Francisco Guimarães Moreira Filho, 81, que viajou com Guimarães Rosa em 1952
Último vaqueiro relembra expedição que inspirou ‘Grande Sertão: Veredas’
Na viagem que fez pelo sertão de Minas Gerais em 1952, João Guimarães Rosa era conhecido pelos vaqueiros apenas como Joãozito. Hoje, ainda é assim que o último remanescente da expedição se refere ao diplomata e escritor.
“Joãozito era meio caladão, mas engraçado. Contava casos e gostava também de ouvir a gente contar para ele. Sempre [estava] com uma cadernetinha pendurada no pescoço. E nela, escrevia as coisas de qualquer jeito”, relembra Francisco Guimarães Moreira Filho, 81, mais conhecido como Criolo.
A viagem é histórica porque serviu de subsídio para parte da obra de Guimarães Rosa: o conjunto de sete novelas “Corpo de Baile” e para o romance e obra-prima “Grande Sertão: Veredas” –que seria inicialmente uma das histórias de “Corpo de Baile”. Ambos os livros foram lançados em 1956, há 60 anos.
Alexandre Rezende – 24.mai.2016/Folhapress
Francisco Guimarães Moreira Filho, o “Criolo”, na empresa de sua familia em Sete Lagoas
Criolo tinha 17 anos quando participou da travessia de dez dias do escritor pelo interior de Minas Gerais. A comitiva foi organizada pelo pai de Criolo, Chico Moreira, e saiu da fazenda Sirga, onde hoje é o município de Três Marias, para levar 180 cabeças de gado até a fazenda São Francisco, em Araçaí, a 240 km de distância.
Guimarães Rosa (1908-1967) era primo de Chico e foi junto para conhecer o dia a dia do sertanejo. Aprendeu a andar de cavalo, a tocar boiada e, quando voltou para casa, no Rio de Janeiro, levou um papagaio.
Quatro anos depois, publicou os dois livros. Em “Corpo de Baile” (1956), um personagem inspirado no capataz Manuelzão (Manuel Nardi, morto em 1997) está no título de uma das novelas.
“O sucesso dele como escritor foi ‘Grande Sertão’, e saiu dessa viagem da boiada”, diz à Folha Criolo, que ganhou o apelido ainda na infância –uma ironia por ser branco demais.
Numa sala de sua pequena empresa em Sete Lagoas (MG), onde aluga guinchos, Criolo espalhou fotos da expedição nas paredes, que foram registradas pela revista “O Cruzeiro”. Uma placa diz: “A origem do Grande Sertão: Veredas”.
Mas, do livro mesmo, Criolo conhece apenas o título. “Não consegui ler, nem papai. Apesar de ser pessoa estudada, ele não conseguiu entender o palavreado.”
Em 2007, para iniciar a comemoração do centenário do nascimento do escritor, Criolo refez a viagem, que também durou dez dias, acompanhado de mais 40 pessoas.
‘SAUDADES DAÍ’
“Chico, saudades daí tenho sempre”, diz a carta de Guimarães Rosa emoldurada na parede onde fica o acervo de Criolo. Assinada em 6 de outubro de 1952, ela foi enviada para seu pai.
“O papagaio está gordo e alegre, magnífico. Aprendeu muita conversa carioca, mas não se esqueceu do repertório sertanejo: (…) sabe chamar as vacas, com notável entusiasmo”, escreveu Guimarães Rosa.
Da comitiva de nove vaqueiros que acompanhou o escritor, Manuelzão se tornou o mais conhecido e morreu como uma figura mítica do sertão de Minas Gerais.
Já Chico Moreira, que era o dono da fazenda e foi quem viabilizou a expedição, é pouco lembrado. De acordo com o filho, ele tentou ajudar ao máximo Guimarães Rosa a se adaptar à viagem.
Mandou, inclusive, um funcionário ir antecipadamente de uma fazenda a outra com uma mula mansa para o diplomata cavalgar. Mas foi Manuelzão quem ensinou Guimarães Rosa a montar.
Criolo reclama que as fotos da expedição foram retiradas de exposição no museu Casa de Guimarães Rosa, que fica em Cordisburgo (MG), onde o escritor nasceu. Para ele, só querem que o escritor apareça em fotos usando smoking.
“Não querem que fale que ele foi peão, que andou a cavalo, que tocou boiada. Querem que ele só seja alta sociedade”, queixa-se.
Procurada, a coordenação do museu informou que as exposições são temporárias e trocadas constantemente. Também informa que as fotos da expedição continuam, sim, a fazer parte do acervo do museu.
As veredas de Guimarães já são escassas, e antenas se impõem
Paulo Peixoto, 01/06/2016
É difícil lidar com a obra de João Guimarães Rosa e não se sentir provocado a ir esmiuçar o “sertão roseano”, conhecer a gente daquele lugar, o bioma de buritis e veredas, as cidades, as roças, as mínimas coisas tão caprichosamente eternizadas nas histórias e contos desse clássico escritor parido naquele cerrado brasileiro.
As duas únicas imposições que fiz a mim mesmo foram: não deixar nunca faltar gasolina no carro e agir sempre de acordo com o tempo do sertão, que passa sem pressa e com prosa. Isso não é lenda!
O escritor João Guimarães Rosa (de óculos) e sertanejos em maio de 1952. Eugênio Silva – 1º.mai.1952/O Cruzeiro.
O silêncio é uma marca no sertão. Viajar por ele deu sentido a uma frase de Rosa em “Grande Sertão: Veredas”. “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Era preciso, então, ouvir esse silêncio.
Velhos vaqueiros e tropeiros cruzaram o meu caminho, caso do vivaz, lúcido e já quase cego homem de Beltrão, um lugarejo de Corinto, Feliciano Tavares de Souza, então com 94 anos. Personagem marcante.
Já velho, ele virou benzedor, um homem da “fé curativa”. Ao longo da vida, teve 15 filhos com duas mulheres e uma companhia inseparável: uma arma calibre 38. ”
“[Naquele tempo] Se não estivesse armado, eu não tinha vida [hoje]. Respeitava[-se] era a arma, não a pessoa. O governo deveria ter uma lei de desarmar todo mundo”, dizia ele.
Novos personagens se apresentaram. Foram benzedeiros e benzedeiras vocacionados “”é, eles dizem que é preciso ter vocação para herdar os ensinamentos, a religiosidade e a bondade dos seus parentes mais velhos.
As doceiras do sertão e seus inseparáveis tachos de cobre, os produtores e vendedores de minhocuçu foram outros que conheci.
E não poderiam ter faltado os companheiros de botequim que contavam causos do vaqueiro Manuel Nardi (1904-1997), o Manuelzão, em Andrequicé.
MUDANÇAS
Muita coisa mudou no sertão. A paisagem mudou bastante. As veredas já são escassas.
