Arquivo da tag: Teatro

entrevista | O sonho como modo de fazer política e como estado de criação (Cult)

Welington Andrade

Revista Cult, edição 292

entrevista | O sonho como modo de fazer política e como estado de criação
Foto: Bob Sousa

Duas semanas antes de completar 86 anos, no dia 30 de março, o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa recebeu a Cult em seu apartamento, no bairro do Ibirapuera, em São Paulo, para falar de seu mais novo projeto: a adaptação para o palco do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Embora sem a mesma agilidade física de antes, Zé Celso continua imbatível na forma como articula rapidez de raciocínio e destreza verbal. Depois de encenar em 2022, último ano do governo Bolsonaro, uma adaptação do Fausto, de Cristopher Marlowe, na qual o trágico herói “revirava na encruzilhada” daquele Brasil, vislumbrando como saída paródica que o país fosse de todos e Exu estivesse no través de tudo, o diretor quer, neste primeiro ano do governo Lula, falar dos Yanomami a fim de não somente denunciar o massacre que eles vêm sofrendo, como também chamar a atenção para o modo como eles fazem política – através dos sonhos. Uma atividade essencial para as culturas ancestrais.

Você está adaptando o livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, para o teatro. Fale um pouco de como está se dando esse processo, por favor.
Há cinco pessoas reunidas no projeto: o dramaturgo Fernando de Carvalho, o arquiteto e iluminador Pedro Felizes [mestre em Antropologia Social, com dissertação sobre os Pirahã, de Roraima], o ator Roderick Himeros, o maestro Felipe Botelho e eu. Estamos trabalhando juntos, diariamente, desde o dia 1º de fevereiro. Houve outras pessoas que começaram, mas desistiram. É dificilíssimo porque o livro é enorme. Tem 729 páginas e 24 capítulos. Nós estamos na metade, no capítulo 12. Praticamente, a adaptação de cada capítulo leva de dois a três dias, porque eles são muito grandes, com coisas maravilhosas. Nós fazemos uma espécie de garimpagem… (Ao terminar de usar uma expressão tão comum, Zé tem um sobressalto e rapidamente se corrige). Não se pode falar de garimpagem em relação aos Yanomami, não é? A gente faz uma espécie de peneira e vai ficando com as coisas mais fortes. Porque não dá para fazer tudo. Aliás, a impressão é que vai ficar maior do que Os sertões. De toda maneira, não queremos dividir o trabalho em partes como eu fiz com o livro do Euclides. Queremos fazer um espetáculo só. A gente só vai poder planejar o espetáculo depois de pronta a adaptação. Pelo menos a primeira versão. É muito apaixonante o livro. Muito bem escrito. Davi Kopenawa não usa pele de papel, como ele fala, mas concordou em gravar para o Bruce Albert inúmeras conversas sobre essa nação – eu considero uma nação – de cultura riquíssima, os Yanomami. No postscriptum [“Quando eu é um outro (e vice-versa)”], o antropólogo francês relata como o livro foi feito. Primeiramente, eu pensei em adaptar essa parte também para o espetáculo, mas decidi que esse material irá para o programa.

O que o mobilizou na leitura do livro? Por que você resolveu trazê-lo para o universo do teatro?
Faz tempo que eu estou querendo adaptá-lo. Desde a primeira vez que li, eu fiquei muito impressionado porque é uma obra grandiosa. É uma obra do nível de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha. É extraordinária, e universal. Por isso, está fazendo sucesso, inclusive, no mundo inteiro. Em novembro do ano passado, eu participei da mesa de abertura da Festa Literária da Morada do Sol [FliSol], em Araraquara, ao lado de Ignácio de Loyola Brandão (nós dois somos de lá). Então, o Eryk Rocha, filho do Glauber, me disse que no dia seguinte haveria uma conversa com o Kopenawa. Eu já o tinha visto falar várias vezes. Aí, durante a conferência, eu perguntei se ele não me daria os direitos de adaptação do livro para o teatro. Ele disse que me daria. E me deu. Então, comecei a trabalhar. O processo todo deve durar mais uns dois meses. O livro é lindo, mas complexo. E muito variado também porque há vários aspectos nele. É um livro muito bem montado pelo Bruce Albert.

Você chegou a pensar no risco de apropriação cultural nesse trabalho?
Não vai haver apropriação indevida. Eu vou trabalhar com os Yanomami. Eu não vou trabalhar com atores fazendo o papel dos indígenas. Quero inclusive convidar um daqueles rapazes yanomamis que foram à cerimônia do Oscar entregar a estatueta de Omama, que não é feita de ouro, às atrizes e aos atores vencedores. Ele falou em yanomami. Uma pena que não tenham filmado isso. O elenco será indígena. Serão quatro atores indígenas a fazerem o Davi nas diferentes fases da vida dele. Inclusive uma criança e um adolescente. Eu nunca trabalhei com atores indígenas. Será a primeira vez. Os atores brancos vão fazer os garimpeiros e os missionários, os antagonistas. Felipe Botelho, o maestro, já está estudando a música yanomami, e a ideia é convidarmos músicos yanomamis para fazerem parte do espetáculo. Uma banda yanomami estará no palco. Provavelmente, na dramaturgia eu terei a consultoria de alguém especializado na cultura indígena. No último dia 15 de março de manhã, a Unifesp concedeu o título de doutor honoris causa ao Kopenawa. No mesmo dia, à tarde, o Sesc Vila Mariana o homenageou, abrindo o evento “Efeito Kopenawa”, do qual participaram o Ailton Krenak e a Manuela Carneiro da Cunha, entre tantos outros ativistas importantes. A direção artística da cerimônia ficou a cargo da atriz e pesquisadora da relação entre teatro e povos indígenas Andreia Duarte. Eu participei da abertura do evento e li o primeiro capítulo do livro. O Kopenawa foi muito simpático e me disse: “Você é velhinho, e muito inteligente”. (Risos.)

Como o livro se relaciona com a poética do Oficina?
Eu não penso nisso. A poética do Oficina está em nós que estamos cuidando da adaptação. Mas talvez o elenco de atores brancos não seja necessariamente do Oficina, porque a Camila [Mota] e o Marcelo [Drummond], por exemplo, estão envolvidos em outros projetos.

Para além das coisas específicas de que tratam os espetáculos dirigidos por você, eles também falam sempre das urgências do Brasil…
Pois é, e os Yanomami não são brasileiros. Eles moram no Brasil, mas vieram muito antes dos portugueses.

E nós estamos acabando com eles…
Mas agora com o governo Lula as coisas tendem a melhorar. É um governo muito favorável.

