação da vida.

Essas redes conversam com outras redes não dedicadas especificamente à questão das PMs? Vi, por exemplo, que tem um “Dilma Rousseff Não”, um “Caos na Saúde Pública” e um “Movimento Contra Corrupção”. Que ligações as pessoas ali estabelecem entre esses temas?

Sim, são páginas que se colocam no campo da direita mais reacionária do país. Mas isso também é um índice da transmutação do conservadorismo no Brasil. Infelizmente, o controle da corrupção se tornou um fracasso. Essa condição fracassada alimenta a despolitização. E a despolitização é o combustível para essas páginas. Mas a despolitização não é apenas um processo produzidos pelos “repressores”, mas por sucessivos governos mergulhados em escândalos e que são tecidos por relações políticas absolutamente cínicas em nome de alguma governabilidade.

U.S. Seems Unlikely to Accept That Rights Treaty Applies to Its Actions Abroad (New York Times)

By  – MARCH 6, 2014

WASHINGTON — In 1995, Conrad Harper, the Clinton administration’s top State Department lawyer, appeared before a United Nations panel in Geneva to discuss American compliance with a global Bill of Rights-style treaty the Senate had recently ratified, and he was asked a pointed question: Did the United States believe it applied outside its borders?

Mr. Harper returned two days later and delivered an answer: American officials, he said, had no obligations under the rights accord when operating abroad. The Bush administration would amplify that claim after the Sept. 11 attacks — and extend it to another United Nations convention that bans the use of torture — to justify its treatment of terrorism suspects in overseas prisons operated by the military and the C.I.A.

The United Nations panel in Geneva that monitors compliance with the rights treaty disagrees with the American interpretation, and human rights advocates have urged the United States to reverse its position when it sends a delegation to answer the panel’s questions next week. But the Obama administration is unlikely to do that, according to interviews, rejecting a strong push by two high-ranking State Department officials from President Obama’s first term.

Caitlin Hayden, a National Security Council spokeswoman, declined to discuss deliberations but defended the existing interpretation of the accord as applying only within American borders. Called the International Covenant on Civil and Political Rights, it bars such things as unfair trials, arbitrary killings and the imprisonment of people without judicial review.

“The legal position held by prior administrations — Republican and Democratic — is a carefully considered position with a strong basis in the text of the treaty, and there is a very high bar for change under those circumstances,” she said.

Still, in a 56-page internal memo, the State Department’s former top lawyer, Harold Koh, concluded in October 2010 that the “best reading” of the accord is that it does “impose certain obligations on a State Party’s extraterritorial conduct.”

And in January 2013 Mr. Koh went further in a 90-page memo on the Convention Against Torture. “In my legal opinion, it is not legally available to policy makers to claim” it has no application abroad, he wrote. Michael Posner, the former assistant secretary for human rights, shared that view. Both stepped down in 2013 and have not been replaced by political appointees.

In Mr. Obama’s first term, when the State Department was preparing to file an earlier report to the United Nations about the accord, both officials pushed to reverse the United States’ position. But military and intelligence lawyers resisted, officials said, and the final report in 2011 said only that the United States was “mindful” that many disagreed with the position it had taken in the past.

The ambiguous comment in the report left the door open to re-examine the question for the coming United Nations presentation. But the administration never fully re-engaged with the issue, officials said. No one produced a memo rebutting the details of Mr. Koh’s analysis, though one official maintained the memos were never cleared as the official State Department position, and said agencies had “unanimously” concluded the existing interpretation was sound.

Mr. Koh, who now teaches at Yale, declined to comment.

Ms. Hayden, citing an executive order by Mr. Obama requiring interrogations to be “consistent with the requirements” of the torture convention, argued that “there’s no question we take seriously the need to protect civilians outside our borders.” She emphasized that the government considered itself bound abroad by the Geneva Conventions and domestic detainee abuse laws.

Mr. Posner, now a New York University professor, said his hope was that the administration would “take the next step, which is to say, ‘This isn’t just policy — it is an international legal obligation’ ” to respect rights wherever in the world American forces are in control of someone.

