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Elitismo prejudica debate sobre clima (El País)

Estudo coordenado pela agência Purpose recomenda incluir brasileiros de baixa renda no debate sobre sustentabilidade e aponta argumentos e narrativas para dialogar com aqueles que já vivem as consequências do caos climático
Lixo acumulado na baía de Guanabara, no Rio, em  de junho.
Lixo acumulado na baía de Guanabara, no Rio, em de junho.André Coelho / EFE

Juliano Spyer 30 jun 2021 – 17:00 BRT

O Brasil é importante estrategicamente nos debates sobre o futuro do planeta por ser o principal responsável legal por biomas importantes, especialmente a floresta amazônica. Mas há um segundo protagonismo no caso brasileiro: o país já foi afetado por um evento climático de longa duração e portanto os brasileiros já conhecem as consequências desse fenômeno.

A partir de meado do século passado, aproximadamente 20 milhões de camponeses analfabetos abandonaram a zona rural nordestina. Eles não foram motivados a migrar em busca de modernidade, de educação, mas saíram porque já não conseguiam sobreviver pela lavoura e pela pecuária.

O antropólogo Gilberto Velho, precursor dos estudos antropológicos sobre as cidades no Brasil, classificou a migração causada pela seca nordestina como sendo o evento social mais importante do país no século XX. As cidades abrigavam 30% dos brasileiros em 1950; no final do século XX, 80% da população morava em áreas urbanas. Nasce aí o Brasil dos problemas de mobilidade urbana (poluição, estresse), da falta de infraestrutura de esgoto e coleta de lixo (alagamentos, contaminação) e também a explosão da violência e o surgimento de organizações grandes e complexas ligadas ao crime e à religião.

O Brasil do início do século XXI é a paisagem provável do mundo no século seguinte, quando fenômenos climáticos forçarem o desenraizamento e o deslocamentos de grandes populações para as periferias das cidades. No cenário conservador apresentado em A terra inabitável (Cia das Letras, 2019), o jornalista David Wallace-Wells apresenta cenários em que as mudanças climáticas provocarão o deslocamento de 600 milhões a 2 bilhões de refugiados até o final do século.

O clima como assunto dos intelectuais

Se a terra fosse um carro, os cientistas seriam faróis indicando que estamos nos dirigindo em alta velocidade para um abismo. A surpresa é que o motorista e os passageiros —líderes políticos, empresariais e a sociedade— não estão reagindo da forma que deveriam considerando a catástrofe que afetará todo mundo.

Uma pesquisa recente coordenada pela agência Purpose e realizada pela Behup, uma startup de pesquisa, sugere que brasileiros pobres podem ser mobilizados para atuar em defesa da sustentabilidade. Eles são mais da metade da população do país e sabem na pele como vai ser o mundo no futuro, porque eles representam mais da metade da população e já vivem os efeitos da catástrofe climática. Mas para isso funcionar, nós temos que partir das referências e das experiências deles em relação a esse assunto.

Um problema real, atual e econômico

A seguir, estão listados alguns insights sobre como populações menos privilegiadas percebem e falam sobre sustentabilidade.

1) Real e atual – Nos debates científicos sobre o aquecimento global, as consequências virão em algum momento do futuro, mas no Brasil popular ele é palpável e acontece hoje. O alagamento —causado pelo aumento ou pela irregularidade das chuvas— é a maneira mais evidente como o caos climático se mostra para essas pessoas. E ele aponta para dois problemas reais: a falta de infraestrutura de escoamento de água da chuva e a falta de serviços regulares de coleta de lixo. Outro problema é causado pelo clima seco, que acentua os casos de doenças respiratórias —relativamente fáceis de serem tratadas pela medicina, mas complicadas para quem depende do atendimento público.

2) O lixo tangibiliza o problema. Quando o pobre urbano fala sobre sustentabilidade, a primeira associação é com o lixo. Lixo coletado sem regularidade pelo serviço público nas periferias, muitas vezes descartado nas ruas — o “papel de bala” jogado no chão, lixo dispensado fora de hora e espalhado na rua por gatos, cachorros e outros animais. O problema do lixo materializa esse assunto para quem vê o lixo acumulado, a coleta irregular de dejetos, sacos de lixo resgados e espalhados nas ruas por animais; o impacto de se viver em locais sujos, desprezados pelos governantes; lixo que se acumula em espaços sem iluminação pública e que são ocupados por assaltantes ou por traficantes.

3) A metáfora do consumismo predatório. O lixo representa ou metaforiza a sociedade de consumo que descarta o que ainda é útil. O lixo talvez seja algo “naturalizado” para as camadas urbanas médias e altas, mas isso é menos claro para vem de uma lógica de reuso —o lixo orgânico alimenta os animais, a lata vira lamparina, a garrafa PET tem mil e uma utilidades. Para alguns respondentes do estudo, é moralmente incômodo descartar aquilo que pode ser reutilizado. Classificar algo como “lixo” é uma decisão, uma escolha, que mostra uma percepção sobre desperdício e responsabilidade conjunta para cuidar do lugar em que se vive.

