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Carlos Fausto e Luiz Costa: Estupro e assassinato de indígenas atestam nosso fracasso civilizacional (Folha de S.Paulo)

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Povos da Amazônia viraram alvo de garimpeiros e facções que querem roubar suas terras e seus direitos

Carlos Fausto

21 de maio de 2022


[RESUMO] Em abril, mês em que se comemora o Dia do Índio, inúmeros relatos de assassinato, intimidação e estupro de indígenas ganharam repercussão na imprensa, exemplos trágicos que se repetem em um quadro de falta de fiscalização, investigações superficiais e normalização da violência por parte da sociedade.

“A Marca da Maldade”, filme de Orson Welles de 1958, começa com um plano-sequência no qual um homem arma uma bomba e a coloca no porta-malas de um carro. O plano dura mais de três minutos, nos quais a vida flui normalmente. A tragédia, porém, está anunciada. Sabemos o que vai acontecer, apesar de não sabermos quando.

Nos últimos anos, bombas vêm sendo colocadas em muitas partes da Amazônia, visando especialmente as terras indígenas. Como são múltiplas e plantadas por vários atores em diferentes lugares, acabam por minar nossa capacidade de reação. O excesso desorienta, e a violência se vê normalizada.

No mês de abril, quando se comemora o Dia do Índio, várias más notícias ocuparam as páginas dos jornais. Eis alguns dos títulos: “Garimpeiros abusam sexualmente de indígenas durante invasão e obrigam ingestão de gasolina com água, denunciam entidades” (O Globo, 21.abr), “Menina ianomâmi de 12 anos foi estuprada e morta por garimpeiros, diz líder indígena” (Estado de S. Paulo, 27.abr), “Justiça determina segurança da Força Nacional na terra dos Parakanã” (Amazônia Real, 1º.mai).

A ampla divulgação desses episódios é um fato positivo, que resulta, sobretudo, do acesso dos indígenas à internet. Contudo, sempre que são noticiados, logo surge uma reação para desacreditar os relatos.

Os órgãos responsáveis fazem uma investigação superficial e concluem que não há evidências de crime –como se crime não houvesse na própria invasão de terras protegidas, na derrubada da cobertura florestal, na contaminação de cursos d’água e nas ameaças à população indígena local.

Já assistimos a isso na história da Amazônia. O caso mais célebre é o do genocídio perpetrado pelos barões da borracha, no Peru e na Colômbia, nas primeiras décadas do século 20.

O sistema extrativista ali funcionava à base de assassinatos, tortura e estupros, mas poucos queriam acreditar nisso, mesmo quando testemunhas oculares davam conta de que se “matava a sangue frio”, que “os corpos eram devorados por cães”, que “as crianças eram desmembradas e jogadas ao fogo” (conforme registros do “Libro Azul Británico: Informes de Roger Casement y Otras Cartas sobre las Atrocida­des en el Putumayo”).

Há algumas semanas, os parakanãs da bacia do Tocantins veem-se ameaçados pela população de Novo Repartimento (PA). Em 24 de abril, três jovens invadiram a terra indígena para caçar e desapareceram. Vários áudios logo começaram a circular na região: “Vamos entrar na aldeia e vamos começar a matar índio” ou “vamos reunir 200 homens armados para botar os índios para correr”.

Esses áudios desenterraram fantasmas que pareciam sepultados. Em 1930, o então diretor da Estrada de Ferro do Tocantins reuniu um grupo armado para atacar os asurinis, que, junto com os parakanãs, “atrapalhavam” a construção da ferrovia. O grupo alcançou um acampamento asurini e matou vários indígenas, incluindo mulheres e crianças.

No retorno da expedição, o chefe de polícia segredou ao funcionário local do Serviço de Proteção aos Índios: “O meu galão é o refrigério de minha família, mas eu prefiro perdê-lo a fazer outra viagem com o mesmo fim desta feita agora; nunca vi tanta barbaridade” (trecho do inquérito da Inspetoria do Pará e Maranhão sobre massacre sofrido por índios bravios em Tocantins, julho de 1930).

Quarenta anos depois do massacre, a Transamazônica cortaria o território dos parakanãs, levando à sua “pacificação”, como se costuma chamar o desastroso processo que, no caso, causou a morte de um terço da população. Desde então, as relações com a população local foram se acomodando, mas agora parecem ter azedado de vez.

Em 30 de abril, os corpos dos caçadores foram encontrados dentro da Terra Indígena Parakanã, levando a novas ameaças nas redes sociais, inclusive uma que propunha “leis de extermínio a toda essa raça e seus defensores”.

No dia 2 de maio, os parakanãs responderam, divulgando uma nota dirigida aos “Prezados amigos(as) e irmãos(ãs) toria (não indígena) de Novo Repartimento e familiares”, na qual afirmam: “Sempre nós vivemos aqui. Vocês chegaram depois, nasceram depois. Por isso nós queremos dizer para que não nos ameace, não digam que não nos querem na cidade, pois esse lugar é nosso também. Nós desejamos viver em paz. Não lancem o seu ódio contra os awaete, pois isso não é justo” (Grupo de Maroxewara –awaete parakanã).

Alguns dias antes desse episódio, a 2.000 quilômetros dali, os kanamaris da aldeia Jarinal, na Terra Indígena Vale do Javari, no sudoeste da Amazônia, tiveram suas casas invadidas por garimpeiros.

Eles chegaram exigindo tratamento médico pela equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Uma vez atendidos, não partiram. Fizeram festa até o amanhecer, obrigando os kanamaris a beber uma mistura de gasolina e água.

Situada no médio curso do rio Jutaí, Jarinal é uma aldeia bastante remota. No alto curso do rio, vivem povos em isolamento voluntário, tornando a área ainda mais sensível. Apesar das promessas, a Funai (Fundação Nacional do Índio) jamais implantou uma base avançada na região.

De início, aliás, o próprio órgão duvidou dos relatos dos kanamaris. Foi preciso que um representante do Conselho Indígena Kanamari do Juruá e Jutaí (Cikaju) enviasse áudios e fotos por WhatsApp para que se pudesse embasar a denúncia oferecida ao MPF (Ministério Público Federal).

Uma semana depois, o cacique de Jarinal comunicou que estava sendo ameaçado de morte, dessa vez por caçadores de uma fazenda contígua à terra indígena, que se utilizam regularmente de trilhas dentro da área.

Ainda no mesmo mês de abril, outra tragédia atingiu os povos indígenas, dessa vez em Roraima. Em 25 de abril, Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena local, denunciou que uma menina yanomami de 12 anos havia sido estuprada e morta por garimpeiros na comunidade de Aracaçá, na região de Waikás. Após ampla divulgação pela imprensa, uma equipe com agentes da Polícia Federal se deslocou para lá.

No dia seguinte, já se noticiava que não havia indícios de crime. Lançavam-se, assim, dúvidas sobre a veracidade da denúncia. A maquinaria para desacreditar os “relatos” indígenas fora novamente posta em ação.

Em nota de 29 de abril, Júnior Hekurari afirma que, ao chegarem à comunidade de Aracaçá, dois dias antes, encontraram a aldeia vazia e em chamas. Após certo tempo, alguns moradores apareceram, mas afirmaram que nada podiam dizer, pois haviam recebido 5 gramas de ouro para ficarem em silêncio. A cultura da sedução e do terror, tão bem-conhecida na história da Amazônia, impera na região.

Estupro e morte se tornaram fatos corriqueiros nas áreas invadidas da Terra Indígena Yanomami. No relatório “Yanomami sob ataque” (2022), da Hutukara Associação Yanomami, encontram-se vários depoimentos na língua indígena, acompanhados de tradução, que deixam isso nítido.

Eis um trecho ilustrativo de um depoimento de uma mulher: “Estão transando muito com as mulheres. É tanto assim que, em 2020, três moças, que tinham apenas por volta de 13 anos, morreram. Os garimpeiros transaram muito com essas moças, embriagadas de cachaça. Elas eram novas, tendo apenas tido a primeira menstruação”.

Bebida, estupro, violência, intimidação, morte. Os indígenas são violados, o ambiente é violado, e você que nos lê, também é (ainda que pense nada ter a ver com isso).

A exploração mineral no Brasil, mesmo fora de áreas indígenas, não é fiscalizada. Os recursos da Amazônia são drenados sem qualquer benefício coletivo, alimentando a engrenagem que, há séculos, gera riqueza para poucos e pobreza para muitos em nosso país.

Não é de surpreender que facções criminosas estejam atuando nos garimpos da região. Afinal, é um negócio lucrativo, sem fiscalização, que conta com o beneplácito de várias instâncias de governo.

Os povos indígenas resistem, mas hoje viraram alvos do ódio de uma facção política que lhes quer roubar os direitos e as terras garantidos pela Constituição de 1988. Não se enganem: o que temos diante de nós não é uma derrota política, mas uma regressão civilizacional.

Segredo de polichinelo: ao final do magistral plano-sequência de Orson Welles, a bomba explode e o carro, lançado aos ares, é consumido pelas chamas. É urgente desarmar as bombas e, como costumam dizer os indígenas, “pacificar os brancos”.