Para ver de perto o “porto” do rio de Janeiro, onde Riobaldo e Diadorim se encontraram, foi preciso atravessar quilômetros de estrada de terra batida em meio a plantações de eucalipto, que viram carvão para siderúrgicas. Uma tragédia ambiental.
Muito da vida rural se tornou urbana no sertão mineiro. O desenvolvimento a partir da segunda metade do século passado levou a isso.
O “brega” anima as festas nas cidades. O marketing americanizado no comércio urbano chamou bastante minha atenção: “Lan House New Emotions”, “Look da Moda”, “Marly Free Modas”.
Outros nomes também me pareceram um tanto estranhos: “Moda Nua Confecções” e “Zeus – A Arte de Vestir Bem”. Haja criatividade!
Mas nas pequenas cidades do sertão prevalece a tranquilidade, a vida pacata. Chegar em Morro da Garça (2.630 habitantes) e ver de perto a colina solitária em forma de pirâmide que inspirou Rosa no conto “O Recado do Morro” foi mais um mergulho no universo do escritor.
Uma antena de telefonia na crista do local agora se impõe. Mas eu a saudei quando precisei usar o celular para enviar um S.O.S. para a retirada do carro atolado.
Nessa viagem dos livros para a realidade do sertão de hoje, foram muitas descobertas. Somos apresentados a um mundo em que as pessoas, embora simples, nos contam histórias cheias de valor, vindas de um tempo em extinção.
Retornar a Cordisburgo e rever o Museu Casa de Guimarães Rosa, conhecer o Memorial Manuelzão, em Andrequicé, descobrir o Memorial Carlos Chagas, em Lassance, me proporcionaram experiências memoráveis. Revi grutas e os tantos rios que demarcam o “sertão roseano”. Nadei em vários deles.
É uma viagem que vale a pena. “Aprender a viver é que é o viver mesmo”, ensinou Rosa.
Este especial À espera de Francisco é mais uma investida do O POVO na grande reportagem e num tema muito caro a todos nós: a água, uma eterna peleja, elemento vital na formação das nossas identidades e das nossas diferenças. Revisitar o tema, portanto, é missão, especialmente em momento tão delicado da vida nacional, com as indefinições que deixam interrogações sobre o futuro de uma obra como a da transposição do Rio São Francisco.
O projeto é polêmico. Sua própria história dá conta disso. Virou dois séculos, demorou a sair da intenção, virar plano, entrar no papel, começar, parar e, de novo, começar. Atravessou governos, interesses políticos, questões ambientais e, principalmente, a profunda insegurança hídrica que desestabiliza a região, leva vidas, ameaça culturas, quebra a economia e finda sonhos de desenvolvimento.
Mas está aí. Ao curso de muitas secas – esta que vivemos já dura cinco anos – a obra gigantesca, com seus túneis, elevatórias, cânions, canais e reservatórios, e um custo de R$ 8,5 bilhões, já está 85,3% concluída. A água é esperada para o fim do ano. Enquanto isso, o cenário afetivo, econômico, social e cultural da região sul do Ceará transformase. Tem lamento por uma memória levada, mas tem a esperança que só a água é capaz de acender nesta gente.
Para mostrar a quantas anda essa espera por águas do São Francisco, os repórteres Cláudio Ribeiro e Fábio Lima e o motorista José Maia Rodrigues pegaram a estrada. Percorreram 2 mil quilômetros do Eixo Norte da obra, pelos municípios de Cabrobó e Salgueiro, em Pernambuco, Jati, Brejo Santo e Mauriti, no Ceará. Mostram não só a construção de concreto, mas as outras construções simbólicas em curso. A dona Edileuza e o seu Zilvan contam, admirados, das flores que plantam. Seu Lu Narciso sonha. Quer voltar a plantar uva. “Espero só a água”. São narrativas que O POVO desenha nestas páginas, na web, no rádio e na tevê. Porque vale a pena saber de tudo isso. Em todas as linguagens.
Etnografias
Por Cláudio Ribeiro
O POVO mantém seu mergulho jornalístico pela etnografia do sertão. Reportando dificuldades e esperanças de um polígono seco de água no chão, mas vivo de se saber refazer. Repórteres do O POVO já percorreram a zona ribeira do São Francisco. Os especiais São Francisco – Vida para o Semiárido, em 2000, e Pelas Águas do Velho Chico, em 2006, trataram da expectativa de um projeto secular que nunca avançava sertão adentro. Transpor o rio era uma possibilidade distante. Em 2013, ainda o segundo ano desta mesma grande seca de meia década que estamos passando, foi publicado/postado o especial A Peleja da Água. A crise hídrica exigindo soluções. Agora À Espera de Francisco mostra o caminho da água no Nordeste redesenhado. O improvável está prestes a acontecer. Os canais do São Francisco regando sertões, desfazendo sofrimento e sede.
Editorial Gráfico
Vias de Água
Por Gil Dicelli
Os destinos do Velho Chico se abrem a novos sertões. Esperança e dúvidas pelas margens do Semiáriado. No projeto gráfico, o papel rasgado sugere as hidrovias da transposição, cavadas ao longo de cerca de 2 mil km. Atalhos que orientam a leitura, hierarquizando o conteúdo. Caracteres dos títulos também expandem territórios. Avança aqui e acolá uma letra. É como a água do rio que não abarca limites. Brutal e sinuosa, a tipografia escolhida sinaliza o itinerário do São Francisco. A diagramação é assimétrica, a malha de construção da página flui e se reinventa. Legendas das imagens são poças de informação rápida. E um infográfico de página dupla desenha a trajetória do rio e do repórter explicando, em imagem e texto, os detalhes da narrativa. Esse fiar de elementos gráficos faz a escrita visual que contribui para entrelaçar as vidas de Gracinha, Chico de Sinésio, Dedé de Leopoldo e seu Wilson. E de tantos outros. Todos à espera de Francisco.
Futuro
Por Cláudio Ribeiro
São Francisco já não é mais um rio caudaloso nem tão forte como descrito em livros e histórias antigas. Resiste, desde a nascente em Minas Gerais, passando por Bahia e Pernambuco até a foz entre Alagoas e Sergipe, mas está assoreado em vários trechos onde antes se navegava. O homem faz mau uso de seu leito. Um rio também tem sede de chuva. A seca de cinco anos no Nordeste o castiga. É esse o Francisco aguardado no projeto da transposição, feito os ditos da reza. Levar água onde houver o estio.
Até o fim deste ano – se os planos seguirem o planejado e a instabilidade política e econômica não atrapalhar –, a expectativa é que São Francisco encoste também pelo Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Por longos 477 km de canais, 14 aquedutos, quatro túneis perfurando serras, o rio transpondo relevos a partir de nove estações de bombeamento.
Serão 50 reservatórios abastecidos (27 deles construídos pelo projeto) nos quatro estados, pelos Eixos Norte e Leste. O Ceará terá 13 açudes (seis a inaugurar) para essa nova água. Entre eles o maior do Nordeste, o Castanhão, que atualmente está com apenas 9% de sua capacidade. Ele é a principal garantia hídrica para Fortaleza, hoje muito precisado de chuva e de um São Francisco.
