18.08.2016
Sociólogo americano diz que vê legitimidade no comportamento da torcida brasileira na Rio 2016. GETTY IMAGES
Assim como muitos observadores internacionais acompanhando os Jogos Olímpicos do Rio, o sociólogo americano Peter Kaufman ficou espantado com o episódio das vaias ao atleta francês do salto com vara Renaud Lavillenie. No caso do acadêmico, porém, o que pareceu incomodá-lo mais foi a reação contrária ao comportamento da torcida.
Para o professor da Universidade Estadual de Nova York, que escreve sobre sociologia do esporte e estudou as reações do público ao comportamento de atletas, houve exagero na condenação das manifestações, sobretudo depois do “pito” público dado nos brasileiros pelo presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), o alemão Thomas Bach.
Após as vaias a Lavillenie no pódio, Bach usou a conta do COI no Twitter para dizer que o comportamento do público foi “chocante” e “inaceitável nas Olimpíadas”.
“O COI certamente tem questões bem mais importantes para lidar do que vaias de torcedores”, disse Kaufman, em conversa com a BBC Brasil, por telefone.
Veja abaixo, trechos da entrevista:
BBC Brasil – O senhor acompanhou a polêmica das vaias no Brasil?
Peter Kaufman – Sim, porque houve um repercussão considerável de alguns incidentes envolvendo o público na Olimpíada do Rio. O comportamento de torcedores é algo interessante, porque estão em jogo fatores culturais.
Cada cultura tem seus próprios valores: em algumas, é apropriado beijar em vez de apertar a mão quando se é apresentado a alguém, por exemplo. Em outras, é muito aceitável vaiar, assim como em certos países aplausos efusivos podem ser vistos como algo rude.
Sociólogo aponta que vaias podem ter diferentes motivos, inclusive descontentamento com os gastos nos Jogos. GETTY IMAGES
BBC Brasil – Por que as pessoas vaiam?
Kaufman – É uma questão de expressão, uma forma de interação social e participação. E isso varia de lugar para lugar. Se um alienígena chegasse aqui hoje e fosse assistir a uma competição esportiva, possivelmente teria outra maneira de se comportar de acordo com sua realidade. E, óbvio, sabemos que não é apenas esporte. As Olimpíadas têm um significado muito maior. O público brasileiro pode estar vaiando em desafio às autoridades, ao governo brasileiro e até mesmo ao dinheiro gasto na Olimpíada.
BBC Brasil – É injusto com os atletas?
Kaufman – Alvos de vaias podem se sentir ofendidos, tristes e até ameaçados por uma torcida mais ruidosas. Não os culpo por pensarem apenas na qualidade de seu desempenho em vez de analisar aspectos culturais ou políticos. É perfeitamente compreensível que o atleta francês tenha ficado bastante chateado com as vaias que recebeu até no pódio. Mas ele estava competindo contra um atleta brasileiro e em casa. Pelo que tenho lido sobre a torcida brasileira, era inevitável que ele fosse alvo dessas manifestações.
BBC Brasil – Renaud Lavillenie não foi a primeira “vítima” e não deverá ser a última, mas o comportamento da torcida no Estádio Olímpico, em especial durante provas em que normalmente o silêncio do público é uma questão de etiqueta, como o tênis e a esgrima, irritou até o presidente do COI, Thomas Bach. Como achar um meio termo?
Torcida brasileira ficou conhecida pelo excesso de vaias durante os jogos da Rio 2016. GETTY IMAGES
Kaufman – Olha, é irônico que sentimentos de nacionalismo e tribalismo surjam na Olimpíada, uma competição concebida em sua forma moderna para promover a paz e a união ente os povos. Mas o esporte é passional e excitante. As pessoas querem vaiar seu adversário para tentar afetar o resultado de uma partida. E, como costuma ser o caso por causa das rivalidades locais, os brasileiros “pegaram no pé dos argentinos”. Também vimos o público vaiando atletas russos por causa da controvérsia envolvendo o doping. As vaias, por sinal, são o menor dos problemas que o COI tem para resolver.
BBC Brasil – Mas Lavillenie não teria razão ao reclamar do barulho durante o momento de seus saltos? Não seria preciso criar uma cultura de torcida mais apropriada para o esporte olímpico?