Um parlamento para dar voz aos indígenas do Brasil (Sete Margens)

setemargens.com


Manifestação em Brasília durante o Acampamento Terra Livre de 2017. Foto © Guilherme Cavalli/Cimi.

Um parlamento indígena aberto, para dar voz e visibilidade política aos 305 povos originários do país, é o objectivo do Parlaíndio, fundado este mês no Brasil, anunciado nesta quarta-feira, 26 de Maio, e que terá assembleias mensais.

O Parlaíndio integra as lideranças indígenas brasileiras e tem já um portal com fotos dos seus líderes e notícias de assembleias ou de acontecimentos directa ou indirectamente relacionados com os povos indígenas.  

O cacique Raoni Metuktire, um importante líder indígena brasileiro, conhecido em todo o mundo pela sua luta pela preservação da Amazónia e dos povos nativos, é o seu presidente de honra, enquanto a coordenação executiva é da responsabilidade do cacique Almir Narayamoga Suruí, principal liderança do povo Paiter Suruí, da Rondónia, reconhecido internacionalmente pelos seus projectos de sustentabilidade em terras indígenas.

A primeira assembleia do Parlaíndio Brasil, noticia a Lusa citada pela TSF, decorreu virtualmente na última quinta-feira, 20 de Maio. Nessa altura, as lideranças indígenas discutiram os objectivos do movimento, bem como a sua estruturação e o modo como decorrerão as assembleias mensais.  

Entre as principais questões que o movimento abordará, ainda de acordo com a Lusa, estão a desflorestação e invasões das terras indígenas, projectos de mineração e hidroeléctricas em terras dos povos nativos, garimpo ilegal, poluição dos rios por mercúrio e contaminação das populações originárias e ribeirinhas.

O Parlaíndio tomou já uma primeira decisão política: a entrada com uma acção na justiça pedindo a exoneração do presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), órgão tutelado pelo Governo brasileiro, cuja missão deveria ser coordenar e pôr em prática políticas de protecção dos povos nativos.

“Foi aprovado, por unanimidade, o Parlaíndio Brasil entrar com uma acção na justiça pedindo a exoneração do presidente da Funai, delegado Marcelo Xavier, que à frente do órgão não tem cumprido a missão institucional de proteger e promover os direitos dos povos indígenas do país”, indicou o movimentou o em comunicado.

Em causa, refere a mesma fonte, está um pedido feito recentemente pelo presidente da Funai à Polícia Federal (PF), para a abertura de um inquérito contra lideranças indígenas, sob o pretexto de difamação do Governo de Jair Bolsonaro. 

“A Funai é um órgão que deveria promover assistência, protecção e garantias dos direitos dos povos indígenas brasileiros e, actualmente, faz o inverso. O inquérito teve carácter de intimidação e criminalização a partir de uma determinação do presidente da Funai”, explicou Almir Suruí, coordenador executivo do Parlaíndio Brasil.

Assembleia de indígenas. Foto da página do Parlaíndio.

O mesmo responsável considera que esta estrutura será importante para construir uma política de defesa dos povos indígenas, depois de a Constituição de 1988 ter consagrado um conjunto de políticas públicas e direitos para os indígenas brasileiros. “Um dos nossos objectivos é debater a construção do presente e do futuro a partir de uma cuidadosa avaliação do passado. Vamos discutir também as políticas públicas e fornecer subsídios para as organizações que integram o movimento indígena”, acrescentou o responsável na sessão de lançamento do movimento.

A ideia de criar o Parlamento Indígena do Brasil, como se pode ler no portal do Parlaíndio, surgiu numa reunião de lideranças indígenas realizada em Outubro de 2017, no Conselho Indigenista Missionário, uma organização da Igreja Católica de apoio aos povos indígenas. 

De acordo com a mesma informação, há actualmente no Brasil mais de 900 mil indígenas no Brasil, membros de 305 povos distintos, que falam mais de 180 línguas, segundo dados do Parlaíndio (a propósito do qual se pode ouvir aqui a crónica Outros Sinais, de Fernando Alves, na TSF, nesta quinta, 27). 

Cada vez mais pobres e indígenas em Manaus

Paolo Maria Braghini, franciscano em Manaus a ajudar famílias pobres. Foto © ACN Portugal.

Esta notícia surge em simultâneo com a denúncia de um frade católico franciscano, segundo o qual muitos indígenas e outras pessoas do interior do Amazonas estão a chegar a Manaus, a capital do Estado, sem nada para viver. 

“Temos famílias nos subúrbios que não têm nada para viver. Muitos vieram do interior do país e chegaram aqui na esperança de encontrar comida na cidade. Mas aqui só encontram fome e desemprego. Para cúmulo, agora nem sequer têm uma horta para cultivar ou o rio para pescar”, diz o padre Paolo Maria Braghini, franciscano capuchinho italiano, citado pela Ajuda à Igreja que Sofre

“No meio de tanta pobreza, escolhemos certas localidades na periferia e, com a ajuda de líderes comunitários locais, identificámos as famílias mais carenciadas”, explica frei Paolo, sobre o modo como a comunidade de franciscanos está a procurar minorar a situação. 

Manaus, um dos principais centros financeiros, industriais e económicos de toda a região norte, tem mais de dois milhões de habitantes e continua a atrair as populações da região. A cidade, que já tinha muitas bolsas de pobreza, viu a situação agravar-se com a pandemia do novo coronavírus e o colapso dos serviços de saúde.

As populações pobres e indígenas do Amazonas foram alguns dos sectores mais atingidos pela falta de estruturas. Em Janeiro, num dos picos da crise, o bispo de Manaus chegou mesmo a pedir ajuda para que fosse enviado oxigénio para os hospitais.

POVOS DA MEGADIVERSIDADE (Piauí)

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O que mudou na política indigenista no último meio século

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Em 1967, o ministro do Interior, general Afonso Augusto de Albuquerque Lima, ordenou a realização de uma comissão de inquérito administrativo para apurar os delitos praticados pelo Serviço de Proteção aos Índios (spi). Queria punir funcionários e moralizar o órgão. Nomeou para presidir a comissão o procurador federal Jáder de Figueiredo Correia. A iniciativa havia tardado quatro anos e derivava das graves denúncias de desmandos administrativos e financeiros no relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (cpi), de 1963. Jader de Figueiredo Correia fez valer que a cpi havia apenas examinado os anos de 1962 e 1963 e ainda assim só três inspetorias do spi, uma no Amazonas e duas no Mato Grosso. O ministro foi levado a estender o âmbito do inquérito a todo o Brasil.

A Comissão Figueiredo percorreu uns cem postos indígenas dos cerca de 130 existentes, em cinco inspetorias regionais do spi e apresentou um relatório de quase 7mil páginas datilografadas. Incluía uma síntese em que descrevia muito mais do que problemas administrativos e os corriqueiros desvios financeiros. Denunciava com indignação crimes e violações de direitos humanos contra os indígenas. Dava nomes, detalhes e provas. Havia conluio de funcionários do spi com fazendeiros, políticos locais, arrendatários, mineradoras; havia corrupção e desvio de dinheiro, apropriação de recursos, usurpação do trabalho dos índios; dilapidação do patrimônio dos índios, com venda de gado, de madeira, de castanha e outros produtos extrativistas, exploração de minérios, doação criminosa de terras; havia trabalho obrigatório ou escravo, venda de crianças, maus-tratos, espancamentos, prostituição, cárcere privado, seviciamento, torturas, suplício no tronco que esmagava os tornozelos, mortes por deixar faltar remédios, assassinatos, em suma um vasto rol de “crimes contra a pessoa e o patrimônio do índio”. Em termos estatísticos, os crimes por ganância eram os mais comuns, mas os crimes contra a pessoa mais hediondos.

Jáder Figueiredo salientou também a omissão na assistência devida pelo spi aos índios, “a mais eficiente maneira de praticar o assassinato”. E por fim explicitamente mencionou a omissão institucional do spi diante de massacres de extermínio. Citou o massacre por fazendeiros no Maranhão de toda uma “nação” indígena sem que o spi se interessasse. Mencionou denúncias, nunca apuradas pelo spi, de inoculação de vírus da varíola que provocou a “extinção da tribo localizada em Itabuna na Bahia, para que se pudesse distribuir suas terras entre figurões do governo”. Falou do que passou a ser chamado de “Massacre do Paralelo 11”, quando os cintas-largas em Mato Grosso, atacados por dinamite jogada de avião, foram envenenados por açúcar com estricnina, abatidos por metralhadora e pendurados e cortados ao meio, de cima a baixo com um facão, sem que se ninguém incomodasse os perpetradores do crime.

