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Negros relatam que precisam ir arrumados a consultas para serem mais bem atendidos (Folha de S.Paulo)

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Racismo estrutural prejudica a população negra da atenção básica à saúde mental; profissionais sugerem mudanças na formação

Havolene Valinhos

19 de novembro de 2022


Mesmo não se sentindo bem de saúde, você se preocuparia com que roupa vestir antes de ir ao hospital ou a uma consulta médica? Ou teria receio da forma como seria tratada na hora de dar à luz por causa da cor de sua pele? Esta é apenas uma amostra do que passa pela cabeça da população negra brasileira.

Ainda criança, a trancista Sara Viana, 22, recebia o conselho da mãe de que elas seriam mais bem atendidas se chegassem ao hospital bem vestidas. “Ela falava que os hospitais públicos não atendem bem as pessoas da comunidade. Então eu poderia estar morrendo, mas pensava: tenho que me arrumar minimamente.”

Em 2020, a Sara sentiu na pele o que a mãe temia. Ela afirma que não sabia que estava com infecção na vesícula e foi levada ao hospital às pressas, de pijamas.

“Até meu cabelo estava molhado, pois chovia no dia. Percebi o incômodo da enfermeira da triagem, que nem me examinou e disse que era cólica e deu a classificação como baixo risco. Como estava com muita dor, meu pai e meu irmão me levaram para outro hospital, onde fui atendida por uma médica negra que me deu atenção. A situação era tão grave que passei por cirurgia no mesmo dia”, relembra.

Coordenadora de um grupo sobre maternidade na Casa de Marias, espaço de escuta e acolhimento para mulheres pretas em situação de vulnerabilidade social, a psicóloga Alessandra Marques diz ser comum ouvir relatos de violência obstétrica.

“Há uma ideia de que a mulher negra suporta mais a dor. É comum pacientes relatarem medo antes do parto. Já é um momento de mais fragilidade, e essa mulher pode sentir ainda mais dor porque não consegue relaxar devido à tensão.”

Como parte de um estudo publicado em 2016 e citado com frequência, pesquisadores da Universidade da Virginia (EUA) investigaram 222 estudantes e médicos residentes brancos e descobriram que mais de um terço deles acreditava equivocadamente que negros têm a pele mais espessa que brancos e, por isso, faziam recomendações menos adequadas para tratamentos contra dor. O estudo foi publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences.

Essas situações têm consequências na saúde mental e podem ser agravadas quando não tratadas. “Elas nem sempre encontram escuta qualificada. Pacientes dizem que tiveram suas falas sobre racismo ou solidão da mulher negra invalidadas quando atendidas por psicólogos brancos. Esse tipo de atendimento pode agravar mais o quadro.”

Coordenadora-geral da Casa de Marias, a também psicóloga Ana Carolina Barros Silva ressalta a importância de profissionais negros no atendimento a essa população e cita a própria experiência como exemplo. Ela conta que passou por vários dermatologistas e ginecologistas brancos até encontrar, enfim, profissionais negros que correspondessem a suas expectativas.

“A dermatologia é composta majoritariamente de pessoas brancas, que dificilmente têm formação para lidar com a pele negra e, por isso, usam protocolos que não são adequados.”

De acordo com a fisioterapeuta Merllin de Souza, doutoranda na Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), o currículo básico dos cursos de saúde não têm disciplinas obrigatórias sobre atenção à população negra. Há, contudo, uma disciplina optativa, chamada Formação do Profissional de Saúde e Combate ao Racismo.

“Esses profissionais estão sendo formados para atender os usuários do SUS, das UBSs, dos postinhos, pessoas pretas periféricas que passam por racismo estrutural?”, questiona. “Às vezes a pessoa chega num estágio grave porque não consegue ter o atendimento necessário.”

Para Souza, a formação básica do médico deixa a desejar nesse aspecto. “O Código de Ética prevê respeito étnico racial, mas a maioria dos conselhos não discute essas questões. É preciso respeitar os direitos humanos e trabalhar o letramento racial com esses profissionais”, afirma.