But Matthew Waxman, a Columbia professor who was a top detainee policy official for the Bush administration, said military and intelligence agencies had been skeptical of taking that step because they worried about potentially complicating their overseas operations.

John Bellinger, the top State Department lawyer in the Bush administration, noted that the presentation comes in the midst of a furor over National Security Agency surveillance. The rights treaty also bars “arbitrary or unlawful interference” with privacy, although it is not clear that it requires parties to respect rights of foreigners not in its custody.

“This is a particularly sensitive time because of the N.S.A. controversy,” he said. “I cannot imagine the U.S. government would change its position, even if it were previously tempted to.”

Under the terms of the rights treaty, a state must respect and ensure rights to people “within its territory and subject to its jurisdiction.” The question is whether to interpret this phrase as describing one group of people or two — those on domestic soil and also those abroad who are subject to its exclusive control.

In 2006, the Bush administration told the United Nations that it applied only domestically. It cited Eleanor Roosevelt, who negotiated the treaty, arguing she proposed adding “its territory” to prevent it from covering the United States in postwar occupied Germany and Japan. Several Obama officials have said they find that argument compelling.

But the Koh memo, citing different wording in an earlier draft and various comments by Mrs. Roosevelt, contended that this misread what happened. It argued her intent was to avoid requiring Congress to enact legislation guaranteeing the rights of people abroad from abuses by others — not to allow American officials to violate them.

Another murky area is whether a shift would require major changes in American policy, or just raise new debates about issues like how the treaties interact with the laws of war. The treaties have no enforcement mechanisms, but can provide fodder for critics seeking to shame a country over its practices.

The Koh memo argued that very little about American policy would need to change. Still, Gabor Rona of Human Rights First questioned whether the practice of holding terrorism suspects without judicial review in Afghanistan and aboard ships would comport with the treaty.

But Beth van Schaack, a former State Department official who wrote a law review article on the issue, argued that the Obama administration had decent legal arguments in support of its policies and need not also argue that its human rights treaty obligations stop at its shores. “It’s a loser’s argument that we should let go, in order to be able to focus on arguments that have much more traction,” she said.

A version of this article appears in print on March 7, 2014, on page A6 of the New York edition with the headline: U.S. Seems Unlikely to Accept That Rights Treaty Applies to Its Actions Abroad.

Direitos Humanos: ainda a passos lentos no Brasil (Revista Fórum)

22/1/2014 – 11h45

por Redação da Revista Fórum

Policia protesto 300x199 Direitos Humanos: ainda a passos lentos no Brasil

Manifestações de junho de 2013 e repressão policial foram mencionadas no documento. Foto: Mídia Ninja

Má conduta policial, execuções, torturas, superlotação carcerária e impunidade são os “destaques” brasileiros no Relatório Mundial da Human Rights Watch de 2014

“O Brasil está entre as democracias mais influentes em assuntos regionais e globais. Nos últimos anos, tornou-se uma voz cada vez mais importante em debates sobre as respostas internacionais a problemas de direitos humanos. No plano doméstico, entretanto, o país continua enfrentando graves desafios relacionados aos direitos humanos, incluindo execuções extrajudiciais cometidas por policiais, tortura, superlotação das prisões e impunidade para os abusos cometidos durante o regime militar”

É assim que a ONG Human Rights Watch (HRW), inicia o seu relatório de 2014 sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, divulgado nessa terça-feira (21/01) em 14 cidades ao redor do mundo sobre mais de 90 países. Como não podia deixar de ser, um dos principais tópicos no contexto brasileiro foram a atuação policial frente às manifestações populares de 2013, a questão carcerária no país – apesar de a barbárie no Maranhão ainda não ter sido divulgada à época da conclusão do documento – e denúncias de tortura.