A vazão média direcionada pelo rio será de 26 mil litros por segundo em períodos secos. O secretário de Recursos Hídricos do Ceará, Francisco Teixeira, defende que já se possibilite dobrar essa vazão tão logo o projeto seja concluído. Explica que a necessidade já é maior do que quando o projeto foi pensado.
85,3% das obras da transposição estão concluídas. Ministério da integração nacional
A obra da transposição foi, outrora, tão somente uma possibilidade defendida no distante 1817 pelo então ouvidor do Crato, Antônio de Porbem Barbosa. Chegou a ser algo recomendado a estudos pelo rei de Portugal dom João VI, em abril de 1821. Despedindo- se do Brasil Colônia, deu a indicação ao príncipe regente, dom Pedro I. Ele deixou o assunto no esquecimento, à época mais preocupado com rebeldes da Confederação do Equador (1824). Dom Pedro II, mais disposto àquela novidade e afeito desenvolver as terras, em 1847, contratou o engenheiro
Henrique Guilherme Fernando Halfeld para o levantamento. Imagine que era tudo mais longe e penoso do que hoje, para percorrer o rio. Só em 1860, Halfeld se manifestou. Citou Cabrobó (PE) como possibilidade de saída de água para outras regiões. Sem tecnologia possível, a ideia hibernou, silenciou por anos.
A proposta ressurgiu com os generais Geisel e Figueiredo na ditadura militar, freqüentou os palanques de FHC, até que em 2007 foi iniciada na gestão Lula. As obras chegaram a parar em 2011, retomadas um ano depois.
Até dezembro
O Ministério da Integração Nacional, responsável pela execução do projeto, diz que foram contratados mais de 10 mil profissionais e há 3.800 máquinas operando 24 horas. É da mesma Cabrobó que agora parte o Eixo Norte, o lado da obra que alcança o Ceará – vai até Cajazeiras (PB). O Eixo Leste sai de Floresta (PE) até Monteiro (PB).
O investimento total bate R$ 8,2 bilhões. A inauguração é aguardada para o fim deste ano. “Para o Governo Federal, o Projeto de Integração do Rio São Francisco é uma prioridade. A obra está prevista para ser concluída até dezembro de 2016”. Foi o que respondeu o Ministério da Integração Nacional ao O POVO, ao ser questionado sobre qual a garantia financeira que o projeto tem diante da crise que atravessa o País – e se há algum risco de redimensionamento ou interrupção dos trabalhos. “Está prevista para chegar ao Ceará no último trimestre deste ano”, reforça o órgão.
As respostas vieram por email. No início de abril, O POVO tentou entrevistar o então ministro da Integração, Gilberto Occhi. No dia 14 de abril, sua exoneração foi assinada por Dilma. Na mesma data saiu publicada a nomeação do substituto, José Rodrigues Pinheiro Dória, indicação de Occhi, e que ainda naquele dia desistiu do cargo. No último dia 15, foi nomeado como interino o veterinário Josélio de Andrade Moura.
O Ministério atualizou que, pelos dados de 31 de março último, o projeto agora “está com 85,3% de conclusão”. A contar do que está posto, não deixar o São Francisco seguir o novo rumo será improvável.
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Personagens
Professora Gracinha
A professora Gracinha (Maria das Graças Nunes Bezerra), 41, chora a tristeza do pai, Dezinho (Francisco Nunes dos Santos), 97. Ele teve que deixar o Sítio Torrões, em Brejo Santo, onde viveu por mais de 50 anos. É o lugar onde ela e os dez irmãos foram criados. Brincavam no curral, pulavam de árvores, mergulhavam no Riacho dos Porcos. O sítio foi desapropriado. O terreno está na área onde em breve existirá o açude Porcos, construído para as águas do rio São Francisco.
Além da tristeza, Gracinha tem outro também relacionado ao “novo” rio. Ela é diretora da Escola Maria Leite de Araújo, na localidade Poço do Pau, que é próxima a um dos canteiros de obras. Com cerca de 300 alunos, a escolinha obteve em 2013 as melhores notas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dentre todas as escolas cearenses. Gracinha teme que o desempenho dos alunos em 2016 seja prejudicado. A barulheira de caminhões e tratores não para. Apesar do transtorno, Gracinha dá voto de confiança. “Que seja para melhorar a vida da gente, ajudar o agricultor da região”. Seu Dezinho não dá entrevista. Para não debulhar sua mágoa.
Zilvan e Edileuza
Moradores de lugarejos a serem encobertos pelo novo caminho d’água do São Francisco estão sendo remanejados para Vilas Produtivas Rurais (VPRs). Ganham casa nova de três quartos, água encanada, saneamento, escola e posto de saúde. E terão, quando a transposição começar a operar, mais um lote de quatro hectares para plantar. Uma das 31 famílias da VPR Retiro, em Penaforte (CE), é a de seu Zilvan Francisco da Silva, 49, e dona Maria Edileuza Santana, 48. O casal lembra de quando, até 2015, vivia com três filhos na casa de taipa, escondida na caatinga do distrito Atalho, em Brejo Santo. “Lá era bem insegura, a parede caindo”, diz Zilvan, voz encabulada. Dona Edileuza reforça: “Chão de barro, a casa tempo de cair em nós”. Os dois não se imaginavam mais num recomeço, nem a vinda de um rio para perto. “Nunca, nunca mesmo”. Foi sua resposta menos tímida. Edileuza descreveu um sonho: nunca teve um jardim. “Vivi e me criei lá. Era só mato. Hoje planto flor. A casa ficou mais bonita ainda”. chegar água nos canais e açudes da transposição, as famílias das VPRs serão assistidas com um salário e meio. Em breve poderão irrigar o plantio com o novo rio embrenhado em seu novo pedaço de terra.
Wilson Barbosa
O mecânico-montador Wilson Barbosa Vieira completa 65 anos em julho. Já deu entrada nos papéis na à Previdência. Em 3 de julho, dia seguinte ao aniversário, quer estar aposentado. Mas não parar. Gostaria de seguir nas obras da transposição, “se ainda me quiserem”. É um dos 10.242 profissionais contratados pelo projeto São Francisco. Quer continuar até o rio chegar ao Ceará. Ele é cearense de Redenção, mora em Fortaleza, atua em trechos da obra em Pernambuco desde o início de 2014. Vai em casa a cada três meses. Já passou por cinco canteiros, deve ir para o sexto ponto do Eixo Norte. “Comecei em Cabrobó. Tô vindo até aqui desde a beira do rio”. De lá pra cá, seu Wilson trabalhou em duas estações de bombeamento, dois reservatórios, ajudava a erguer uma ponte sobre a BR-232, em Salgueiro, quando O POVO o encontrou. Em breve deve ir para serviços na barragem Milagres. “No começo, achava que ia trabalhar numa obrazinha, que em um ano terminaria. Não pensei que fosse ficar desse tamanho”. Ele celebra a transposição. “Imagine a riqueza que vai ter nesse Nordeste, plantação de fruta, verdura. Vai ser uma beleza”, profetiza seu Wilson.