Ythalo Pau-Ferro, 22, cursa o quarto semestre de medicina na USP e diz que o racismo é evidente nos ambientes de saúde. “Um paciente negro que chega vomitando pode ser considerado um usuário de drogas”, critica. Como homem preto, ele afirma querer contribuir para que esse quadro mude.

A pesquisadora Ana Claudia Sanches Baptista, 34, diz que nunca foi atendida por médicos negros, com exceção de sua psicóloga. “Ela é a primeira profissional negra da área da saúde por quem sou atendida”, diz. E relata que uma vez foi constrangida por uma ginecologista, durante um exame de rotina. “As mulheres negras são consideradas parideiras. Essa médica ficou indignada por eu não querer ter filhos.”

O dentista Guilherme Blum, 31, conta que começou a pesquisar sobre a saúde bucal do homem negro porque sentiu falta dessa abordagem no curso de odontologia. “A população negra é a que mais perde dentes ou tem doença bucal, mas não se fala sobre isso”, diz ele, referindo-se a casos de dor, cárie, perda dentária e necessidade de prótese.

Blum atua no Programa Saúde da Família e relata um episódio no qual um paciente o abraçou porque sentiu identificação e conforto. “Existe um conceito subjetivo de que pessoas pretas aguentam mais a dor, o que na verdade é racismo estrutural.”

Outro atendimento que o marcou foi o de uma criança de 7 anos com a mãe. “Ela disse que ficou feliz por ter me encontrado e chorou ao lembrar que sofreu violência odontológica, tiraram muitos dos seus dentes.”

A discriminação no ambiente de trabalho também traz riscos à saúde psíquica da população negra. A enfermeira Carla Mantovan, 38, relata que passou por situações de racismo ao longo de cinco anos que contribuíram para o avanço de quadros de depressão e também de vitiligo. Ela chegou a se afastar do trabalho por um período, para cuidar do emocional, mas acabou pedindo demissão no início deste ano porque o assédio continuou após seu retorno às atividades.

“Tive que tomar essa decisão em nome da minha saúde mental, porém hoje pago um preço alto. A renda familiar caiu muito, meu marido também ficou sem emprego, e temos financiamentos atrasados e uma bebê de um ano e meio.” Ambos trabalham hoje por conta, como confeiteiros.

“Não registrei boletim de ocorrência nem gravei o que acontecia. Quando reportei aos meus superiores o que acontecia, eu não tinha provas e não validaram o que falei. E quando levei um advogado, as testemunhas se omitiram”, afirma Carla.

A psicóloga da Casa de Marias lembra que, além do racismo, as mulheres pretas enfrentam mais dificuldades no acesso a saúde, educação, moradia e emprego, o que contribui para uma vida “cada vez mais precarizada”. “Somados, todos esses elementos produzem sofrimento psíquico. Começam a surgir sintomas psicossomáticos, transtornos de ansiedade, depressão, insônia”, diz Silva.

Quanto aos homens, ela ressalta que o homem preto é cobrado para ser forte e raramente busca ajuda profissional quando o assunto é saúde mental. “Muitos buscam apoio quando já estão em um estado de surto, de depressão grave.”

The American way – How the world’s most powerful country is handling covid-19 (The Economist)

Contrary to what many Americans think, the death rate in America is about the same as in Europe

May 28th 2020 edition

Editor’s note: Some of our covid-19 coverage is free for readers of The Economist Today, our daily newsletter. For more stories and our pandemic tracker, see our coronavirus hub

AMERICA HAS passed a grim milestone: 100,000 deaths from a novel coronavirus that began to spread half a year and half a world away. Many Americans think their president has handled the epidemic disastrously, that their country has been hit uniquely hard and that there is a simple causal relationship between the two. The 100,000, which does not include excess deaths mistakenly attributed to other causes, is higher than any other country’s. It has routinely been compared with the 60,000 American casualties in the Vietnam war. A Trump Death Clock in Times Square purports to show how many lives the president’s ineptitude has cost: as we went to press it stood at 60,262. Yet this widespread conviction that America has failed because of Donald Trump is not supported by the numbers. Or, at least, not yet.