O relatório diz: “Dezenas de jornalistas que cobriram as manifestações de junho foram feridos ou detidos pela polícia. Durante um protesto em São Paulo em 13 de junho, uma repórter e um fotógrafo foram atingidos nos olhos por balas de borracha e ficaram gravemente feridos”. Segundo Maria Laura Canineu, diretora da ONG para o país, “ficou ainda mais claro o mau preparo da polícia para lidar com multidões. Durante os protestos, pudemos ver que o padrão de conduta dos policiais não mudou e, em muitos casos, usaram a força de forma desproporcional contra os manifestantes”. A diretora também citou a morte de Amarildo – preso, torturado e executado – dando outro exemplo da violência policial que teve como resultado a denúncia de 25 policiais pela tortura e, 17 deles, pelo crime de ocultação do cadáver.

A questão da tortura também foi abordada no tópico sobre a situação carcerária no Brasil. De acordo com a ONG, a Subcomissão das Nações Unidas para a Prevenção de Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes informou ter recebido relatos “repetidos e consistentes” de presos sobre espancamentos e outros maus-tratos durante a custódia policial, sendo o caso mais notório o espancamento, sufocamento e aplicação de choques elétricos a quatro homens para forçá-los a confessar o estupro e assassinato de uma menina de 14 anos em julho de 2013.

Outro caso presente no relatório foram os agentes da Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) espancando seis adolescentes, na Vila Maria, em São Paulo. O crime só veio a público graças às gravações das câmeras de segurança do complexo prisional. Em conversa com nossa redação, Julio Cesar Fernandes Neves, ouvidor chefe da Polícia Militar do Estado de São Paulo, confirmou ter lido o relatório da HRW: “Vamos apurar as denúncias de tortura na PM onde elas acontecerem, não importa. Nem em guerras se tolera a tortura”.

Outros temas destacados pelo relatório foram a violência contra mulheres, LGBTs (3 mil denúncias de violência em 2012) e contra ativistas do campo e indígenas, com 37 membros de tribos indígenas mortos no Mato Grosso do Sul – também em 2012 – e quase 2,5 mil ativistas rurais ameaçados de morte durante a última década.

No âmbito da política externa, a diretora da ONG diz: “O Brasil falhou, por exemplo, ao se omitir na votação da ONU sobre a guerra na Síria. Quando o Brasil fala, como no caso da invasão de privacidade, dá repercussão. Mas quando o Brasil se omite, isso também causa uma reação, e ela é bastante negativa para o país no cenário mundial.”

Apesar de elogiar a postura brasileira na questão da violação de privacidade e espionagem internacional dos EUA, o tímido avanço na área de segurança pública desde o último relatório mostra que o Brasil ainda tem muito a fazer.

* Publicado originalmente no site Revista Fórum.

Direitos humanos: um estorvo para as esquerdas? (Le Monde Diplomatique Brasil)

Sob a perspectiva da urgente retomada de um projeto de profunda e efetiva transformação social no Brasil, gostaríamos de discutir algumas interpretações e as principais objeções que uma parte das esquerdas brasileiras tem feito às reivindicações baseadas nos direitos humanos

por Deisy Ventura, Rossana Rocha Reis
07 de Janeiro de 2013

01181761(1)Mãe e filho dormem na rua em São Paulo ao lado do operário que opera britadeira. Renato Stockler/ Reuters

Entre os anos 1960 e 1980, numa América Latina esmagada por regimes ditatoriais, grande parte das esquerdas abraçou o discurso e a pauta dos direitos humanos. Em incontáveis casos, os direitos humanos foram o fulcro de movimentos e ações autoproclamadas esquerdistas. Retomada a democracia, o gozo dos direitos civis e políticos tornou possível que personagens, grupos e partidos identificados com esse campo chegassem ao governo em diversos Estados latino-americanos. Atualmente, o exercício do poder suscita questões sobre a concepção de direitos humanos tanto da esquerda que governacomo da esquerda que defende incondicionalmente esses governos, embora amiúde obnubilada em larguíssimas coalizões.