Lu Narciso
Eram nove sócios na cooperativa de Poço, em Brejo Santo. Em nove hectares. Plantavam dois tipos de uvas de mesa, a Itália e a benitaka. Vendiam para uma grande rede nacional de supermercados. “Chegamos a ter 12 safras entre 1992 e 1998”, conta Cícero Henrique Furtado, 45, um dos plantadores. Tiravam 110 toneladas por período de colheita. Outro dos sócios era José Narciso Filho, 66, desde menino conhecido como Lu Narciso (foto). “Cheguei a fazer cinco festas da uva. Até governador baixou aqui de helicóptero, veio ver nosso projeto”, relembra. O chão é fértil. Não era lugar de água farta, mas dois poços resguardavam o plantio. Onde eles moram é próximo da parede da barragem Porcos, construída no novo itinerário do São Francisco. Foi a chuva muito grande, em 1995, que estragou os parreirais. Uma safra bancava custos da safra seguinte. Mas o chuvoeiro fez a uva perder sabor. Eles perderam tudo. “Ainda temos a dívida daquela época”, diz Lu Narciso. Ele acredita que o rio pode inspirar e aguar novas perspectivas. “Ah, eu penso em plantar de novo, sim. Se ajudarem a gente, e com essa água aí, pode ser”. Mais cético, Henrique prefere esperar primeiro pelo rio.
Chico de Sinésio
Fala-se de tudo na Caldeira do Inferno. O bar é o mais antigo de Brejo Santo. Patrimônio local. Existe desde 1960 – antes era bodega, chamada Ponto Chique. O nome atual veio só a partir de 1970. “Foi ideia dos próprios clientes. Caldeira é justamente por se comentar todos os fatos acontecidos na cidade”. Entre goles, a transposição também entra nas conversas. A explicação, simples e precisa, sai do proprietário do bar, Francisco Gomes Feijó, 74. Ele é Francisco feito o rio que se aproxima, mas no Brejo só o conhecem como Chico de Sinésio. O pai era o Sinésio, dono de antiga barbearia que funcionou onde hoje está o bar. Seu Chico é simpatia toda hora, um detalhista de qualquer história dos frequentadores de seu balcão.E tem de monsenhor a mendigo. Serve cerveja, água, pinga, cigarro, mais boleros e músicas saudosas. Espalha o som pela praça gentilmente, sem nunca incomodar. A parede da Caldeira é ornada de presentes doados por muitas amizades. “ Essa transposição vai ser muito boa para o Brejo. Tá todo mundo só esperando esse momento de a água chegar. Que venha. Mesmo com essas enroladas todas, a obra tá andando”, diz. E estica o bigode branco noutro sorriso.
Dedé de Leopoldo
José Leopoldo Leite, 61, é Dedé de Leopoldo, figura popular em Mauriti (CE) e por cidades do roteiro de vaquejadas. No Nordeste, principalmente. Ganhou 36 carros, tem mais de 600 troféus conquistados. Fez história. Abraçou seu primeiro prêmio aos 14 anos, havia começado aos 12. Os torneios para derrubar boi, laçar, montar bichos brabos, são tradição no Cariri Sul. No sítio Quixabinha, onde moraram o avô e o pai, ainda mantém suas crias no curral. As projeto”, relembra. O chão é fértil. Não era lugar de água farta, mas dois poços resguardavam o plantio. Onde eles moram é próximo da parede da barragem Porcos, construída no novo itinerário do São Francisco. Foi a chuva muito grande, em 1995, que estragou os parreirais. Uma safra bancava custos da safra seguinte. Mas o chuvoeiro fez a uva perder sabor. Eles perderam tudo. “Ainda temos a dívida daquela época”, diz Lu Narciso. Ele acredita que o rio pode inspirar e aguar novas perspectivas. “Ah, eu penso em plantar de novo, sim. Se ajudarem a gente, e com essa água aí, pode ser”. Mais cético, Henrique prefere esperar primeiro pelo pelo rio terras, que se estendem por cerca de 50 hectares, serão atravessadas pelo São Francisco. A fazenda teve um trecho desapropriado para ser cortada por canais e aquedutos que trarão o rio. A casa da propriedade foi erguida 116 anos atrás. Dedé lamenta ao contar que ela também precisou se desocupada – conseguiu que não a demolissem. O canal passa por quase um quilômetro dentro das terras. O pai dele, Leopoldo Leite de Araújo Lima, morreu em agosto de 2015, aos 96 anos. Um ano antes teve que se mudar para a cidade. “Meu pai sentiu porque teve que sair. Vinha todo dia rever o sítio”. Dedé diz que o lençol freático que encharcava o chão do seu bananal foi embarreirado pelo canal. Mas não lamenta tanto. O São Francisco veio para dentro do Quixabinha.
Açude Castanhão. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Penaforte. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Brejo Santo. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Brejo Santo. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Brejo Santo. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Brejo Santo. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Brejo Santo. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Cabrobo. Especial: À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Açude Castanhão (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Açude Castanhão (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Açude Castanhão (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Açude Castanhão (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Especial: À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Jati (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Jati (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Mauriti (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Penaforte. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Penaforte. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Penaforte. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Salgueiro. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Salgueiro. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Salgueiro. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Município de Salgueiro. À espera de Francisco (Fotos: Fábio Lima/ O POVO)
Economia movida pela transposição
Desses dias incertos da República, a uma semana de trocar nomes e talvez prioridades na Presidência, já se vislumbram medidas para conter respingos a projetos como o da transposição do São Francisco e do Cinturão das Águas do Ceará (CAC). Um depende do outro: o Cinturão só avança e poderá ser útil se o canal da transposição chegar. Ambos só terão andamento com a garantia federal.
Pelo desenho financeiro operacional, é o Estado que executa a obra, dá sua contrapartida de recursos, mas com a União assegurando a maior parte da verba. O Ceará tenta se antecipar a um possível revés, em relação ao que lhe cabe no Cinturão das Águas. O secretário estadual dos Recursos Hídricos, Francisco Teixeira, disse ao O POVO que está em negociação com o governo federal para a readequação do projeto.
O Cinturão está orçada em cerca de R$ 1,6 bilhão na primeira etapa – que se estende por 146 km de canais de Jati a Nova Olinda. Prevê-se que de lá a água do São Francisco siga pelo rio Cariús, chegue ao açude Orós e se emende no rio Jaguaribe até o Castanhão – descendo até Fortaleza e o porto do Pecém.
“Estamos trabalhando nos primeiros 40 km”, informa Teixeira. As águas do São Francisco só correrão pelas 12 bacias hidrográficas cearenses se o Cinturão for viabilizado. Estima-se que o projeto total do CAC, numa extensão final de canais de 1.300 km em cinco etapas, seja executado durante pelo menos uma década. Isso a prazos de hoje.
