A gaiatologia por vir (Partes sem um todo)

Publicado em 27 de agosto de 2014

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Sobre Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, livro de Déborah Danwoski e Eduardo Viveiros de Castro

Segundo Bruno Latour, a catástrofe ambiental em curso faz com que “nos sintamos transportados de volta para o clima do século XVI. Uma outra Era do Descobrimento”: “nos encontramos exatamente em uma Era similar àquela de Colombo, quando sua viagem encontrou um continente inteiramente novo”. E como o “problema”, a “solução” também lhe parece semelhante: tratar-se-ia de estabelecer um novo “Nomos da Terra”, nome cunhado por Carl Schmitt para designar a ordem jurídica mundial estabelecida com a Conquista (o “descobrimento”), e que consistiria na divisão do mundo em duas zonas: a Europa, em que vigeriam as regras do direito de guerra, ou seja, o espaço de normalidade; e o mar e as zonas “livres” – o Novo e Novíssimo Mundo –, que podiam ser simplesmente apropriáveis pelas potências europeias e sua “superioridade espiritual”, espaço de excepcionalidade em que não haveria mitigação da guerra. Nesse sentido, se há algum Nomos da Terra que se avizinha, este parece ser a ordem (de pânico) que Isabelle Stengers visualiza no horizonte: a formação de uma espécie de governo de caráter global (espaço normal), legitimado a agir excepcionalmente (isto é, a intervir) sobre países e coletivos sob o imperativo da urgência da crise. É evidente que Latour toma o conceito do “tóxico” Schmitt com pinças, buscando uma outra idéia de Nomos, mas será que é possível fazê-lo, tendo como ponto de partida a analogia com o “descobrimento”? Será que é possível no cenário atual retomar a oposição amigo-inimigo schmittiana, oposição narcisista em que o inimigo é definido como “negação existencial” do amigo, isto é, seu mero negativo, sem consistência própria? Os Terranos (amigo?) de que fala tão belamente Latour seriam apenas a negação dos Humanos (inimigo?)?

A questão maior talvez seja a do ponto de vista: Nós quem, cara pálida?, parecem perguntar ao seu principal interlocutor, de modo sutil mas provocante ao longo desse ensaio, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, os quais, americanos não-atacados pela síndrome de Estocolmo como grande parte da esquerda, rejeitam a posição universalista que o Ocidente se adjudicou a si e insistem a todo momento em colocar o dedo na ferida: quem é esse nós (o “sujeito” que se vê novamente na Era do Descobrimento, o mesmo “sujeito” do Descobrimento), quem é o anthropos do Antropoceno? E quem são os outros, quem são esses “nós-outros” que estavam do lado de lá (de cá) do Descobrimento, para os quais este foi uma Conquista, um primeiro – de muitos – fim de mundo?Há mundo por vir? Ensaio sobre o medo e os fins, ao passar em revista algumas formulações – estéticas, filosóficas, etc. – da mitologia contemporânea em torno do fim do mundo, tornada realidade tangível (a “mitofísica” contemporânea, pra usar uma expressão genial dos autores), não adota a posição do demiurgo criador da ordem (Nomos), mas do deceptor que confunde as divisões (amigo-inimigo), que divide as divisões, que desobedece as hierarquias: um exercício de bricolagem em que se encontram os Singularitanos e os Maya, formulações de Meillassoux e um mito aikewara, Melancholia e Chiapas, Gaia e Pachamama. O encontro promovido pela “descoberta”, lembra Oswald de Andrade, não era apenas do europeu com um “continente inteiramente novo” a ser apropriado, mas com uma “humanidade inteiramente nova”, isto é, “uma humanidade diferente da que era então conhecida” pelos europeus – e a expressão máxima de tal encontro seriam as Utopias, resultado da percepção sensível da contingência das formações político-econômico-metafísicas ocidentais, isto é, a possibilidade de um outro mundo, de outros mundos possíveis, incluindo aí, uma outra concepção do homem. Se o Nomos representou uma “saída” (pra que tudo continuasse igual) do beco-sem-saída da mitigação da guerra, as Utopias significavam, por sua vez, uma linha de fuga. E são justamente linhas de fuga (e não identidades e oposições) que Danowski e Viveiros de Castro apresentam a partir desses encontros de fins de mundo: a possibilidade (e talvez a necessidade) de um “bom encontro” da nossa (?) mitologia com a ameríndia, para se contrapor ao “mau encontro” da Descoberta (o genocídio americano, mas também a polícia mundial que a nova Era pode trazer). Não se trata, porém, de um encontro pacífico, mas cheio de faíscas, beligerante, mas não de uma guerra narcísica, e sim de uma guerrilha de resistência, contra o Estado, contra a forma-Estado de pensamento. O que se questiona é a própria oposição binária (o princípio da não-contradição) das identificações: o que está em jogo é um exercício de descentramento, em que o “ser-enquanto-outro” do pensamento ameríndio permite repotencializar também aqueles momentos do pensamento ocidental em que o Ocidente difere de si mesmo (Deleuze e Guattari, a monadologia panpsiquista de Gabriel Tarde, a cosmologia de Peirce – e, eu acrescentaria, talvez mesmo a oikeiosis estóica, já que estamos falando de ecologia), em que a alteridade deixa vestígios erráticos que são roteiros de um mundo por vir. E um desses roteiros talvez seja a biografiade Thoreau – o qual dizia ser apenas “um hóspede da Natureza” –, sobre quem Virginia Wolff pergunta se sua “simplicidade é algo que vale por si mesmo” ou seria “antes um método de intensificação, um modo de pôr em liberdade a complicada e delicada máquina da alma, tornando-se assim seus resultados o contrário do simples?” Pergunta retórica, evidentemente: Thoreau, como poucos (ocidentais), soube limitar o limite, isto é, viver a partir do limite, mas no limite, isto é: convertendo o limite, de impedimento extensional, em via de acesso à intensidade. Para dizê-lo com uma expressão de Viveiros de Castro: soube viver/fazer a “poesia do mundo”. Nesse sentido, se “É difícil saber”, como afirma Wolff, “se devemos considerá-lo o último de uma linhagem mais antiga de homens, ou o primeiro de uma ainda por vir”, índio ou moderno, isso se deve ao fato de que o agenciamento, a composição de Thoreau inopera o binarismo: é um velho que devém jovem, um moderno que devém índio. Dito de outro modo: os Terranos de Danowski e Viveiros de Castro não são uma identidade ou uma essência ou uma substância, mas um devir: são aqueles que, segundo Juliana Fausto, dizem, com Bartleby, I would prefer not, e que devêm, eu arriscaria afirmar, nesse gesto e enquanto dura esse gesto, gaiatos. De fato, há mundo por vir parece apresentar como ciência por vir nesses tempos sombrios de homens sombrios isso que poderíamos chamar de “gaiatologia”, a feliz ciência não do homem, mas do gaiato, não dessa espécie envelhecida e que envelhece o planeta, mas daquele ainda por vir jovem habitante de Gaia, a ciência do bricoleur, da gambiarra (conceito tomado a partir de Fernanda Bruno, e que tem um lugar de destaque ao final do livro, enquanto técnica de agenciamento natural-cultural). O mundo está acabando, mas a alegria continua a ser a prova dos nove.

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