O objetivo deste artigo é refletir sobre a interação entre os direitos humanos e a política no Brasil de hoje. As críticas ao governo pautadas pelos direitos humanos têm merecido uma virulenta reação. Pululam as contradições não apenas entre discurso e prática, mas também dentro dos próprios discursos, e entre certas práticas. É como se um projeto de transformação social prescindisse ou, em alguns casos, fosse considerado até mesmo incompatível com a garantia de certos direitos, paulatinamente convertidos em estorvos. Quem cobra do governo federal o respeito aos direitos humanos é acusado de fazer o jogo da oposição, supostamente pondo em risco um “projeto maior”. Argumentos conjunturais como os de que faltam os meios ou o momento não é oportuno para sua efetivação, confundem-se, a cada dia mais, com a minimização da importância dos direitos humanos.

Em resposta a mobilizações como as relacionadas à hidrelétrica de Belo Monte e aos índios Guarani-Kaiowá, entre outros episódios recentes, um número inquietante de autoridades governamentais não tem hesitado em difundir argumentos gravemente equivocados sobre direitos humanos, com efeitos nefastos não apenas sobre a agenda política, mas também sobre a opinião pública. Sob a perspectiva da urgente retomada de um projeto de profunda e efetiva transformação social no Brasil, gostaríamos de discutir algumas interpretações e as principais objeções que uma parte das esquerdas brasileiras tem feito às reivindicações baseadas nos direitos humanos.

Os direitos humanos são burgueses. A relação entre a esquerda e os direitos humanos foi marcada pela interpretação oferecida por Karl Marx, principalmente em Sobre a questão judaica (1843),a propósito dos processos de construção da cidadania moderna. Para Marx, o reconhecimento da igualdade formal (jurídico-política) do indivíduo não é suficiente para a realização do ideal de emancipação humana almejado pelo socialismo. A afirmação de um direito natural tal qual expresso nas Declarações de Direitos Humanos seria, assim, a consagração do homem egoísta e do interesse privado. No entanto, avaliar a conjuntura atual pinçando da obra de Marx apenas sua concepção de direitos humanos, sem levar em conta sua crítica ao direito em geral, à política em si e, sobretudo, à existência do Estado, configura um reducionismo imperdoável, se não uma espécie de marxismo à la carte. Por outro lado, a emancipação humana, tal como imaginada por Marx, depende de mudanças estruturais, certamente inalcançáveis por meio de uma pauta adstrita aos direitos humanos. Contudo, essa constatação não diminui a importância histórica e tangível dos direitos humanos em processos emancipatórios. Se “o homem é um ser que esquece”, como diz um antigo provérbio, é preciso reiterar o que a história recente do Brasil e da América Latina nos ensina: a importância da emancipação civil e política na luta pela transformação da sociedade e da economia. É claro que os direitos humanos não são, nem devem ser, o objetivo final das esquerdas. Entretanto, nenhum sistema político pelo qual vale a pena lutar pode prescindir do respeito à dignidade humana e do feixe de direitos que dela deriva. Ademais, desafiada pela complexidade do presente, a esquerda não pode ser condenada a uma percepção de direitos humanos do século XIX.

Os direitos humanos são uma invenção ocidental, e a política de direitos humanos no plano internacional é uma forma de imperialismo. Embora a perspectiva do respeito à dignidade humana exista em diversas culturas e épocas, é indiscutível que a noção moderna de direitos humanos, base das normas internacionais nessa matéria, tem suas raízes intelectuais no Iluminismo, na Revolução Francesa e na independência norte-americana. Porém, o sentido de um conjunto de ideias não pode ser limitado ao contexto no qual ele foi produzido. Ao longo dos séculos, o conceito da igual dignidade dos indivíduos em liberdades e direitos mobilizou, no mundo inteiro, grupos e agendas muito diversificados. A revolução que levou à independência haitiana, por exemplo, não apenas reproduziu, mas reinterpretou e acrescentou direitos à Carta de Direitos do Homem e do Cidadão. Da mesma maneira, o movimento feminista, execrado pelos revolucionários franceses, valeu-se dos termos da Carta para formular suas demandas; e a Constituição mexicana de 1917 e os movimentos de libertação nacional e de reconhecimento de direitos coletivos apropriaram-se da ideia de direitos humanos e expandiram seu significado. Portanto, sua origem histórica e cultural não deve ser vista como um pecado original, já que não impediu a emergência de direitos que podem fundamentar a própria resistência às diferentes formas de imperialismo.