Você está otimista com o governo Lula?
Sim. O ministério dele é luxuoso. Agora temos uma liderança indígena no Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e a Anielle Franco como ministra da Igualdade Racial e o Silvio Almeida como ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania e a Marina Silva como ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Nesse setor, o governo está maravilhoso. O “povo da mercadoria” não dá valor pra isso. Nem nota, mas isso está sendo extremamente importante. Eles trabalham para um outro Brasil. Um Brasil que não atende ao que quer o mercado nem a grande imprensa. Veja o caso da Folha de S.Paulo, que, depois de ter sido por muito tempo um jornal democrático, com a saída do Jânio de Freitas, mudou muito, endireitou. Meu projeto no Oficina era montar Heliogabalo ou O anarquista coroado, de Antonin Artaud. Eu e o Fernando de Carvalho fizemos uma adaptação da peça, publicada pela editora n-1. Mas depois eu achei que nesse momento não cabe. É o momento de trabalhar as questões mais urgentes que estamos vivendo no Brasil hoje. E a grande questão para mim é a crise dos Yanomami. E a presença dos garimpeiros na região. E de seus financiadores. Os garimpeiros ganham miseravelmente, mas o que eles produzem é comprado pela alta burguesia. É a lógica do capitalismo. Ali na terra yanomami há muito capital investido, tanto do garimpo como das missões religiosas. É a fome, a miséria. É Auschwitz. Eu quero fazer esse espetáculo para marcar as transformações tão grandes que estamos vendo surgir no Brasil neste primeiro ano do governo Lula.

A segunda parte – “A fumaça do metal” – talvez seja a mais impactante do livro porque há a denúncia do que está ocorrendo de mais terrível com eles.
O capítulo que fala do massacre é impressionante, porque tem um tratamento bem brechtiano. Primeiramente, ele demonstra que os indígenas ficaram felizes com a chegada dos garimpeiros, porque ganhavam presentes deles. Até que os garimpeiros se enjoam dos yanomamis e começam as agressões, que culminam no massacre. Kopenawa evidencia muito bem o caminho da relação entre os dois grupos, que é muito clara, muito didática. Bem ao estilo de Brecht.

O que nós podemos aprender com os Yanomami? E com Davi Kopenawa?
Tudo. Ele vive na floresta e toma yãkoana, que é um alucinógeno. Ele viaja com os xapiri, que são entidades que ele vê. Praticamente, tudo com o que sonha ele toma como orientação para a vida social. Ele não se baseia na economia, no planejamento. A política dos Yanomami é baseada no sonho, e isso é muito bonito. É uma coisa muito diferente da gente. Eu os entendo, porque durante muitos anos tomei substâncias alucinógenas – ayahuasca, mescalina, peyote – para criar. Eu criei muita coisa. E passei a acreditar muito mais nos sonhos surgidos dessas viagens. E eles moldaram meu trabalho. Por exemplo, um espetáculo como As três irmãs foi todo moldado em torno de alucinógenos. Eu me lembro de que nós fomos para a praia de Bangoracea, em Ubatuba, vestidos com os figurinos da peça e tomamos mescalina. Depois, ficamos nus e fomos para o mar e tivemos uma visão pontilhista. Todos nós estávamos pontilhados. Nós nos demos as mãos, enfiamos as mãos na areia e começamos a ser massageados pela areia, sendo envolvidos por uma profusão de cores. Foi uma das experiências mais fortes que eu tive na vida. Eu entendo a yãkoana, porque quando eu tomava essas substâncias todas eu sonhava muito, mas sonhava com o teatro. Os Yanomami se baseiam em todos os sonhos alucinógenos como se fossem a constituição deles. Eles partem daí e se organizam através dos sonhos. Eu conheço esse estado de criação.

Zé, você faz um teatro que podemos chamar de sapiencial. Um teatro que parte de um profundo entendimento sobre as coisas e que procura transmitir um saber ancestral à plateia. Você seria uma espécie de xamã do teatro brasileiro?
Não sei… Na cultura yanomami, o xamã transforma o que sonha em realidade política. Eu fui desenvolvendo a percepção das coisas em que eu acredito. As minhas peças são a materialização dos sonhos. Se eu não sonho, eu não consigo fazer uma peça. Tenho origens indígenas e também sou muito ligado à cultura negra, ao batuque. Eu gosto muito. Eu ganhei de Mãe Stella de Oxóssi, do candomblé na Bahia, a honraria de “Exu, senhor das artes cênicas”. É um título que me enche de orgulho.

Conhecer o xamanismo pode nos levar a experimentar outros modos de subjetivação?
Sim. E é bonito no livro como o próprio Kopenawa passa por vários processos de identidade. Primeiro, ele quando criança sonha muito e acorda assustado com os sonhos. O padrasto dele, então, vê nisso uma espécie de predestinação para o xamanismo. Não é qualquer indígena que se torna um xamã. O xamanismo é um processo corporal e psíquico a partir da ingestão da yãkoana, o pó da casca da árvore, que leva à viagem alucinatória na qual se veem os xapiri. No espetáculo, inclusive, a gente vai fazer aparecer os xapiri. Nós vamos materializar muitos sonhos dele. Depois, é de uma delicadeza incrível o modo como ele conta que queria ser branco. Ele conta isso com poesia, mas depois sai dessa. Ele passa por vários processos, de acreditar no deus cristão, por exemplo; de acreditar na Funai. Ele vai para a Funai porque ele tinha o desejo de ser branco. E ele não conta nada disso com rancor. É sempre por meio da subjetividade. A subjetividade nessa cultura é muito importante. E resulta na alteridade guerreira.

Como a sua adaptação vai lidar com a imagem apocalíptica: o céu haverá mesmo de cair?
Os Yanomami trabalham para o céu não cair, porque na concepção deles o céu já caiu uma vez. Mas onde ele caiu nasceu a floresta. E na floresta eles trabalham para evitar que o céu novamente caia. É cíclico. Eles sonham com colunas onde moram os espíritos que são bem fincadas na terra e sustentam o céu. A criação dessa imagem no Oficina vai ser muito interessante. A cosmologia indígena está muito ligada à vida cotidiana. A gente aprende muita coisa com eles. E se identifica também. Minha avó era uma indígena que foi capturada pelos bandeirantes em Porto Ferreira. Depois, foi viver em Araraquara (arará kûara, em tupi antigo) e se casou com meu avô português. Já minha bisavó era uma índia louca, que ficava rolando na cama… Eu tenho essas questões já há muito tempo. Quando li o livro, me identifiquei. E ganhei mais experiência. Esse livro está escrito na minha vida. E no meu corpo. Mas é muito difícil. É o desafio maior da minha vida.