A transposição, pelo volume de recursos direcionados (mais de R$ 8,2 bilhões), não fugiu aos olhos da corrupção. Também esteve sob investigação da Polícia Federal. No fim de 2015, a operação Vidas Secas apontou um esquema de desvios de mais de R$ 200 milhões cometidos por empreiteiras – que já estavam citadas na operação Lava Jato. Das outras coisas que valem a pena celebrar da obra em si, uma das importantes é a economia movimentada no entorno das cidades onde os canteiros foram instalados. Em Salgueiro (PE), dos 36 apartamentos do hotel Mustang, 24 estão locados desde 2012 para operários da obra. Na pousada Talismã (18 apartamentos) no Sertão Hotel (20), na Pousada Imperador (10), todos os quartos estão há pelo menos três anos à disposição de funcionários das empreiteiras, segundo o gerente Vandel Vo, do Hotel Polo. “Foi assim na cidade toda. A obra tá terminando agora caiu um pouco, mas aqui sempre lotou”.
“Apesar de estarmos numa crise, é importante dizer que o canal do São Francisco
traz um momento muito bom. Brejo Santo vive uma efervescência econômica nesse período das obras. Muito dinheiro novo circulando aqui”, reforça Valmir Lucena, 74, expresidente da Câmara Municipal, atualmente no sexto mandato de vereador.
Lucena lembra de quando ainda estavam sendo colhidas as primeiras assinaturas para o projeto, no final dos anos 1990, e a dimensão que a obra tomou. “Você vê pela grandiosidade daquele túnel em Mauriti. Estive lá”, referindo ao Cuncás I, um dos quatro túneis ao longo da transposição. Com 15 km, é o maior túnel hidráulico da América Latina. Abençoado pelo encontro do São Francisco com outros santos da região: começa no distrito de São Miguel, em Mauriti (CE), atravessa por baixo a serra do Espírito Santo e, do outro lado, sai em São José de Piranhas, na Paraíba.
Prioridade e Investimento
Os usos e a gestão das águas da transposição do Rio São Francisco em nível estadual seguem indefinidos. Diante da estiagem de cinco anos consecutivos que assola o Ceará, a prioridade da outorga será para consumo humano e animal. No entanto, a agroindústria e agricultura familiar também serão beneficiadas. “A indústria busca alternativas, poços profundos. Há toda uma estrutura hídrica e com o abastecimento humano e animal isso pode melhorar”, avalia Bessa Júnior, presidente do Conselho Temático de Cadeias Produtivas e Agronegócios da Federação das Indústrias do Ceará (Fiec).
Segundo ele, a preocupação do setor é com a agricultura familiar e o agronegócio em potencial. “São importantíssimos para o setor e estão sofrendo racionamento e a falta da maior capacidade de a água chegar a esses locais”, afirma.
Em meio à secura, comunidades localizadas às margens da obra veem a água passar e não podem utilizá-la.
Em apresentação das obras à comitiva formada por deputados estaduais do Ceará em abril deste ano, o coordenador geral do projeto de integração do rio São Francisco, Frederico Meira, demonstrou preocupação ao falar de casos de rompimento do canal em Pernambuco.
Ele reforçou a necessidade de segurança nos locais e afirmou que existem propostas de distribuição e utilização de águas individuas, mas é necessário que o Conselho Gestor da Transposição avalie caso a caso. O presidente da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (Cogerh), João Lúcio Faria, afirmou que a chegada de águas da transposição para o abastecimento humano irá permitir que os reservatórios sejam utilizados para o incremento das atividades econômicas. Ele não definiu, no entanto, modelo de cobranças e nem administração em nível estadual. (Eduarda Talicy – eduardatalicy@opovo.com.br )
A obra é irreversível
Secretário de Recursos Hídricos do Ceará, Francisco Teixeira lembra de debates técnicos de meados dos anos 2000, quando se definia qual volume de água deveria ser redirecionado do São Francisco para cada Estado receptor. Àquela época o Nordeste estava chuvoso, o rio não parecia urgente. Conta que o Ceará era visto como um Estado “com muita água” em 2004. Argumentava que a seca sempre voltava.
Teixeira foi secretário nacional de Infraestrutura Hídrica, entre 2012 e 2013, e ministro da Integração Nacional entre 2013 e 2014. Lidou com os momentos iniciais da obra diretamente. O cenário de estiagem voltou e ficou. “Nossa dependência do rio poderá ser maior”.
Ele não quer contar com a água antes de ela chegar. Acha que o impeachment da presidente Dilma pode atrapalhar a obra. Teixeira não desconsidera que o Cinturão das Águas do Ceará – 27% executado – possa ser afetado por corte de recursos federais. Teme que isso aconteça. É o Cinturão que permitirá a distribuição da água do São Francisco pelo Ceará. (Cláudio Ribeiro)
O POVO – Qual é hoje a necessidade do Ceará em relação à água que virá do São Francisco? Francisco Teixeira – A oferta hídrica tem grande sazonalidade, variação temporal muito grande. Se a gente pegar desde o início dos anos 90, quando se vem fazendo o gerenciamento da água, controlando estoque dos reservatórios, percebemos uma década difícil. Os dois maiores reservatórios da bacia do Jaguaribe, Banabuiú e Orós, quase esvaziaram em menos de dez anos. Nos anos 90, se você traçar uma linha média no nível dos reservatórios, encontrará durante mais de uma década os reservatórios variando entre 20% e 30%, na média.
OP – O senhor fala só de Orós e Banabuiú? Teixeira – Tô falando deles (Orós e Banabuiú) com o sistema metropolitano (açudes Pacoti, Riachão, Gavião e Pacajus), que representam os maiores centros de demanda do Estado. Aí, quando chega o auge da discussão do São Francisco, naquele período chuvoso de 2004, os reservatórios apresentam uma inflexão, uma linha vertical, sobem e praticamente enchem. Chegam a quase 100%, até com o Castanhão nisso. Naquele momento se começou a discussão do projeto São Francisco. O pessoal de fora, que olhava nossa capacidade de reservação e o estoque que tínhamos, dizia “o Ceará tá com muita água”. A gente tinha que voltar ao passado pra mostrar os dois pontos da década anterior, onde o Ceará praticamente ficou sem água para grandes usos. No fim da chuva de 2011 estávamos com mais de 80% de reserva. Começamos 2012 com mais de 60%, sem recarga. No começo de 2013 eram 40%, no começo de 2014 eram 32%, o ano passado estávamos em janeiro com 20 e poucos por cento. E agora estamos com 13%. Aí você percebe como essa realidade é muito variável. O que é de novo que aparece? É que naquela época, quando se discutia o projeto do São Francisco, todo mundo sabia que, se olhando num horizonte mais a longo prazo, a necessidade das águas do rio era premente.
