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Racionalidade não é suficiente em situações de estresse, diz professor de negociação de Harvard (Folha de S.Paulo)

Em livro, Daniel Shapiro apresenta método para solucionar conflitos

15.ago.2021 às 16h00

Fernanda Brigatti São Paulo

As negociações e os conflitos que decorrem delas fazem parte da vida em sociedade e, ainda que a prática da negociação seja mais fortemente associada ao ambiente empresarial, ela está presente em delicadas questões geopolíticas, impasses orçamentários em empresas e mesmo em questões domésticas e relações familiares e corporativas.

Para o psicólogo Daniel Shapiro, fundador do Programa Internacional de Negociação da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o que essas situações têm em comum é a alta carga emocional, que despertam reações inconscientes que inviabilizam avanços.

Polarizações, sejam políticas ou entre pessoas da mesma família, diz, são reações emocionais complicadas, mas nem por isso impossíveis. Em “Negociando o Inegociável”, lançado em julho no Brasil pela GloboLivros, Shapiro detalha o que pretende ser um manual para lidar com essas emoções e chegar a soluções.

A experiência na mediação de conflitos –Shapiro trabalhou em negociações entre a China continental e Taiwan, em diferentes partes da África, no conflito israelo-palestino e na Europa central na virada do comunismo para o capitalismo– levou ao aprimoramento dessa metodologia que batizou de “teoria da identidade relacional”.

Daniel Shapiro, fundador do Programa Internacional de Negociação da Universidade de Harvard – Divulgação

Para ele, a noção de identidade é central nos conflitos contemporâneos. Uma vez ameaçada, ela expõe os envolvidos a iscas mentais –ou tentações– que mantêm o estado de conflito e impedem uma resolução. https://s.dynad.net/stack/928W5r5IndTfocT3VdUV-AB8UVlc0JbnGWyFZsei5gU.html%5B x ]

Shapiro diz ter identificado as cinco principais tentações —vertigem, compulsão à repetição, tabus, ataque ao sagrado e política de identidade— a partir da observação de um exercício repetido por ele em diversos ambientes e com diferentes audiências.

Na simulação, o grupo é estimulado a se agrupar em tribos com valores comuns —uma identidade é forjada entre eles. Organizados esses grupos, um alienígena invade a sala e faz uma única exigência: “escolham um único líder para representá-lo ou destruirei o mundo.” Invariavelmente, diz Shapiro, o mundo explode.

A primeira dessas experiências foi no Estado da Macedônia, sob tensão e iminente conflito étnico, ainda nos anos 1990. Naquele que talvez seja o mais curioso, “o mundo explodiu em Davos” —45 líderes mundiais, entre políticos e grandes executivos, foram convidados a participar da dinâmica.

A racionalidade, ou pressupor que os lados estejam sendo racionais no diálogo, segundo ele, não é suficiente. “Supomos que cada lado realmente tenha uma preocupação racional e use processos racionais para satisfazer essas preocupações. Quando se trata desses conflitos de grande carga emocional, não é suficiente.”

Segundo Shapiro, é a identidade o elemento invisível que, em conflitos de grande carga emocional, acaba ativando o que ele chama de efeito das tribos, um estado mental de alerta e polarização.

Com a pandemia, diz o psicólogo, estamos todos sob intenso estresse, o que torna as chances de as negociações terminarem em um acordo ainda menores. “É como reunir grupos de identidades distintas para negociar em uma sala escura e apertada.”

Veja os principais trechos da entrevista concedida à Folha por videoconferência.

Novo livro
O trabalho que faço é em negociação e solução de conflitos. Estou nessa área há 30 e poucos anos —e minha calvície é a prova disso. Tenho observado como as pessoas negociam, o que funciona e o que não funciona nos mais significativos conflitos de nossas vidas, sejam profundamente políticos, ou desafios diários carregados de emoção.

O que descobri é que as pessoas tendem a negociar em um nível irracional. Supomos que cada lado realmente tenha uma preocupação racional e use processos racionais para satisfazer essas preocupações. Quando se trata desses conflitos de grande carga emocional, a racionalidade não é suficiente.

Como podemos entender e lidar com as dimensões mais profundas desses conflitos? Então, “Negociando o Inegociável” é uma forma de explorar essas dimensões do conflito que levam à polarização e como podemos entender mais profundamente esses conflitos –e que eu coloco na categoria da identidade.

Existem tantos bons livros por aí que oferecem soluções rápidas, que oferecem respostas fáceis para lidar com problemas difíceis. Mas para realmente chegar à raiz dos problemas que enfrentamos em nossas sociedades e em nossas vidas, precisamos compreender profundamente essas dimensões. O papel da emoção, o papel da identidade e como eles nos afetam e como os afetamos para uma mudança construtiva.

As cinco tentações
Por que as sociedades e as famílias estão polarizadas? Mesmo quando se trata de um enorme custo emocional para pais, filhos, avós, por que fazemos isso? Essa é a questão sobre a qual venho pensando há muitos anos.

Em “Negociando o Inegociável”, discuto os cinco principais instigadores da mentalidade da tribo, que chamo de tentações. Eles são os instigadores de conflitos. No momento em que nossa identidade parece ameaçada, essas tentações começam a nos tentar em direção à mente tribal.

Desenvolvendo o método
Assistindo àquele exercício da tribo, e o mundo explodindo de novo e de novo, me pergunto o que está acontecendo. Como essas pessoas, os líderes mais racionais do mundo, pessoas afetivas e amorosas estão explodindo o mundo de novo. Por quê? Cinco tentações, cinco iscas.

Capa do livro Negociando o Inegociável, de Daniel Shapiro
Capa do livro Negociando o Inegociável, de Daniel Shapiro – Divulgação/Globo Livros

Vertigem
Primeiro, entramos rapidamente no que chamo de vertigem. A ideia aqui é que, se entrarmos em um conflito com meu cônjuge, muito rapidamente podemos ser consumidos nesse conflito e uma discussão de dois minutos sobre quem deveria ter lavado a louça se transforma em duas horas de discussão horrível. Estamos em vertigem.

As polarizações dos Estados Unidos estão indiscutivelmente em um lugar de vertigem, consumidos no conflito, pensando estritamente sobre isso não podemos ver o quadro geral, estamos presos em nosso próprio pequeno lugar. Estamos presos na vertigem.

A palavra significa tontura, e essa é a experiência aqui. De repente, estou consumido pela vertigem, perco a noção de tempo e espaço e minha compreensão de tudo some. Parece sair daqui, um dos caminhos é perguntar “qual é o meu propósito nesse conflito?”.

Compulsão à repetição
Como seres humanos, tendemos a repetir os mesmos padrões de comportamento disfuncionais de novo e de novo e de novo. Seja no sistema familiar, todos podemos prever os conflitos que teremos no domingo à noite, com a esposa ou filhos. Sabemos o que cada pessoa vai dizer, sabemos o que elas vão fazer e como vamos nos sentir depois. É uma compulsão à repetição.

E também somos muito bons em prever, por meio de intuição e palpite, em um nível nacional ou local, “opa, lá vamos nós de novo”. E esse é um daqueles momentos em que um grupo vai dizer isso, o outro vai dizer aquilo, e começarão apontar o dedo um para o outro e vai levar à violência.

O problema como essa repetição é que esse padrão vira parte da nossa identidade e vira uma tatuagem. É muito difícil de se livrar disso, é mais que um simples hábito, é muito mais profundo. A saída para a compulsão à repetição é tomar ciência disso e realmente olhar para esse padrão em que eu costumo entrar com aquela pessoa. Por que e como eu posso me livrar disso.

Tabus
O que, na sociedade brasileira, é um tabu de se conversar? Se você falar de certo assunto, vai ter muitos problemas, será punido, rejeitado socialmente e corre o risco de ser agredido fisicamente.

Uma coisa que é um tabu nos Estados Unidos é um apoiador do Trump e um do Biden sentarem lado a lado para uma refeição. Como se um lado fosse contaminar o outro. O medo não é infundado.