Maior do que O rei da vela?
Não tem comparação! N’O rei da vela, o Renato Borghi leu o texto e me disse “vamos embora!”. E eu fui com ele. Os sertões foi muito trabalhoso, mas era sobre um Brasil que a minha geração estudou. Já A queda do céu fala de um outro Brasil, e de um não Brasil. É muito diferente de uma peça norte-americana, francesa, russa. É uma outra subjetividade.

Há no trabalho ecos oswaldianos?
Sem dúvida. Começa que o prefácio do livro foi escrito por Eduardo Viveiros de Castro, cujo trabalho dialoga muito com o do Oswald. O Oswald deu uma importância fundamental ao “tupy or not tupy, that’s the question”. Ele entendeu a questão indígena. A queda do céu é uma peça oswaldiana. Se Oswald estivesse vivo, estaria trabalhando conosco.

Bob Sousa, fotógrafo, mestre em Artes pela Unesp e membro do júri de teatro da APCA, é autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).

Opinião – Dirce Waltrick do Amarante: Coleção mostra pioneirismo indígena no teatro brasileiro (Folha de S.Paulo)

www1.folha.uol.com.br

Caixa reúne 11 textos teatrais de representantes de povos de várias partes do Brasil

Dirce Waltrick do Amarante

7 de outubro de 2023


[RESUMO] Pioneiros do teatro feito no Brasil, ainda que suas práticas culturais não se enquadrem nos conceitos da estética ocidental, os indígenas encenaram suas narrativas em espetáculos que fundem, sem distinções, música, dança, religião e ritos, por exemplo. Caixa recém-lançada agrupa e mostra a variedade desses textos, compondo, segundo organizadores dos livros, uma visão descolonizadora a respeito das diferenças culturais entre os povos.

Uma das primeiras perguntas que faço nas minhas aulas no curso de artes cênicas da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) é: “Onde nasceu o teatro?”. A resposta, ainda que titubeante, costuma ser: “Na Grécia”.

Essa provocação me permite citar um trecho de uma aula magna ministrada em 1992 pelo escritor Ariano Suassuna: “Em qualquer manual de teatro escrito no Brasil, vão encontrar que o teatro no Brasil surgiu com os jesuítas, o teatro de Anchieta no século 16. E encontra também que o teatro, em geral, nasceu na Grécia”. Suassuna prossegue: “Ora, o que nasceu na Grécia foi o teatro grego! Acho uma coisa tão lógica, mas o pessoal bota: o teatro nasceu na Grécia. Quer dizer, o teatro brasileiro nasceu na Grécia, o início do teatro chinês foi o teatro grego? O teatro brasileiro, olhe aqui, o teatro brasileiro nasceu […] aqui”.

O teatro brasileiro, concordo com Suassuna, nasceu aqui, e, acrescento, com os indígenas, ainda que as práticas artísticas e culturas indígenas não se encaixem facilmente em conceitos da estética ocidental. A palavra teatro, de origem grega, tem sido usada, porém, para nomear a arte extraocidental.

De acordo com Patrice Pavis, em “Dicionário de Teatro”, o conceito pode ser abrangente: “O teatro é mesmo, na verdade, um ponto de vista sobre um acontecimento: um olhar, um ângulo de visão e raios ópticos o constituem. Tão somente pelo deslocamento da relação entre olhar e objeto olhado é que ocorre a construção onde tem lugar a representação” (tradução de Maria Lúcia Pereira, J. Guinsburg, Rachel Araújo de Baptista Fuser, Eudinyr Fraga e Nanci Fernandes).

Uma das características da cultura indígena seria a não separação entre música, dança, pintura, rito, religião, história, política etc. Se essas práticas são classificadas em gêneros estanques, em espetáculos, exposições e publicações de obras dos povos originários, isso não provém dos próprios autores, mas obedecem à lógica que estrutura as instituições e também o mercado.

O termo mito, assim como o termo teatro, passa atualmente por revisão. No livro “As Línguas da Tradução”, organizado pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC e pela Universidade de Princeton, os pesquisadores Pedro Cesariano e Jamille Pinheiro Dias propõem o conceito de arte verbal na análise das narrativas indígenas. Já Joana Mongelo, doutoranda de etnia guarani, emprega, em outras publicações, a locução história viva no lugar de mito, para enfatizar o vigor e a atualidade dos relatos dos povos originários.

Tanto a arte verbal como a história viva poderiam se encaixar no conceito abrangente de teatro, tal como foi proposto por Pavis.

Pedro Cesarino, ao descrever o processo de tradução de “yawa shõka, canto para amansar os porcos do mato”, lembra que “esses cantos acompanham eventos que não acontecem dentro do corpo-maloca do xamã que os enuncia, mas sim em posições paralelas nas quais interagem as espíritas auxiliares Shoma e os demais agentes antagonistas (espíritos agressivos, por exemplo)”.

Quando Cesarino recolheu o canto, ele havia sido entoado na forma de um rito que poderíamos chamar de teatral e religioso, durante o convalescimento de um jovem caçador: “Enquanto o jovem era rezado, Antonio [Brasil Marubo], por sua vez, cantava outro shõki sozinho sobre um pote contendo fezes, pelos e pedaços de terra com os rastros das queixadas […]. Ao final, o pote seria então pendurado na porta da maloca, a fim de atrair os porcos que, de fato, se aproximaram da aldeia em grande número no dia seguinte, rendendo uma farta caçada”.

Por isso, a tradução da arte verbal impõe grandes desafios. Na versão de certos cantos bororos, Sérgio Medeiros propôs, em um de seus livros de poesia, uma recriação pessoal do “Canto de Caça às Antas”, com a seguinte observação: “Não pude traduzir o variado vocabulário bororo, em especial a minuciosa enumeração dos diversos gaviões. Meu ponto de partida é a versão ‘rústica’ de César Albisetti e Ângelo Jayme Venturelli. Os cantos de caça e de pesca, convém lembrar, são entoados sempre na choupana central, na noite que precede uma caçada ou uma pescaria coletiva”.

“Dessa cerimônia participam as mulheres da aldeia, que são então autorizadas a entrar na casa dos homens para louvar a beleza dos animais. Cada canto tem um chefe, o qual é, segundo os autores da enciclopédia bororo, o indivíduo que inicia e guia o ritual, postando-se de pé e marcando o ritmo com um par de pequenos maracás. Outros índios reforçam o ritmo com um tamboril e instrumentos de sopro.”