A obra do São Francisco chegou num ponto irreversível, e já há muito tempo
Francisco TexeiraSecretário de Recursos Hídricos do Ceará
OP – A obra parou em 2011. Teixeira – Ela parou em 2011, retomou em 2012. Mas graças a Deus que não se mudou o porte da estrutura, a capacidade dos canais, das estações. Fez-se etapas de instalação de bombas, montagem de adutoras e células de aquedutos. O canal em terra, que é o grosso da obra, foi feito na dimensão pensada no final dos anos 90, início de 2000, que era de 99 m³/s no Eixo Norte e 28 m³/s no Eixo Leste. Porque já se imaginava naquela época que, na questão de água, o cenário de conforto poderia virar de déficit, se não houvesse planejamento. Defendo a tese de que, concluída essa etapa agora, se iria para uma fase imediata de instalar mais duas bombas em cada estação de bombeamento de cada canal. Ficar o Eixo Leste com a capacidade total de 28 m³/s e o Norte, pelo menos com 50 m³/s. Só precisaria comprar mais duas bombas para cada estação, instalar uma adutora a mais, o canal em terra construído e o aqueduto comportam 50 m³/s.
OP – O senhor defende a duplicação por que a necessidade é essa? Teixeira – Defendo porque esta seca demonstrou uma realidade que a dependência nossa do rio São Francisco poderá ser bem maior do que pensávamos lá atrás. Chegou muito mais rápida até do que pensávamos antes, quando houve a discussão política, o debate técnico. Se tinha muito a discussão sobre a necessidade ou não do projeto. Hoje se discute que o projeto já deveria estar pronto, que tem que ser acelerado, e se discute a flexibilidade da outorga para trazer, de forma contínua, uma vazão até maior do que a estabelecida lá atrás.
OP – Qual é a previsão de chegada dessa água?
Teixeira – Se a água tivesse chegado, já estaria tendo serventia. Essa é uma obra muito complexa e por isso tem suas incertezas também. Na construção de canais, obras civis, túneis, linhas de transmissão, você se depara com problemas que o projeto às vezes não consegue detectar, é normal. Do ano passado pra cá, o pessoal preconizou uma data de julho. Sempre achei uma data mais factível, de setembro, outubro em diante. Mesmo assim aparecem coisas.
OP – Mas o Ceará trabalha com outubro? Teixeira – É, mas nosso grupo de contingência, que acompanha a questão da seca, não trabalha com a certeza absoluta de que a água vai chegar este ano. Não estamos contando no nosso balanço hídrico com essa água para este ano, para nos salvar de qualquer situação que seja, de garantir água para Fortaleza, outras cidades. Chegando a água do São Francisco, é um adendo, um incremento. Não é que não acreditamos no São Francisco, mas por precaução a gente tem que pensar no cenário mais crítico. Inclusive o São Francisco não chegando.
OP – Para quando está previsto o Orós ser acionado para reforçar o abastecimento de Fortaleza? Teixeira – Não tenho condições de dar essa resposta agora. Estamos atualizando nossas simulações. Tivemos aí um cenário nada diferente do que a Funceme preconizava. Eu, particularmente, esperava pior do que está acontecendo, principalmente no Interior. Algumas recargas de chuva no Interior nos permitiram um cenário melhor para o segundo semestre. Tínhamos de 50 a 60 cidades que poderiam entrar em colapso no ano passado, não entraram porque construímos mais de 1.200 poços, 200 km de adutora de montagem rápida, além de 600 que já haviam sido feitos. Com essa infraestrutura e chuvas que beneficiaram algumas localidades, acredito que vamos atravessar o segundo semestre no Interior melhor que no ano passado. Mas a situação do Vale do Jaguaribe e Região Metropolitana de Fortaleza vai exigir muito mais atenção e maior restrição ao uso do que no ano passado.
OP – Em quanto está a vazão do Orós e do Castanhão? Teixeira – O Castanhão hoje está liberando 9 m³/s para o Eixão das Águas. Desses 9 m³/s, está chegando para Fortaleza de 7 a 7,5 m³/s. O resto fica para atender comunidades pelo caminho e um pouco para irrigação. E pelo rio estamos liberando em torno de 5 m³/s hoje. Mas chegamos a liberar zero, em alguns dias, e 2,5 m³/s. Quando o rio apresenta alguma água por causa da chuva, a gente vai lá e fecha. Do Orós, a vazão hoje liberada, em torno de 4 m³/s.
OP – O Orós vai mesmo precisar abastecer Fortaleza? Teixeira – Um dos cenários nossos é que em abril ou maio a gente poderia liberar o Orós para dentro do Castanhão. Vamos ver se será em maio ou junho, com as simulações que estamos fazendo. Para ver, com o que temos hoje (de água), até quando podemos ir. Se ficar o tempo assim e não chover mais, vamos ainda no primeiro semestre acionar o Orós para dentro do Castanhão.
OP – A obra do Cinturão das Águas está em quantos por cento? Teixeira – Está com algo em torno de 27%. Estamos trabalhando só um lote. São 146 km (primeiro trecho), estamos trabalhando os primeiros 40 km. Vamos ver aí como fica nesse novo cenário político.
OP – A partir da possibilidade do impeachment, qual o seu temor em relação à transposição? Teixeira – Acho que a obra do São Francisco chegou num ponto que é irreversível, já é há muito tempo. Eu diria que a conclusão dela é irreversível. Precisaria haver um comportamento político totalmente insano para mandar parar uma obra dessas. Não é possível que essas lideranças que aprovaram o impeachment, e ele se concretizando no Senado, não vão ter a responsabilidade de forçar o possível novo governo a concluir o mais rápido possível a obra.
OP – O senhor está preocupado com as obras do Cinturão das Águas do Ceará (CAC)? Teixeira – Eu tenho mais preocupação com o CAC porque é uma obra delegada, é obra do Governo Federal, do Ministério da Integração. O São Francisco, o Ministério é que conduz. Ao contrário das outras obras do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), que são delegadas. E, num cenário de restrição econômica que vivemos e imagino que será maior, aí na hora dos cortes não sei como vai ser. O CAC é uma obra associada ao projeto de integração do São Francisco, vai dar maior capilaridade à água do São Francisco no Interior do Estado. É importante em função disso, mas na hora dos cortes de recursos que um possível novo governo venha fazer, eu tenho medo.
OP – Como está sendo o repasse de recursos para o Cinturão das Águas? Teixeira – A gente vinha recebendo cerca de R$ 10 milhões por mês. Só no ano passado, mesmo com toda dificuldade, investimos no Cinturão R$ 200 milhões. Foram R$ 140 milhões da União e R$ 60 milhões do Estado. Este ano nós temos R$ 150 milhões de previsão, já vieram quase R$ 40 milhões de verba federal. Viria até mais que no ano passado. É emenda de bancada, aprovada, já está desbloqueada. E o Estado tem uma previsão de botar mais R$ 60 milhões. A gente pretende que não haja percalço.
