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Elogio à potência cognitiva dos Cuidados (Outras Palavras)

Tradição intelectual da Modernidade dá valor e poder à Crítica, mas esquece uma forma de compreensão do mundo tão potente quanto ela. É mundana, feminina e transformadora. Inventa complexidades. Resiste a ser mercantilizada

OutrasPalavras Descolonizações por Antonio Lafuente

Publicado 15/05/2020 às 20:41 – Atualizado 17/05/2020 às 13:11

Por Antonio Lafuente, do Centro de Ciências Humanas e Sociais (CSIC), Madri | Tradução de Simone Paz Hernández | Imagem: Egon Schiele, Grupo de Três Meninas (detalhe)

O coronavírus tem nos ensinado muitas coisas — algumas delas, vamos demorar para esquecer. Porém, poucas foram tão inesperadas como a aproximação entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados. Pareciam pertencer a planetas diferentes: uma, ligada à busca de certeza, metodologias conflitantes e gestos públicos; a outra, vizinha da dor, inclinada pelo tácito e reclusa no âmbito privado. Ambas, muito seguras de sua importância, mas muito diferentes em seus reconhecimentos. Para o espírito crítico, sempre existiu um posto de honra entre os inteligentes, os poderosos, os administradores. Os críticos possuem a chave que abre as portas do mundo, desde a empresa e a academia, até o conselho ou comitê. Ser crítico é uma qualidade característica dos que conseguem enxergar além das aparências, dos que sabem ler as entrelinhas e dos que não se deixam levar pelo refrão. Quem não é crítico está sujeito a ser doutrinado, manipulado e menosprezado.

Nosso mundo sempre reservou lugares especiais para a crítica. O espírito crítico nos protege dos farsantes, dos malandros e dos vigaristas. E, como nunca faltam aqueles que querem tirar proveito de nossa ingenuidade, desconhecimento ou incapacidade, fazemos bem em confiar na nobreza daqueles que se dispõem por nós a depurar as ideias, comparar informações e destrinchar propostas. Os debates públicos nos são apresentados muitas vezes como um duelo de espadachins, como um exercício de virtuosismo retórico, como uma amostra do dandismo entre “filhos de alguém”, tão inúteis quando desprezíveis. Isso não tem nada a ver com a crítica, está mais para um produto da vaidade pretensiosa: um embuste entre bobos. Já a crítica, é necessária e urgente. Uma das ferramentas mais valiosasas de que dispomos para navegar entre as tormentas ou para nos guiar entre as brumas. Sem ela, não existiria a civilização.

Os cuidados transitam em outro tipo de abundâncias invisíveis. Eles têm a ver com todas as práticas que levam à reparação ou à manutenção da vida. Possuem relação com o que há de mais simples e comum: dar comida, fornecer aconchego, produzir bem-estar, manter a conversa, ouvir o incabível ou inusitado, oferecer esmero, sentir o futuro, experimentar com os outros, fazer coisas juntos, desfrutar as nuances, acompanhar processos e criar espaços seguros. No mundo, não há nada mais abundante do que a dor, o desconsolo, o desabamento. Nada é mais necessário do que oferecer confiança, paz ou tempo. Seja para descobrir suas (novas) vulnerabilidades, seja ao se encontrar (novamente) estagnado, o que você vai querer por perto não é um cérebro privilegiado capaz de performar uma capacidade de análise impecável. Nesses momentos, precisamos de outro tipo de talento: o de alguém que saiba se colocar em sua situação, em seu lugar, conter a ansiedade de aconselhar, ficar em silêncio, saber ouvir, deixar fluir e acompanhar, enquanto, aos poucos, você se reencontra com a vida que merece ou a resposta que procura.

Não quero dizer que os que pensam não cuidam, nem que os que cuidam não pensam. Isso seria uma simplificação inaceitável e ofensiva. Todos nós podemos passear pelos dois mundos. Podemos utilizar a crítica para reparar aquilo que ouvimos e fazê-lo crescer. Podemos renunciar a usar nossas habilidades para ganhar vantagem e competir melhor. Nada nos obriga a querer sempre ganhar. Não é necessário demonstrar que estamos por cima dos outros, nem temos que tratar nossos adversários como inimigos, traidores ou estúpidos. Na crítica, pode existir um quê de sadismo. É normal que exista, e que toda vez que numa conversa alguém cite um especialista, um fato ou uma prova, para nos dar um soco e calar a boca. Esses críticos são pessoas perigosas das quais é bom se proteger, porque costumam ser implacáveis.