A pesquisadora Jamille Pinheiro Dias aconselha ser “preciso evitar ao máximo os empobrecimentos na recepção da performance ritual pela escrita alfabética”. É preciso também, diz Pinheiro, “tomar consciência de que muitas vezes se estará lidando com ‘textos-fontes’ que só se tornaram audíveis porque houve um árduo processo de aprendizado físico e intelectual, além de negociações com seres não humanos, donos dos cantos, espíritos mestres de diferentes patamares do cosmos, como nos ensinam os especialistas indígenas da Amazônia.

Por tudo isso, a seguinte afirmação recente do escritor e ator Daniel Munduruku causa consternação: “Eu que inventei a literatura indígena, isso não existia, sou pioneiro“. Não estaria ele reproduzindo o mesmo discurso do Ocidente em relação à “invenção” do teatro?

Nos palcos, os povos indígenas vão aos poucos ganhando protagonismo e canibalizando não só o conceito de teatro ocidental, como também o de dramaturgia, área em que colaboram com autores consagrados.

Zé Celso, por exemplo, trabalhava na adaptação de “A Queda do Céu”, a partir dos relatos de Davi Kopenawa, antes do acidente que o vitimou. A primeira leitura pública da peça foi apresentada em 2023 na terceira edição do TePI (Teatro e os Povos Indígenas), em São Paulo, com curadoria de Ailton Krenak e Andreia Duarte.

Na mesma ocasião foi lançada a “Caixa de Dramaturgias Indígenas“(n-1 edições), organizada por Trudruá Dorrico e Luna Rosa Recaldes. Ela contém 11 textos teatrais, assinados por indígenas de várias partes do Brasil, além de estrangeiros, oriundos do Chile e da Argentina. Algumas dessas peças trazem a colaboração de não indígenas.

Segundo as organizadoras, se trata do “primeiro compilado de dramaturgias dos povos originários publicado no Brasil, até onde sabemos”. Dorrico e Recaldes enfatizam o fato de o projeto ser político, uma vez que “o gênero teatro foi utilizado pelos jesuítas, sob o nome de auto, para moralizar e catequizar os povos indígenas. Sabemos que catequizar foi o mesmo que colonizar”.

Assim, a caixa “propõe uma descolonização acerca das diferenças culturais entre os povos, suas cosmogonias, transmutando a percepção equivocada do ser indígena como único e homogêneo”.

Reunindo pequenos livros muito diversos entre si, a caixa apresenta peças em que o português se mistura com línguas indígenas. A peça “Contra Xawara”, de Juão Nyn, é escrita em português, mas coloca o “português de ponta cabeça, transformando o Y em Oka”.

Uma boa parte das peças, para usar um conceito ocidental, poderia ser considerada pós-dramática, no sentido dado por Hans-Thies Lehmann: “O novo teatro, de acordo com o que ouvimos e lemos, não é isto, não é aquilo e nem é outra coisa: predomina a ausência de categorias e palavras para a determinação positiva e a descrição daquilo que ele é. Pretende-se aqui levar tal teatro um passo além e estimular métodos de trabalho teatrais que escapem da concepção convencional sobre o que o teatro é ou precisa ser” (tradução de Pedro Süssekind).

A segunda cena de “Silêncio do Mundo”, dramaturgia de Ailton Krenak e Andreia Duarte, é quase uma conferência de Krenak, recém-eleito para a academia brasileira de letras.

Ele conta que, com Davi Kopenawa Yanomami, visitou Atenas (o berço do teatro para muitos). Foram à Acrópole, ao Arco de Adriano e ao Templo de Zeus: “Chegamos lá perto do mar Egeu, numa ruína, com aquelas colunas quebradas, com pedra caída para todo lado, restos de antigos templos tombados no chão e um mar lindo à nossa vista”.

Eles contemplavam a paisagem quando lhes perguntaram o que haviam achado desse lugar. Kopenawa se adiantou e respondeu: “Eu gostei de vir aqui, porque agora eu sei de onde saíram os garimpeiros que vão destruir a minha floresta, fuçar a minha floresta como se ela fosse pó. O pensamento deles está aqui. Eles fizeram isso aqui e foram fazer o mesmo lá onde eu vivo. Eles reviram a terra, eles quebram tudo”.

Krenak então comenta que esse cenário em ruínas oferece “a completa compreensão daquele tempo mítico em que os antigos gregos viveram, quando o Olimpo era um lugar de trânsito de seres divinos, bem como da passagem daquele lugar para um lugar histórico, onde você faz monumentos, constrói templos, constrói cidades e faz guerras. É a transição do tempo do mito —tempo em que é possível tudo, em que é possível que os mundos se intercambiem— para um mundo chapado, com uma história linear”.

Talvez o rito indígena atualize o vigor das origens do teatro cada vez que um mito é encenado numa aldeia, numa praça, num palco.

Crise climática é crise de classes, diz ator britânico que aponta racismo no debate (Folha de S.Paulo)

www1.folha.uol.com.br

Na peça ‘Can I Live?’, Fehinti Balogun, com rap, animação e poesia, apresenta a colonização e a exploração de países africanos como temas centrais na discussão

Cristiane Fontes

2 de novembro de 2022


Foi em 2017, durante a preparação para a peça “Myth”, uma parábola climática da Royal Shakespeare Company, que o artista Fehinti Balogun acabou se dando conta da gravidade da crise do clima.

“Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história”, lembra o ator e dramaturgo britânico. “E, pela primeira vez, percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes”, completa.

Com isso, veio o choque: “Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada”.

Balogun se juntou ao grupo ativista Extinction Rebellion, participou de diversos protestos e organizou uma palestra sobre o tema. Essa jornada o levou à produção de uma peça teatral que, durante a pandemia, foi transformada em um filme.

O ator britânico Fehinti Balogun, que criou a peça ‘Can I live?’, sobre mudanças climáticas. Fonte: New York Times/Tom Jamieson, 29.out.2021

Intitulada “Can I Live?” (posso viver?), a produção explica as mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra, usando diversas performances musicais.

A mãe de Balogun, imigrante nigeriana, é quem guia a história. Fora da tela, também foi ela quem inspirou a criação do texto, a partir de questionamentos ao filho —que ele gravou secretamente para escutar de novo e pensar a respeito.

“Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?”, ela perguntava.

Mesmo discordando, o filho reconheceu na indignação da mãe um ponto muito importante: a discussão climática ficou elitizada e branca e ainda não foi capaz de incluir os segmentos mais pobres da população.