Kaufman – Isso seria uma atitude de imperialismo cultural. Por que a maneira do brasileiro torcer é errada? A realidade que conhecemos é criada pelo ambiente em que crescemos. Você mencionou o tênis anteriormente: será que não vale a pena discutirmos a razão para o silêncio durante o saque no tênis enquanto no futebol a torcida pode urrar nos ouvidos de um atacante que vai bater um pênalti? A diferença é que o tênis é um esporte muito mais elitizado.
BBC Brasil: O senhor defende o comportamento da torcida, então?
Kaufman: De certa maneira, sim, apesar de que os esportes têm regras para lidar com isso. Acho fascinante o fato de que as normas de comportamento podem ser diferentes. Fica a impressão de que o COI foi pego de surpresa pela passionalidade do torcedor brasileiro. Mas lembremos da Copa do Mundo de 2010, em que as vuvuzelas do torcedor sul-africano criaram um problema até para quem viu os jogos pela TV. Mas ter proibido seu uso teria amputado um componente cultural.
Vaiar é uma expressão de crenças e valores. É tão “errado” quanto torcer.
Quais são os seis tipos de vaias da torcida brasileira na Rio 2016
Torcida brasileira já é reconhecida pelo excesso de vaias durante as competições na Rio 2016. GETTY IMAGES
Da esgrima à natação, do basquete ao tênis, atletas foram intensamente vaiados no Rio de Janeiro. E enquanto as vaias são comuns na maioria das Olimpíadas – apesar da ideia de que seja um momento em que o espírito esportivo deve reinar -, já está claro que a Rio 2016 é mais barulhenta que os Jogos mais recentes.
A BBC News fez uma lista com os seis tipos de vaias mais comuns durante a Olimpíada no Brasil, na tentativa de explicar ao público internacional esse fenômeno que vem sendo um dos mais discutidos pela imprensa esportiva:
1. Vaiar por diversão
O público brasileiro tem uma tendência a escolher ” um lado” – torcer por um time, ou um atleta, e vaiar os rivais. Mas eles podem trocar essa lealdade num piscar de olhos.
“Os torcedores brasileiros parecem ser bem igualitários. Eles são capazes de vaiar atletas de muitos países. É muito difícil de identificar o porquê da vaia a um outro atleta”, disse o diretor de comunicação do Comitê Olímpico Internacional, Mark Adams.
A mesma reação foi identificada pelo especialista em Jogos Olímpicos da Universidade de Salford, Andy Miah.
“Eu fiquei surpreso com o quanto eles são verbais e achei uma falta de espírito esportivo toda essa gritaria e vaia. Até eu perceber que era a forma que eles encontraram de se envolver com o drama do evento”, diz.
“Não é malicioso. Eu estava na esgrima ontem e eles estavam vaiando os jogadores e depois torcendo muito e apoiando muito quando eles ganharam. É tudo parte do teatro que é o que eles curtem”.
Ele ainda opina que há diferenças com Londres 2012: “era muito mais quieto, quase nunca tinha gritaria, só aplausos”.
2. Vaiar os favoritos
O público na Rio 2016 demonstrou uma clara preferência pelos azarões. Em uma das primeiras partidas de basquete, os torcedores apoiaram a Croácia enquanto vaiavam os favoritos – a seleção espanhola. A Espanha então começou a perder e foi derrotada por 72-70.
Esse não é um fenômeno novo.
Em uma das primeiras partidas de basquete, torcedores brasileiros apoiaram a Croácia torcendo pelo time enquanto vaiavam os favoritos, da seleção espanhola. GETTY IMAGES
Durante a Olimpíada de Atenas, em 2004, por exemplo, os torcedores apoiaram a equipe de futebol masculino do Iraque – durante uma semifinal contra o Paraguai – e vaiavam cada vez que os paraguaios ficavam com a bola.
De acordo com o professor de história da mídia da Universidade de Sussex, na Inglaterra, David Hendy, a vaia é “uma tradição nobre” e um lembrete de que o espetáculo é sobretudo para o público, mais do que para os competidores.
“E o público sempre vê tudo em termos dramáticos – um conflito entre heróis e vilões”, explica.
3. Vaiar os russos
Por causa a revelação de um esquema estatal de doping e da decisão do Comitê Olimípico de não suspender todos os atletas, os russos encontraram uma reação particularmente hostil do público no Rio de Janeiro.
As vaias começaram logo na entrada da delegação russa no Maracanã durante a cerimônia de abertura.
“Os russos sempre iriam ser vaiados porque muitos pensam que o COI não deveria ter comprometido os Jogos”, diz Andy Miah.