Incorporar a agenda de direitos humanos na política externa seria fazer o jogo dos Estados Unidos nas relações internacionais. Os Estados Unidos são grandes objetores e violadores do direito internacional. Por exemplo, lutaram contra a aprovação do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional; e, descumprindo promessas, mantêm aberta a base de Guantánamo, em Cuba. A instrumentalização do discurso dos direitos humanos por Washington, uma das marcas da Guerra Fria, confirmou sua atualidade, entre outros, nos casos das intervenções no Iraque e no Afeganistão. Na Líbia, em 2011, “a comunidade internacional” teria recorrido à intervenção militar a fim de “evitar o massacre” da população civil por um cruel ditador, um aliado do Ocidente frescamente descartado. O uso da força foi então autorizado pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, com base no princípio da “responsabilidade de proteger”. Trata-se de uma nova forma jurídica do antigo direito de ingerência, ampla o suficiente para derrubar o governo da Líbia e omitir-se diante do linchamento de Muamar Kadafi, ao mesmo tempo que dá guarida a graves violações de direitos humanos no Barein, na Síria e no Iêmen. Segundo o presidente Barack Obama, os Estados Unidos devem intervir, coletiva ou unilateralmente, quando seus “interesses e valores” forem ameaçados, sem preocupação com a coerência. O que prevalece é o interesse na preservação das zonas de influência, em detrimento de qualquer concepção de direitos humanos. Logo, para o Brasil, descartar o respeito aos direitos humanos como critério de sua política externa jamais constituiria uma forma de oposição à hegemonia dos Estados Unidos. É preciso opor-se aos atos, não aos pretextos.

A Organização dos Estados Americanos (OEA) praticou uma ingerência inaceitável nos assuntos internos brasileiros no caso Belo Monte. A oposição à construção da usina é promovida pelos Estados Unidos. O recente ataque do governo federal ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos foi um desserviço às gerações futuras. Não se pode confundir a OEA com a Comissão ou a Corte interamericanas, e ainda menos com os Estados Unidos, que jamais aceitaram a Convenção Americana dos Direitos do Homem. A oposição à hidrelétrica de Belo Monte é legítima e genuinamente brasileira, vinculada à luta histórica pelos direitos dos povos indígenas e pela preservação do meio ambiente. Ainda que imperfeitos, os mecanismos regionais de proteção aos direitos humanos são uma grande conquista dos povos, salvaguarda indispensável diante do autoritarismo que segue assombrando nosso continente. Os recentes golpes impunes em Honduras e no Paraguai, ambos avalizados pelos Estados Unidos, demonstram que os mecanismos regionais precisam ser valorizados.

Impor condicionalidades em termos de respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente nos empréstimos concedidos pelo governo brasileiro a outros países é um tipo insuportável de interferência e uma forma de imperialismo. Na década de 1970, uma importante conquista da sociedade norte-americana foi a exigência de que os países beneficiados por empréstimos respeitassem determinados padrões de cumprimento de direitos humanos. Essa medida teve um impacto importante nas relações entre os Estados Unidos e as ditaduras latino-americanas, corroendo a sustentação interna da política norte-americana de apoio aos regimes autoritários e impondo constrangimentos ao Executivo. No contexto atual, em que bancos e agências do Estado brasileiro se tornam importantes fontes de financiamento de obras de infraestrutura na América Latina, é importante que os empréstimos concedidos e os acordos de cooperação incorporem a exigência de respeito aos direitos humanos. Longe de ser uma forma de ingerência, trata-se de garantir que o dinheiro dos contribuintes brasileiros não seja utilizado para financiar intervenções que comprometam a dignidade das populações envolvidas. Conceder financiamentos sem compromisso com a promoção de direitos é uma característica fundamental do mercado, não do Estado, necessariamente submetido ao interesse público.