“Can I Live?”, pelo contrário, se propõe a não só trazer os dilemas pessoais do autor, que se misturam aos problemas mundiais e aos dados científicos, como é didática e criativa ao explicar, por exemplo, o efeito estufa em forma de rap. Criado com a companhia de teatro britânica Complicité, o filme mescla linguagens como animação, poesia e música.

“O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas”, define Balogun.

Depois de uma turnê online, o filme foi exibido em eventos como a COP26 (conferência da ONU sobre mudanças climáticas realizada em 2021 na Escócia) e a London Climate Action Week.

A ideia, diz Balogun, é fazer “Can I Live?”, que ainda não foi lançado no Brasil, chegar a movimentos de base, para estimular conversas sobre a crise climática entre aqueles que não costumam se conectar com o assunto.

Quando perguntado sobre a agenda climática no Reino Unido, o autor é categórico: “Temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria. Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser”.

Quando e por que você se envolveu com a agenda da crise climática?

Após ter feito muitas coisas, consegui meu primeiro papel principal numa peça no West End em Londres. Era o ano mais quente da história, depois de outro ano ter sido o ano mais quente da história, depois de o último antes disso ter sido o mais quente… E, pela primeira vez, eu percebi que as plantações estavam morrendo, os campos estavam secos. Comecei a desenvolver uma espécie de ansiedade que nunca tive antes. Eu tinha o trabalho que eu sempre sonhei, algo que eu tinha estudado para fazer, e, de repente, isso não significava nada.

Então comecei a tentar me envolver em diferentes projetos e me juntei ao [grupo ativista] Extinction Rebellion. E comecei a discutir tudo com minha mãe, que perguntava: “Por que você está sacrificando sua carreira para fazer parte desses grupos?”. E eu pensava: “Não, essa é a única coisa importante que estou fazendo”. E nós continuamos discutindo muito isso tudo.

Eu gravei secretamente tudo o que ela me disse, peguei os pontos importantes dela e transformei numa apresentação sobre o clima, porque percebi que meu papel era poder usar meu privilégio de ser um ator e ter essa formação.

Eu não sou de uma família particularmente rica. Cresci sem muito dinheiro, morando em habitação social, e o que eu tenho agora é devido ao meu trabalho como ator, aos meus contatos e a todas essas perspectivas diferentes. Então eu montei essa palestra, que é como um TED Talk, usando as mensagens de voz da minha mãe.

Esse trabalho decolou, uma coisa levou à outra e começamos a trabalhar em uma peça, que depois virou um filme, “Can I Live?”. Foi assim que essa jornada climática de repente tomou conta da minha vida.

Sua mãe é a verdadeira estrela do filme. Quais foram as coisas importantes que ela levantou sobre o assunto?

Muitas. Uma delas é exatamente o que significa resistir quando você é uma minoria, e o que significa para a sua criação. Isso afeta não apenas o seu futuro, mas também a ideia que foi passada a pessoas como minha mãe, minhas tias, meus tios sobre o que é o “bom imigrante”.

Não é algo que ela tenha me dito explicitamente, mas que eu intuí de tudo o que ela estava me dizendo. Você não é capaz de reagir porque tem sorte de ter o que tem, entende? Ela dizia: “Há pessoas que estão esperando para entrar no país. Há pessoas que estão esperando conseguir a cidadania. E você acha que eles vão criticar aquele país que diz que eles não deveriam estar lá?”.

Para o público no Brasil que ainda não teve a chance de assistir ao filme, como você o descreveria?

Basicamente, o filme é uma explicação das mudanças climáticas a partir da perspectiva de uma pessoa negra. O objetivo é criticar descaradamente o sistema, sem culpar uma pessoa específica. Não se trata de envergonhar as pessoas, mas, sim, de educá-las e conectar-se com elas.

Eu quero que as pessoas assistam e vejam a si mesmas no filme todo ou em algumas partes, ou que vejam sua mãe ou sua avó ou seus amigos nas conversas. O filme tinha como objetivo levar as pessoas por essa jornada histórica até onde estamos agora e descobrirem o que podem fazer.

Colocamos o filme para distribuição online durante a pandemia. As pessoas pagavam o que podiam. A ideia era tentar torná-lo o mais acessível possível. Não foi algo como: “Ei, nós fizemos uma obra de arte!”, mas ela é exibida num teatro muito metido onde as pessoas se sentem desconfortáveis e têm dificuldades para acessar.

A ideia foi descentralizar esta obra e distribuí-la para o maior número de pessoas possível, e oferecê-la a movimentos de base, para que pudessem exibi-lo e conversar a partir disso e incluir nessas conversas pessoas que não costumavam se conectar.

A propósito, como envolver nas questões climáticas pessoas que estão lutando para sobreviver?

Acho que a coisa mais importante que aprendi sobre me comunicar com as pessoas é que você precisa ir ao encontro delas. Você não pode chegar em alguém esperando que essa pessoa tenha o seu mesmo nível de entusiasmo ou raiva, ou desgosto, ou desdém, porque todo mundo tem algo acontecendo em suas vidas.

O que temos no sistema é que constantemente nos dizem que temos que consertar algo individualmente, e que é nossa culpa individual. O fato de você estar passando por tanta insegurança alimentar é porque você não trabalhou duro o suficiente, ou porque 20 anos atrás você não economizou isso, ou fez aquilo. E se você tivesse feito todas essas coisas, você estaria bem e a culpa é sua e blá, blá, blá.

Você tem de olhar para essa questão de um ponto de vista estrutural. Estrutural e espiritual. Eu posso despejar todas as minhas ideias sobre estrutura e coisas de ativismo em cima de você, mas, no final das contas, se seu prato está cheio, seu prato está cheio; você já chegou no seu limite. A questão é muito mais profunda, e é muito solitário e difícil saber que você tem muitos problemas que precisa consertar. No final, o que está mesmo no centro disso é ter uma comunidade.

E como você descreveria o debate sobre mudanças climáticas no Reino Unido no momento?

Essa é uma pergunta difícil! Agora no Reino Unido temos um governo que não está levando isso tão a sério quanto deveria e que nunca levou o racismo tão a sério quanto deveria.

Temos toda uma economia baseada num histórico de escravidão que não é debatida. Então, dentro das escolas, apagamos essa história. O que aprendemos neste país não está nem perto do que deveria ser, na verdade. Mas, se estivermos falando de pensamentos e sentimentos em relação às mudanças climáticas, as pessoas sabem disso, embora não saibam o que fazer.

Na COP26, no ano passado, você participou de eventos com artistas e ativistas indígenas brasileiros. Como o discurso deles ecoou com você e no Reino Unido?