Acho que, no momento em que uma pessoa de um lado olha alguém de sua tribo se associar com alguém da tribo oposta, bem, um tabu da associação acaba de ser quebrado. “Você está traindo nossa tribo? Está traindo nossa gente? Não fale com eles!” Bem, mas como você pode solucionar um conflito, como você reduz as polarizações se os lados não conversam.

Ataque ao sagrado
Toda tribo política, toda família tem crenças, valores que considera sagrados. Se você sente que eu a ofendi ou ameacei aquilo que para você tem grande importância, religioso ou secular, bum, voltamos à mentalidade tribal.

A imagem na minha cabeça é a de uma cobra que salta sobre você, quando você ofende algo muito sagrado. Também penso que no contexto moderno, politicamente as pessoas podem tornar alguns assuntos sagrados, e são eles que constroem as tribos internas e tornam mais difícil a reconciliação com outros grupos.

Política de identidade
Uso o termo de maneira um pouco diferente daquilo que foi popularizado. Acho que as pessoas normalmente veem políticas de identidade [no Brasil, o termo é traduzido mais frequentemente como políticas identitárias] como a reunião de grupos minoritários para tentar criar mudanças políticas em certos assuntos.

Para mim, política de identidade é o uso ou o mau uso da identidade para atingir certos objetivos políticos. Quando um líder diz “nós temos que nos unir para melhorar o nosso país.” Temos que nos unir, mas quem é esse “nós” a que ele se refere? Na maior parte das vezes, não vale para todo mundo, vale somente para alguns grupos, e cria, com frequência de maneira explícita, uma dinâmica de nós contra eles. Nós temos que nos unir para brigar como eles. Políticas de identidade podem ser usadas para dividir.

Meu conselho: em uma democracia funcional, use política de identidade para unir. Foque em um “nós” mais amplo. Todos nós juntos. Sim, temos tribos menores com interesses políticos. Ótimo. E todos somos parte de um projeto maior. Você pode fazer o que Mandela fez, você pode unir, usar essas políticas de identidade para unir.

O efeito da tribo
A pandemia colocou muito estresse em todos. Ansiedade, a dor de perder um parente, perder alguém próximo –e meu coração está com o Brasil, sei que sofreu muito. Acho que isso é um fardo, um peso emocional que está sobre os ombros de todos.

Enquanto isso, devemos fazer tudo o que fazíamos antes, agora no Zoom. Todos esses fardos emocionais nos fazem, em parte, querer buscar algum tipo de segurança emocional e ela pode vir na forma de nos aproximarmos de um grupo ao qual sinto que pertenço. Para uma tribo.

O problema é que as tensões também começam a aparecer entre os diferentes grupos, que estão muito mais comprimidos agora, estão mais apertados, por conta da pandemia.

Sob pressão
Acho que a pandemia está tendo um grande impacto na busca de segurança. A tribo é uma forma de segurança, mas pode facilmente se transformar em uma mentalidade tribal de “nós contra eles”.

A pandemia comprimiu todos nós. É muito mais difícil passar pelo desagradável. E estar emocionalmente desconfortável é como estar em um campo aberto com seus arquiinimigos. Estamos em um ambiente comprimido e todos esses instintos tribais são ativados com muito mais facilidade.

Quando há hierarquia
​O poder é muito maleável. Acho que existem dezenas de fontes de poder. Algumas pessoas têm mais poder hierárquico. Se eu tenho dinheiro, as pessoas podem atender o telefone com mais frequência.

Mas, em uma negociação, é útil tentar descobrir quais são minhas fontes de poder. Se não chegarmos a um acordo, o que posso fazer? Há poder, por exemplo, em entender os interesses do outro lado. Se estou negociando com você uma nova política para a empresa e precisamos que o presidente diga sim, que o vice-presidente aceite. Quanto mais eu entendo os interesses dos outros, mais poderoso sou.

Saúde mental no trabalho
Um dos conceitos mais fundamentais, em minha opinião, é o poder da apreciação. Apreciação, da forma como uso, não significa apenas dizer obrigado, não é gratidão. O que quero dizer é um entendimento profundo daquilo que a outra pessoa vive.

Enquanto passamos pela pandemia, acredito que, como seres humanos, precisamos de mais apreço do que nunca. Então, no local de trabalho, talvez a liderança executiva possa encontrar maneiras de ser um pouco mais gentil com a força de trabalho.

Não significa que as expectativas são menores, mas que o apoio é maior. É dizer ‘estamos aqui para você emocionalmente, nos preocupamos com você. Você não é apenas um objeto que está produzindo dinheiro para nós, é um ser humano que valorizamos’.

Vejo executivos agindo como ‘estou no comando, vou falar e mostrar o quanto sou inteligente’. A pandemia exige muito mais ouvir.

Ouvir mais, falar menos
É comum que igualemos negociações a conversas. Nós as chamamos de conversas de negociação [negotiation talks]. Uma terminologia muito melhor seria chamá-las de “ouvintes de negociação” [negotiation listens].

Porque você vai liderar muito mais a negociação se ouvir. Se você escuta 80% do tempo, e fala 20% do tempo e vice-versa.

Penso isso também sobre minha própria vida. Sabe, encontre tempo e espaço para dar um passeio, sentar-se em silêncio por dez minutos e absorver o que está acontecendo, reconhecer suas emoções.

E a razão para isso é que serei muito mais eficaz em minha vida pessoal e profissional se entendo o luto, os sentimentos, ressentimentos ou o desejo por mais amor e conexão. Quanto mais estou ciente de minha própria experiência interna, mais posso realmente interagir com os outros. Estar atento e ouvir é mesmo muito importante.

Negociando o Inegociável: Como resolver conflitos que parecem impossíveis

  • Preço A partir de R$ 44,92 na versão impressa | R$ 39,90 na versão e-book
  • Autor Daniel Shapiro
  • Editora Globo Livros

‘Belonging Is Stronger Than Facts’: The Age of Misinformation (The New York Times)

nytimes.com

Max Fisher


The Interpreter

Social and psychological forces are combining to make the sharing and believing of misinformation an endemic problem with no easy solution.

An installation of protest art outside the Capitol in Washington.
Credit: Jonathan Ernst/Reuters

Published May 7, 2021; Updated May 13, 2021

There’s a decent chance you’ve had at least one of these rumors, all false, relayed to you as fact recently: that President Biden plans to force Americans to eat less meat; that Virginia is eliminating advanced math in schools to advance racial equality; and that border officials are mass-purchasing copies of Vice President Kamala Harris’s book to hand out to refugee children.

All were amplified by partisan actors. But you’re just as likely, if not more so, to have heard it relayed from someone you know. And you may have noticed that these cycles of falsehood-fueled outrage keep recurring.

We are in an era of endemic misinformation — and outright disinformation. Plenty of bad actors are helping the trend along. But the real drivers, some experts believe, are social and psychological forces that make people prone to sharing and believing misinformation in the first place. And those forces are on the rise.

“Why are misperceptions about contentious issues in politics and science seemingly so persistent and difficult to correct?” Brendan Nyhan, a Dartmouth College political scientist, posed in a new paper in Proceedings of the National Academy of Sciences.

It’s not for want of good information, which is ubiquitous. Exposure to good information does not reliably instill accurate beliefs anyway. Rather, Dr. Nyhan writes, a growing body of evidence suggests that the ultimate culprits are “cognitive and memory limitations, directional motivations to defend or support some group identity or existing belief, and messages from other people and political elites.”

Put more simply, people become more prone to misinformation when three things happen. First, and perhaps most important, is when conditions in society make people feel a greater need for what social scientists call ingrouping — a belief that their social identity is a source of strength and superiority, and that other groups can be blamed for their problems.

As much as we like to think of ourselves as rational beings who put truth-seeking above all else, we are social animals wired for survival. In times of perceived conflict or social change, we seek security in groups. And that makes us eager to consume information, true or not, that lets us see the world as a conflict putting our righteous ingroup against a nefarious outgroup.

This need can emerge especially out of a sense of social destabilization. As a result, misinformation is often prevalent among communities that feel destabilized by unwanted change or, in the case of some minorities, powerless in the face of dominant forces.