Direitos civis e políticos são de direita, direitos econômicos e sociais são de esquerda. Os direitos humanos são, na verdade, indivisíveis. Longe de ser uma formalidade vazia, a afirmação da indivisibilidade é uma forma de proteção dos indivíduos contra a seletividade dos Estados. A identificação de alguns direitos com a direita e de outros com a esquerda, embora guarde relação com a geopolítica da Guerra Fria, aproxima-se perigosamente da justificativa apresentada pelos generais-presidentes brasileiros aos organismos internacionais, quando interpelados sobre as frequentes violações cometidas em nome da segurança nacional. Para eles, os avanços na área de saneamento básico, habitação e saúde constituíam a política brasileira de direitos humanos, enquanto as denúncias sobre torturas, prisões arbitrárias, assassinatos e desaparecimentos faziam parte de um complô comunista mundial.

O desenvolvimento é mais importante para as pessoas do que o respeito aos direitos humanos. Em um mundo com recursos materiais e humanos limitados, existem muitas escolhas difíceis a fazer. As exigências em relação a um governo vão muito além daquelas colocada pela pauta dos direitos humanos. No atual contexto de crise econômica mundial, com perspectivas de agravamento, o tema do desenvolvimento adquire importância renovada, e é natural que assim seja. Entretanto, o contexto econômico não pode servir de justificativa para o atropelamento de direitos humanos, sob pena de produzir, mais uma vez, um crescimento econômico que não se traduz em uma melhora real e equitativa do panorama social brasileiro. Nós já tivemos, no Brasil, desenvolvimento sem respeito aos direitos humanos. Não foi bom para as esquerdas.

O combate à miséria é a forma mais efetiva de combater a violação dos direitos humanos. O combate à miséria é parte fundamental de uma política de direitos humanos. Mais do que isso, podemos afirmar que, sem uma política de erradicação da miséria, a promoção dos direitos humanos está fadada ao fracasso. No entanto, ela não é suficiente para garantir a observância dos direitos humanos. Infelizmente, o conjunto de desigualdades que afetam a dignidade dos indivíduos em nosso país é muito mais amplo. Iniquidades e discriminações que envolvem questões de gênero, cor, orientação sexual, regionalismo e xenofobia exigem ações específicas. Uma sociedade menos desigual em termos econômicos não é sinônimo de uma sociedade que respeita igualmente os direitos humanos de todos os seus cidadãos. Quando a inclusão social se opera essencialmente pelo aumento do consumo, toda sorte de egoísmo pode ser favorecida.

O respeito aos direitos humanos é uma etapa já conquistada no Brasil. Atualmente, nosso problema seria a falta de meios, não a falta de consenso em relação aos princípios. Esperava-se que os direitos humanos alcançassem lugar de destaque na agenda política pós-redemocratização. Seria o momento de generalizar o acesso a esses direitos (prioridade de investimento em políticas sociais) e de afirmar a cultura dos direitos (os bens da vida não constituem privilégios de alguns, nem assistencialismo). Porém, grande parte da população brasileira acredita piamente que os direitos humanos são o maior obstáculo à sua segurança. A vulnerabilidade fala mais alto do que a cidadania. A erosão da perspectiva dos direitos é evidente em nosso tempo, e não apenas no Brasil. Cresce o respaldo eleitoral de grupos e partidos que militam abertamente contra direitos fundamentais já consagrados por lei. É chocante a maneira leviana com que temas como a tortura, o aborto ou a sexualidade, entre tantos outros, têm sido discutidos nos períodos eleitorais. Cresce também a estapafúrdia naturalização das alianças com esses grupos. É preciso reconhecer que a defesa incondicional dos direitos humanos está ameaçada nas campanhas e nos programas de governos de candidatos das esquerdas, mas, sobretudo, em suas gestões.