A ciência é um dos terrenos da crítica. Não é o único, nem o mais visível. Os que se gabam de ser críticos são aquelas pessoas da literatura, das artes, das ciências humanas e também, portanto, das ciências sociais. O que eles chamam de “espírito crítico” é muitas vezes percebido como arrogância banal. E é por isso que nós desconfiamos dessa forma de nos desenganarem, que, do outro lado do espelho, é percebida como uma maneira de nos deixar nus. Justamente o oposto daquilo que esperávamos: alguém que nos ajudasse a encontrar as roupas para não nos deixar na intempérie. Abandonados ao acaso, novamente, sem redenção.

A cultura do cuidado não é só compaixão. Precisamos dela, também, para criar outros mundos possíveis e dar espaço às diferentes práticas cognitivas de que precisamos aprender a apreciar. Se o crítico é quem vê mais e melhor, quem cuida possui como ferramenta fundamental de trabalho o tato. Se a simbologia reservou para os inteligentes a figura da coruja, do livro e dos óculos de armação grossa, aqueles que cuidam são representados como pessoas que acariciam com os olhos, com os gestos e com as mãos. As mãos alcançam lugares que os olhos nem conseguem imaginar. O tato é a chave que abre a porta que nos permite imaginar outros mundos possíveis, baseados em cumplicidade, empatia e vulnerabilidade. Nos cuidados, explora-se sem propósitos e sem condicionantes, se avança entre suspeitas e desconfianças, até chegarmos ao lugar onde experimentaremos a companhia como uma bênção. Ou uma epifania.

Se a visão gera a distância entre o sujeito e o objeto, o tato mistura esses dois mundos. A visão cria outros espaços, enquanto o tato inventa a complexidade. Tudo fica interligado e se torna próximo, entrelaçado. A visão quer fazer do mundo um objeto, enquanto o tato torna mundano o objeto. Mundano quer dizer comum, cotidiano, semelhante. Quiçá, também, barato, jovial e compartilhado.

A crise do coronavírus aproximou esses dois mundos para nos ajudar a entendê-los melhor, para descobrirmos que ambos são imprescindíveis e que os dois são deste planeta. Que ambos pertencem ao âmbito público e são duas potências cognitivas que deveriam parar de brigar e se unir num longo abraço. Sim, isso mesmo: um abraço em tempos de coronavírus pode parecer uma transgressão, mas não é, não, não se trata de uma pegadinha: esperamos muito desse atrito, pois não nos conformamos com apenas sobreviver — que é o que nos prometem os cientistas e seus porta-vozes. Não nos conformamos com apenas continuar vivos, pois queremos imaginar mundos mais ousados. A pandemia demonstrou que, em termos cognitivos, é imprescindível que se estruturem adequadamente três epistemes que se destacam: o mundo dos dados, dos modelos de previsão e da inteligência artificial; o mundo da virologia, da epidemiologia, das vacinas e do laboratório; e, por último, mas não menos importante, os territórios da clínica, dos profissionais da saúde e das práticas de cuidados.

Curar corpos nos forçou a cuidar de mundos. De repente, descobrimos que inconsistências estatísticas, causadas por uma coleta de dados ruim, poderiam levar a medidas que nos ameaçariam a todos. Dados não são números, mas coisas que precisam ser produzidas do mesmo jeito que são produzidas as bolas de sinuca: se elas não possuírem as características necessárias, não funcionam, não servem pra nada, não deslizam corretamente e não transmitem os efeitos esperados. Os dados precisam ser interoperáveis. Você precisa projetá-los com precisão, coletá-los com cuidado e transmiti-los a tempo. Podemos ter os melhores matemáticos, construindo os modelos mais sofisticados, porém, fazendo propostas mal-sucedidas porque os coletores de dados se desentenderam ou ficaram desmotivados ou deprimidos. Porque eles pararam de se projetar em seu trabalho com amor e orgulho. Não estavam atentos o suficiente para detectar algo suspeito, uma variação imprópria, um viés inesperado ou, finalmente, uma prática inconsistente. Talvez ninguém os fez acreditar na importância do que estavam fazendo. Talvez eles tenham se cansado de ser invisíveis, ou talvez se convenceram de que eram seres descartáveis, secundários ou irrelevantes.