 Esse relatório foi divulgado oficialmente em 1968. O próprio ministro Albuquerque Lima, diga-se em sua honra, deu uma entrevista coletiva para a imprensa em 20 de março e consta que o Diário Oficial publicou o relatório conclusivo em setembro de 1968.[1] O ministro do Interior continuou a divulgar massacres dos craôs, dos canelas, dos maxacalis, dos nhambiquaras, dos tapaiunas. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5, a situação mudou e aparentemente os documentos foram arquivados. O paradeiro do Relatório Figueiredo ficou ignorado durante mais de quatro décadas e só reapareceu em 2012, graças ao pesquisador Marcelo Zelic, que o identificou no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Tornou-se imediatamente uma fonte essencial para o capítulo sobre os povos indígenas na Comissão da Verdade que investigou crimes do Estado contra os índios de 1946 a 1988.

O Relatório Figueiredo levou à criação e funcionamento efêmero de uma nova cpi do Índio em 1968, encerrada por ocasião do ai-5, com a cassação de alguns de seus membros; e ensejou a extinção do spi e a criação da Funai (Fundação Nacional do Índio) para substituí-lo.

O spi havia sido fundado em 1910,em decorrência de outra acusação de chacinas de índios nos estados do Paraná e Santa Catarina para dar lugar nas terras aos imigrantes europeus. A denúncia foi feita no16º Congresso Internacional de Americanistas, em Viena, em 1908, e provocou no Brasil forte reação de cunho nacionalista. Acabou desaguando, com a participação de Cândido Mariano da Silva Rondon e do movimento positivista, na criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais. No intuito de proteger negocialmente os índios, o Código Civil de 1916 passou a classificá-los como “incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer”, o mesmo status que tinham as mulheres casadas (essa situação perdurou até 1962) e os jovens entre 16 e 21 anos. Assim enquadrados no Código Civil, os índios passaram a merecer a proteção de um tutor, papel que foi atribuído ao Estado e que este delegou ao spi e ao órgão que o substituiu em 1967, a Funai.

O Relatório Figueiredo causou grande indignação na opinião pública e repercutiu amplamente na imprensa do país e do exterior. Chegou a ser assunto da primeira página do New York Times no dia seguinte à sua divulgação. Assinado por Paul L. Montgomery e usando excertos do Relatório Figueiredo, mencionava um escândalo de assassinatos, estupros e roubos cometidos contra os índios no Brasil nos últimos vinte anos.

A palavra “genocídio” foi criada em 1944 para designar a política nazista de extermínio de judeus e ciganos. Uma Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, organizada pela onu em 1948, caracterizou o crime e definiu as punições a ele. Desde então,“genocídio” foi o termo empregado para caracterizar o que os turcos praticaram contra os armênios, em 1915, ou os hutus aos tutsis, em Ruanda, em 1994.

A lei brasileira no 2889, de 1o de outubro de 1956, seguindo a formulação da onu, definiu como genocídio o crime praticado com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. São eles: “a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.”

Embora as denúncias da comissão de inquérito presidida por Figueiredo se encaixassem na definição acima, a palavra “genocídio” não constava no relatório final do procurador-geral. Diante do risco de o tema entrar na pauta da primeira Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, em Teerã, e pressionado pelo Itamaraty, o Ministério do Interior tentou minimizar a situação declarando: “Os pretensos crimes de genocídio praticados contra índios brasileiros não passam de conflitos muito mais violentos na história de outros povos entre a cobiça da civilização sem humanismo e a propriedade do silvícola, desequipado mental e materialmente para defendê-la.” (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1968)

A longa reportagem que a Piauí publica da página 38 à 50 insere-se nesse contexto. Foi escrita por um celebrado jornalista do século xx, o inglês Norman Lewis (1908-2003), que o diário The Sunday Times enviou ao Brasil em 1968, acompanhado de um importante fotógrafo de guerra, Don McCullin. Lewis era um escritor prolífico e muito respeitado – ficaria famoso por seus livros de viagem e suas reportagens internacionais, a respeito de povos tribais da Índia, de conflitos na Indonésia, da guerra francesa na Indochina e de um clássico do jornalismo sobre a Segunda Guerra Mundial, o livro Nápoles 1944. Sua matéria, que estampava em letras garrafais o título “Genocide”, foi publicada na Sunday Times Magazine, em 23 de fevereiro de 1969 – e seria posteriormente editada no livro A View of the World: Selected Journalism. A reportagem causou tal impacto na opinião pública britânica e europeia, que motivou a criação da ong inglesa Survival International, dedicada à defesa de povos indígenas no mundo inteiro, ativa até hoje.

O texto de Lewis é autoexplicativo e tenho poucos comentários a fazer sobre ele. O jornalista recua ao século xvi para mostrar que a dizimação dos povos indígenas das Américas não representava novidade na década de 60. Só os métodos haviam mudado. Em sua narrativa, dá muito realce à figura do fazendeiro, à sua cobiça pelas terras dos índios. Pode-se dizer que Lewis e McCullin viajam pelo Brasil numa época em que se encerra uma fase do indigenismo, caracterizada pela iniciativa, digamos, privada do fazendeiro e pela omissão institucional do spi e, portanto, do Estado. Enquanto isso, está entrando em cena a Funai, criada às vésperas do grande projeto dos anos 70 de “integração da Amazônia” para ser a ponta de lança de uma política ativa do próprio Estado, que irá deslocar e varrer os povos indígenas que estariam obstando os projetos de infraestrutura e de ocupação de terras por aliados do regime. Foi sobretudo nessa época que se insistiu na alegação de que os índios representariam um entrave ao desenvolvimento.

O que mudou meio século depois do Relatório Figueiredo? Na prática, pouca coisa. Os índios continuam sendo mortos a bala e resistindo como podem à espoliação de suas terras. Declarações do presidente Jair Bolsonaro estimularam, antes mesmo de sua posse, a violência contra os índios, as populações tradicionais, os funcionários da Funai e os do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (icmbio). Os vários povos indígenas que, depois de uma primeira experiência desastrosa com a dita civilização, preferiram se isolar, estão agora reaparecendo, encurralados pelo “desenvolvimento”. São os mais vulneráveis e só terão alguma chance se for mantida a política de não estimular novos contatos.

À falta de mudanças nas velhas práticas, o que mudou, e muito, foi a teoria. A ideia de “integração” deixou de ser sinônimo de assimilação. A missão do Estado não é mais entendida como sendo a de descaracterizar sociedades indígenas para trazê-las ao regaço da civilização, até porque elas só têm a perder nesse regaço. Integrar não é mais tentar eliminar diferenças, e sim articular com justiça as diferenças que existem. Assim, a Constituição de 1988, no caput do artigo 231, declara algo, isso sim, muito novo: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições…” E no parágrafo 1º do mesmo artigo, ao caracterizar o que são terras indígenas, são incluídas todas aquelas necessárias à reprodução física e cultural dos índios.

A diversidade biológica e social deixou de ser vista como um passivo: é um ativo, como enfatizou recentemente a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (sbpc). Foi-se o tempo em que derrubar a mata significava fazer uma benfeitoria, em que massacrar índios era “desinfestar os sertões”. Na era da biomimética e da busca por novos princípios ativos, a floresta em pé e seus melhores conhecedores, que são as populações tradicionais, tornam o Brasil um campo de imenso potencial para a inovação de ponta. E consta que se conhecem até agora apenas uns 10% dos supostos 2 milhões de espécies de fauna, flora e microorganismos da nossa biodiversidade.

Hoje, o Brasil se orgulha internacionalmente de sua megadiversidade socioambiental. No Censo do ibge de 2010, contaram-se 305 etnias e 274 línguas diferentes, inclusive de troncos linguísticos completamente distintos. E pela sua diversidade biológica, o Brasil figura com grande destaque no seleto grupo de dezessete países.

Os conhecimentos e práticas dos povos indígenas têm sido reconhecidos em foros internacionais, como ficou patente no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (ipcc, na sigla em inglês), criado em 1988, e na Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (ipbes, na sigla em inglês), de 2012. A arqueologia brasileira tem posto em evidência que o enriquecimento da cobertura e dos solos da floresta – as fertilíssimas “terras pretas” – é fruto das práticas de populações indígenas desde a era pré-colombiana até hoje. E sabe-se agora que na Amazônia foram domesticadas dezenas de plantas, entre as quais a batata-doce, a mandioca, o cará, a abóbora, o amendoim e o cacau. Um artigo publicado recentemente mostra que até mesmo o milho, originário do México, passou por uma segunda domesticação na Amazônia.

Os povos indígenas e comunidades tradicionais são também provedores da diversidade das plantas agrícolas, a chamada agrobiodiversidade, fundamental para a segurança alimentar. A Revolução Verde do pós-guerra, que investiu nas variedades mais produtivas de cada espécie agrícola, teve grande sucesso no volume das colheitas, mas produziu danos colaterais. Um deles foi a perda maciça de variedades agrícolas, como as de arroz na Índia e de milho no México.

Foi a falta de diversidade das variedades cultivadas de batata que levou à Grande Fome da Irlanda, entre 1845 e 1849. Domesticada nos Andes, onde existem até hoje mais de quatro mil variedades com diferentes propriedades e resistência a doenças, a batata se tornou no século xviii a base da alimentação de boa parte da Europa, onde só poucas variedades, entretanto, foram selecionadas. Quando um fungo destruiu por completo e por vários anos seguidos as batatas plantadas na Irlanda, a fome causou a morte de um milhão de pessoas e a emigração de outras tantas.