The official death rate in America is about the same as in the European Union—which also has excess deaths, but has less erratic leaders and universal health care. Overall, America has fared a bit worse than Switzerland and a bit better than the Netherlands, neither of which is a failed state. New York has been hit about as hard as Lombardy in northern Italy; California acted early and is currently similar to Germany; so far, rural states have, like central Europe, been spared the worst. This reflects two things, both of which will matter now that America is reopening before it has the virus fully under control.

The first is that covid-19, when it first hit, displayed an indifference to presidents and their plans. Around the world it has killed in large, dense and connected cities like New York, London and Paris, and where people are crammed together, including care homes, slaughterhouses and prisons. In some countries, including America, testing was snarled up in red tape.

Having seen what was happening in China, Mr Trump could have acted sooner—as Taiwan, Singapore and Vietnam did. He has failed to do things ordinarily expected of an American president in a crisis, such as giving clear government advice or co-ordinating a federal response. Instead, he has touted quack remedies and spent the days when America passed its sombre milestone spreading suspicion of the voting system and accusing a television host of committing a murder that never happened. All this is reprehensible and it may have been costly. Yet, tempting as it is to conclude that the president’s failures bear most of the blame for covid-19’s spread through America, the reality is more complicated (see Briefing).

That leads to the second feature of the country’s response to covid-19. The virus was always going to be hard on a population with high levels of poverty, obesity and diseases such as diabetes, especially among minorities (see Lexington). But, to a remarkable degree, other layers of government have adapted around the hole where the president should have been. The federal system has limited the damage, thanks to its decentralised decision-making. Lockdowns vary by state, city and county. California responded as soon as it saw cases. In the north-east governors largely ignored the White House and got on with coping with the disease, earning the Republican governors of Maryland and Massachusetts the president’s enmity, but high approval ratings. In Florida, though the governor was reluctant to impose a lockdown, county officials went ahead and did so anyway.

Contrary to demands for nationwide rules, this is a strength not a weakness, and will become more so as the pandemic runs its course. In the best-organised states, which have built up testing capacity, it helps ensure that flare-ups can be spotted quickly and rules adjusted accordingly. Because each region is different, that is more efficient than a nationwide approach.

One way democracies can deal with the virus is to draw on reserves of trust. People must behave in ways that protect fellow citizens whom they have never met, even if they themselves are feeling fine. Americans trust their local officials far more than the president or the federal government. And when it comes to public health those local officials have real power. Without this balancing feature, America might today look like Brazil, where a president with a similar love of hydroxychloroquine and distaste for face masks is wreaking havoc (see article).

If the public-health response in the United States so far matches Europe’s, its economic response to the virus may turn out better. True, the unemployment rate in America is 15%, double that in the EU. Yet in Europe most governments are protecting jobs that may no longer exist once lockdowns end rather than focusing help on the unemployed as America’s has. The EU is probably delaying a painful adjustment. Congress, not known for passing consequential legislation with big bipartisan majorities, agreed on a vastly bigger fiscal stimulus than in the financial crisis a decade ago. With a Democrat in the White House and a Republican-controlled Senate, America might not have mustered a response that was either so rapid or so large.

America still has a hard road ahead. Were daily fatalities to remain at today’s level, which is being celebrated as a sign that the pandemic is waning, another 100,000 people would die by the end of the year. To prevent that, America needs to work with the system it has, trusting local politicians to balance the risks of reopening against the cost of lockdowns.

In the next months the infrastructure built during the lockdown must prove itself. Because the virus has yet to decline in some states, it may flare up in new places, which will then need targeted lockdowns. The capacity to test, vital to spotting clusters of infection, has increased, but is still lacking in some places. Almost all the states lack the contact tracers needed to work out who needs testing and quarantining. When it considers how to withdraw fiscal support, Congress should remember this.