Fazer vacinas ou, em termos mais gerais, projetar e realizar experimentos não é uma tarefa mecânica. Quem faz experimentos precisa improvisar o tempo todo — ou seja, precisa enfrentar um montão de imprevistos que exigem habilidades que não são ensinadas nos livros, mas que, entretanto, foram aprendidas com os colegas. Experimentar é uma atividade que possui muitas semelhanças com o trabalho dos artesãos. Todos os cientistas experimentais são uma espécie de faz-tudo, pessoas que sabem consertar coisas, que encontram soluções: são próprios bricoleurs. Ou, em outras palavras, pessoas que conseguem trabalhar sem um manual de instruções, e que, principalmente, tornaram-se muito tolerantes à incerteza. Sabem andar às cegas, guiando-se pelas paredes para não bater e mantendo-se conectados a tudo o que acontece para poder ser sensíveis às pequenas diferenças, às nuances esquecidas ou aos tons imperceptíveis. 

Não é ficar observando o seu objeto, mas sim estar abertos a se deixar afetar por qualquer sinal que vier de seu universo ou do ambiente que os cerca para decidir, em tempo real, se essa coisa, ainda não identificada, possui algum significado ou contém alguma mensagem. A relação que os cientistas mantêm com seus objetos, aquilo que não deixa de interpelá-los e que não conseguem parar de olhar, é muito menos objetiva, distante ou abstrata do que nos contaram. É uma relação muito menos crítica do que afetiva, e tem muito mais a ver com as virtudes de quem cuida de alguém ou de algo, do que com os estereótipos de quem observa, aponta e dispara — quero dizer, com as qualidades de um bom crítico.

Ao falarmos da clínica tudo parece mais fácil, porque pouquíssimas pessoas já visitaram um laboratório na vida e a maioria nunca ouviu falar da nova profissão de curador de dados. Mas todos ou já cuidamos, ou já fomos cuidados. Entretanto, reside nessa simplicidade a maior dificuldade — porque corremos o risco de psicologizar os cuidados e de transformá-los em habilidades mentais livres de materialidade. Não será preciso insistir, agora, na importância das máscaras, dos testes, dos termômetros, dos sabonetes, da história clínica e dos aplausos. A maior parte do trabalho possui maior relação com gerir espaços, decidir dosagens, administrar alimentos, conhecer lamentos, identificar sinais, comparar respostas, contrastar experiências, aprender de erros, retificar protocolos, pular algumas normas, enfim: improvisar, corrigir, deixar-se afetar, escutar — tudo isso sem um manual.

Cada quarto de hospital carrega um universo: todos os dias são percorridos todos os climas: o dos bacanas, o dos espertos, o dos exigentes, o dos egoístas, o dos intrigantes, o dos desconfiados, o dos pessimistas, o dos amorosos… todos os universos cabem num só dia. Não é preciso viajar, basta mudar de quarto. Existe um forte desgaste emocional, cuja origem varia. A televisão, sempre apressada e sempre resumindo e generalizando, fala do impacto que a dor do ambiente causa aos profissionais da saúde. É verdade, mas não se resume a isso: essa é só a parte mais midiática. Há muito mais. Existe a vontade de aprender, o desejo de entender, a necessidade de corrigir e a obrigação de curar; tudo isso, ao mesmo tempo e de forma rápida, representa um esforço de intelecção cansativo e infinito, porque os corpos são todos diferentes e o que vale para um pode ser contraproducente para outro.

Assim funciona o saber experiencial: está nos corpos e não nos livros. Pode-se aprender, mas não numa aula. É um saber contrastado, eficiente, tácito e imprescindível. A clínica é a interface entre esses dois mundos, que com tanta frequência negam-se a chegar a um entendimento: o mundo da crítica e o mundo dos cuidados. É tanto uma interface como uma fronteira que precisamos aprender a contrabandear todo dia. Nessa fronteira, somos todos iguais, não há regras claras, não há normas específicas — e nem podem existir. Esse é o interesse das fronteiras que servem para experimentarmos outros mundos possíveis e necessários. Nas fronteiras, há sempre conflitos que, quando são de curto prazo, resolvemos com astúcia, dando um jeito; mas, se pensarmos em formas de convivência relativamente estáveis, precisaremos das ferramentas da diplomacia.