Por fim, um projeto de transformação da sociedade brasileira com vista à emancipação humana não pode prescindir da luta pelos direitos humanos. Há valores e parâmetros éticos – como o reconhecimento e o respeito pelas especificidades e pelas diferenças étnicas, de gênero e orientação sexual – que não podem ser negociados ou plebiscitados, seja em nome da democracia, do desenvolvimento ou de um suposto anti-imperialismo. Uma agenda positiva de direitos humanos deve estabelecer mínimos denominadores para a ação política. No momento em que os valores de mercado avançam sobre todos os governos, este talvez seja, ainda que temporariamente, nosso “projeto maior”.

Deisy Ventura
Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, IRI-USP

Rossana Rocha Reis
Professora do Departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

A desigualdade social na Argentina (Luis Nassif)

Enviado por luisnassif, sex, 17/08/2012 – 14:17

Argentina demanda políticas públicas sociais unificadas que efetivem os direitos humanos

Por Maíra Vasconcelos, especial para o blog

O expressivo crescimento econômico experimentado pela Argentina, entre 2003 e 2007, passada a crise de 2001/2002, não representou em igual escala desenvolvimento social ao país. Ainda que indicadores socioeconômicos demonstrem algumas melhorias nos índices de pobreza e indigência, especialistas destacam a necessidade da construção de projetos de políticas públicas que unifiquem as demandas sociais e visem o cumprimento total dos direitos humanos.

Cerca de 33% das crianças e adolescentes na Argentina, menores de 18 anos, nos centros urbanos e rurais encontram-se na linha de pobreza, e 8,5% em estado de indigência. Respectivamente, ambos indicadores referentes a 2011, representam queda de 7,2% e 4,5% em relação a 2010. Os dados foram apresentados no último dia 14 de agosto, no informe “A Infância Argentina Sujeito de Direito”, do Observatório da Dívida Social Argentina (ODSA), na sede da Pontifícia Universidade Católica Argentina (UCA).

De acordo com a investigadora Laura Pautassi, membro do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), e do Instituto de Investigações Jurídicas e Sociais A. Gioja, da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA), falta integração nas políticas sociais do Estado, para que o funcionamento em conjunto desses programas possa suprir as carências não só no que diz respeito ao ingresso econômico.

“Temos um conjunto de melhorias econômicas importantes, após a crise de 2001, mas as políticas públicas estão muito divididas. Uma para assalariados formais e outro tipo são as políticas assistenciais, onde há muitos projetos, alguns de transferência de ingresso, e outros mais globais como pode ser considerada a “Asignação Universal por Filho”, afirmou Pautassi.

O projeto “Asignação Universal por Filho” foi criado em 2009, durante o primeiro mandato da presidente Cristina Kirchner, hoje, em torno de 3,5 milhões de crianças e jovens são beneficiados.

Entre os resultados divulgados pelo ODSA, em relação à infância e adolescência, um destaque é o salto significativo no acesso à internet, que passou de 29,3%, em 2007, para 52,7%, em 2011, entre os adolescentes de13 a17 anos.

Por outro lado, a estrutura familiar marca sérios problemas como, por exemplo, as agressões físicas sofridas em casa saltaram de 31,6%, em 2007, para 36,4% em 2011, no total de aproximadamente 12,3 milhões de crianças e adolescentes.

Indicadores de Direitos Humanos

Instrumentalizar a medição da pobreza e indigência com indicadores não apenas socioeconômicos, mas que permitam visualizar os resultados do cumprimento dos direitos humanos na sociedade. Para combater e erradicar a pobreza e indigência na Argentina, investigadores afirmam que apenas a “visão monetária” limita a percepção das demandas para obtenção de ferramentas de trabalho que contribuam à formulação de exigências e propostas ao Estado.

Segundo a investigadora Laura Pautassi, recentemente a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou um instrumento para controlar o cumprimento das obrigações, por parte das 16 nações que ratificaram o “Protocolo de São Salvador”. Assim, deverão ser desenvolvidos indicadores específicos, que não englobam apenas dados socioeconômicos, mas também permitem mesurar o cumprimento ou violação dos direitos humanos.