4) Ser sustentável é ser econômico. Geralmente ouvimos falar da preservação do meio ambiente como algo que tem uma motivação altruísta: “zelar pelo futuro das crianças, das florestas etc.” Mas essa abstração não é prioridade para quem vive em situação de vulnerabilidade e está preocupada com o que vai acontecer amanhã. De onde vem o alimento, o emprego, o remédio; como se defender do crime, o que fazer em relação à escola fechada, por exemplo. Para esse brasileiro, sustentabilidade é uma boa ação que traz vantagem econômica. Plásticos e latas podem se tornar utensílios e brinquedos. Usar lâmpadas LED e controlar o uso da água diminuem os gastos. Pneus, tijolos e outros produtos de demolição são mais baratos para quem quer construir. E finalmente há o tema do trabalho: recolher lixo reciclável é uma fonte de renda para quem não tem outra fonte de renda.

O tema da sustentabilidade geralmente é debatido em círculos intelectualizados entre brasileiros das camadas médias e altas. O brasileiro pobre não é convidado a participar dessa conversa, pelo preconceito que associa baixa escolaridade a incapacidade de pensar e entender o mundo. Mas em um mundo com muito mais pobres do que ricos, essa discussão se fortalecerá se dialogar com as milhares de pessoas —no Brasil e no mundo— que já vivem as consequências do caos climático.

Estudo de caso

No início do mês de junho, portanto, pouco tempo depois de eu escrever este artigo, recebi pelo WhatsApp o vídeo incluído adiante, feito pela ativista Duda Salabert, vereadora em Belo Horizonte, sobre instalação de uma mineradora da empresa Tamisa na Serra do Curral, próxima à capital mineira. O vídeo argumenta que a mineração afetará as nascentes de água que servem a cidade, levantará poeira causando problemas respiratórios na população de BH, particularmente para uma comunidade/bairro chamado Taquaril, que fica a três quilômetros de onde o empreendimento será instalado caso seja aprovado.

O vídeo tem argumento convincente, imagens registradas por drone para dar ideia das distâncias entre os locais indicados. Fui mobilizado e por isso, parei o que estava fazendo e repassei o vídeo para… ambientalistas amigos meus — já me desculpando por achar que eles possivelmente já conheciam a situação ou teriam recebido o vídeo de outras pessoas. Mas escrevendo as mensagens, examinei como o argumento do vídeo — à luz do que eu mesmo escrevi acima — é feito para circular entre pessoas das camadas médias e altas, principalmente mais escolarizadas e identificadas com valores progressistas.

Mensagem que eu usei para repassar o vídeo-denúncia via WhatsApp.
Mensagem que eu usei para repassar o vídeo-denúncia via WhatsApp.Reprodução / Juliano Spyer

A vereadora Duda, em um trecho do vídeo, aponta para a comunidade/bairro do Taquaril e diz que os moradores não foram ouvidos mas sofrerão diretamente os impactos ambientais da mineração. Para a vereadora, essa atitude configura um caso de “racismo ambiental”. Esse argumento é convincente e deve soar “natural” para leitores e leitoras do EL PAÍS, mas falar dessa forma:

  1. Compara esse bairro pobre ao recurso natural, sugerindo passividade dos moradores, como se eles não tivessem capacidade —por falta de estudos e situação econômica adversa— para participar do debate.
  2. Ao fazer isso, os criadores do vídeo cometem o mesmo erro que estão denunciando, que é não envolver os moradores nesse debate.

Debater com os moradores do Taquaril, visitar o bairro e conversar com líderes comunitários. Mas escutar como pessoas comuns como eles percebem o empreendimento minerador — inclusive considerar a possibilidade de que a mineração abrirá oportunidades de emprego para várias dessas famílias. E, a partir dessa conversa interessada, atenta e continuada, que procura entender o problema a partir da ótica dessas pessoas, dialogar com elas sobre o assunto, conforme este artigo propõe.

O movimento ambientalista está se dando conta que precisa dialogar com outras audiências se quiser —mais do que ter razão— ser eficiente e produzir os resultados que mitigarão o caos climático. O caso da Serra do Curral em BH mostra como essa reflexão é urgente; se essa mudança de atitude não acontece em relação a um problema que acontece tão próximo a uma cidade grande, como então agir em relação ao que acontece nos rincões do país?

Juliano Spyer é antropólogo digital, escritor e educador. Mestre e doutor pela University College London, é autor de Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial), entre outros livros. Este texto foi publicado originalmente aqui.

Mais informações

Higher-class individuals are worse at reading emotions and assuming the perspectives of others, study finds (PsyPost)

Eric W. Dolan – September 4, 2020

New research provides evidence that people from higher social classes are worse at understanding the minds of others compared to those from lower social classes. The study has been published in the Personality and Social Psychology Bulletin.