That America and Europe have fared similarly in the pandemic does not absolve Mr Trump. This is the first international crisis since 1945 in which America has not only spurned global leadership but, by cutting funds to the World Health Organisation, actively undermined a co-ordinated international response. That matters, as does Mr Trump’s inability to cleave to a consistent message or to speak to the country in words that do not enrage half of the population. Yet four years after Mr Trump was elected, the time to be surprised by his behaviour has long gone. Luckily, he has mattered less than most Americans think.■

This article appeared in the Leaders section of the print edition under the headline “The American way”

Manaus testemunha a ‘hora da morte’ por covid-19. “As pessoas morrem sozinhas. Sozinhas, sozinhas, sozinhas” (El País)

A médica Uildeia Galvão atua em condições precárias no PS 28 de agosto, na capital do Amazonas, um retrato do colapso que se espalha pelo Brasil

Josette GoulartSão Paulo – 01 may 2020 – 17:28 BRT

Uildéia Galvão, médica de Manaus que atende paciente da covid-19.
Uildéia Galvão, médica de Manaus que atende paciente da covid-19.Divulgação

“Os pacientes que têm covid sentem muita sede. Tem momento que eles querem muita água. E aí você vê o paciente pedindo água e… você não pode, você não consegue, você está entubando alguém, vendo um outro paciente mais grave. E você não tem ninguém para dar essa assistência para esse paciente”. A médica Uildéia Galvão trabalha 12 horas por dia, todos os dias. Às vezes, 20 horas por dia, para dar conta dos pacientes que chegam ao Pronto Socorro 28 de agosto, em Manaus. A capital do Amazonas é uma das mais afetadas no Brasil pela crise do coronavírus e tem sido palco das histórias mais tristes da pandemia no Brasil. Superlotação em hospitais, avalanche de corpos nos cemitérios, centenas de mortos que não conseguem chegar ao hospital e morrem em casa.

Galvão atende os 120 leitos da Sala Rosa do PS, para onde são encaminhados os doentes graves de covid-19. Médica há 25 anos, ela não consegue aceitar essa nova modalidade de ‘hora da morte’ trazida pelo coronavírus: “É difícil você ver pessoas morrerem sozinhas. Sozinhas, sozinhas, sozinhas. Sozinhas”. Sim, ela repete o “sozinhas” cinco vezes como quem não acredita nas próprias palavras que saem da sua boca.

No 28 de agosto, não dá tempo de fazer uma teleconferência por celular na hora da despedida. No 28 de agosto, não dá tempo para nada. “Você vê pacientes quatro dias sem tomar banho, sem ter o asseio, porque você não tem o recurso humano ali para fazer isso”. O colapso do sistema de saúde de Manaus parece que estava para acontecer a qualquer momento, mas o coronavírus apressou as coisas. A doutora Galvão diz que é verdade que muitos profissionais de saúde pegaram o vírus e foram afastados, mas a bem da verdade, segundo ela, é que não havia recursos humanos suficientes há muito tempo.

Em plena pandemia, os profissionais de saúde dos pronto-socorros de Manaus estavam ainda para receber o salário de fevereiro. Em plena pandemia, os profissionais de saúde dos PSs de Manaus precisam comprar seus próprios equipamentos de proteção. Em plena pandemia, muitos dias sem que o laboratório de saúde pública do Amazonas não recolhesse material para fazer os testes de covid-19. E não é atraso em divulgar resultados. Não há coleta de material para produzir resultados mesmo. “E olha que só estamos atendendo pacientes realmente graves”, diz Uildeia.

Oficialmente, o Estado somava 476 mortes por covid-19 até sexta, e 5.723 infectados. Mas as imagens nos noticiários de cemitérios lotados e o choro na TV de famílias desesperadas deixam claro que a subnotificação ali é enorme. A distorção de dados parece mesmo gritante. Ao longo das semanas, o Brasil viu as imagens tenebrosas de enterros em valas comuns na cidade de Manaus até de madrugada. Pergunto à doutora Galvão se ela viu as imagens. “Não sei nem se é tocante, não sei se é trágica. Mas reflete realmente o nosso dia a dia. Tem sido bem difícil mesmo”.