Framing everything as a grand conflict against scheming enemies can feel enormously reassuring. And that’s why perhaps the greatest culprit of our era of misinformation may be, more than any one particular misinformer, the era-defining rise in social polarization.

“At the mass level, greater partisan divisions in social identity are generating intense hostility toward opposition partisans,” which has “seemingly increased the political system’s vulnerability to partisan misinformation,” Dr. Nyhan wrote in an earlier paper.

Growing hostility between the two halves of America feeds social distrust, which makes people more prone to rumor and falsehood. It also makes people cling much more tightly to their partisan identities. And once our brains switch into “identity-based conflict” mode, we become desperately hungry for information that will affirm that sense of us versus them, and much less concerned about things like truth or accuracy.

Border officials are not mass-purchasing copies of Vice President Kamala Harris’s book, though the false rumor drew attention.
Credit: Gabriela Bhaskar for The New York Times

In an email, Dr. Nyhan said it could be methodologically difficult to nail down the precise relationship between overall polarization in society and overall misinformation, but there is abundant evidence that an individual with more polarized views becomes more prone to believing falsehoods.

The second driver of the misinformation era is the emergence of high-profile political figures who encourage their followers to indulge their desire for identity-affirming misinformation. After all, an atmosphere of all-out political conflict often benefits those leaders, at least in the short term, by rallying people behind them.

Then there is the third factor — a shift to social media, which is a powerful outlet for composers of disinformation, a pervasive vector for misinformation itself and a multiplier of the other risk factors.

“Media has changed, the environment has changed, and that has a potentially big impact on our natural behavior,” said William J. Brady, a Yale University social psychologist.

“When you post things, you’re highly aware of the feedback that you get, the social feedback in terms of likes and shares,” Dr. Brady said. So when misinformation appeals to social impulses more than the truth does, it gets more attention online, which means people feel rewarded and encouraged for spreading it.

How do we fight disinformation? Join Times tech reporters as they untangle the roots of disinformation and how to combat it. Plus we speak to special guest comedian Sarah Silverman. R.S.V.P. to this subscriber-exclusive event.

“Depending on the platform, especially, humans are very sensitive to social reward,” he said. Research demonstrates that people who get positive feedback for posting inflammatory or false statements become much more likely to do so again in the future. “You are affected by that.”

In 2016, the media scholars Jieun Shin and Kjerstin Thorson analyzed a data set of 300 million tweets from the 2012 election. Twitter users, they found, “selectively share fact-checking messages that cheerlead their own candidate and denigrate the opposing party’s candidate.” And when users encountered a fact-check that revealed their candidate had gotten something wrong, their response wasn’t to get mad at the politician for lying. It was to attack the fact checkers.

“We have found that Twitter users tend to retweet to show approval, argue, gain attention and entertain,” researcher Jon-Patrick Allem wrote last year, summarizing a study he had co-authored. “Truthfulness of a post or accuracy of a claim was not an identified motivation for retweeting.”

In another study, published last month in Nature, a team of psychologists tracked thousands of users interacting with false information. Republican test subjects who were shown a false headline about migrants trying to enter the United States (“Over 500 ‘Migrant Caravaners’ Arrested With Suicide Vests”) mostly identified it as false; only 16 percent called it accurate. But if the experimenters instead asked the subjects to decide whether to share the headline, 51 percent said they would.

“Most people do not want to spread misinformation,” the study’s authors wrote. “But the social media context focuses their attention on factors other than truth and accuracy.”

In a highly polarized society like today’s United States — or, for that matter, India or parts of Europe — those incentives pull heavily toward ingroup solidarity and outgroup derogation. They do not much favor consensus reality or abstract ideals of accuracy.

As people become more prone to misinformation, opportunists and charlatans are also getting better at exploiting this. That can mean tear-it-all-down populists who rise on promises to smash the establishment and control minorities. It can also mean government agencies or freelance hacker groups stirring up social divisions abroad for their benefit. But the roots of the crisis go deeper.

“The problem is that when we encounter opposing views in the age and context of social media, it’s not like reading them in a newspaper while sitting alone,” the sociologist Zeynep Tufekci wrote in a much-circulated MIT Technology Review article. “It’s like hearing them from the opposing team while sitting with our fellow fans in a football stadium. Online, we’re connected with our communities, and we seek approval from our like-minded peers. We bond with our team by yelling at the fans of the other one.”

In an ecosystem where that sense of identity conflict is all-consuming, she wrote, “belonging is stronger than facts.”

Ensaio investiga formação da identidade narrativa sertaneja (Jornal da Unicamp)

Campinas, 04 de março de 2016 a 11 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 648

Pesquisador analisa mapas, obras literárias e até cordéis para fundamentar tese desenvolvida no IEL

Por Luiz Sugimoto

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“Sertão: palavra de enorme riqueza no imaginário, na história e cultura(s) do Brasil. Lugar desértico, paisagem árida e desoladora, onde vive uma população em constante processo migratório, lugar de uma rica cultura popular e também um espaço de barbárie, misticismo e miséria? O sertão se apresenta sob diversos aspectos, despertando sensações e sentimentos, evocando imagens e apresentando-se como resultado de uma longa experiência sócio-histórica e ficcional. Este trabalho investiga a formação da identidade narrativa sertaneja, percorrendo assim uma trajetória que tem como característica central a multiplicidade de autores, gêneros e discursos que formam as veredas de um processo em contínua transformação.”

É assim que Jorge Henrique da Silva Romero resume sua tese de doutorado “Sertão, sertões e outras ficções: ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja”, orientada pela professora Suzi Frankl Sperber e defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Um diferencial nesta pesquisa é a sua apresentação em formato de ensaio. “É um formato muito pouco usual, que vai contra a corrente acadêmica, mas considerei uma boa estratégia para focalizar este espaço tão fugidio, que escapa a cada momento de uma classificação. A ousadia valeu a pena. Como o objetivo era trabalhar com o imaginário, ganhei inúmeras possibilidades em termos ficcionais”, justifica o autor.

Na opinião de Jorge Romero, existe um transbordamento do imaginário sobre o sertão, hoje geograficamente demarcado pelo Polígono das Secas, que compreende os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e norte de Minas Gerais. “O tema está presente em nossa história desde a vinda dos colonizadores portugueses. Raimundo Faoro, em “Os donos do poder”, afirma que o sertão era então ‘outro mar ignoto’, outro espaço a se conhecer. Sérgio Buarque de Holanda destaca as estratégias distintas da colonização espanhola e da lusitana: a espanhola entrou terra adentro, devastando e povoando o interior; a portuguesa fortaleceu os domínios no litoral e conservou intacto o sertão, até as entradas dos bandeirantes atrás de metais e pedras preciosas.”

O autor da tese lembra que o primeiro dicionário brasileiro, “Vocabulario portuguez e latino” (publicado entre 1712 e 1721), do padre Raphael Bluteau, já trazia a palavra sertão, ainda que grafada de diferentes formas: “certão”, “sertam”, “sertaão”. “A palavra existia mesmo antes da colonização, tanto que Caminha expressou assim seu assombro com a vastidão daquelas terras: ‘pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa’. A palavra também aparece relacionada a territórios africanos, conservando esta propriedade do desconhecido.”

Jorge Romero contou com a participação na banca examinadora do professor Berthold Zilly, que traduziu para o alemão “Os sertões”, de Euclydes da Cunha, e agora está traduzindo “Grandes sertões: veredas”, de Guimarães Rosa. “O fascínio pelo sertão fez com que o professor Zilly viajasse para o Brasil a fim de conhecer as terras de suas leituras. Ao chegar às comunidades perguntando onde ficava o sertão, a resposta era sempre: ‘é mais pra lá, é mais pra lá’. O que temos é um espaço de indeterminação, em que o sertão passa a ser o espaço do outro (de alteridade) e, via de regra, opondo civilização e barbárie – esta é a tônica quando se fala de litoral e sertão.”