Às vezes, não precisamos de uma demonstração, e sim de uma conversa. Os diplomatas sabem disso melhor do que ninguém, como costumam saber aqueles que fazem parte do mundo dos cuidados. O diplomata compreende que não pode convencer seu interlocutor. E, portanto, precisa renunciar às ferramentas da crítica e admitir que a solução não vai ser imposta por um exercício de depuração de dados, de citação de fontes ou de ampliação dos fatos comprobatórios. Entre os diplomatas, a conversa tem a finalidade de encontrar um relato, um acordo, um espaço de convivência mais complexo que o anterior, onde caibam igualmente os dois pontos de vista, mesmo quando enfrentados. A questão é evitar a guerra, e reiniciar a convivência. E é disso que precisamos agora: uma negociação que torne possível não só a convivência de epistemes. Os mundos dos dados, dos fatos e das experiências precisam um do outro e têm de aprender a conviver sem se censurarem. Nenhum deles é mais coerente ou necessário do que os outros.

Atualmente, fala-se muito em abrir a ciência. Mas não ficou claro o que queremos dizer com isso. Evidentemente, abrir a ciência significa abrir os conteúdos e os dados: dar acesso ao conhecimento disponível, mais ainda quando a maior parte dele é produzida com dinheiro público. Também parece lógico que as infraestruturas que suportam e fazem com que esses dados se tornem operacionais deveriam estar nas mãos dos próprios cientistas, o que equivale a reivindicar soberania para os hardwares e softwares que suportam todo o acervo da ciência aberta. Se a prática da ciência depende de decisões políticas arquitetadas em comitês que definem prioridades, destinam recursos, validam méritos e constroem reputações, parece imprescindível que, também, todas essas operações tenham muita transparência e disponibilização. Tudo isso já foi dito e está na agenda de muitas organizações nacionais e internacionais, não é novidade. Tomara que o coronavírus acelere esses processos em curso.

Além disso, porém, abrir a ciência requer abrir suas ontologias. Não tem a ver apenas com transformar as práticas para que sejam mais operativas, ou, em outras palavras, os “como”, as epistemes. Temos de aprender a escutar aqueles que falam desde outras formas de se aproximar da realidade. É evidente que o respeito às metodologias acreditadas continua de pé. Ninguém aqui falou em fazer tábula rasa. Pelo contrário: os tempos de coronavírus exigem que nenhum conhecimento seja desperdiçado e que demos a todos eles a visibilidade e o mérito que merecem e que precisamos. Cuidar é uma forma de conhecer, envolve outra maneira de se aproximar dos problemas e de encontrar respostas adaptadas para eles. Envolve mobilizar saberes tácitos e afetivos: saberes que, consequentemente, não podem ser codificados. Saberes que não podem ser desvinculados e que são estreitamente ligados às circunstâncias concretas nas quais foram gerados. São saberes dos quais a Modernidade nos ensinou (e até forçou) a desconfiar. Saberes que desde Descartes consideramos contaminados pelas emoções, pelos preconceitos, pelos contextos, ideologias e fragilidades dos corpos envolvidos, já que nem sempre eles enxergam bem, estão atentos ou com as faculdades plenas.

O conhecimento experiencial era desprezado pela sua alta contaminação por todo tipo de aderência local, corporal e cultural. Não foi sequer considerado um ativo a valorizar. Temos museus de etnografia, onde as realidades locais são mostradas como parte de um exotismo turistificável — e, agora, identitário. Justamente o oposto do que consideramos necessário por aqui. Nos interessa o comum e interdisciplinar, como forma de conhecimentos opositores — e não como curiosidades excêntricas e arbitrárias. Não são fruto do capricho, são consequência de uma adaptação secular. O fato de terem sido desvalorizadas fala muito sobre a nossa insensibilidade e, assim, da nossa facilidade em desprezar aquilo que ignoramos. O fato de serem não-codificáveis, tácitos, quer dizer que estamos frente a um saberes que não podem ser coisificados, alienados e mercantilizados. Mas isso não significa que sejam inúteis. Talvez por isso a imensa maioria das pessoas que trabalham com enfermagem e serviços sociais são mulheres. Nada a ver com falta de talento, mas sim com utilizá-lo em outras coisas. As quais, como sabemos, às vezes são as mais importantes. Mas nossa intenção não era fazer uma competição entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados, e sim tentar suscitar uma conversa, mais ontológica do que epistêmica, que abrisse o mundo do conhecimento a novas perguntas, diversas soluções e novas formas de convivência. Não é que a gente precise de menos ciência, mas de mais atores: abrir a ciência a conversas difíceis, porém, urgentes. O coronavírus nos pede também uma cura de humildade.