Água dos velhos sertões
A pequena barragem Arapuá-Angicos, no Rio Grande do Norte, capaz de armazenar pouco mais de 4 milhões de m³, é de 1920. É a mais antiga de todo o trajeto a ser percorrido pelo novo rio do sertão setentrional. Em seu itinerário redesenhado pela engenharia do século XXI, São Francisco também encontrará caminhos d’água do passado. O açude Lima Campos, em Icó, no Ceará, foi feito de abril a dezembro de 1932. Havia flagelo, fome, doenças, campos de concentração, mais uma seca molestando bicho e gente. O Estado pelejava por água.
Na Paraíba, o reservatório São Gonçalo tem quase a mesma idade do Lima Campos, é de 1936. A estiagem era igualmente cruel, a mesma região do Polígono das Secas. Em Pernambuco, o açude Curema foi concluído em 1942, quando o atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), gestor das águas da República, ainda era chamado de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas.
São paredes de concreto ou areia que barram águas há tempos. Esses quatro e mais 17 açudes serão recuperados, reforçados, adaptados à presença do São Francisco. O rio encherá esses velhos sertões com água nova e a reforma será necessária. O projeto de adequação dos antigos reservatórios está incluído na obra da transposição. Custará mais de R$ 318,7 milhões, entre o levantamento técnico, iniciado três anos atrás, e a execução dos trabalhos. Previsão que se estendam por pelo menos um ano e meio, no mínimo.
O Castanhão, no Ceará, o maior dos açudes do Nordeste, com 6,7 bilhões de m³ de volume possível – hoje com apenas 9% de água -, está na lista. Apesar de ser um açude recente, inaugurado apenas 13 anos atrás, também precisará das adaptações. A reforma do Castanhão está orçada em cerca de R$ 21 milhões e é a que deve durar mais tempo individualmente: 18 meses. Principal garantia de abastecimento de Fortaleza, a barragem foi incluída como prioridade imediata para receber as alterações.
Dos 21 açudes para reforma, 18 são do Dnocs. Os outros três da relação são estaduais: Acauã, na Paraíba; Santa Cruz, no Rio Grande do Norte; e Chapéu, em Pernambuco. José Berlan Cabral, coordenador de estudos e projetos do Dnocs, confirma que três reservatórios da Paraíba estão prontos para lançarem editais de licitação: São Gonçalo, Poções e Boqueirão.
O serviço por fazer não será pouco. Segundo Berlan, haverá recuperação e reforço na parede de algumas barragens, instalação e regulagem de equipamentos hidromecânicos, novos sensores para medir volume e vibração na estrutura, instrumentos de automação, iluminação de galerias. O levantamento de necessidades foi individualizado por açude. O período seco é o ideal para iniciar os trabalhos.
O que for instalado será conectado a centrais de controle, operadas pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf). Os novos equipamentos indicarão, por exemplo, a vazão exata despejada pelo São Francisco. Para estar dentro da outorga estabelecida pela Agência Nacional de Águas (ANA), que é de 26 mil litros por segundo.
Outros cinco reservatórios do Ceará, além do Castanhão, em Jaguaribara, serão atualizados: o Lima Campos, em Icó; o Quixabinha, em Mauriti; o Orós, o Banabuiú, e o Prazeres, em Barro. Só nas barragens cearenses serão investidos R$ 106.466.905,46. O dinheiro será repassado pelo Ministério da Integração Nacional. Os açudes pertencentes aos estados serão reformados com verbas locais. (Cláudio Ribeiro)
Campinas, 04 de março de 2016 a 11 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 648
Pesquisador analisa mapas, obras literárias e até cordéis para fundamentar tese desenvolvida no IEL
Por Luiz Sugimoto
“Sertão: palavra de enorme riqueza no imaginário, na história e cultura(s) do Brasil. Lugar desértico, paisagem árida e desoladora, onde vive uma população em constante processo migratório, lugar de uma rica cultura popular e também um espaço de barbárie, misticismo e miséria? O sertão se apresenta sob diversos aspectos, despertando sensações e sentimentos, evocando imagens e apresentando-se como resultado de uma longa experiência sócio-histórica e ficcional. Este trabalho investiga a formação da identidade narrativa sertaneja, percorrendo assim uma trajetória que tem como característica central a multiplicidade de autores, gêneros e discursos que formam as veredas de um processo em contínua transformação.”
É assim que Jorge Henrique da Silva Romero resume sua tese de doutorado “Sertão, sertões e outras ficções: ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja”, orientada pela professora Suzi Frankl Sperber e defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Um diferencial nesta pesquisa é a sua apresentação em formato de ensaio. “É um formato muito pouco usual, que vai contra a corrente acadêmica, mas considerei uma boa estratégia para focalizar este espaço tão fugidio, que escapa a cada momento de uma classificação. A ousadia valeu a pena. Como o objetivo era trabalhar com o imaginário, ganhei inúmeras possibilidades em termos ficcionais”, justifica o autor.
Na opinião de Jorge Romero, existe um transbordamento do imaginário sobre o sertão, hoje geograficamente demarcado pelo Polígono das Secas, que compreende os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e norte de Minas Gerais. “O tema está presente em nossa história desde a vinda dos colonizadores portugueses. Raimundo Faoro, em “Os donos do poder”, afirma que o sertão era então ‘outro mar ignoto’, outro espaço a se conhecer. Sérgio Buarque de Holanda destaca as estratégias distintas da colonização espanhola e da lusitana: a espanhola entrou terra adentro, devastando e povoando o interior; a portuguesa fortaleceu os domínios no litoral e conservou intacto o sertão, até as entradas dos bandeirantes atrás de metais e pedras preciosas.”
O autor da tese lembra que o primeiro dicionário brasileiro, “Vocabulario portuguez e latino” (publicado entre 1712 e 1721), do padre Raphael Bluteau, já trazia a palavra sertão, ainda que grafada de diferentes formas: “certão”, “sertam”, “sertaão”. “A palavra existia mesmo antes da colonização, tanto que Caminha expressou assim seu assombro com a vastidão daquelas terras: ‘pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa’. A palavra também aparece relacionada a territórios africanos, conservando esta propriedade do desconhecido.”
Jorge Romero contou com a participação na banca examinadora do professor Berthold Zilly, que traduziu para o alemão “Os sertões”, de Euclydes da Cunha, e agora está traduzindo “Grandes sertões: veredas”, de Guimarães Rosa. “O fascínio pelo sertão fez com que o professor Zilly viajasse para o Brasil a fim de conhecer as terras de suas leituras. Ao chegar às comunidades perguntando onde ficava o sertão, a resposta era sempre: ‘é mais pra lá, é mais pra lá’. O que temos é um espaço de indeterminação, em que o sertão passa a ser o espaço do outro (de alteridade) e, via de regra, opondo civilização e barbárie – esta é a tônica quando se fala de litoral e sertão.”