Nascido em Fortaleza, mas de família do sertão, o pesquisador afirma que seu objetivo na tese foi justamente problematizar esta vastidão da região no imaginário e também no presente, percorrendo a historiografia e a literatura brasileira desde a “Carta de Caminha”. “Analisei mapas, imagens e cordéis. E, para viabilizar a ideia de um ensaio, recorri a autores fundamentais como Jean Starobinski, que diz: ‘O ensaio nunca deve deixar de estar atento à resposta precisa que as obras ou os eventos interrogados devolvem às nossas questões. Em nenhum momento ele deve romper seu compromisso com a clareza e a beleza da linguagem’. A clareza e a beleza foram preocupações presentes o tempo todo na redação do texto.”

Mitos civilizatórios 

Na primeira parte da tese, Romero procura explorar aspectos do sertão presentes na história do Brasil, como o “mito da conquista” pelos primeiros exploradores, os bandeirantes. “Utilizo uma epígrafe de Walter Benjamin que resume bem essa questão: ‘Nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura’. Transitando entre história e literatura, procuro mostrar que civilização e barbárie estão presentes neste movimento dos bandeirantes.”

O pesquisador atenta que a questão dos mitos civilizatórios é bastante perceptível nos mapas dos séculos 16 e 17, dando o exemplo do conhecido mapa de Reinel (1519), confeccionado a mão. “Nele, o litoral descrito é em detalhes, enquanto o interior traz figuras de dragão, animais exóticos e indígenas – elementos míticos com os quais cartógrafos representavam o desconhecido e o perigoso. Há gravuras em que o mar também é preenchido com essas figuras.”

No mapa “Brasilia Barbarorum” (Brasil Bárbaro), acrescenta Jorge Romero, elaborado pelo cartógrafo alemão Georg Seutter em 1740, o litoral é igualmente descrito em detalhes, enquanto um vazio representa o sertão, indicando vastas extensões e ausência de civilização. “Ao ser inserido no interior das fronteiras portuguesas, o sertão adquiria um sentimento de pertença e um status de território à espera da integração pelo colonizador. É um espaço que Euclides da Cunha vai preencher com a narrativa de uma guerra entre a civilização e este Brasil bárbaro; para isso, vai ter que descrever esse outro tipo humano, completamente diferente do homem do litoral.”

Hércules-Quasímodo

“Dualidade Hércules-Quasímodo” é o título da segunda parte da tese, em que o autor introduz o elemento da “identidade narrativa”, conceito do filósofo Paulo Ricoeur que o ajudou a lidar com a imensa quantidade de obras e interpretações sobre o sertão. “Por exemplo, em ‘Os sertões’, Euclides da Cunha utiliza uma metáfora belíssima sobre dois sentimentos em relação ao sertanejo: primeiro, ele descreve o homem da caatinga, Hércules-Quasímodo, montado em seu cavalo como se formasse a imagem de um centauro, um corpo metade homem e metade cavalo, desgracioso e fatigado na sua imobilidade; de repente, um novilho escapa e o sertanejo se transforma em figura titânica, acossando o boi fugitivo. Esta metáfora oferece duas dimensões: uma de rebaixamento, do corpo torto e desengonçado, e outra da idealização, presente em folhetos de cordel com a imagem de Lampião como herói.”

Romero considera que Euclides da Cunha consegue oferecer uma síntese de toda a literatura sobre este espaço exótico, unindo a sua própria experiência no sertão. “Alguns escritores voltaram-se para esses lugares recônditos para mostrar a seus concidadãos, da república das letras, que existia um outro Brasil. Desde José de Alencar com ‘O Sertanejo’, passando por Taunay com ‘Inocência’, até as obras regionalistas tratando da fome e da seca, como ‘A fome’ de Rodolfo Teófilo e ‘Os retirantes’ de José do Patrocínio; e mesmo a literatura de viagem, que vai ser tema do livro ‘O Brasil não é longe daqui’, de Flora Süssekind, pensando a importância desse estilo de narrativa para a constituição do sistema literário brasileiro.”

Microfísica poiética

Na última parte da tese, o autor apresenta a sua noção de “microfísica poiética”, tomando como referência a “microfísica do poder” de Foucault, sobre a horizontalização do poder – que não está localizado em um lugar, visto que existe uma teia de relações de poder. “‘Poiesis’, aqui, é o conceito fundamental que se refere à cri(ação), sugerindo a atividade sempre reveladora, onde narrativas diversas encontram espaço privilegiado para aflorar. A ‘microfísica poiética’ pressupõe um movimento sempre aberto à incorporação de novas produções artísticas.”

Por esta noção, esclarece Jorge Romero, o sertão deixa de ser território do letrado, como no século 19, e sim um território primordialmente da obra de arte. “Antes, conhecíamos o sertão apenas através dos seus representantes, como Alencar, Taunay, Patrocínio e Euclides. Com a ‘microfísica poiética’ introduzi outros elementos a partir de Guimarães Rosa e Patativa do Assaré [Antônio Gonçalves da Silva], que tratam de sertões diferentes: ‘Grande sertão: veredas’ é um sertão do norte de Minas, de jagunços, em que temos um sertanejo como narrador, explorando muito bem as contradições metafísicas e sociais ali presentes; e a obra de Patativa do Assaré é o sertão cearense, das contradições políticas por conta do seu esquecimento, mas não na perspectiva centralizada do letrado da cidade e sim do próprio sertanejo.”

Publicação

Tese: “Sertão, sertões e outras ficções: ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja”
Autor: Jorge Henrique da Silva Romero
Orientadora: Suzi Frankl Sperber
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

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‘Na África, indaguei rei da minha etnia por que nos venderam como escravos’ (BBC Brasil)

14 janeiro 2016

Zulu Araújo | Foto: Divulgação

Image captionA convite de produtora, arquiteto fez exame genético e foi até Camarões para conhecer seus ancestrais

“Somos o único grupo populacional no Brasil que não sabe de onde vem”, queixa-se o arquiteto baiano Zulu Araújo, de 63 anos, em referência à população negra descendente dos 4,8 milhões de africanos escravizados recebidos pelo país entre os séculos 16 e 19.

Araújo foi um dos 150 brasileiros convidados pela produtora Cine Group para fazer um exame de DNA e identificar suas origens africanas.

Ele descobriu ser descendente do povo tikar, de Camarões, e, como parte da série televisiva Brasil: DNA África, visitou o local para conhecer a terra de seus antepassados.

“A viagem me completou enquanto cidadão”, diz Araújo. Leia, abaixo, seu depoimento à BBC Brasil:

“Sempre tive a consciência de que um dos maiores crimes contra a população negra não foi nem a tortura, nem a violência: foi retirar a possibilidade de que conhecêssemos nossas origens. Somos o único grupo populacional no Brasil que não sabe de onde vem.

Meu sobrenome, Mendes de Araújo, é português. Carrego o nome da família que escravizou meus ancestrais, pois o ‘de’ indica posse. Também carrego o nome de um povo africano, Zulu.

 

Momento em que o Zulu confronta o rei tikar sobre a venda de seus antepassados

Ganhei o apelido porque meus amigos me acharam parecido com um rei zulu retratado num documentário. Virou meu nome.

Nasci no Solar do Unhão, uma colônia de pescadores no centro de Salvador, local de desembarque e leilão de escravos até o final do século 19. Comecei a trabalhar clandestinamente aos 9 anos numa gráfica da Igreja Católica. Trabalhava de forma profana para produzir livros sagrados.

Bom aluno, consegui passar no vestibular para arquitetura. Éramos dois negros numa turma de 600 estudantes – isso numa cidade onde 85% da população tem origem africana. Salvador é uma das cidades mais racistas que eu conheço no mundo.

Ao participar do projeto Brasil: DNA África e descobrir que era do grupo étnico tikar, fiquei surpreso. Na Bahia, todos nós especulamos que temos ou origem angolana ou iorubá. Eu imaginava que era iorubano. Mas os exames de DNA mostram que vieram ao Brasil muito mais etnias do que sabemos.