A consciência do risco criado pela perda da diversidade levou o próprio pai da Revolução Verde, Norman Borlaug, a propor a criação dos chamados bancos de germoplasma pelo mundo afora, para a conservação das variedades de plantas. Mas não basta: as plantas e seus inimigos, como os fungos, encontram-se em uma perpétua escalada armamentista. A cada novo ataque, as plantas desenvolvem novas defesas, num processo de coevolução, que também ocorre devido a mudanças de outra natureza, como as climáticas.

Essa coevolução não se dá em bancos de germoplasma, onde as variedades estão depositadas para se conservarem sem mudanças. Por isso é essencial que elas continuem a ser cultivadas. Órgãos científicos cuidam disso mediante pesados investimentos. Mas povos indígenas e comunidades tradicionais também mantêm por conta própria, por gosto e tradição, as variedades em cultivo e observam as novidades. É por isso que no Alto Rio Negro há mais de 100 variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimenta – sem falar na diversidade de espécies em cada roçado e quintal. Para os caiapós, bonito é um roçado com muita diversidade, pois os povos indígenas são mais do que selecionadores de variedades de uma mesma espécie. Eles são, de fato, colecionadores.

A tragédia irlandesa das batatas se tornou uma história exemplar. Mostrou que se deve dosar a produtividade e a diversidade. É coisa que o mercado financeiro tanto quanto a ecologia ensinam: a homogeneidade é perigo sério. A quem pergunta o que produzem os povos indígenas, pode-se responder que eles são e produzem justamente a diversidade. De graça.

O chamado “interesse nacional” é um coringa muito utilizado, mas pouco analisado. Onde exatamente reside o interesse nacional no caso dos indígenas? Um exemplo interessante é o da mineração em suas terras. A partir da década de 70, o projeto Radam (Radar da Amazônia) começou a fazer o mapeamento aéreo da região e criou grande expectativa para as companhias de mineração. Rapidamente, o mapa da Amazônia ficou coberto de pedidos de pesquisa e de lavra.

Na Constituinte de 1988, as mineradoras, em sua maioria de capital estrangeiro, combateram com afinco as restrições à lavra em terras indígenas. Tinham o apoio do economista Roberto Campos, então senador. Foi a Coordenação Nacional dos Geólogos, a Conage, que defendeu essas restrições. Lembrou que, na exploração mineral, não existe segunda safra, e que era de interesse nacional manter reservas minerais em terras indígenas. Nesse embate, o interesse nacional foi defendido pela Conage contra as mineradoras. O que mudou agora?

O mapa das terras indígenas do Brasil é eloquente: as maiores estão em áreas que até há pouco tempo não interessavam a ninguém, e são extensas justamente por isso. Povos indígenas, como os macuxis, foram levados ou atraídos pelo próprio Estado no século xviii para as fronteiras mais sensíveis do país com o objetivo de lá constituir uma fronteira viva, “uma muralha do sertão”. Hoje, são os ashaninkas do Acre que, por conta própria, rechaçam invasores madeireiros do Peru. Seja como for, foi sábia a Carta de 1988, ao ter mantido a tradição constitucional brasileira de definir as terras indígenas como propriedade da União, embora de posse exclusiva permanente dos índios. O Estado pode e deve estar presente nas fronteiras. Inclusive para defender os índios e para ser defendido por eles quando necessário.

Se continuarmos a olhar o mapa das terras indígenas, veremos que, não por acaso, nas áreas de colonização antiga, as terras indígenas são diminutas. E nas que foram ocupadas por fazendas nos anos 40, durante a “marcha para o oeste” (sul de Mato Grosso e oeste do Paraná), o conflito é permanente. Esses conflitos incessantes são, aliás, um bom motivo para manter a Funai na alçada do Ministério da Justiça, que teria maior agilidade, já que coordena a Polícia Federal, para intervir quando necessário.

Quais são os mais eficientes blocos políticos com que o Brasil poderia se alinhar na defesado interesse nacional? O Ministério do Meio Ambiente publicou que o valor da biodiversidade brasileira é incalculável e que os serviços ambientais que oferece, “enquanto base da indústria de biotecnologia e de atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais”, são estimados em trilhões de dólares anuais. Dada a importante atuação do Brasil no bloco dos países megadiversos, é favorável ao interesse nacional abandonar esse grupo?

Perguntaram-me há alguns dias o que eu esperava da política do novo governo. Minha resposta é esta: espero que cumpra a Constituição de 1988.


[1] Baseio-me aqui na primorosa pesquisa de mestrado em memória social de Elena Guimarães, defendido em 2015 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (uni-Rio) com orientação de José R. Bessa Freire, intitulada “Relatório Figueiredo: entre tempos, narrativas e memórias”.

As contradições da Funai em Belo Monte (ISA)

Editorial do Instituto Socioambiental

Contradições, falta de um posicionamento claro e contundente por parte da Funai quanto a importantes ações de mitigação de impactos socioambientais da usina de Belo Monte (PA), colocam os povos indígenas da região em uma situação de absoluta vulnerabilidade e incertezas. Leia o Editorial do ISA sobre assunto

O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), João Pedro Costa, enviou à presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Marilene Ramos, no dia 12/11, um ofício com a síntese da avaliação da Funai a respeito da última etapa do licenciamento ambiental da hidrelétrica de Belo Monte (PA). Cabe ao presidente da Funai neste momento recomendar ou não ao Ibama o Licenciamento da Obra no tocante ao seu componente indígena. Cabe ao Ibama ponderar as recomendações da Funai e o parecer de seus técnicos sobre outros componentes socioambientais e decidir sobre a concessão da licença de operação da usina.

O documento da Funai, por um lado, pede sanções à empresa Norte Energia, dona da obra, pelas falhas na execução do componente indígena das condicionantes socioambientais da hidrelétrica. Certifica uma lista de impactos agravados com o não cumprimento de medidas de proteção às Terras Indígena e de saúde dos povos indígenas que vivem na região. Ainda verifica as consequências das ações mal sucedidas da empresa nas áreas atingidas. Solicita a reelaboração integral da matriz de impactos da obra e das correspondentes medidas de mitigação para os povos indígenas afetados. No entanto, surpreendentemente, o ofício afirma que “todas as demais ações relacionadas ao Componente Indígena necessárias, precedentes e preparatórias para o enchimento do reservatório e para implementação do trecho de vazão reduzida (TVR) também foram integralmente cumpridas”.

A contradição entre a existência de inúmeras e graves vulnerabilidades que ainda pesam sobre os povos indígenas e o indicativo de que é possível iniciar o enchimento do reservatório foi denunciada na imprensa e coloca em questão o papel do órgão na proteção dos povos indígenas da região. A Presidência da Funai posicionou-se hoje sobre as reportagens publicadas (veja aqui). O posicionamento da Funai sinaliza positivamente ao Ibama, no tocante ao componente indígena, para a emissão da Licença de Operação de Belo Monte, que permitirá o enchimento do reservatório e o inicio da geração de energia, mesmo sem haver as condições necessárias para enfrentar os impactos da finalização da obra.

A usina está em fase final de instalação, já tendo iniciado os planos de demissão de trabalhadores e desarticulação dos canteiros. Os Estudos de Impacto Ambiental da obra preveem para esta fase um aumento da população desempregada e pressões sobre recursos naturais das Terras Indígenas e Unidades de Conservação, com possibilidade de grave acirramento de conflitos interétnicos caso essas áreas não estejam adequadamente protegidas.

O documento enviado pelo presidente da Funai aponta que o Plano de Fiscalização e Vigilância das Terras Indígenas não foi executado. Faz referência ainda a obrigações de competência exclusiva do poder publico, relacionadas à garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas atingidos pela obra que ainda não foram executadas. O exemplo mais gritante dessa situação diz respeito à Terra Indígena Cachoeira Seca. A área aguarda a homologação da Presidência da República e responde por um dos maiores índices de desmatamento do Brasil. Além das invasões de grileiros, a área tem sido palco de saques de exploração ilegal de madeireira sem precedentes (saiba mais).

Além de condicionantes estratégicas não cumpridas pelo empreendedor, existem ações complexas de responsabilidade do governo federal, que demandam articulação institucional e estão totalmente paralisadas, como os processos de retirada de moradores não indígenas das terras Apyterewa, Arara da Volta Grande, Cachoeira Seca e Paquiçamba. O próprio fortalecimento da Funai na região é uma questão de extrema importância que está sendo desconsiderada pelo presidente da instituição. Ao invés de reforçar a estrutura física e de profissionais que atuam na sede da Funai em Altamira, face aos inúmeros desafios colocados por Belo Monte, a Funai sofreu uma redução do número de servidores de 72%, entre os anos de 2011 e 2015, passando de 60 para apenas 23 servidores.

A dívida de Belo Monte com os povos indígenas do Xingu é grande e está sintetizada no Dossiê Belo Monte: Não há condições para a Licença de Operação, assim como no parecer técnico da Diretoria de Licenciamento da Funai emitido em setembro.