A COP é um evento decepcionante, via de regra. Não me inspirou nem um pouco. O que foi inspirador foram todos os ativistas que estavam lá e pessoas diferentes de muitos países diferentes, fazendo coisas incríveis e falando sobre tantas coisas. É uma comunidade muito forte.

Mas é muito difícil no Reino Unido. O patriotismo está apenas conectado a um ponto de vista ideológico e imperialista do mundo, que diz: “Eu sou superior a você”. Então por que aprender com aquele ativista brasileiro diferente? Já os indígenas eram o oposto disso. A mensagem deles era: “Estes somos nós! E vamos compartilhar isso com vocês! Vamos proteger isso para as gerações futuras!”.

Na sua visão, como fortalecer o movimento global de justiça climática, considerando o atual contexto político?

Parte do movimento dos direitos civis estava ligado à educação, à educação em massa e para certas comunidades. A ideia não é trabalhar com o medo, mas sim trabalhar através do medo para chegar a soluções.

Então, para fortalecer o movimento, [precisamos de] educação em massa, especificamente em certas zonas; e precisamos que diferentes movimentos de base se unam.

Em termos de mudança na narrativa, quais são as estratégias que você considera mais importantes?

Precisamos mudar a narrativa sobre riqueza e propriedade. Nós realmente precisamos entender que a crise climática é uma crise de classes, e dentro dessa crise de classes, há uma interseccionalidade muito racista.

Simplesmente entender essas coisas eu acho que vai ajudar muito; e é muito difícil, porque dentro do ideal capitalista, [a economia] só funciona se você sentir falta de alguma coisa. Eles só podem vender maquiagem para você se você acreditar que precisa de maquiagem. Eu não estou dizendo que as pessoas não devem usar maquiagem, mas, sim, que você só vai comprar algo se achar que precisa daquilo.

São essas mudanças de narrativas sobre o que achamos que é necessário e o que é, na verdade, necessário.

E precisamos de bondade radical. Radical no sentido de que não somos uma cultura muito indulgente.

O debate político anda muito polarizado, inclusive no Brasil, como você deve saber. Você poderia descrever melhor a ideia de bondade radical?

O que quero dizer com bondade radical não é apenas ser radicalmente gentil com a pessoa com opiniões opostas, mas também ser radicalmente gentil consigo mesmo.

Por que estou tentando fazer com que alguém que, fundamentalmente, me odeia goste de mim? Como isso me ajuda ou ajuda a outra pessoa? No final das contas, independentemente de eles terem dito que gostavam ou não de mim, eles vão embora e eu fico com esse sentimento. A única maneira de lidar com isso é ter uma comunidade atrás de você que esteja disposta a compartilhar isso com você.

Você sabe o que isso significa? Significa se afastar da postura individual de “eu vou consertar o mundo” para algo como “estas são as pessoas que eu preciso para poder fazer isso”.

Eu sempre falo, você tem que fazer uma escolha quando você fala com alguém, especialmente com alguém com uma opinião oposta a você que não tem interesse direto no assunto, como por exemplo, racismo, sexismo, ou mesmo mudanças climáticas.

Quando a pessoa não é afetada emocional, física e praticamente pela coisa e argumenta contra você, você tem que se perguntar: “Eu tenho condições de me envolver nisso hoje? Até onde quero ir? Vou ter alguém cuidando de mim quando a conversa terminar?”. Então a bondade radical não é apenas ter um espaço para a outra pessoa: é para você mesmo.


Raio-X

Fehinti Balogun

Ator, dramaturgo, escritor e pintor britânico de origem nigeriana, nascido em Greenwich, em Londres. Além de “Can I Live?”, participou de peças como “Myth” (mito), “The Importance of Being Earnest” (a importância de ser prudente) e “Whose Planet Are You On?” (você está no planeta de quem?). No cinema, fez trabalhos como “Juliet, Nua e Crua”, “Duna” e “Walden”. Na TV, participou das séries “I May Destroy You” (posso te destruir), “Informer” (informante) e “O Filho Bastardo do Diabo”, cuja primeira temporada estreia no fim de outubro na Netflix no Brasil.

Ethnography as Improv (How to Anthropology)

NOVEMBER 02, 2015

By Cheryl Deutsch

“Anthropology is not a social science tout court, but something else. What that something else is has been notoriously difficult to name, precisely because it involves less a subject matter … than a sensibility.”

— Liisa Malkki, Improvising Theory (2007: 63)

 

In this post, I take inspiration from the book Improvising Theory to articulate three aspects of ethnographic practice that often go unnamed in anthropology.  I also follow up with the book’s authors, Allaine Cerwoncka and Liisa Malkki, to share their thoughts on doing ethnography today.

Most of the book consists of email exchanges from the year Cerwoncka spent in fieldwork as a graduate student and Malkki was her faculty mentor.  The conceit is that Malkki, an anthropologist, must explain to Cerwoncka, a political scientist, what “goes without saying” in anthropology; the customs and quirks that make up the discipline’s sensibility.  But as Malkki writes, “the ‘common sense’ of anthropology is a complicated matter,” and she struggles to articulate its nuances (2007: 163).

Through this exchange and the authors’ reflections, the book offers an intimate view of what ethnographic fieldwork is, in practice, as well as what it amounts to in theory.  Cerwoncka and Malkki conclude that it is ethnography’s improvisational nature that makes it challenging to teach but also special in its theoretical power.

Here are three insights I drew from the book and my subsequent exchange with them:

trumpet.jpg

1. Ethnography is Improvised

Improv comedy is a form of collaborative story-telling whose humor derives from the uncertainty of its own story line. Improv actors must say yes to whatever comes their way, trusting their training and adrenaline to make a story out of surprise.  The result is comedy.

Improvisational jazz is likewise a form of story-telling whose energy derives from its unrehearsed riffs on popular melodies and classic standards.  Jazz musicians construct improvised melodies out of notes that are spontaneous but not random: they have to make sense with the original song or melody.  Just playing fast, for example, is no guarantee that an improvised solo will succeed: the notes have to make emotional sense.

Both improv comedy and jazz employ skills that can be taught and practiced.  They benefit from excellent technique.  But in all forms of improvisation, training and expertise only go so far.  The rest requires a certain sensibility.

In their book, Improvising Theory: Process and Temporality in Ethnographic Fieldwork, Allaine Cerwoncka and Liisa Malkki make the case for ethnography as a form of improvisation.

As Cerwoncka reflected in an email exchange with me: “choices made about a research project are shaped out of intellectual, practical and professional considerations… [They] are inevitably made without full information and require constant adjustment and courage to follow one’s rational and intuitive best judgment.”