Zulu Araújo | Foto: Divulgação

“Era como se eu estivesse no meu bairro, na Bahia, e ao mesmo tempo tivesse voltado 500 anos no tempo”, diz Zulu sobre chegada a Camarões

Zulu Araújo | Foto: Divulgação

Pergunta sobre escravidão a rei camaronense foi tratada como “assunto delicado” e foi respondida apenas no dia seguinte

Quando cheguei ao centro do reino tikar, a eletricidade tinha caído, e o pessoal usava candeeiros e faróis dos carros para a iluminação. Mais de 2 mil pessoas me aguardavam. O que senti naquele momento não dá para descrever, de tão chocante e singular.

As pessoas gritavam. Eu não entendia uma palavra do que diziam, mas entendia tudo. Era como se eu estivesse no meu bairro, na Bahia, e ao mesmo tempo tivesse voltado 500 anos no tempo.

O povão me encarava como uma novidade: eu era o primeiro brasileiro de origem tikar a pisar ali. Mas também fiquei chocado com a pobreza. As pessoas me faziam inúmeros pedidos nas ruas, de camisetas de futebol a ajuda para gravar um disco. Não por acaso, ali perto o grupo fundamentalista Boko Haram (originário da vizinha Nigéria) tem uma de suas bases e conta com grande apoio popular.

De manhã, fui me encontrar com o rei, um homem alto e forte de 56 anos, casado com 20 mulheres e pai de mais de 40 filhos. Ele se vestia como um muçulmano do deserto, com uma túnica com estamparias e tecidos belíssimos.

Depois do café da manhã, tive uma audiência com ele numa das salas do palácio. Ele estava emocionado e curioso, pois sabia que muitos do povo Tikar haviam ido para as Américas, mas não para o Brasil.

Fiz uma pergunta que me angustiava: perguntei por que eles tinham permitido ou participado da venda dos meus ancestrais para o Brasil. O tradutor conferiu duas vezes se eu queria mesmo fazer aquela pergunta e disse que o assunto era muito sensível. Eu insisti.

Ficou um silêncio total na sala. Então o rei cochichou no ouvido de um conselheiro, que me disse que ele pedia desculpas, mas que o assunto era muito delicado e só poderia me responder no dia seguinte. O tema da escravidão é um tabu no continente africano, porque é evidente que houve um conluio da elite africana com a europeia para que o processo durasse tanto tempo e alcançasse tanta gente.

No dia seguinte, o rei finalmente me respondeu. Ele pediu desculpas e disse que foi melhor terem nos vendido, caso contrário todos teríamos sido mortos. E disse que, por termos sobrevivido, nós, da diáspora, agora poderíamos ajudá-los. Disse ainda que me adotaria como seu primeiro filho, o que me daria o direito a regalias e o acesso a bens materiais.

Foi uma resposta política, mas acho que foi sincera. Sei que eles não imaginavam que a escravidão ganharia a dimensão que ganhou, nem que a Europa a transformaria no maior negócio de todos os tempos. Houve um momento em que os africanos perderam o controle.

Zulu Araújo | Foto: Divulgação

“Se qualquer pessoa me perguntar de onde sou, agora já sei responder. Só quem é negro pode entender a dimensão que isso possui.”

Um intelectual senegalês me disse que, enquanto não superarmos a escravidão, não teremos paz – nem os escravizados, nem os escravizadores. É a pura verdade. Não dá para tratar uma questão de 500 anos com um sentimento de ódio ou vingança.

A viagem me completou enquanto cidadão. Se qualquer pessoa me perguntar de onde sou, agora já sei responder. Só quem é negro pode entender a dimensão que isso possui.

Acho que os exames de DNA deveriam ser reconhecidos pelo governo, pelas instituições acadêmicas brasileiras como um caminho para que possamos refazer e recontar a história dos 52% dos brasileiros que têm raízes africanas. Só conhecendo nossas origens poderemos entender quem somos de verdade.”

Tatunca Nara: alemão vive na Amazônia e tem até RG que diz que ele é índio (Der Spiegel)

Alexander Smoltczyk

20/07/201406h00

Hansi Richard Günther Hauck, nascido em Grub am Forst, na Bavária, mora em Manaus e acredita ser Tatunca Nara, chefe da tribo Ugha Mongulala. Acima, Tatunca Nara em imagem sem data divulgada pelo escritor Karl Brugger

Hansi Richard Günther Hauck, nascido em Grub am Forst, na Bavária, mora em Manaus e acredita ser Tatunca Nara, chefe da tribo Ugha Mongulala. Acima, Tatunca Nara em imagem sem data divulgada pelo escritor Karl Brugger

No final dos anos 60, um homem apareceu no Estado do Acre, no meio da região amazônica. Ele usava um pano amarrado sobre os genitais e uma pena, carregava um arco e dizia que era Tatunca Nara, chefe de Ugha Monulala. Ninguém nunca tinha ouvido falar de uma tribo indígena com aquele nome. Além disso, o homem não se parecia em nada com um índio. Ele era branco e falava com um forte sotaque francês.

Ele dizia que tinha herdado o sotaque de sua mãe, explicando que ela era uma freira alemã que havia sido levada pelos índios. Seu povo, segundo ele, vivia em uma cidade subterrânea chamada Akakor, e o alemão era a única língua falada lá – resultado da prole de 2.000 soldados nazistas que viajaram pela Amazônia em submarinos.

Sua história teria deixado as pessoas surpresas em qualquer outro lugar. Mas histórias bizarras não são incomuns na região amazônica, então ninguém deu muita atenção a Tatunca Nara.

Por outro lado, ele era simpático e sua aparição não teria resultado em muita coisa se não tivesse chamado a atenção de Karl Brugger, um correspondente da rede de televisão alemã ARD na época. Ele visitou Tatunca Nara em Manaus e gravou a história em 12 fitas de áudio.

Segundo Brugger: “foi a história mais estranha que já ouvi”. Era uma história de visitantes extraterrestres, ritos secretos de “anciãos” e incursões de “bárbaros brancos”, todas descritas exaustivamente e em grande detalhe, e sem interrupções “desde o ano zero até o presente”.

Mais surpreendente ainda foi o fato de que o livro de Brugger, “The Chronicle of Akakor” [“A Crônica de Akakor”], tenha desfrutado de certo sucesso. Nos círculos Nova Era, as histórias de Tatunca foram estudadas como se fossem Manuscritos do Mar Morto. Elas incluíam trechos como: “cinco dias vazios no final do ano são dedicados à adoração de nossos deuses.”

O oceanógrafo Jacques Cousteau contratou Tatunca como guia quando explorou a região com seu barco, o Calypso, em 1983. O filme de aventura “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal”, de 2008, é sobre uma cidade submersa na Amazônia chamada Akator e uma tribo indígena chamada Ugha Mogulala. O personagem do filme se veste com um pano na cintura e uma pena.

O original existe? Tatunca está vivo? Este repórter viajou recentemente para o Brasil em uma tentativa de encontrar o homem lendário.

Em busca de Tatunca e boatos sinistros
O barco Almirante Azevedo II sobe e desce o Rio Negro há mais de 30 anos. A viagem de Manaus até Barcelos leva 35 horas, uma jornada através de águas negras que se tornam ácidas por causa da vegetação em decomposição. Estamos na temporada de chuvas e a floresta está inundada, transformando o Rio Negro em uma vasta rede de afluentes e brejos fétidos.

Raimundo Azevedo, o capitão, está agachado perto de uma pilha de pneus no deck inferior, recebendo uma massagem nas costas de um fisioterapeuta que entrou no barco em algum momento. Quando questionado sobre Tatunca, ele diz: “o índio da Alemanha? É claro que eu o conheço. Todo mundo no rio o conhece. É claro que ele ainda está vivo – a não ser que alguém tenha atirado nele na semana passada.”

O Almirante Azevedo II viajou pela noite negra como tinta, em meio a uma bolha de sons de água passando e do ruído explosivo e entorpecente do motor de diesel, ruídos que ecoavam em uma parede de vegetação exuberante e enredada ao longo das margens do rio. O capitão Azevedo coloca uma camisa e sobe as escadas até o deck superior para jogar cartas.