A falta de um posicionamento mais claro e contundente por parte da Funai, neste momento, quanto a importantes ações de mitigação de impactos socioambientais e de estruturação do órgão na região, coloca os povos indígenas numa situação de alta vulnerabilidade para encarar esses impactos negativos da usina apontados pelos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) para a fase de operação do empreendimento.

(Instituto Socioambiental)

Do the Amazon’s Last Isolated Tribes Have a Future? (New York Times)

Shuri, known as Epa, goes back and forth between his tribe and rural communities on the Curanja River in Peru’s Amazon region. CreditJason Houston 

HIS name is Shuri, but everyone calls him Epa, which means father in the indigenous Pano language family. His wizened face and bare, gnomish feet are familiar to the villagers who live along the Curanja River, which flows through some of the densest rain forest of Peru’s vast Amazon region.

Most of Epa’s tribe remains deep in the jungle, unclothed, hunting with bows and arrows, picking medicinal plants to ward off illness, and avoiding outsiders. But such isolated peoples can no longer depend on the forest as a refuge. In the past year, throughout the Amazon, they have begun to emerge in settled areas in unpredictable, disturbing and occasionally violent ways, often because of hunger or desperation.

I met Epa at his camp just upstream from the last village, where the unbroken jungle begins. He boasts of his hunting prowess. But he also wears a soccer shirt and nylon shorts and spends time among and near the settled people on the river — indigenous people, only a generation or two removed from forest life, who have welcomed him into their villages.

Last October, the villagers traveled in wooden canoes to vote in local elections. When they returned, one hut had burned to the ground and many of the machetes, clothes, pots and pans, mosquito nets, hammocks and drying fruits and nuts in villages along the river were gone. Epa, who had stayed behind, admitted that he had set fire to the hut, saying it was an accident, but denied any other involvement. Villagers blame his tribe for the raid.

Villagers have spotted the people they call “the nakeds” stealing fruit from orchards. Even the clothes on scarecrows go missing. Some villagers suspect that the mild-mannered Epa is a spy, feeding intelligence to his tribe.

In other parts of the rain forest, violence by and against once-isolated people is suddenly on the rise. In May, just outside the Manú National Park south of the Curanja, a man from the isolated Mashco Piro tribe shot an arrow that killed a 20-year-old indigenous villager. Last year, several members of Peru’s isolated Xinane group waded across a river to seek help at a Brazilian settlement. A few of their relatives, they said, had died when they were attacked, possibly by drug traffickers.

There are other groups living beyond the reach of the global economy, in places like the Andaman Islands in the Indian Ocean and the mountains of New Guinea. But the planet’s largest and most diverse isolated cultures are centered in the Amazon, primarily in western Brazil and eastern Peru. They lack immunity from many Western diseases, modern weapons to defend themselves from armed intruders like drug smugglers and illegal loggers, and a voice in national politics.

They have good reason to stay hidden. European and African diseases killed tens of millions of Native Americans after Columbus landed. A century ago, thousands were coerced into working for the rubber barons. Even seemingly benevolent outsiders proved angels of death. In the 1950s, a visiting German ethnographer left behind a pathogen that killed some 200 people.

Anthropologists and nongovernmental organizations warn that drug trafficking, logging, mining and petroleum extraction, along with a changing climate, vanishing species and a shrinking forest, put these tribes at risk. Even TV crews searching for “uncontacted” natives pose a threat; according to a 2008 report by a Peruvian anthropologist, one crew that strayed beyond its permitted area has been implicated in the deaths of some 20 native people from flu.

The indigenous people who remain appear to be fighting among themselves for dwindling resources, like turtle eggs and piglike peccaries. Lifting his shirt, Epa showed me a scar on his torso — inflicted during an attack by tribal enemies, he said. He and his two wives and a mother-in-law live part time in their camp, close to a guard post staffed by indigenous people. He said he had avoided having children because he was always on the run.

Brazil and Peru have taken radically different approaches toward isolated peoples. For Brazil, which has pursued the sort of engagement pioneered by late 19th-century missionaries, the Amazon has long been a frontier to be tamed. Officials built small frontier posts in the jungle, planted gardens and let tribes gather the harvest. Enticed into contact, the isolated people would trade ornaments and forest products for metal tools and objects, and be drawn gradually into the labor force.

But abrupt contact with outsiders spread devastating disease and created debilitating dependence. The Nambikwara, for example, were about 5,000 strong around 1900. By the late 1960s, only 550 remained. Anthropologists and Brazilian frontiersmen called sertanistas likened the policy to genocide. One of them, Sydney Possuelo, who went on to head the isolated tribes unit of Funai, the Brazilian agency on indigenous affairs, persuaded the government in the late 1980s to impose a policy of no contact to protect the isolated peoples.

Recently, however, Brazil has slashed funding for Funai. Angry Brazilian anthropologists, indigenous groups and sertanistas cite the Amazonian land rush as the reason. Once land is protected, it cannot be sold to private or public developers. Under President Dilma Rousseff’s leadership, approval of applications to set aside land for indigenous peoples — both isolated and not — has virtually ceased.

Peru, by contrast, has only recently admitted that its isolated peoples even exist. It traditionally looks to the Pacific rather than its rain forest hinterland. Nine out of 10 Peruvians live in the Andes or along the coastal plain, but most of the country’s land is within the Amazon basin. As recently as 2007, Alan García, then the president, dismissed “the figure of the uncontacted native jungle dweller” as a fiction created by zealous environmentalists.

Since then, as evidence of their existence has become impossible to dispute, the government has moved to set up five reserves, covering an area larger than Massachusetts, as safety zones for the tribes, with more planned. But even if a reserve is created and adequately policed, petroleum companies can explore for and extract oil if it is considered in the national interest. “The region has seen massive death of isolated peoples due to contact with oil prospectors,” said the Peruvian anthropologist Beatriz Huertas.

Both nations see the Amazon as a treasure house of oil, timber and gold. Two continentwide projects crossing Brazil and Peru — the $2.8 billion, 1,600-mile Interoceanic Highway and the Chinese-sponsored $10 billion, 3,300-mile Twin Ocean Railroad — will no doubt stimulate both economies, but at a steep cost. The railroad, which China’s premier, Li Keqiang, lobbied for during a May visit to South America, would plow through tropical savanna and thick forest, cutting across Peru’s remote Madre de Dios region, home to hundreds of indigenous communities.

Development can’t be halted, but it can be carried out more intelligently and humanely than what happened in the 19th century in the United States. We know what works. Small frontier posts on rivers can protect reserves from intruders. Immunized health care workers can provide emergency care and snuff out potential epidemics among isolated peoples who emerge for help. Illegal loggers and miners can be prosecuted. Road and railroad construction and oil prospecting can respect the borders of reserves and parks. None require a huge financial investment. They do require an inclusive political approach and an awareness of history.

Last month the Peruvian government announced that it would help a small group of Mashco Piro that has appeared more than 100 times in the past year on the banks of the Madre de Dios River, the same group responsible for the May death of a villager. Tribe members accepting food and clothing from tourists and missionaries are at serious risk of disease and death, and villagers fear more violence. Advocates of isolated peoples are watching closely to see if Peru can ensure the long-term health of the Mashco Piro while protecting their land from outsiders.

Half a millennium after Columbus arrived, we have an opportunity — really one last chance — to avoid repeating the catastrophes endured by so many native peoples in the Americas. This is no longer the 19th century: We have more than enough information. We understand pathogens and can immunize those who might contact isolated peoples. We can acknowledge that some people don’t want to join the global economy. And we can protect them until they are ready to enter the modern mainstream, while extracting the resources that we need. We don’t have to commit another genocide.

Esqueça mitos coloniais: o contato dos Xatanawa no Acre põe fim a uma resistência centenária (Blog do Milanez)

Por Felipe Milanez e Glenn Shepard

Reproduzido em ,

07/08/2014 19:52

indios-isolados-acre

O que está por trás do contato com os sete indígenas de uma população que vive de forma autônoma na Amazônia

No Blog do Milanez

Eles são jovens. Todos saudáveis. Corpos esbeltos, cabelos bem cortados, algumas leves pinturas no rosto. Carregam arcos e flechas bem feitas, bem apontadas, com as penas impecavelmente cortadas. Portam um cinto de casca de envira, que utilizam para segurar um machado, e amarram o pênis nesse mesmo cinto. Imitam animais da floresta com perfeição e cantam belas melodias características das sociedades falantes a língua pano, como as músicas dos Kaxinawa e dos Yawanawa que se pode escutar em CDs. Por trás dessa bela aparição de jovens indígenas que tomaram coragem e decidiram passar a interagir com a violenta sociedade que os cerca, estão terríveis histórias de massacres – um provavelmente recente, e suspeita-se perpetrado por um narcotraficante.  A história do “contato” dos Xatanawa é uma extraordinária história de resistência.