A nadadora russa Yulia Efimova, que foi banida por 16 meses em 2013 e conquistou o direito de competir novamente no Rio de Janeiro depois de apelar ao Tribunal Arbitral do Esporte, foi vaiada durante toda a competição dos 100 metros peito nas eliminatórias e na final, na qual levou a medalha de prata.
Ela caiu no choro depois que o ouro foi para a americana Lily King, que comentou: “isso só prova que você pode competir limpa e ainda chegar ao topo do pódio”.
Torcida brasileira costuma vaiar atletas russos desde o início dos Jogos. GETTY IMAGES
O boxeador russo Evgeny Tishchenko demonstrou frustração com a reação negativa do público aos atletas russos.
“É uma pena que o público se comporte dessa forma, apoiando quem quer que esteja contra a Rússia”, disse ele ao jornal Chicago Tribune.
“Estou bastante irritado com isso. É a primeira vez que eu enfrento esse tipo de tratamento. Para falar a verdade, estou um pouco decepcionado”.
4. Vaias políticas
Ao declarar os Jogos Olímpicos abertos na cerimônia de abertura, o presidente interino Michel Temer foi vaiado.
Temer assumiu em maio depois da suspensão de Dilma Rousseff e foi vaiado apesar dito apenas uma frase. Mas as vaias quase se dissiparam em meio aos fogos de artíficio e à música, até porque o nome de Temer não chegou a ser anunciado.
Presidente em exercício, Michel Temer, é vaiado na cerimônia de abertura da Rio 2016. GETTY IMAGES
Mas essa não é a primeira vez que uma Olimpíada é um catalisador para a insatisfação com a elite política de um país. O ex-chanceler George Osborne e a então ministra do Interior – e atual premiê – Theresa May foram vaiados na entrega de medalhas durante a Paralimpíada de Londres 2012.
“Foi uma resposta visceral e instantânea de um público indignado com as políticas para os deficientes físicos e que se sentiam sem voz”, diz Hendy.
5. Vaias patrióticas
Os fãs brasileiros foram rápidos em demonstrar apoio aos atletas nativos ao vaiarem vigorosamente seus oponentes.
O tenista alemão Dustin Brown foi vaiado até depois de cair e torcer o tornozelo durante uma partida com Thomaz Bellucci, apesar de ter recebido aplausos e apoio quando se levantou para ser levado ao hospital.
O francês Renaud Lavillenie queixou-se publicamente da vaias que ouviu no Engenhão na noite em que perdeu de Thiago Braz no salto com varas. “Dei tudo de mim e não tenho nenhum arrependimento. Uma prova inacreditável! Só estou decepcionado com a total falta de respeito do público. Isso não é digno de um estádio olímpico”, afirmou.
“As Olimpíadas sempre foram sinônimo de respeito internacional. Então as vaias podem distrair e até evitar que os atletas tenham o melhor desempenho”, diz Rhonda Cohen, psicóloga do esporte da Universidade de Middlesex, na Inglaterra.
O boxeador camaronês Hassan N’Dam N’Jijam certamente não ficou feliz ao perder a luta contra o brasileiro Michel Borges depois de muitas vaias pantomímicas. Segundo ele, o barulho pode ter influenciado os juízes.
Os atletas argentinos também foram vaiados durante a cerimônia de abertura só porque são… argentinos – nossos vizinhos e rivais, especialmente no futebol.
E há o caso da goleira da seleção feminina de futebol dos Estados Unidos, Hope Solo, que postou fotos nas redes sociais falando sobre o vírus da Zika e foi vaiada ao coro de “Zika!”durante a partida contra a Nova Zelândia.
Mas os torcedores não reservaram as vaias apenas aos estrangeiros. A performance ruim dos jogadores brasileiros da seleção de futebol também provocou vaias depois das partidas contra a África do Sul e o Iraque.
6. Vaia aos juízes
Até os juízes olímpicos caíram nas vaias do público brasileiro.
Como anfitriões, os brasileiros conquistaram uma vaga na final do salto sincronizado de 10 metros masculino, apesar de os atletas não terem chances na competição. Inevitavelmente, os juízes consistentemente deram notas baixas, gerando vaias nervosas do público.
Mas vale lembrar que nada se compara à final de ginástica masculina em Atenas 2004. O russo Alexei Nemov animou o público com uma rotina de barras arriscada, e, quando os juízes o avaliaram com notas baixas, ouviu vaias por sete minutos ininterruptos.