Há duas semanas, o prefeito Arthur Vírgilio foi para as redes sociais dizer que a média diária de sepultamentos triplicou na cidade. Agora, quadruplicaram. No último domingo, houve um pico de 140 mortos. A média diária tem sido de 100. Em outros anos, os dias com maior pico de mortos não ultrapassava a 35 sepultamentos. No entanto, os dados informados ao Ministério da Saúde davam conta de apenas 17 mortos.

O prefeito ainda fez um outro alerta: o alto percentual de pessoas que morrem em casa, sem atendimento médico. Na segunda, mais de um terço das pessoas morreu em casa. A tempestade perfeita chegou em Manaus. Juntou um sistema de saúde já fragilizado, uma pandemia que levou uma avalanche de pacientes aos hospitais, uma população envelhecida aos 60 anos com uma série de doenças, propícias ao coronavírus e para coroar um completo desrespeito ao isolamento.

De acordo com os dados da start up In Loco, que tem feito um acompanhamento do movimento de celulares pelo país, desde o início do distanciamento social, em meados de março, o Amazonas foi o Estado que registrou os menores percentuais de adesão ao #fiqueemcasa. Durante a semana, bateu menos de 50%.

Mas ainda tem um outro ingrediente: o governador do Estado, Wilson Lima, do PSC. O pessoal não parece muito feliz com o governador, não. Na segunda, a assembleia legislativa do estado aprovou um pedido de intervenção federal na saúde do Amazonas. O pedido já foi encaminhado ao governo federal. Também o Sindicato dos Médicos entrou com um pedido de impeachment do governador na Assembleia Legislativa. O pedido foi aceito.

Além disso, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado dizem que o governador não está sendo transparente nos gastos com a pandemia. Uma ação foi ajuizada pedindo que o governador divulgue como gastou cada tostão que recebeu do governo federal para o combate ao coronavírus. E os profissionais da saúde fazem coro. O governo do Estado não respondeu aos diversos questionamentos feitos pela reportagem.

Desde que falamos com a doutora Galvão pela primeira vez, ela diz que algumas coisas melhoraram. Os equipamentos de proteção passaram a ser entregues, mesmo que em sistema de racionamento. “Mas é até bom que sejam racionados para não faltar”. Foram abertos mais leitos de retaguarda, o que ajudou a desafogar os prontos-socorros. E o Governo do Estado abriu uma linha de comunicação direta com os médicos, além de prometer organizar um cronograma para atualizar os pagamentos de 2020, para que os salários não atrasem mais.

Enquanto tudo isso acontece ao seu redor, a doutora Galvão, mesmo que sutilmente, demonstra seu ressentimento com os governantes do Estado. Ela fala daqueles que vão à mídia dizer que as pessoas estão morrendo porque falta atendimento. Isso recai sobre o pessoal que está na linha de frente, trabalhando quatro vezes mais do que trabalhavam e enfrentando a revolta da população. “A população tem dificuldade imensa de entender que não é o profissional de saúde que é responsável por criar estrutura de atendimento razoável para que a probabilidade de sucesso seja a melhor. Entendeu? E a gente não consegue desmistificar isso.”

— Qual é seu medo?, pergunto.

Do outro lado do telefone, um segundo de silêncio e a resposta:

— Meu medo é que isso demore muito. É exaustão. É muito cansativo. É exaustão mesmo.

— Você já está há quantos dias nesse ritmo?

— (um suspiro ainda maior que o primeiro). Nesse ritmo? Desde o dia 20 de março… por aí.

— Já faz 30 dias.

— É… já faz 30 dias.

Conversamos mais um pouco. Ela acha que o pico será na próxima semana. E conta sua desesperança com o descaso aos profissionais que não têm um líder que elabore um plano de ação. Ela acha que nem dá mais tempo. Sofre ao constatar que famílias largam seus velhinhos no hospital. “Eu disse para a minha filha que nem sempre é só problema do sistema de saúde. Existe uma crise humanitária também”.

Faço uma última pergunta:

— Se você pudesse falar em rede nacional, qual recado você daria?