Vídeos e fotografias sobre a chegada de um povo tido como em “isolamento voluntário” em uma aldeia do povo Ashaninka, no Acre, tem provocado comoção nas redes sociais, questionamentos, comentários racistas, e ganharam atenção da imprensa nacional e internacional e da televisão. Dois vídeos divulgados com exclusividade no blog do jornalista Altino Machado romperam com o silêncio da Funai, muda sobre os riscos do contato e apenas expressando-se em notas à imprensa cheias de mistérios. A notícia saiu desde o Jornal Nacional ao britânico Guardian.  Tem merecido manchetes de portais sensacionalistas até revistas científicas como a Science. Quase sempre, a história dos massacres e da resistência dessa população é deixada em um segundo plano para dar espaço ao sensacionalismo, exotismo e colonialismo da relação com essa nação indígena.

Ideias tais como “emergiram da floresta” ou “saíram do isolamento”, “um grupo de índios isolados da civilização” que estão “vindo até nós” contribuem muito mais para esconder o real significado desse processo de aproximação e interação em curso. Nas caixas de comentários há sempre a surpresa pelo machado, terçado, a espingarda, ou a “carteira do Corinthians” portada pelos indígenas. “Será que a FUNAI vai, também, demarcar o Itaquerão?”

Essa perspectiva etnocêntrica contribui para se deixar de lado a responsabilidade dos Estados brasileiro e peruano em protegerem e dar garantias para que essa população possa continuar vivendo livre – e se quiserem, mesmo contra o Estado.

Fronteiras de sangue

As câmeras que mostram os jovens indígenas poderiam também apontar para o outro lado dessa fronteira: o tráfico de cocaína do Peru, maior produtor mundial, e suspeito de ter cometido um massacre contra essa população; para a indústria madeireira peruana, ilegal e predatória, que abastece os Estados Unidos de mogno, também suspeita de violência e massacres por ali; para a indústria madeireira brasileira que falsifica documentos, mesmo no Acre, e está explorando o entorno das terras indígenas, e é uma das campeãs de conflitos e mortes; para a exploração de petróleo e ouro, avançada no Peru e em processo de prospecção no lado brasileiro, que contamina vastas áreas de floresta; para as obras de infraestrutura na América Latina, pelo IIRSA, e também o PAC, que impactam e destroem ambientes e vidas humanas que não são levadas em contas nas planilhas.

Foi somente após o contato desse grupo que fala língua da família Pano, e que a princípio se autodenominam Xatanawa segundo identificou um dos intérpretes, é que o governo brasileiro decidiu liberar recursos para a construção e manutenção de quatro bases de fiscalização da Frente de Proteção Etnoambiental Envira. Foi feita a promessa de R$ 5 milhões e mais recursos de emergência para que não ocorram mortes decorrentes do contato. Essa população passa a viver uma situação de vulnerabilidade epidemiológica em razão de baixa imunidade a diversas doenças. Tempos atrás, metade iria morrer nos próximos meses. Será que agora é possível fazer diferente? Algumas experiências como o contato com os Korubo, em 1996, no Vale do Javari, e com os Arara da Cachoeira Seca do Iriri, em 1987, mostra que é possível, se houver uma equipe organizada, evitar epidemias e mortes.

Acontece que para se construir equipe e estrutura é necessário a chamada “vontade política”: ou seja, o governo cumprir a lei e destinar recursos. As quatro bases de fiscalização que foram agora prometidas já eram uma demanda antiga do sertanista José Carlos Meirelles e passou a ser também de seus jovens sucessores na Frente de Proteção Etnoambiental Envira, da Coordenação Geral de Índios Isolados, no Acre, como o dedicado indigenista Guilherme Daltro Siviero.

Há anos Meirelles e outros indigenistas, como Terri de Aquino, alertam sobre a possibilidade de um eventual contato nessa área com um povo em isolamento voluntário. E alertam para a chance de um provável desastre humanitário. No entanto, isso nunca serviu para acordar os burocratas da chefia da Funai, do Ministério da Justiça e do Ministério do Planejamento. Mais fácil deixar sangrar em campo os dedicados funcionários, e depois culpá-los por “despreparo” como alega reportagem recente publicada no jornal britânico Guardian. Como o próprio Meirelles desabafou em entrevista concedida à Revista Terra semana passada: “Ou faz, dando estrutura, ou o estado brasileiro diz: tudo bem, mais um genocídio no meu currículo.”

Em 2007, já com suspeita de que um contato eventual poderia ocorrer com a vinda dos indígenas, Meirelles alertou em entrevista para Felipe Milanez sobre os riscos que ele temia: “Não temos condições de prover saúde e dar assistência, seria um massacre.” O risco agora é de um massacre epidêmico após essa população ter relatado que sofreram um massacre por um grupo fortemente armado.

Portanto, esses jovens Xatanawa que habitam as cabeceiras do Envira são conhecidos há tempos pelo Estado brasileiro. Meirelles montou a primeira base de fiscalização na confluência do rio Envira com o igarapé Xinane em 1988. Ele já havia mapeado a região e encontrou esse ponto com equidistância do território de diferentes povos nessa situação de isolamento, em uma posição intermediária com as comunidades Ashaninka e também bem localizada para controlar a subida do rio: a partir dali, subindo as águas do Envira, estaria vigiado o acesso pela água.

A proteção do lado brasileiro da fronteira passou a ser eficiente. E pelo lado peruano, passou a piorar após os anos 2000, quando Meirelles começou a perceber os resíduos da exploração madeireira no lado de lá, como tambores de combustíveis, sacos plásticos e pranchas de mogno descendo o rio. Se vinham todas essas tralhas de acampamentos ilegais, por que não poderia descer o rio também, por exemplo, uma carteira do Corinthians ou um machado boiando cravado numa tora, objetos encontrados com os Xatanawa?

Ameaças e riscos desde o início da década

O sertanista Meirelles e seus colegas na Coordenação de Índios Isolados e Recente Contato passaram a denunciar a situação de ameaça ao indígenas em isolamento na fronteira do Brasil com o Peru, região do Paralelo 10, no início da década. Em 2004, Meirelles foi atacado por um grupo Mashco Piro, levou uma flechada no rosto e quase morreu. Já desconfiava ele que a agressividade dos Mashco poderia estar relacionada com violência contra eles na região. Em 2005, um grupo de indígenas passou em aldeias e nas casas de ribeirinhos para se apropriar de alimentos e ferramentas. Meirelles tentou recursos do governo para repor esses equipamentos e tentar lançar, em sobrevoos, ferramentas próximo às aldeias dos isolados.

As madeiras de sangue, como chamamos a exploração ilegal e predatória de madeiras nativas, cada vez mais penetrou nos territórios dessas populações indígenas autônomas. Nos anos de 2006 e de 2007 foram feitas denúncias internacionais da invasão de madeireiros peruanos no território brasileiro, que atingiam tanto comunidades Ashaninka quanto o território dos isolados. Nessa crise, durante uma reunião interministerial, um diplomata brasileiro falou sobre a necessidade de denunciar o Peru na Organização Mundial do Comércio.

Meirelles costumava dizer a amigos: “cada caixão de mogno nos Estados Unidos deveria vir com uma placa: aqui jaz um índio isolado que foi morto para essa madeira vir até aqui enterrar um americano”.

Na segunda metade da década, com a eminência do contato, e durante processos de reestruturações da Coordenação Geral de Índios Isolados (que passou também a trabalhar com os povos de Recente Contato – CGIIRC) em 2006, que passou a se falar, internamente no ambiente sertanista, da necessidade urgente de se constituir equipes preparadas para o contato. Em reunião interna da coordenação, em 2010, essas equipes foram longamente discutidas: elas deveriam sempre contar com a presença de um tradutor e agentes especializados de saúde.

Assim é que pelo menos há uma década é que a possibilidade de um contato é tida como grande na Funai. Mesmo assim, a sucessão de chefes na pasta, desde Sydney Possuelo, Marcelo dos Santos, Elias Bigio, e hoje, Carlos Travassos, nunca conseguiram aumentar o orçamento e romper os entraves burocráticos interministeriais para o treinamento de equipes.

Desenvolvimentismo e os impactos que não aparecem nas planilhas

O advento do PAC, em 2007, trouxe novas pressões, que foram ampliadas com o PAC 2 em 2010. As Frentes de Proteção Etnoambiental foram duplicadas. Passaram de seis para as atuais 12 e a proteger 30 milhões de hectares. Em 2010, foi feita uma proposta para ampliação do orçamento da CGIIRC para 5 milhões de reais. No entanto, não veio a resposta do governo. Agora em 2014 o orçamento foi de R$ 2,3 milhões, e grande parte foi gasto para as operações de desintrusão da Terra Indígena Awá, no Maranhão, onde o povo indígena Awá também vive risco de genocídio. Na hora de realizar as operações no Xinane para salvar os Xatanawa, faltou recurso.