Os passageiros, que não somam mais do que poucas dúzias, estão deitados em suas redes, embrulhados como salsichas penduradas para defumar. Um cristão pentecostal faz o sinal da cruz e reza, enquanto o rapaz ao seu lado está entretido com fotos de vaginas em seu telefone celular. Parece que cada um tem um jeito diferente de começar o dia. O capitão, que ouviu falar sobre a fortaleza de Tatunca na floresta, diz: “ninguém ousa ir até lá, porque ele instalou armadilhas com explosivos e prendeu armas nas árvores. Ninguém sabe o que ele esconde lá.” De vez enquanto, um guincho agudo é ouvido à medida que o barco passa desliza próximo às margens.

“Teve um alemão que escreveu um livro sobre Tatunca”, disse o capitão. “Ele até tatuou uma tartaruga no coração, assim como Tatunca. Eles o mataram no Rio.”

“A bala passou direto pela tartaruga”, acrescentou Lucio, um motorista de táxi gordo com uma pedaço do cotovelo saindo como uma protuberância pelo pulso, resultado de um acidente de moto.

“Mas aquele não era Tatunca.”

“Talvez não.”

O barco sobe lentamente o rio, abrindo caminho entre matéria orgânica pré-histórica, e quanto mais ele se esquiva de troncos de árvores à deriva e ilhas flutuantes, mais o grupo discute os rumores sobre o alemão que vive rio acima – e mais sinistros eles se tornam.

Alguns ossos foram encontrados há sete anos, diz Lucio. “Ossos longos. Não eram de nenhum morador da Amazônia. Talvez um alemão.” Tatunca o matou, diz Lucio, para ficar com seu dinheiro e sua mulher. “É o que as pessoas dizem. Mas Tatunca diz que não foi ele.”

“Talvez não. Eles dizem que ele está fugindo da polícia de seu país”, diz o capitão. Agora, Tatunca deve ter bem os seus 70 anos. E ainda assim, observa o capitão, ainda está forte e em boa condição física. “Ele odeia os gringos”, diz outro homem. Ele faz uma pausa, olha para os outros, e diz: “vocês são gringos”.

O barco desliza entre as margens, vazias e ainda assim promissoras. Uma sombra ocasionalmente surge na superfície da água, um dos botos cor-de-rosa nativos do Rio Negro, que, segundo dizem, vão para a terra à noite e engravidam as mulheres.

O aventureiro alemão Rüdiger Nehberg também encontrou este índio branco, Tatunca Nara, durante uma expedição entre os índios Yanomami. Os dois homens se odiaram à primeira vista e acusaram um ao outro de mentiras e assassinato. Sua animosidade mútua aparentemente persiste até hoje. “Tatunca quer me afogar no Rio Negro”, escreveu Nehberg em um e-mail em maio.

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Tribo isolada da Amazônia é filmada pela primeira vez

13.ago.2013 – Nove índios da etnia kawahiva andavam nus pela mata em Colniza, no Mato Grosso, quando foram filmados por uma equipe da Funai (Fundação Nacional do Índio). Esta é a primeira vez que a tribo, que evita contato com o homem branco, é registrada. Os homens levavam arcos e flechas, indicando que são os guerreiros do grupo, enquanto as mulheres carregavam alguns objetos e as crianças (acima) Leia mais Reprodução/TV Globo

Assassinatos e desaparecimentos
A animosidade vem do fato de que Nehberg publicou um livro em 1991 intitulado “The Self-Made Chief” [algo como “O Homem Que Se Fez Cacique”].

Nele, ele revelou que o verdadeiro nome de Tatunca Nara é Hansi Richard Günther Hauck, e que ele nasceu em Grub am Forst, uma cidade perto de Coburgo, na Baviera, e não no Rio Negro, em 1941.

De acordo com Nehberg, Hauck, que leu muitos livros ao estilo de “Tarzan” quando era menino, abandonou sua mulher e filhos em 1966, aceitou um emprego a bordo do navio cargueiro Dorthe Odendorff, e eventualmente desapareceu no Brasil. Amigos antigos dizem que, quando era criança, Hauck uma vez disse ter testemunhado a aterrissagem de seres extraterrestres.

Isso tudo seria inofensivo se não tivesse havido três mortes que continuam sem explicação até hoje, mortes que ocorreram às margens do Rio Negro. Todas as três vítimas tinham sido atraídas para a região depois de ler “A Crônica de Akakor” e pediram a um certo Tatunca Nara para guiá-las até a cidade submersa. E, de acordo com testemunhas, ele fez a mesma promessa para todas as três: “vou mostrar-lhe Akakor”.
O Departamento de Polícia Criminal Federal da Alemanha lançou uma investigação sobre o suspeito assassinato e desaparecimento de três indivíduos “contra o cidadão alemão Günther Hauck, que vive no Brasil com uma identidade falsa”. Mas a investigação não chegou a lugar nenhum.

Depois de 35 horas de viagem insuportavelmente lenta, Barcelos aparece na margem esquerda como uma profecia, a cerca de 500 quilômetros rio acima a partir de Manaus. Há 30 igrejas evangélicas nesta cidade de 15 mil moradores, alguns dos quais dirigem pela região proclamando a salvação pelos alto-falantes de suas picapes em meio ao ar parado e empoeirado: “Deus não nega nenhum milagre!” É a religião dos abastados, daqueles que preferem acreditar no futuro e não na vida depois da morte.

O fascínio da Amazônia
O rio Amazonas e seus afluentes sempre exerceram um certo fascínio sobre as pessoas cansadas do ordinário, caçadores de fortunas e garimpeiros – entre eles o ator alemão Klaus Kinski, o geógrafo do século 19 Alexandre von Humboldt, um explorador nazista chamado Otto Schulz-Kampfhenkel e inúmeros defensores da floresta. A encarnação mais recente do aventureiro amazônico é um texano esquelético com olhos molhados, chamado pelos amigos de “o fabuloso Faltermann”, que empurrava sua bicicleta na frente do Café Regional.

Aos 20 anos, Patrick Faltermann deixou a casa dos pais no Cinturão da Bíblia nos EUA, profundamente conservador, embarcou em um navio cargueiro para Belém, uma cidade na Amazônia, e trocou seu laptop por um caiaque. Ele se pôs a remar no rio. Fez isso à moda antiga, como ele diz, sem GPS, contra a correnteza e com pouco mais do que o livro “Through the Brazilian Wilderness” de Teddy Roosevelt, na mochila. Foi uma jornada de noites negras e solitárias, capim cortante, aranhas venenosas e de se perder durante dias. Agora, quatro anos depois, Faltermann viajou 4.500 quilômetros e diz: “encontrei Tatunca há quatro semanas. Ele deve ter seus 70 e poucos anos, mas é mais forte que eu. As pessoas parecem ter medo dele, não é?”

Tatunca colocou armadilhas com dinamite em volta de sua cabana no meio da floresta, diz Faltermann. “Ele tem amigos militares. Isso ajuda, porque muitas pessoas gostariam de matá-lo a tiros. Ele aparentemente disse a uma menina que era pai dela e que ela tinha de ir com ele, em seu barco. O homem é incrível.”

Uma brisa fresca vem de vez em quando do rio no meio do dia quente. Faltermann abre outra lata de cerveja Skol, espera até que um caminhão passe e diz: “as histórias dele parecem um monte de mentiras. E o português dele é pior do que o meu. É como se fosse uma grande ‘ego trip’. Mas ele conhece a área melhor do que ninguém. E ele tem algum interesse na área indígena, subindo o rio Araçá.”

Algum interesse? “El Dorado. Em tese fica lá em cima perto dos dois picos, acima da cachoeira. Tatunca é o único que foi lá até agora.” Para as pessoas de Barcelos, “El Dorado” parece ser um lugar como qualquer outro.

Até recentemente, Barcelos era a capital mundial do comércio de peixes ornamentais, tão conhecida no mundo dos aquaristas quanto Cognac é entre os entusiastas da bebida. Em 1831, o pesquisador austríaco Johann Natterer descobriu o acará de Symphysodon, ou o acará-disco, nas águas salobras em torno de Barcelos. A espécie, apelidada de “rei dos peixes de aquário”, habita milhões de salas de estar hoje, normalmente junto com o tetra neon, o peixe ornamental mais popular de todos e também nativo do Rio Negro.