Viveiros, indisciplina-te! (GEAC)

Posted on Fevereiro 12, 2016

viveiros

Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo

Enquanto agita a bandeira da descolonização do pensamento e nos alimenta com uma fonte inesgotável de alteridade radical, Viveiros de Castro permanece aferrado à disciplina antropológica e ao senso comum policialesco que a sustenta. Fora da academia, contudo, sua obra vem sendo reconectada à ação política transformadora. Resta-nos, então, a esperança de que Viveiros indiscipline-se

* * *

A minha hipótese é que as teorias e disciplinas reagirão de modo não-teórico e não disciplinar quando forem objeto de questões não previstas por elas. 

Boaventura de Sousa Santos

Como eu “vivo a política?” Ora, vtnc.

Viveiros de Castro

Quando fazemos uso de nomes próprios e referências diretas a determinadas declarações públicas não estamos buscando discutir características pessoais, mas sim a relevância e o poder de interpelação de determinadas posturas teórico-políticas.

I.

Faz quarenta anos que a prática antropológica em geral e especificamente as práticas da antropologia disciplinar vêm sendo problematizadas a partir de enfoques variados em diversos países. O triunfo dos movimentos de libertação nacional em África, Ásia e Oceania, associado aos processos de descolonização epistêmica que problematizaram os regimes de representação da alteridade enraizados nas academias metropolitanas, desencadeou um movimento reflexivo que repercutiu com força nas antropologias hegemônicas. O antropólogo haitiano Michel Trouillot caracterizou tal processo como o esvaziamento empírico do “nicho do Selvagem”: enquanto disciplina, a antropologia dependia do Selvagem-objeto, mas este agora enunciava a si mesmo, sua história e seus projetos em primeira pessoa. Para Trouillot, a antropologia surgiu no final do século XIX incumbida de disciplinar o “nicho do Selvagem”, anteriormente objeto de especulações em novelas utópicas, relatos de viagens ao Novo Mundo e informes para-etnográficos. Dentro do esquema discursivo evidenciado pelo autor, o Selvagem é aquele que alimenta diferentes Utopias destinadas a refundar a Ordem, entendida como expressão da universalidade legítima. A tríade Ordem-Utopia-Selvagem que sustentava as metanarrativas ocidentais estava, no entanto, dissolvendo-se e tal processo ameaçava a autossuficiência da disciplina antropológica.

Abalados pelo impacto da crítica pós-colonial, os domínios da disciplina pareciam inférteis aos olhos daqueles que ainda cultuavam a velha e boa Antropologia, outrora presidida sem embaraço pelos mandarins de Cambridge. O setor mais cético e enclassado da disciplina manteve uma desconfiança profunda em relação a qualquer tipo de engajamento intelectual que se deixasse afetar – no tocante às suas preocupações e aos seus objetivos – por vetores políticos extra-acadêmicos. Para referido setor o panorama desolador do período que poderíamos definir como “pós-crítica” exigia Restauração. A avidez por restaurar a Antropologia encontrou eco, num primeiro momento, no cinismo de tipo geertziano. Hermenêutica em punho, Geertz profetizou que o novo destino da Antropologia seria contribuir para a expansão dos horizontes da racionalidade humana através da tradução intercultural. Malgrado seu passado colonial, a disciplina antropológica preservaria uma tendência inata de valor não desprezível: a capacidade de ouvir o outro e decodificar sua cultura. Não era exatamente disso que precisávamos num mundo marcado pela intolerância e pela incompreensão?