“Hoje podemos ver desigualdades que antes não eram medidas, a desigualdade étnica, socioeconômica, de gênero. Mas as variáveis consideradas para avaliar os direitos humanos são diferentes daquelas dispostas para medir índices socioeconômicos, pois o que avaliam é a efetiva execução dos direitos”, ressaltou Pautassi.

As armas do vazio mental (FSP)

26/07/2012 – 03h00

Janio de Freitas

Mais duas explicações estão lançadas em socorro à recusa do governo brasileiro, agora mesmo na ONU, de votar a favor da transparência no comércio internacional de armas.

Diz um dos dois argumentos que já está em prática, na indústria bélica, a inscrição indelével, a laser e em cada arma e projétil, indicando sua procedência. Assim será possível saber, quando de violações das normas internacionais e transgressão dos direitos humanos, o país que forneceu as armas em uso.

Belo e carinhoso consolo, sem dúvida, para as crianças que perderem seus pais e para os pais que perderem seus filhos estilhaçados por armamentos, agora sim, de procedência inapagável. Para usufruir do consolo, porém, resta ainda um pequeno problema que a inventividade dos engenheiros da matança, por certo, vai resolver.

Fatos atuais ajudam a expor a questão pendente. Há 24 horas noticia-se, inclusive com fotos e vídeos, o recurso do ditador sírio Bashar Assad ao bombardeio aéreo de cidades do seu país.

É um reforço mais drástico e preciso aos tiros de canhões, no entanto continuados. E às metralhas pesadas e também canhões dos tanques.

A população civil vê e ouve os aviões, e vê as bombas em direção a suas casas, suas famílias, à vizinhança. Não vê os canhões e não é certo que ouça os seus estrondos, mas ouve o silvo fino e feroz de suas balas cortando o ar. Todas essas peças assassinas com sua procedência devidamente identificada. Ainda a tinta ou talvez já a laser.

A população vê e ouve os sinais do sofrimento e da morte. Mas lerá a inscrição dos petardos em seu voo? E depois de bombas, balas e foguetes destruídos por sua própria explosão, onde estarão as inscrições para a comprometedora “identificação de quem os forneceu”? É provável que parte deles até ostentasse o nosso “made in Brazil”. Impossível afirmar ou negar: sabemos estar entre os exportadores de bombas terríveis, mas estamos proibidos de saber para quem as exportamos.

Não se sabe se o outro argumento foi criado pelo mesmo vácuo mental que invocou a “inscrição identificadora”, ou se foi um dos prodígios intelectuais que a adotam no Itamaraty, nas Forças Armadas, no jornalismo. A suposição de que os outros também padecemos de idiotia é a mesma, nos dois argumentos.

Eis o segundo: o sigilo das exportações de armas é necessário porque os compradores querem segredo do tipo e quantidade de seus armamentos.

Antes de tudo: nem sempre. Com a ideia fixa (da qual emanava certo cheiro de charuto cubano) de que os Estados Unidos usariam a Colômbia para atacar a Venezuela, Hugo Chávez tratou de alardear suas grandes compras militares. Se houve, o risco arrefeceu e foi silenciado pelo novo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, mais lúcido do que o antecessor Uribe.

Acima de tudo, a conveniência militar alheia não é problema a ser resolvido pelo Brasil. Ainda mais se o pretendente a comprador é uma ameaça a relações normais com seus vizinhos ou à liberdade e aos direitos humanos em seu país.

Esta regra essencial no Estado de Direito é transgredida pelo Brasil, com suas exportações de bombas condenadas e outras armas para o Oriente Médio e para ditaduras africanas. E ainda em operações triangulares: a exportação para a ditadura de Robert Mugabe, do Zimbábue, no governo Fernando Henrique, foi tornar mais feroz a terrível guerra civil no Congo. Mas, nas organizações internacionais, e em casa mesmo, o governo brasileiro mostrava-se muito condoído com o genocídio congolês.