Em Barcelos, os orelhões têm formado de peixes ornamentais, e durante o Carnaval as pessoas se dividem em dois grupos, os Neons e os Discos, e atacam umas às outras usando fantasias de peixe feitas em casa.

Mas agora que o peixe ornamental está sendo criado em larga escala na Ásia, o comércio caiu 70%.

Há algum tempo, dois alemães fanáticos por aquários foram presos por biopirataria. Eles acreditaram nas garantias de seu guia, um nativo que, para sua surpresa, falava alemão fluentemente e chamava a si mesmo de Tatunca Nara.

Na prefeitura, um prédio embolorado perto do rio, somos informados de que a “Crônica de Akakor” gerou toda uma indústria de turismo. Além dos aquaristas, vários amigos da floresta e dos índios começaram a visitar a área – mas isso parou depois das notícias sobre as três mortes.
A primeira pessoa a desaparecer foi John Reed, um jovem norte-americano. Isso foi no final dos anos 80.

O especialista em florestas suíço Herbert Wanner desapareceu em 1984. Seus tênis, alguns ossos e um crânio com um buraco de bala foram encontrados um ano depois. Foi sobre esses ossos que os homens do rio haviam falado.

Reed tratava a “Crônica” como um guia para sua própria vida. Em sua última comunicação, uma carta para seus pais, ele escreveu: “acredito na honestidade de Tatunca mais do que nunca.”

A terceira pessoa a desaparecer foi Christine Heuser, uma instrutora de ioga de Kehl am Rhein, uma cidade no sudoeste da Alemanha. Ela também devorou a “Crônica de Akakor”, e estava convencida de que tinha sido mulher de Tatunca Nara em uma vida passada. Ela o visitou no verão de 1986. Há uma foto que a mostra dependurada em um cipó, com o torso nu. Não foram encontrados os restos de Heuser.

Águas escuras
Desde que o comércio de peixes ornamentais praticamente parou, os donos de barcos no alto do Rio Negro começaram a procurar outros trabalhos. Muitos servem como guias para pescadores norte-americanos que vão para a região em busca do peixe Oscar. Outros sobem o Rio Negro e entram em afluentes ao longo da fronteira com a Colômbia, onde usam seus barcos para traficar pacotes de cocaína.

“Perguntei a Tatunca se ele tinha matado aqueles três. Ele diz que não.” Para Mamá, a palavra de Tatunca é o bastante. Mamá, um homem rústico com uma tatuagem de cavalo-marinho e uma bandana na cabeça, é chamado de “Pirata” em Barcelos. Ele usa uma bandeira pirata em seu barco e está em casa nas águas escuras do rio. “Só não transporto drogas”, observa Mamá, sem que a pergunta tenha sido feita. Quando ele sorri, um dente de cerâmica vermelho aparece no canto direito de sua boca.

Mamá diz que é o único amigo de Tatunca. “Eu disse para ele que não estava interessado em suas histórias. Só quero um pouco do ouro.” De acordo com Mamá, os dois homens subiram o rio Araçá juntos em novembro.

“Até o ponto perto da cachoeira. Lá há duas entradas de caverna. Talvez fossem túneis construídos pelos nazistas. Tentamos, sem sucesso, descer de rapel. Tatunca começou dizendo que havia algumas coisas muito estranhas.” O que poderia parecer estranho para um pirata chamado Mamá? “Ele disse: o rei Salomão está prestes a vir cavalgando.” E então? “Ele queria que eu o matasse.” Mas o rei não se materializou. Talvez fosse a entrada errada da caverna. “Tatunca está provavelmente está na cabana agora. Posso levá-lo até lá.”

Depois das chuvas torrenciais da noite, a estrada de terra para Ajuricaba é impiedosa. Uma cobra apareceu no meio do caminho no quilômetro 8, e depois de mais dois quilômetros a estrada acabava em lama vermelha na altura dos joelhos. Se Tatunca Nara está de fato em sua cabana na floresta, não há como chegar até ele. “Talvez seja melhor para você”, diz Mamá, o pirata.

“Tatunca? Não, ele não está aqui”

Mas então aparece a sogra de Tatunca, Elfriede Katz, 88.

Sua casa ribeirinha fica na Estrada de Nazaré, na periferia da cidade. Como em todas as casas judias, há um mezuzá contendo versos hebraicos da Torá pendurado sobre a moldura da porta. Katz está de bom humor, sentada em uma cadeira de balanço na varanda. “Tatunca? Não, ele não está aqui”, diz com um sotaque de Bremen. Seus pais, explica, imigraram para o Brasil logo depois que ela nasceu. Mais tarde, Katz se casou com um fabricante de pianos cuja família havia fugido do Holocausto.

Katz se tornou uma soprano e cantou na ópera “La Traviata” em teatros em São Paulo e Porto Alegre. Ela jamais imaginaria que passaria sua velhice na capital mundial do comércio de peixes ornamentais, com um genro índio-alemão, que disse a ela que se chamava Grande Cobra D’Água.

“Minha filha me falou que tinha conhecido um índio-alemão. Tatunca mandava cartas de amor pelo correio militar para ela. Elas vinham com um carimbo de “confidencial”. Então os dois se mudaram para o Rio Negro e viveram entre os ianomami por anos, até que seus dois filhos tiveram que ir para a escola.” Katz parece não ter dúvidas sobre a as origens de seu genro. Ela e seu marido seguiram a filha até Barcelos, onde abriram um pequeno hotel. A maioria dos filhos de Tatunca foi parar em Barcelos, inclusive os três que não deveriam voltar para a floresta.
Katz observa mais tarde que Tatunca não está na região no momento, mas que desceu o rio até Manaus com sua mulher Anita. Ela não sabe quando ele volta, diz ela, e cantarola um trecho de Violetta com sua voz aguda: “È strano…”

Deve ser terrivelmente difícil manter as histórias. É preciso muito esforço para manter uma rede de mentiras, não importa o quão bem construída ela possa ser. Revisões constantes, acréscimos e renovações são necessárias. Algumas mentiras caem por terra enquanto novas são acrescentadas. Tudo isso requer uma atenção constante, especialmente quando novos visitantes chegam, pessoas que querem conhecer os arredores e fazem perguntas. É preciso cautela antes que os visitantes sejam guiados a uma história nova e possivelmente ainda mais fantasiosa. Contar histórias pode ser mais difícil do que a própria vida.

E a vida tem uma forma de escolher seu próprio caminho. Ela encena o encontro com Tatunca Nara de acordo com suas leis improváveis.

Encontro com Tatunca
Finalmente o encontramos no Amazonas, um shopping center em Manaus, entre a lanchonete Bob’s e uma loja C&A (veja fotos). Ele carrega uma sacola de compras. Mas é ele, com seu rosto de ator, as mãos e a pele enrugada e a cabeça com cabelos fartos. Falando com um sotaque da região Franconia da Baviera, ele diz: “Bom dia, eu sou o Tatunca.”

Depois de todas as histórias, rumores e tentativas de demonizar o homem, a sensação é de que estamos diante de algum cacique indígena ficcional – ou talvez de Jack, o estripador. Esta é a história de nosso encontro: o fotógrafo Johannes Arlt precisava de uma camisa nova e Tatunca tinha acompanhado sua mulher Anita para Manaus para uma operação nos olhos. Os dois acontecimentos acabaram coincidindo. Esta foi a primeira vez que ele foi para Manaus em seis anos, diz ele. É o tipo de coincidência que soa como uma das histórias sobre Tatunca.
“Vamos sentar”, diz ele. “Não gosto de estar na cidade. Prefiro estar na floresta, com meus índios.”

Ele não parece ligar para quem está sentado à sua frente. Ele não está interessado em ouvir as histórias dos outros, apenas à sua própria. Ele fala sobre seu tempo entre os índios Yanomami, quando ele e Anita administravam uma enfermaria e uma escola.