As alternativas a la Geertz não bastavam, contudo, para devolver à Antropologia sua antiga auto-suficiência. Passar o resto da vida operando traduções interculturais para mitigar as catástrofes da modernidade tardia não parecia um destino à altura daquela disciplina que havia dispendido boa parte do século XX na ousada tarefa de confrontar o narcisismo moderno com a imagem desafiadora do seu outro selvagem. Entretanto, a “linha forte” do restauracionismo disciplinar teria de esperar até os anos noventa para encontrar no perspectivismo ameríndio um dos seus mais promissores cavalos de batalha. A potência do paradigma esgrimido por Viveiros de Castro residia em sua capacidade de matar dois coelhos numa cajadada só: ao passo que flertava com o espírito do seu tempo, respondendo ao compromisso político com a descolonização da disciplina, também restaurava o “nicho do selvagem”, objeto que, como apontou Trouillot, havia sido herdado e nunca verdadeiramente questionado pelas expressões hegemônicas da antropologia. Na “geografia da imaginação” que engendrou o Ocidente e a antropologia disciplinar, o Selvagem foi frequentemente uma projeção utópica. “Agora, como então – diz Trouillot –, o Selvagem é apenas evidência num debate cuja importância ultrapassa não só seu entendimento, mas também sua existência. Assim como a Utopia pode ser oferecida como uma promessa ou como uma ilusão perigosa, o Selvagem pode ser nobre, sábio, bárbaro, vítima ou agressor, dependendo do debate e dos propósitos dos interlocutores” (p.67 [acessar texto aqui])

Diante do encerro de alguns antropólogos nos corredores da academia e do desinteresse de outros em vincular sua produção a grandes debates estruturais, foi Viveiros quem soube construir uma ponte entre o discurso antropológico e a formulação de enunciados políticos radicais e abrangentes. Por outro lado – e paradoxalmente – Viveiros erigiu seu lugar de fala sobre o velho “nicho do selvagem”, que agora retorna a nós em sua faceta utópica, capaz de iluminar alternativas imediatas e anistóricas às vicissitudes da modernidade ocidental. Reivindicado em entrevistas e ensaios teóricos, o Pensamento Selvagem serve de “controle” para imaginar Utopias – virtualidades que poderiam ser atualizadas em “nossa” própria antropologia, em “nosso” próprio mundo, etc. Aqui cabe recuperar novamente a súplica de Michel Trouillot: os sujeitos históricos com voz própria aos quais se reporta Viveiros merecem muito mais do que um “nicho”; merecem ser muito mais do que a projeção das ânsias de refundar a metafísica. Para o autor, devemos ser capazes de desestabilizar e, eventualmente, destruir o “nicho do Selvagem” para poder relacionar-nos com a alteridade em sua especificidade e legitimidade histórica, que sempre escapam ao universalismo. A dicotomia “nós e o resto”, implícita na ordem simbólica que engendra a ideia de Ocidente, é um construto ideológico, afinal “não há apenas um Outro, mas multidões de outros que são outros por diferentes razões, a pesar das narrativas totalizantes, incluindo a do capital” (p. 75).

Ao lançar mão do recurso ao nicho do Selvagem, Viveiros provoca um efeito de sedução que resulta não tanto das suas manobras conceituais, mas da necessidade que temos de alimentar a fonte inesgotável de exterioridade radical que poderia nos salvar do Ocidente. A outridade termina, assim, subsumida à mesmidade dos projetos de sempre – transformar a Antropologia, por exemplo. Em tal cenário, a disciplina antropológica é chamada a continuar seu trabalho, reassumindo a vocação de perscrutar fielmente o Outro selvagem refratado pela teoria de Viveiros de Castro. Trouillot vaticina: “enquanto o nicho [do Selvagem] existir, no melhor dos casos o Selvagem será uma figura de fala, uma metáfora num argumento sobre a natureza e o universo, sobre o ser e a existência – em suma, um argumento sobre o pensamento fundacional” (p. 68).

II.

Deixemos que Viveiros fale um pouco mais sobre a forma como concebe o promissor entrelaçamento entre a “nossa” Antropologia e o Pensamento Selvagem: “por transformações indígenas da antropologia entendo as transformações da estrutura conceitual do discurso antropológico suscitadas por seu alinhamento em simetria com as pragmáticas reflexivas indígenas, isto é, com aquelas etno-antropologias alheias que descrevem nossa própria (etno-) antropologia precisamente ao e por divergirem dela” (p.163 [acessar texto aqui]). O pensamento ameríndio consistiria, ele próprio, em uma ontologia política do sensível que, ao se alinhar com o discurso antropológico, se tornaria capaz de redefini-lo e de convertê-lo em enunciador de uma antropologia outra. Neste sentido, o conhecimento antropológico não operaria sobre um repertório cultural fechado em si mesmo, mas sim em meio a outro movimento reflexivo – o ameríndio – que é concebido como dinâmica ontológica transformacional capaz de instaurar, pelo menos no plano do conceito, uma mundaneidade completamente nova e potencialmente transgressora dos parâmetros epistemológicos da nossa etno-antropologia.