Não é apenas dinheiro que o governo nega para os sertanistas. Faltam recursos, gente e estrutura. E não é apenas com relação às populações em isolamento, esse é apenas um reflexo exposto da caótica política indigenista do atual governo, violenta de diversas formas contra os povos indígenas. Uma breve leitura no diagnóstico do relatório do Conselho Indigenista Missionário serve para expor o tamanho da tragédia em curso. A política de saúde indígena é uma tragédia geral, e a Funasa – atual Sesai –, desde que foi desmembrada da Funai no início dos anos 1990, nunca formou uma equipe especial para os contatos, nem para o contato com os Karubo, no Vale do Javari, em 1996, nem com os Piripkura, em 2007: em ambas as situações os sertanistas da Funai tiveram de se virar como puderam convidando enfermeiros conhecidos e amigos.

Dar condições de trabalho e assumir a proteção aos povos indígenas em isolamento voluntário determinada pelo Estatuto da Funai (Decreto 7778) (“proteger os povos indígenas isolados, assegurando o exercício de sua liberdade, cultura e atividades tradicionais”) é uma regra muito pouco seguida no último século, desde que Rondon fundou o Serviço de Proteção ao Índio. Infelizmente, os vídeos recentemente divulgados mostram funcionários da Funai dedicados, mas sem os planos discutidos pela própria Funai de dispor de equipe de saúde especializada e treinada, junto de equipe de interpretes e sertanistas. Um dos indigenistas usava um corte de cabelo que assustou os índios, sem intérpretes, falam em portunhol, diziam “não” quando isso não significa nada (em Kayapó a palavra “nã” quer dizer “sim”, por exemplo). As equipes foram deslocadas às pressas, com aperto financeiro e estresse. A base Xinane, que poderia prover alimentos como banana, mandioca e frutas, estava abandonada.

A questão é que a história desse contato deve se repetir nos próximos anos em diferentes partes da Amazônia, como com um grupo Korubo isolado, no Vale do Javari, no Amazonas, ou com um grupo Yanomami, em Roraima, ameaçado por garimpos ilegais. Não são situações em que o Estado provoca o contato, como durante o desenvolvimentismo da Ditadura, por exemplo, o caso dos Panará, atingidos pela BR 163, ou os Arara, na rota da Transamazônica. Mas é difícil acreditar que, hoje, o Estado brasileiro esteja preparado para dar proteção a essas comunidades que estão sendo vencidas pelas violentas frentes de expansão.

Dentro da CGIIRC há planos de constituição de equipes treinadas e preparadas. Mas é preciso multiplicar por dez o orçamento, segundo estimativa dos sertanistas, facilitar a contratação de mateiros e pessoas treinadas em campo e descontigenciar os gastos para que possam ser aplicados nas situações de urgência e de forma condizente com a necessidade de custos dessas regiões remotas.

O histórico: quem são os Xatanawa, ou Chitonahua, os “isolados do Envira”?

Os sete sobreviventes enfrentaram o medo do contato e visitaram a comunidade Simpatia do povo Ashaninka para pedir comida e materiais. Como não falavam a mesma língua, o encontro foi tenso. Apenas após a chegada de dois intérpretes Jaminawa (ou Yaminahua na grafia peruana) que a comunicação foi estabelecida. A língua que falam é um dialeto do Jaminawa, o que permite fluência na comunicação. Suspeitava-se a partir das fotografias e vestígios materiais da presença, com base em sua localização e adornos corporais, que estes indígenas pertenciam a um grupo falante da língua Pano isolado. Os intérpretes confirmaram essa filiação linguística e sugeriram que eles estão relacionados com o Chitonahua do Peru (escrito ‘Xitonawa’ na ortografia brasileira), porém eles se chamam “Xatanawa”, que significa: “Povo Arara”.

Alguns anos atrás, um pequeno grupo de cerca de 15 Chitonahua, fugindo de conflitos semelhantes com madeireiros, em 1996, refugiou-se ao longo do alto rio Minuya, no Peru. Estavam sendo atacados por madeireiros de mogno: a mencionada indústria madeireira de sangue. Dois jovens do grupo tinham ferimentos provocados por tiros de espingarda. Quase a metade do grupo havia morrido por doenças misteriosas que eles atribuíam a feitiçaria, mas que no entanto incluía gripe, malária e outras doenças contagiosas.

Os Chitonahua por sua vez são muito próximos dos Yora ou Nahua do alto rio Manu e do rio Mishagua, do Peru. Trata-se de um grupo guerreiro e resistente, que ganhou as manchetes internacionais, em 1983, quando atacaram um grupo de fuzileiros navais peruanos que acompanhava o então presidente do país Fernando Belaúnde (1912-2002). A comitiva dirigia-se para as cabeceiras do rio Manu para inaugurar a parte peruana da rodovia Transamazônica. Há uma fotografia famosa que mostra o presidente Belaúnde ao lado de um soldado com uma flecha Nahua no seu pescoço.

Essa resistência Nahua foi, em grande parte, responsável por impedir o que teria sido um projeto de estrada ecologicamente desastroso no coração da primeira e mais famosa área protegida do Peru, o Parque Nacional de Manu. No entanto, com intensa prospecção petroleira no seu território pela Shell Oil, e a recente invasão de madeireiros, os Nahua foram finalmente contatados em 1985. Em dez anos, a população foi reduzida quase pela metade, principalmente devido a doenças introduzidas.

Como os Chitonahua e, antes, os Nahua, o grupo que recentemente apareceu ao longo do rio Envira também contraiu doenças respiratórias e foi necessário tratamento médico de emergência.

Narcotraficante português é o principal suspeito de massacre

Os sete indígenas Xatanawa que vieram até a aldeia Ashaninka no Acre são verdadeiros sobreviventes. Eles detalharam aos intérpretes o crime de genocídio que teria sido cometido contra eles. A suspeita, pelas descrições físicas feita pelos indígenas, é que o massacre teria sido liderado por um narcotraficante português chamado Joaquim Antônio Custódio Fadista, com cerca de 60 e poucos anos.

Fadista organizou a invasão da base Xinane da Funai, em 2011, liderando um grupo fortemente armado. Desde então, a base Xinane foi desativada. Além do risco aos servidores, houve também limites orçamentários e de direitos trabalhistas. Acontece que Fadista foi duas vezes preso dentro do território indígena, em março e em agosto de 2011. Na primeira, pela PF, foi extraditado e retornou à região. Depois, pela polícia civil, foi liberado em seguida. Foi condenado por tráfico pela Justiça do Maranhão e do Ceará, e também em Luxemburgo e procurado pela polícia peruana. Impune no tráfico e, a princípio, até então, impune na prática de genocídio que deve ser investigada.

Na época, o sertanista José Carlos Meirelles enviou um e-mail para os “companheiros de luta e família” no qual dizia: “Como todos sabem a nossa base do Xinane foi invadida por um grupo paramilitar peruano, onde foi preso por uma operação da polícia federal, um único integrante. O famoso Joaquim Fadista, que já tinha sido pego aqui por nosso pessoal, foi extraditado e voltou. Com um grupo de pessoas cuja quantidade não sabemos.”

Carlos Travassos, coordenador de Índios Isolados na Funai, já suspeitava, na época, da prática de violência por fadista. Ele havia relatado, em 2011, para este blog:  “Esses caras fizeram correria (como se chamavam as matanças de indígenas na época dos seringais) de índios isolados. Decidimos voltar para cá por conta de acreditarmos que esses caras possam estar realizando um massacre contra eles”.

Despois de capturado, foi encontrado em posse de Fadista pontas de flechas dos índios isolados e levantou-se ainda mais a suspeita do genocídio. Não houve investigação policial da denuncia dos sertanistas da Funai, nem no Brasil, nem no Peru. A descrição dos Xatanawa do massacre, segundo servidores da Funai, bate com a descrição física de Fadista, com a quantidade de pessoas e possíveis armamentos. O tráfico de cocaína vem a somar-se à indústria madeireira ilegal e a extração ilegal de ouro como as maiores ameaças físicas e diretas aos povos em isolamento voluntário na região.

Nações livres e autônomas: o isolamento como estratégia

Nas conversas entre os Xatanawa e os intérpretes também foram informados detalhes da existência de pelo menos oito populações indígenas isoladas que residem nesta remota região de fronteira entre Brasil e Peru, praticamente ao longo da linha do 10º paralelo sul.

Esses e outros grupos em situação semelhante hoje têm, de fato, conscientemente adotado o isolamento como uma estratégia para sobreviver em face da violência e da doença que foram levadas para essas regiões remotas durante o ciclo da borracha, entre 1895 e 1915. Na verdade, as primeiras referências ao Chitonahua remetem a 1895. Antes das correrias dos seringais, violentos massacres, esses grupos não eram “sem contato”. Estas sociedades participavam de intensas redes regionais, culturais e comerciais, amplos mecanismos de comércio interétnico, de trocas e  de casamentos. Por esta razão, o termo “isolamento voluntário” foi cunhado pelo antropólogo Glenn Shepard em um relatório de 1996 sobre o estado de grupos isolados no Peru.

Shepard cunhou o termo “grupo indígena em isolamento voluntário” em virtude de avistamentos de índios nômades, nus, “sem contato”, no Rio de las Piedras e regiões próximas, na bacia do Madre de Dios no Peru onde a Mobil estava realizando prospecção para gás e petróleo. A ideia do termo era justamente para tentar superar as noções românticas e falsas geradas por termos como “índio não-contatado” de grupos na “Idade de Pedra” que tinham vivido numa espécie de Jardim de Éden até o presente.