Courage is a key word here.  All forms of improv involve risk.  But it’s the vulnerability of such creative acts that give them heart and soul.

As recounted in the book, Cerwoncka scheduled a formal interview with a sergeant in the police station where she was conducting her fieldwork.  Before the interview, he talked openly about the groups that they, as cops, hated having to deal with.  “I acted casual about all this information,” she wrote to Malkki, “not jotting any of it down in front of him…  When I went back for the ‘real’ interview, he was much more formal and immediately asked if I wanted to tape the conversation” (2007: 85).  The formal interview had a different tone; he talked about “safe” topics like his family background, and then he was called away.

Reflecting on this experience in her email to Malkki, Cerwoncka decided not to tape further conversations with the police officers.  “It strikes me that they are in the position of taping people (in the interrogation room),” she wrote, “and their context for that is to use the information people give them against the people they arrest.  So I think the recorder will color the interviews too much” (2007: 85).

Later in her fieldwork, however, she found that one sergeant was particularly eager to set up taped interviews for her, so she continued with them.  She began to see that they helped those in the station feel more comfortable with her. “They don’t even seem to mind when I drift and ask them questions about their taste in music or whether they garden,” she wrote (2007: 120).  Hers is a lesson in improvised field practice.

Formal recorded interviews are an important tool in the ethnographer’s toolbox.  But in this exchange, we see that the ethnographer often has to make decisions about when and where, as well as how, to employ such tools in the field.  Ethnographers are also engaged in a form of collaborative story-telling with the people they interact with.  It takes attention and care for ethnography – as improvisation – to make sense.

 

two_hourglasses_big.jpg

2. Ethnography Takes Time

Improvising Theory’s greatest strength is its portrayal – in real time – of the year-long process of ethnographic fieldwork.  It illustrates not only the tempo of fieldwork but its many temporalities.  As Malkki writes in her concluding chapter to the book, “ethnography as process demands a critical awareness of the invisible social fact that multiple, different temporalities might be at play simultaneously… [There are] quotidian routines, events that become Events (see Malkki 1997), the panic time of deadlines, the elongated time of boredom, the cyclical time of the return of the expected, the spiral time of returns to the recognizable or the remembered, and so on” (2007: 177).

In their email exchange, we read about Cerwoncka’s uncertainties, her successes, as well as her false starts and trails gone cold.  It’s a messy process through which Malkki’s advice offers perspective and rhythm: some situations require action and attention, others call for patience and meditation.

Before she began her interviews at the police station, for example, Cerwoncka was unsure exactly where she would locate her research exploring Australian national identity.  So she made inroads with a gardening club and with officers at the police station, as well as with the pastor of a church.

In an early email to Malkki, Cerwoncka worried that she was contacting people from too many organizations at once and that she’d be overwhelmed with all their necessary follow-up.  Malkki responded: “Anthropological fieldwork is what you are doing, and therefore regular contact with informants should not just be a goal, but should be built into your everyday schedule.  It’s taxing, embarrassing, etc., but you need the material… Strike while the iron is hot” (2007: 54).  She encouraged her to choose the organizations she wanted to work with thoughtfully and then to make a schedule that would allow her to follow up on interactions and opportunities when they arose.

Later, Cerwoncka dropped the church as a site.  Then, when she was deep in fieldwork with the gardening club and the police officers, one of her political science advisers recommended she add a third site.  So she spent time talking to landscape architects.

At this point, Malkki advised her: “It’s important not to let the third site become something that allows you to escape the pressures of the sites in which you have deep investments already… Another related issue (related to the question of what’s the best use of your time): sometimes downtime is best, taking a week away from the fieldwork.  Then you return to things fresh” (2007: 126).

In this case, the right temporal strategy was patience and perserverance.

When I asked Malkki for her thoughts on ethnography today, she reiterated the importance of time: “If I were to add something… One point would be a warning against the overprofessionalization of graduate students in Anthropology.  Easy for me to say since I’ve got a job!  But anthropology does take time, and I think one has to have the time to ‘grow into it’ somehow without having career milestones always hovering at the edges of one’s attention.  One grows into fieldwork according to one’s temperament and in deep relation with people.  That is transformative.  And then, after fieldwork, one grows into writing.  That too is transformative.  It takes time (and simple grit).  This is very much a mind game.  There are many brilliant people – everyone knows they’re brilliant and their work truly original – but they just can’t let it go, or, sometimes, can’t get over writing blocks.  More time.  One should always be humane toward oneself (and everyone, of course).”

It seems that ethnography not only takes time but many different times: striking while the iron is hot, having patience when fieldwork gets tedious, and time for transformation in the writing phase.

3. Improvisation + Time = Theoretical Insight

Cerwoncka started grad school with the goal of becoming a “theorist,” and this book reflects that ambition.  As helpful as it is in illustrating ethnographic practice, it is equally effective in articulating ethnography’s theoretical power.

In our email exchange, Cerwoncka wrote, “Social analysts need more than description of phenomena, and this thing we call theory helps us try to identify patterns and associations.  However, ethnographic fieldwork and life has reinforced for me the conviction that theory serves us intellectually best when it is in dialogue with activity, data, and a variety of possible material.”

The email exchange with Malkki that documents her fieldwork experience bears this out: theoretical concepts help guide her research questions and observations.  It was Benedict Anderson’s concept of imagined communities that inspired her to look for national identity in the ordinary lives of Australian gardeners and police officers.  But these interlocutors – and Cerwoncka’s improvised engagements with them – also gave shape to the project.  Finally, time and distance add their own maturing effects. What results are the project’s theoretical insights.

Cerwoncka writes about this process of conceptual development in Native to the Nation, based on her dissertation research.  Writing about the police sergeant who eagerly arranged her formal interviews, she writes:  “These arrangements developed into a strange kind of ritual where each interview began with the sergeant ‘joking’ that the junior officer about to be interviewed ‘mustn’t give away the shop secrets’ before I was left alone with him or her” (cited in Cerwoncka and Malkki 2007: 90-1).  Such jests caused her quite a bit of anxiety: uncovering police brutality or corruption would put her and her research in a uncomfortable ethical position.  Only much later, in writing, did she conclude that the sergeant’s comments pointed to in-group boundary policing more so than any real “heart of darkness” within the station (2007: 91).  And it was much longer into writing that she came to believe “that there was another story one could write about the police besides a journalistic-type exposé or a romantic narrative about un-sung heroes” (2007: 92).

The theoretical insights of ethnographic fieldwork take time.  Improvisation in the field is what shakes up one’s orientation to theoretical concepts, but it can take time for that orientation to mature into new conceptualizations.