O problema começa quando dizemos que a dinâmica transformacional inerente à ontologia ameríndia possui um modus operandi determinado que nós, antropólogos, poderíamos abstrair mediante procedimento de “coloração contrastiva” (p.157). Procedendo assim, o antropólogo transforma a transformação outra em algo completamente desencarnado – fruto da construção artificial, laboratorial, em suma, contrastiva da alteridade radical. Na verdade essas dinâmicas transformacionais outras nas quais o discurso antropológico supostamente se imiscui não são outra coisa senão o resultado de um procedimento enunciativo disciplinar e disciplinador que submete a experiência ao conceito (“A revolução, ou a essa altura será melhor dizer, a insurreição e a alteração começam pelo conceito”, Viveiros, p. 155).

O “perspectivismo imanente” depreendido por Viveiros da análise formal dos mitos só pode existir enquanto subproduto da alteridade radical laboratorialmente forjada por uma antropologia que se obstina em negar a experiência e a voz própria dos homens e mulheres que são os verdadeiros sujeitos da história. Mesmo abundantes, os eufemismos de Viveiros são insuficientes para dissimular o recurso ao “nicho do selvagem” que abastece sua máquina textual. No final das contas, Viveiros quer comparar “transformações” – outro nome para cultura – e depois mobilizá-las na construção de enunciados políticos que suspendem a política, que nos conclamam ao estarrecimento resmungão e, no pior dos casos, nos transformam em moralistas que repetem insistentemente que as coisas poderiam – ou deveriam – ser diferentes do que são sem saber como, objetivamente, engajar-se nas dinâmicas transformacionais imanentes à realidade.

A ideia de transformação da antropologia enunciada por Viveiros de Castro é caudatária da ego-política do conhecimento. Nesta perspectiva profundamente desencarnada, a antropologia aparece como uma “estrutura conceitual” – e não como a expressão localizada de certo processo de institucionalização – que pode sofrer alinhamentos com a “pragmática reflexiva” indígena. Quem promove esses alinhamentos? Viveiros não explicita, mas só podemos concluir que são os próprios antropólogos que o fazem. Se now is the turn of the native, quem distribui os “turnos” na fila da legitimidade epistêmica (ou ontológica) é o próprio antropólogo.

No sentido oposto ao da ego-política do conhecimento, o Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC) retomou a noção descolonial de corpo-política do conhecimento. Esta noção nos leva a definir a transformação da antropologia como um processo localizado de disputa encarnada – corporalizada – pela construção de outros lugares de enunciação e de novas formas de produzir efeitos de verdade. Pensar com os outros, como propõe Viveiros, significa, para nós algo muito mais radical. Significa pensar na presença concreta do outro, engajados corpo-politicamente com ele. O resultado disso não precisa ser, necessariamente, “antropologia”, “etnografia” ou qualquer outra forma de subsunção da radicalidade da ação histórica e da especificidade dos sujeitos à mesmidade do texto acadêmico. Não vemos necessidade de construir, laboratorialmente e por contraste, o pensamento do outro – ou, sendo fiéis a Viveiros, as formas outras de empreender a transformação – para, só depois, proceder à construção do comum.

III.

Viveiros quer transformar as estruturas conceituais da antropologia e colocá-las a serviço da descolonização do pensamento. Nós perguntamos: é possível fazê-lo sem abrir mão das formas específicas de exercício do poder que a antropologia avaliza enquanto disciplina? Viveiros reforça um senso comum de longa data cujo efeito é a neutralização de quaisquer práticas intelectuais dissidentes. Ele agita a bandeira da descolonização do pensamento sem prestar atenção às bases institucionais conservadoras sobre as quais repousa comodamente. Evidência disso é a facilidade com que o antropólogo descolonizador ironizou a interpelação que lhe fizemos anos atrás (acessar texto aqui) recorrendo àquela pergunta tão frequente nos espaços mais policialescos da disciplina: onde está a etnografia dessa gente?