“My co-author and I set out to examine a question that we deemed important given the trend of rising economic inequality in American society today: How does access to resources (e.g., money, education) influence the way we process information about other human beings?” said study author Pia Dietze, a postdoctoral scholar at the University of California, Irvine.

“We tried to answer this question by examining two essential components within the human repertoire to understand each other’s minds: the way in which we read emotional states from other people’s faces and how inclined we are to take the visual perspective of another person.”

For their study, the researchers recruited 300 U.S. individuals from Amazon’s Mechanical Turk platform and another 452 U.S. individuals from the Prolific Academic platform. The participants completed a test of cognitive empathy called the Reading the Mind in the Eyes Test, which assesses the ability to recognize or infer someone else’s state of mind from looking only at their eyes and surrounding areas.

The researchers also had 138 undergraduates at New York University complete a test of visual perspective-taking known as the Director Task, in which they were required to move objects on a computer screen based on the perspective of a virtual avatar.

The researchers found that lower-class people tended to perform better on the Reading the Mind in the Eyes Test and Director Task than their higher-class counterparts.

“We find that individuals from lower social class backgrounds are better at identifying emotions from other people’s faces and are more likely to spontaneously take another person’s visual perspective. This is in line with a large body of work documenting a tendency for lower-class people to be more socially attuned to others. In addition, our research shows that this can happen at a very basic level; within seconds or milliseconds of encountering a new face or person,” Dietze told PsyPost.

But like all research, the new study includes some limitations.

“This research is based on correlational data. As such, we need to see this research as part of a larger body work to answer the question of causality. However, the insights gained from our study allows us to speculate about how and why we think these tendencies develop,” Dietze explained.

“We theorize that social class can influence social information processing (i.e., the processing of information about other people) at such a basic level because social classes can be conceptualized as a form of culture. As such, social class cultures (like other forms of culture, for example, national cultures), have a pervasive psychological influence that impact many aspects of life, at times even at spontaneous levels.”

The study, “Social Class Predicts Emotion Perception and Perspective-Taking Performance in Adults“, was authored by Pia Dietze and Eric D. Knowles.

Elio Gaspari: A fila única para a Covid-19 está na mesa (Folha de S.Paulo)

Os barões da medicina privada mantiveram-se em virótico silêncio

Folha de S.Paulo

3 de maio de 2020

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras: “Dói, mas tem que fazer. Porque se não brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso”.

Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do hospital Sírio Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio.

Na quarta-feira (29), o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação “da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso”.

Por quê? Porque a rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (ex-diretor de uma Unimed) jamais tocou no assunto. Seu sucessor, Nelson Teich (cuja indicação para a pasta foi cabalada por agentes do baronato) também não. Depois da recomendação do conselho, quatro guildas da medicina privada saíram do silêncio, condenaram a ideia e apresentaram quatro propostas alternativas. Uma delas, a testagem da população, é risível e duas são dilatórias (a construção de hospitais de campanha e a publicação de editais para a contratação de leitos e serviços). A quarta vem a ser boa ideia: a revitalização de leitos públicos. Poderia ter sido oferecida em março.

Desde o início da epidemia os barões da medicina privada mantiveram-se em virótico silêncio. Eles viviam no mundo encantado da saúde de grife, contratando médicos renomados como se fossem jogadores de futebol, inaugurando hospitais com hotelarias estreladas e atendendo clientes de planos de saúde bilionários. Veio a Covid-19, e descobriram-se num país com 40 milhões de invisíveis e 12 milhões de desempregados.

Se o vírus tivesse sido enfrentado com a energia da Nova Zelândia, o silêncio teria sido eficaz. Como isso era impossível, acordaram no Brasil, com 90 mil infectados e mais de 6.000 mortos.

A Agência Nacional de Saúde ofereceu aos planos de saúde acesso ao recursos de um fundo se elas aceitassem atender (até julho) clientes inadimplentes. Nem pensar. Dos 780 planos só 9 aderiram.

O silêncio virótico provocou-lhes uma tosse com a recomendação do Conselho Nacional de Saúde. A fila única é um remédio com efeitos laterais tóxicos. Se a burocracia ficar encarregada de organizá-la, arrisca só ficar pronta em 2021. Ademais é discutível se uma pessoa que pagou caro pelo acesso a um hospital deve ficar atrás de alguém que não pagou. Na outra ponta dessa discussão, fica a frase de Vecina: “Brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar”. Os números da epidemia mostram que o baronato precisa sair da toca.

A Covid-19 jogou o sistema de saúde brasileiro na arapuca daquele navio cujo nome não deve ser pronunciado (com Leonardo DiCaprio estrelando o filme). O transatlântico tinha 2.200 passageiros, mas nos seus botes salva-vidas só cabiam 1.200 pessoas. 34% dos homens da primeira classe salvaram-se.

Na terceira classe, só 12%.