A realidade é que os grupos autônomos remanescentes na Amazônia hoje são descendentes de grupos que, em resposta aos massacres, exploração e epidemias sofridos especialmente durante a Época da Borracha em adiante, escolheram o isolamento radical de todos os outros povos ao seu redor como último recurso para a sobrevivência. Nenhum grupo humano, em condições normais, vive isolado dos outros grupos ao seu redor: na Amazônia são testemunhadas na arqueologia e na etno-história grandes redes de troca que alcançavam desde as regiões mais remotas da Amazônia até os capitais de grandes civilizações andinas e até a costa do Peru.

O isolamento é, portanto, um fenômeno recente na etno-história desses povos. E também altamente “moderno”: o “isolamento voluntário” desses grupos é uma resposta à inovação tecnológica essencial da modernidade, o automóvel, e à demanda que isso criou nos mercados internacionais para borracha nativa da Amazônia no início do século XX. A industrialização provocou violência e o isolamento foi uma resposta a isso. Em certo sentido, esses povos que são tidos na imprensa sensacionalista como sendo da “Idade da Pedra” são tão modernos quanto qualquer outra pessoa em qualquer cidade, pois vivem o impacto dessa modernização. A verdade é que essa modernização distante trouxe para estas regiões terror, violência, mortes, massacres, escravidão. “Isolar-se” transformando o modo de vida para o nomadismo, buscando refúgio em regiões distantes nas cabeceiras dos rios – onde não havia seringa – e evitar aproximação com a sociedade do entorno é, no fundo, uma estratégia política.

Contato e diplomacia: é preciso respeitar os Xatanawa

Em 1910, o Marechal Candido Rondon escreveu que “Os índios não devem ser tratados como propriedade do Estado dentro de cujos  limites ficam seus territórios, mas como Nações Autônomas, com as quais queremos  estabelecer relações de amizade”

As expressões correntes para designar essas relações diplomáticas e categorizar essas populações, sejam as correntes da imprensa, ou do governo, ou as da academia, são todas problemáticas e carregadas de preconceito. Primeiro, a própria ideia de classificar essas populações diversas em si é um limite e implica numa tentativa de dominação. Segundo, chamar de “isolados”, ou mesmo “autônomos”, significa dizer que há aqueles que não estão isolados, ou seja, nós, uma perspectiva etnocêntrica e preconceituosa, e a ideia de autonomia exclui toda a pressão externa e o interesse de algumas dessas por tecnologias, como machados, facões, armas de fogo.

A final, essas populações, como os Xatanawa, vivem mais ou menos onde sempre viveram, podendo ter adaptado seu território para se proteger das diferentes pressões que surgiram nos últimos séculos. O fato é que há 77 evidências de existir populações nessa situação de “isolamento voluntário”, uma situação em que passam a ser vulnerabilizadas a epidemias a partir do aumento das interações.

Ao longo do século passado, surgiu a função dos sertanistas como defensores humanitários dos povos indígenas. Foi o marechal Candido Rondon quem deu essa conotação para a palavra – que até então designava os matadores de índios, como os bandeirantes. E a profissão se tornou uma especialidade do indigenismo para o contato com povos “arredios”, “bravos”, “isolados”, a partir do trabalho dos irmãos Villas Bôas na Fundação Brasil Central – que depois em 1967 passou a fazer parte da Funai, junto do Serviço de Proteção ao Índio.

Em toda a história dos contatos, seja durante a Ditadura, seja antes, os sertanistas, como os Villas Bôas ou Chico Meireles, trabalhavam em condições sofríveis, com urgência para evitar o pior. A diplomacia sertanista consistia em se posicionar à frente das “frentes de expansão” para proteger os índios das guerras travadas pelos seringalistas, fazendeiros, pecuaristas, garimpeiros, ou do próprio governo, como no caso da construção de obras de infraestruturas, tais como a Transamazônica. Em 1987, por iniciativa dos sertanistas, liderados por Sydney Possuelo, foi criado o Departamento de Índios Isolados, e os processos de contatos passaram a ser evitados. A escolha passaria a ser dos povos indígenas. E o Estado brasileiro, através dos sertanistas, deveria realizar a proteção dos territórios para que essas populações que vivem de forma autônoma do Estado possam continuar a viver do jeito que desejam.

Essa política, hoje, vive um esgotamento, ao mesmo tempo que é mais garantida pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT. O esgotamento é que os planos desenvolvimentistas do governo não são alterados se eles impactam um território habitado por uma população nessa situação. Cria-se uma terra indígena, destinam-se recursos, mas se a Coordenação geral de Índios Isolados disser que não é possível realizar o empreendimento, é difícil imaginar, hoje, que ele não saia do papel por isso. E há 33 empreendimentos do PAC que impactam diretamente o território de povos indígenas considerados “isolados”, desde as usinas de Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires, São Luiz do Tapajós, até estradas e hidrovias. Se o empreendimento for produzir risco de destruição do território e um consequente genocídio, ele não deve ocorrer. Acontece que, como declarou o sertanista José Carlos Meirelles, parece que o Brasil não tem vergonha de acrescentar genocídios ao seu currículo.

At Last! Brazil Begins Long-Awaited Operation to Save Earth’s Most Threatened Tribe (transcend.org)

BRICS, 3 March 2014

by Survival International – TRANSCEND Media Service

More than six months after the Brazilian army moved in to tackle illegal logging outside the land of the Awá, the Brazilian government has now started a major ground operation to evict illegal invaders from inside the Awá's land.

More than six months after the Brazilian army moved in to tackle illegal logging outside the land of the Awá, the Brazilian government has now started a major ground operation to evict illegal invaders from inside the Awá’s land. © Globo TV

After months of campaigning by Survival International, Brazil’s government has launched a major ground operation to evict illegal invaders from the land of the Awá, Earth’s most threatened tribe .

Soldiers, field workers from Brazil’s indigenous affairs department FUNAI, Environment Ministry special agents and police officers are being dispatched to notify and remove the illegal settlers, ranchers and loggers – many of whom are heavily armed – from the Awá indigenous territory in the North-Eastern Brazilian Amazon.

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The operation comes at a crucial time as loggers are closing in on the tribe and more than 30% of the forest has already been destroyed.

In June 2013 Brazil’s military launched a ground operation against illegal logging around the land of the Awá. The forces closed down at least eight saw mills and confiscated and destroyed other machinery, but they did not remove the loggers and ranchers from inside the Indians’ land.

An Awá man told Survival, ‘For a long time we’ve been asking for the invaders to be removed… we don’t want to see the loggers destroying our forest. We like to see the forest standing.’

Army helicopters and trucks move in as part of the operation. © Globo TV

Army helicopters and trucks move in as part of the operation. © Globo TV

This break-through operation follows a high-profile campaign by Survival International, which has been backed by celebrities such as Hollywood stars Colin Firth and Gillian Anderson, UK fashion designer Vivienne Westwood and Brazilian photographer Sebastião Salgado, who recently visited the tribe to document their plight.

Salgado’s images and the Awá’s shocking story reached millions of people worldwide as they were featured in Vanity Fair, the Sunday Times and Brazilian news outlet O Globo.

Since the launch of the campaign in April 2012, Survival’s supporters have sent more than 55,000 letters to Brazil’s Minister of Justice, urging him to evict the invaders, and have spread the campaign’s awáicon logo around the world’s landmarks, such as Brazil’s Sugarloaf Mountain, South Africa’s Table Mountain, San Francisco’s Golden Gate Bridge and the Eiffel Tower in Paris.

The Inter-American Commission on Human Rights, the Americas’ leading human rights body, alsodemanded answers from the Brazilian government, having received an urgent petition from Survival and Brazilian NGO CIMI.

As a result of the global campaign, the Awá were put at the top of FUNAI’s priority list in April 2012, but it has taken the government until now to start evicting the illegal invaders, while more forest has been destroyed.

The Awá are one of the last nomadic hunter-gatherer tribes in Brazil and depend entirely on the rainforest. They have been finding it increasingly difficult to find game and are scared to go huntingfor fear of encountering the armed loggers.

Around 100 Awá are uncontacted and are particularly vulnerable to attacks and the spread of diseases to which they have little immunity.

Survival has welcomed the start of the evictions operation, and is now urging the Brazilian authorities to put in place a long-term solution to stop the invaders from returning, and to guarantee the safety of the 450-strong tribe.

Survival’s Director Stephen Corry said today, ‘This is a momentous and potentially life-saving occasion for the Awá. Their many thousands of supporters worldwide can be proud of the change they have helped the tribe bring about. But all eyes are now on Brazil to ensure it completes the operation before the World Cup kicks off in June, and protects Awá land once and for all.’

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Note to editors:

– Download a timeline of Survival’s campaign to save the Awá (pdf, 92 kb)

Act now to help the Awá

Your support is vital if the Awá are to survive. There are many ways you can help.

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