Os índios ensinaram-lhe a sobreviver na floresta, diz. E então, depois de medir o ouvinte para descobrir qual a probabilidade de este acreditar em sua história, fez um desvio para um labirinto de fantasias: “eu entreguei o posto de cacique em novembro. O pajé tinha dois desses servos de Deus de três metros de altura com ele. Ele disse que os anciãos estavam retornando, e que eles tinham aberto o túnel”. Ele fala sobre paredes em forma de tartaruga, e de uma caverna com a estrela de Davi acima.

Sempre que ele faz essas afirmações, sua mulher, Anita, coloca uma mão sobre o joelho dele e diz “querido”, e ele fica em silêncio.
Talvez tivesse sido melhor simplesmente deixar o homem falar, da forma como ele está falando agora, em um fluxo de memórias e fantasias, invenções, mentiras ultrajantes e descrições detalhadas. A maior parte da “Crônica de Akakor” foi inventada, diz ele. “Brugger queria escrever um novo ‘Papalagi’.”

“O Papalagi” era uma leitura obrigatória na Alemanha durante a época dos hippies. Nele, um chefe samoano fictício faz discursos essenciais sobre a civilização a seu povo. Neste ponto, Tatunca poderia dizer que toda a “Crônica” era pura fantasia. Mas ele não faz isso. É claro, ele não pode colocar as premissas básicas em questão porque, como diz ele, elas são verdadeiras: “há alemães entre meu povo. É claro, eles não chegaram de submarino. A água aqui é muito rasa para isso. Eles tiveram que trocar de barco primeiro.”

Encontramos Tatunca de novo na manhã seguinte, desta vez sem Anita, no mercado de peixe de Manaus, perto das águas escuras do Rio Negro. “Vocês querem ir para El Dorado?”, ele pergunta. “Não é uma lenda. Encontrei muros como estes em Machu Picchu. Posso levá-los lá.” Sem hesitação, ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a desenhar o caminho para El Dorado. Fica em algum lugar sobre um platô entre o rio Araçá e o rio Demini.

Suas histórias são intermináveis e enroladas e não demora muito para que surja uma suspeita: a cidade perdida de Tatunca Nara não fica na floresta, em hipótese alguma. Fica ao longo do Füllbach, um rio na Francônia, em Grub am Forst, um lugar de onde Günter Hauck fugiu um dia. Ele foi o mais longe possível, para os afluentes mais remotos da Amazônia, e para uma nova existência que não podia ter nada em comum com sua vida anterior.

De acordo com os arquivos de investigações feitas no Brasil, houve um alemão aparentemente confuso chamado Günther Hauck que nunca retornou ao seu navio cargueiro depois de uma folga em terra. Um psiquiatra o diagnosticou como esquizofrênic, e a embaixada alemã o enviou de volta à Alemanha.

Tatunca conhece esse tal de Günther Hauck? Não pessoalmente, diz. Ele viajou para a Alemanha uma vez, acrescenta, e as pessoa se referiram a ele como Günther Hauck quando esteve por lá. Também havia uma mulher, e para evitar problemas ele foi para a cama com ela. Mas tudo isso estava totalmente errado, diz ele. “Eu sou Tatunca. Ponto final.”

“Günther Hauck” é simplesmente uma pele que foi trocada há muito tempo. Para provar seu ponto, Tatunca tira sua carteira de identidade brasileira, que o identifica como “índio” e contém um carimbo da agência brasileira encarregada de assuntos indígenas. Ele deve ter sido muito convincente como índio.

Se simplesmente tivessem deixado o homem falando sozinho, provavelmente nada disso teria acontecido. Mas suas histórias o alcançaram. Elas atraíram pessoas para a região, pessoas que queriam mais do que ouvir suas histórias. Elas queriam ser guiadas rio acima, ver a cidade subterrânea com seus próprios olhos e entrar nela.

Os mundos que ele tinha conseguido manter distantes haviam repentinamente se juntado. Talvez ele tenha se sentido encurralado por todos os admiradores e caçadores de tesouros, e pelos curiosos. Rüdiger Nehberg foi o pior de todos. Ele chegou com arquivos e velhas fotos nas mãos, e queria saber exatamente quem era Tatunca. “Ele é esquizofrênico, aquele Nehberg. Um mentiroso.”

E então teve a professora de ioga que dizia ser sua verdadeira esposa.

“Eu não matei aqueles três”
Talvez, quando todas as suas desculpas, ameaças e feitiços não funcionaram mais, ele decidiu deixá-los sozinhos com suas expectativas, e simplesmente os deixou caminhar em meio à mata cheia de veneno e espinhos. Sem experiência, uma pessoa não consegue sobreviver por muito tempo na floresta, nem mesmo com a “Crônica de Akakor” em sua bagagem.

Quando questionado sobre os desaparecidos, Tatunca diz: “eu vivo com minha consciência. Eu matei muitas pessoas, mas eu era soldado e elas carregavam armas. Eu sou inocente. Mas não matei aqueles três, como me acusam de ter feito.”

A história do que aconteceu a John Reed e outros provavelmente continuará sendo um mistério. O processo alemão contra Günter Hauck, mais conhecido como Tatunca Nara, foi retirado, por causa da ausência do acusado. Isso não deixa nada além de suspeitas.

Mas então ele disse alguma coisa enquanto passava pelo mercado de peixe de Manaus, enquanto tilápias eram desossadas nas barracas de peixe próximas. “Meu nome, Tatunca, significa Grande Cobra D’água. Ela tem o hábito de só atacar suas vítimas quando não há nada em torno para atrapalhar suas atividades.”

Então o que resta a não ser a suspeita de que o homem é um sonhador, um impostor e um mentiroso de talento, uma pessoa que vê a existência de sua certidão de nascimento como nada mais do que uma mera possibilidade?

Numa manhã em Barcelos, um barco listrado azul e branco estava ancorado no pier perto da fábrica de gelo. Ele carregava fardos de piaçava, uma fibra de palmeira para fazer vassouras. Alguns índios estavam dormindo no barco, até serem acordados por um homem enrome e queimado de sol que começou a erguer os fardos para a margem.

O dono do barco é Seder Heldio, 36, filho de Tatunca, que não fala mais alemão. A cidade de Grub am Forst não significa nada para ele. Mas ele se lembra de crescer entre os índios. “Meu pai deve ter lhe contado muitas histórias, mas ele é meu pai. Nenhuma das acusações de assassinato foi comprovada. Tudo o que aconteceu foi que sua empresa de turismo foi à falência.”

E isso, diz Heldio, é injusto. “Eu vi o filme Indiana Jones”, diz Heldio, filho de Tatunca. “Soa muito como a história de meu pai sobre Akakor. Ele nunca recebeu um centavo por isso. Talvez ele tenha inventado algumas das histórias. Mas ele pagou por isso com sua vida.”

Heldio também tem histórias para contar sobre os índios. As dele são sobre a Fundação Nacional do Índio, a Funai, que busca proteger os povos indígenas impedindo-os de trabalhar por salários e, em vez disso, fornece ajuda. Heldio diz que sua empresa na verdade é ilegal, porque ele não oferece a seus empregados os benefícios trabalhistas obrigatórios exigidas pelos sindicato, incluindo moradia e horas de trabalho fixas. O problema, explica Heldio, é que os índios não gostam de dormir em contêineres e só vão trabalhar quando não têm nada para caçar. “Eles querem manter os Yanomami como se estivessem em um zoológico. Eu lhes dou dinheiro para que possam comprar coisas.”

O filho do sonhador de Francônia, que queria ser um índio em vez de Günther Hauck, não se tornou cacique. Em vez disso, ele trabalha como capataz, alguém que está distanciando os indígenas de seu estado natural e inserindo-os na economia monetária. E como seus métodos são justos, os Yanomami o respeitam e talvez até o adorem. E, neste caso, sem o envolvimento de seres extraterrestres, anciãos ou El Dorado.

Jens Glüsing contribuiu com a reportagem.

Tradutor: Eloise De Vylder