A doutora responde, sem pestanejar:

— Fiquem em casa. Fiquem em casa o tempo que for possível e necessário. Deem atenção aos seus velhinhos, aos seus pais… A gente tem que aprender alguma coisa com isso. A gente vê hoje uma polaridade não só de política, de tudo, de ideia, de sentimento, ou você é isso ou você é aquilo. Eu acho que a gente tem que repensar tudo isso e ver para onde a gente quer andar com o nosso país, com nossa política. Não é possível que a gente não vai aprender que tem que ser mais humano, mais gentil e mais educado e saber escolher melhor quem são as pessoas que vão definir o futuro dos nossos netos, bisnetos. A gente tem hoje o que a gente tem, vai ter que aprender a conviver com isso fazendo o nosso melhor. Mas, no futuro, não é possível não ter algum mecanismo de mudança.

Josette Goulart é fundadora e editora da Lagartixa Diária, @lagartixadiaria

Escalada da crise deixa mais de mil à espera de leitos no Rio e faz São Paulo cogitar levar doentes para o interior

Fé, café e família. A volta para casa depois de 10 dias na UTI pelo coronavírus

Gustavo Cabral, biólogo: “Vacina no Brasil começa a ser testada em animais nas próximas semanas”

Elio Gaspari: A fila única para a Covid-19 está na mesa (Folha de S.Paulo)

Os barões da medicina privada mantiveram-se em virótico silêncio

Folha de S.Paulo

3 de maio de 2020

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras: “Dói, mas tem que fazer. Porque se não brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso”.

Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do hospital Sírio Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio.

Na quarta-feira (29), o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação “da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso”.

Por quê? Porque a rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (ex-diretor de uma Unimed) jamais tocou no assunto. Seu sucessor, Nelson Teich (cuja indicação para a pasta foi cabalada por agentes do baronato) também não. Depois da recomendação do conselho, quatro guildas da medicina privada saíram do silêncio, condenaram a ideia e apresentaram quatro propostas alternativas. Uma delas, a testagem da população, é risível e duas são dilatórias (a construção de hospitais de campanha e a publicação de editais para a contratação de leitos e serviços). A quarta vem a ser boa ideia: a revitalização de leitos públicos. Poderia ter sido oferecida em março.

Desde o início da epidemia os barões da medicina privada mantiveram-se em virótico silêncio. Eles viviam no mundo encantado da saúde de grife, contratando médicos renomados como se fossem jogadores de futebol, inaugurando hospitais com hotelarias estreladas e atendendo clientes de planos de saúde bilionários. Veio a Covid-19, e descobriram-se num país com 40 milhões de invisíveis e 12 milhões de desempregados.

Se o vírus tivesse sido enfrentado com a energia da Nova Zelândia, o silêncio teria sido eficaz. Como isso era impossível, acordaram no Brasil, com 90 mil infectados e mais de 6.000 mortos.

A Agência Nacional de Saúde ofereceu aos planos de saúde acesso ao recursos de um fundo se elas aceitassem atender (até julho) clientes inadimplentes. Nem pensar. Dos 780 planos só 9 aderiram.

O silêncio virótico provocou-lhes uma tosse com a recomendação do Conselho Nacional de Saúde. A fila única é um remédio com efeitos laterais tóxicos. Se a burocracia ficar encarregada de organizá-la, arrisca só ficar pronta em 2021. Ademais é discutível se uma pessoa que pagou caro pelo acesso a um hospital deve ficar atrás de alguém que não pagou. Na outra ponta dessa discussão, fica a frase de Vecina: “Brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar”. Os números da epidemia mostram que o baronato precisa sair da toca.

A Covid-19 jogou o sistema de saúde brasileiro na arapuca daquele navio cujo nome não deve ser pronunciado (com Leonardo DiCaprio estrelando o filme). O transatlântico tinha 2.200 passageiros, mas nos seus botes salva-vidas só cabiam 1.200 pessoas. 34% dos homens da primeira classe salvaram-se.

Na terceira classe, só 12%.