Quando Viveiros procura deslegitimar nossa interpelação recorrendo à pergunta irônica sobre as “etnografias” que fomos ou não capazes de produzir, ele se inscreve completamente na história da qual pretende emancipar a disciplina. Uma história que erigiu a etnografia (o texto) em única expressão legítima do enunciado antropológico. Isso para não falar da leitura completamente narcísica feita por ele de nossa intervenção. Para Viveiros, tudo o que dissemos era a reprodução do discurso de nossos “orientadores” ou, até mesmo, uma tentativa de atacá-lo para salvar o Partido dos Trabalhadores (!). Enquanto líamos essas assertivas, nos lembrávamos da forma como alguns docentes reagiram à greve dos estudantes de mestrado em antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2011. Incrédulos diante das críticas que os estudantes faziam ao produtivismo acadêmico desenfreado, à escassez de bolsas e à nula participação discente na definição das políticas do programa de pós-graduação, determinados professores só puderam explicar o acontecimento recorrendo à lógica da cooptação: era o Partido Comunista (!) que estava por trás daquela imensa insensatez. A voz própria enunciada em primeira pessoa continua a ser desacreditada fortemente nos domínios da disciplina: não há sujeito histórico verdadeiramente autêntico, sempre “há algo” por trás que o explica e conduz. Reações desta ordem, que se recusam a reconhecer a autenticidade da fala do outro, são sintomas de um narcisismo antropológico-disciplinar que priva a si mesmo da possibilidade de mudar a própria perspectiva sobre as coisas: “ao adentrarmos o espaço da exterioridade e da verdade, só conseguimos ver reflexos e simulacros obsedantes de nós mesmos” (p.23 [acessar texto aqui]). Tudo aquilo que o establishment disciplinar contempla não pode ser outra coisa senão o reflexo da sua própria lógica de funcionamento.

Ao mesmo tempo que Viveiros atualiza em sua performance acadêmica as hierarquias silenciadoras e os sistemas de visibilidade que sustentam a disciplina que o legitima, ele também nos entrega, paradoxalmente, uma retórica descolonizadora. Sua crítica aguda e implacável à fé cega nas ideias-força da modernidade capitalocêntrica possui, sem dúvidas, uma potência suscetível de ser atualizada por quem deseja incidir nas relações de força concretas. Não só no Brasil, mas também em outros países da América do Sul, os enunciados produzidos por Viveiros de Castro são constelados em agenciamentos coletivos que ensaiam uma ruptura pragmática com o consenso das commodities e inauguram, assim, renovados espaços de imaginação política. Nestes casos, Viveiros é vivificado pela ação coletiva; sua crítica se associa com os imperativos das lutas atuais e é potencializada por uma poética materialista capaz de desenterrar outro mundo possível das entranhas deste mundo subsumido pelo capital. Peter Perbart tem razão: “ainda os que costumam planejar uma abstração radical (…) podem ser reconectados à terra ao entrar em contato com uma situação real e deixar para trás a imagem da qual muitas vezes são prisioneiros e na qual o poder insiste em enclausurá-los” (acessar texto).

Viveiros é vivificado pela política fora da academia. Dentro dela, no entanto, é disciplinado e sabe disciplinar. Aprisiona entre aspas todas as palavras que correm o risco de serem abastardadas pelo uso canalha (“grupo” de “antropologia” “crítica” – dizia no twitter). Insinua que por detrás da interpelação crítica a ele destinada se oculta o repreensível desejo de “aparecer”. É que ao atrair para si uma atenção da qual a priori não são merecedores, os responsáveis pela mais mínima inversão dos regimes convencionais de visibilidade acadêmica só podem ser encarados como usurpadores.

Nós questionamos estas tendências e procuramos problematizá-las através do espaço autônomo de diálogo e reflexão que é o GEAC. Enquanto a “filosopausa” não chega – e com ela a possibilidade de publicar textos aforísticos em revistas indexadas – decidimos construir, de direito próprio, um lugar amigável para desenvolver engajamentos e debates cuja emergência costuma ser obturada pelos estabelecimentos antropológicos mais conservadores.

Apesar da deriva filosófica, Viveiros de Castro continua aferrado à disciplina antropológica e ao senso comum que a sustenta. Resta-nos a esperança de que as ruas e a história o absolvam.  E de que Viveiros indiscipline-se.