Postscript: Ethnography and Professionalization

In addition to producing theoretical insights, Cerwoncka also stressed to me the ways in which ethnography has served her as a faculty member and university administrator:

Cerwoncka: “Every time I move to a different institution, role and, or discipline, I find myself doing a version of ethnographic fieldwork!  Fieldwork taught me the techniques and instilled confidence in me to map and analyze patterns of community, be it a police station or a School of Social Sciences.  I think the professional skills I learned through ethnographic fieldwork … are as useful to me as a Dean of Social Sciences at University of East London as they were to my dissertation.”

These thoughts neatly illustrate the challenge and promise of ethnography: that one has to let go and accept in order to reap its creative potential.  Much of the advice embodied in the book revolves around the need for both confidence and acceptance.  One can’t seek out theory but can trust that it will result.  One can’t seek out professionalization but can trust that it will happen.  Just as in improv comedy there is no magic formula for making something funny, so the ethnographer that tells a compelling story can let the scene do its magic.

Thank you to Nikhil Anand for first suggesting Improvising Theory to me.  Thank you, as well, to Allaine Cerwoncka and Liisa Malkki for taking the time to share their thoughts.  And a final thanks to Ethan Hein for his explanation of improvisational jazz.

Antropofagia em cena (Fapesp)

Com mais de 50 anos de atuação, Teatro Oficina agora faz pesquisa voltada para a intervenção urbana

GUSTAVO FIORATTI | Edição 199 – Setembro de 2012

Zé Celso em cena de “A terra”, de 2001, trilogia de “Os sertões”: fundador do Oficina continua sempre presente. © MARILIA HALLA

A fachada do Teatro Oficina na rua Jaceguai – uma estreita via de acesso 
à 9 de Julho no bairro do Bixiga, em São Paulo – tem a simplicidade de uma garagem. Quando a pesada porta da entrada se abre, revela-se então uma estrutura que em nada lembra a de um teatro convencional: lá dentro, uma espécie de passarela, comprida, corre por entre duas arquibancadas de aço e madeira.

Nada de cortinas, nada de palco, nada de poltronas. Quem percorre esse corredor nota um leve declive em direção aos fundos. À esquerda, ao lado de uma das arquibancadas e já no meio do percurso, uma imensa janela 
de vidro tem vista para os edifícios do bairro.

A arquiteta italiana Lina Bo Bardi projetou o espaço nos anos 1980 para que o diretor José Celso Martinez Corrêa, hoje com 75 anos, pudesse desenvolver uma linha de trabalho que tem um pé na arena grega e outro no Carnaval. Os espetáculos apresentados ali ocupam não só a passarela; costumam espalhar-se por todos os cantos. Não raro, o lugar da plateia é também o lugar da cena, e o público entra na dança.

José Celso está sempre presente, muitas vezes em cena, com cabelos brancos 
e roupas claras. “O ‘Teato’ é uma feitiçaria que engole o enfeitiçamento geral 
com que a sociedade de espetáculos, com o fetiche da mercadoria, escraviza a humanidade. Nós queremos nos ‘desvoduzar’. Trazer sopros que invertam as equações abstratas dominantes”, diz ele.

O rei da vela, de 1967: pesquisa voltada para o teatro épico. © DIVULGAÇÃO / ARQUIVO TEATRO OFICINA

O diretor grafa a palavra teatro sempre sem o “r” – ou com o “r” entre parênteses – para conjugar a sílaba “te” à palavra “ato”. Diz que ato 
e representação não são coisas iguais, ampliando o sentido da mimese, do texto decorado, para um trabalho performático com ares de celebração dionisíaca. 
A última peça do Teatro  Oficina, Macumba antropófaga, tem esse perfil: o espetáculo começava dentro do teatro e partia para a rua. Descia a rua Jaceguai e, por entre becos, casas, ruelas da vizinhança, prosseguia com atores conduzindo performancesao som de bumbos, pandeiros e declamações.

É um momento atual do grupo, que José Celso considera fazer parte “da descoberta do teatro como intervenção urbana”. 
O que não muda é a diretriz estabelecida por uma referência fundamental: 
a obra do escritor Oswald de Andrade (1890-1954), especialmente seu Manifesto antropófago.

A redescoberta de Oswald “foi a revolução cultural mais importante da segunda metade do século XX”, diz o diretor, em referência ao movimento Tropicalista. “Ninguém o conhecida, nem Glauber [Rocha, cineasta], nem Caetano [Veloso], nem Gil [Gilberto Gil] nem o Hélio Oiticica [artista plástico]; a antena de Oswald nos ligou neste movimento definitivo de descolonização da língua, do corpo, da arte”, prossegue.

O Oficina foi fundado em 1958 por José Celso, Renato Borghi e Etti Fraser, entre outros atores. Teve uma primeira fase realista, com pesquisa fundamentada na metodologia do russo Constantin Stanislavski. Após um incêndio que destruiu o teatro por completo, o grupo encenou em 1967 O rei da vela, de Oswald. A peça marca a nova pesquisa, voltada para o teatro épico do alemão Bertolt Brecht.

“As bacantes”, de 1996, em reapresentação de 2010. © ARTHUR MAX

O grupo se desfez em parte por conta da situação política – a ditadura militar leva José Celso para o exílio, após 20 dias de prisão por conta de manifestos contra o regime – e em parte por desacordos entre os integrantes. O diretor retornou ao Brasil em 1978 e se seguiu o período da retomada de seu trabalho. Retomada lenta e gradual, agora sim articulada à parceria com a arquiteta Lina Bo Bardi.

A reabertura do repertório do Oficina ocorreu em 1991, com o espetáculo As boas, com texto de Jean Genet e com Raul Cortez no elenco. Ham-let (1993), baseado na obra de Shakespeare, e As bacantes (1996), de Eurípedes, aprofundam a inspiração na mitologia grega de Dionísio, deus dos prazeres, da loucura, do vinho, do sexo. O Oficina firma seu terreno na celebração da nudez, do corpo e da carne como ponte para um gozo espiritual.

É uma linha de pesquisa que resulta em espetáculos longos, muitas vezes com até quatro horas de duração. Assim era Cacilda!, de 1998, baseada na vida e no trabalho da atriz Cacilda Becker, e a trilogia de Os sertões, adaptação da obra de Euclides da Cunha, de modo que o original era dividido em três partes: A terra, 
O homem e A luta. Houve sessões que reuniam esses três espetáculos, com mais 
de 10 horas de duração. Uma delas foi apresentada no mesmo município da Bahia onde houve o massacre de Canudos, narrado no livro de Euclides da Cunha.