Nascido em Fortaleza, mas de família do sertão, o pesquisador afirma que seu objetivo na tese foi justamente problematizar esta vastidão da região no imaginário e também no presente, percorrendo a historiografia e a literatura brasileira desde a “Carta de Caminha”. “Analisei mapas, imagens e cordéis. E, para viabilizar a ideia de um ensaio, recorri a autores fundamentais como Jean Starobinski, que diz: ‘O ensaio nunca deve deixar de estar atento à resposta precisa que as obras ou os eventos interrogados devolvem às nossas questões. Em nenhum momento ele deve romper seu compromisso com a clareza e a beleza da linguagem’. A clareza e a beleza foram preocupações presentes o tempo todo na redação do texto.”
Mitos civilizatórios
Na primeira parte da tese, Romero procura explorar aspectos do sertão presentes na história do Brasil, como o “mito da conquista” pelos primeiros exploradores, os bandeirantes. “Utilizo uma epígrafe de Walter Benjamin que resume bem essa questão: ‘Nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura’. Transitando entre história e literatura, procuro mostrar que civilização e barbárie estão presentes neste movimento dos bandeirantes.”
O pesquisador atenta que a questão dos mitos civilizatórios é bastante perceptível nos mapas dos séculos 16 e 17, dando o exemplo do conhecido mapa de Reinel (1519), confeccionado a mão. “Nele, o litoral descrito é em detalhes, enquanto o interior traz figuras de dragão, animais exóticos e indígenas – elementos míticos com os quais cartógrafos representavam o desconhecido e o perigoso. Há gravuras em que o mar também é preenchido com essas figuras.”
No mapa “Brasilia Barbarorum” (Brasil Bárbaro), acrescenta Jorge Romero, elaborado pelo cartógrafo alemão Georg Seutter em 1740, o litoral é igualmente descrito em detalhes, enquanto um vazio representa o sertão, indicando vastas extensões e ausência de civilização. “Ao ser inserido no interior das fronteiras portuguesas, o sertão adquiria um sentimento de pertença e um status de território à espera da integração pelo colonizador. É um espaço que Euclides da Cunha vai preencher com a narrativa de uma guerra entre a civilização e este Brasil bárbaro; para isso, vai ter que descrever esse outro tipo humano, completamente diferente do homem do litoral.”
Hércules-Quasímodo
“Dualidade Hércules-Quasímodo” é o título da segunda parte da tese, em que o autor introduz o elemento da “identidade narrativa”, conceito do filósofo Paulo Ricoeur que o ajudou a lidar com a imensa quantidade de obras e interpretações sobre o sertão. “Por exemplo, em ‘Os sertões’, Euclides da Cunha utiliza uma metáfora belíssima sobre dois sentimentos em relação ao sertanejo: primeiro, ele descreve o homem da caatinga, Hércules-Quasímodo, montado em seu cavalo como se formasse a imagem de um centauro, um corpo metade homem e metade cavalo, desgracioso e fatigado na sua imobilidade; de repente, um novilho escapa e o sertanejo se transforma em figura titânica, acossando o boi fugitivo. Esta metáfora oferece duas dimensões: uma de rebaixamento, do corpo torto e desengonçado, e outra da idealização, presente em folhetos de cordel com a imagem de Lampião como herói.”
Romero considera que Euclides da Cunha consegue oferecer uma síntese de toda a literatura sobre este espaço exótico, unindo a sua própria experiência no sertão. “Alguns escritores voltaram-se para esses lugares recônditos para mostrar a seus concidadãos, da república das letras, que existia um outro Brasil. Desde José de Alencar com ‘O Sertanejo’, passando por Taunay com ‘Inocência’, até as obras regionalistas tratando da fome e da seca, como ‘A fome’ de Rodolfo Teófilo e ‘Os retirantes’ de José do Patrocínio; e mesmo a literatura de viagem, que vai ser tema do livro ‘O Brasil não é longe daqui’, de Flora Süssekind, pensando a importância desse estilo de narrativa para a constituição do sistema literário brasileiro.”
Microfísica poiética
Na última parte da tese, o autor apresenta a sua noção de “microfísica poiética”, tomando como referência a “microfísica do poder” de Foucault, sobre a horizontalização do poder – que não está localizado em um lugar, visto que existe uma teia de relações de poder. “‘Poiesis’, aqui, é o conceito fundamental que se refere à cri(ação), sugerindo a atividade sempre reveladora, onde narrativas diversas encontram espaço privilegiado para aflorar. A ‘microfísica poiética’ pressupõe um movimento sempre aberto à incorporação de novas produções artísticas.”
Por esta noção, esclarece Jorge Romero, o sertão deixa de ser território do letrado, como no século 19, e sim um território primordialmente da obra de arte. “Antes, conhecíamos o sertão apenas através dos seus representantes, como Alencar, Taunay, Patrocínio e Euclides. Com a ‘microfísica poiética’ introduzi outros elementos a partir de Guimarães Rosa e Patativa do Assaré [Antônio Gonçalves da Silva], que tratam de sertões diferentes: ‘Grande sertão: veredas’ é um sertão do norte de Minas, de jagunços, em que temos um sertanejo como narrador, explorando muito bem as contradições metafísicas e sociais ali presentes; e a obra de Patativa do Assaré é o sertão cearense, das contradições políticas por conta do seu esquecimento, mas não na perspectiva centralizada do letrado da cidade e sim do próprio sertanejo.”
Publicação
Tese: “Sertão, sertões e outras ficções: ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja” Autor: Jorge Henrique da Silva Romero Orientadora: Suzi Frankl Sperber Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
Estudo do genoma de espécies do Semiárido e do Cerrado (como opequi) que são tolerantes a temperaturas elevadas e à escassez hídrica pode contribuir para o melhoramento genético de culturas como soja, milho, arroz e feijão, diz pesquisador da Embrapa (foto: Wikipedia)
02/06/2014
Por Noêmia Lopes
Agência FAPESP – A seriguela e o umbuzeiro, árvores comuns do Semiárido nordestino, e a sucupira-preta, do Cerrado, fazem parte de um grupo de plantas brasileiras que poderão desempenhar um papel importante para a agricultura no enfrentamento das consequências das mudanças climáticas. Elas estão entre as espécies do país com grande capacidade adaptativa, tolerantes à escassez hídrica e a temperaturas elevadas.
De acordo com Eduardo Assad, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Tecnológica em Informática para a Agricultura (CNPTIA) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o estudo do genoma dessas espécies pode ajudar a tornar culturas como soja, milho, arroz e feijão tão resistentes quanto elas aos extremos climáticos. Assad foi um dos palestrantes no quarto encontro do Ciclo de Conferências 2014 do programa BIOTA-FAPESP Educação, realizado no dia 22 de maio, em São Paulo.
“O Cerrado já foi muito mais quente e seco e árvores como pau-terra, pequi e faveiro, além da sucupira-preta, sobreviveram. Precisamos estudar o genoma dessas árvores, identificar e isolar os genes que as tornam tão adaptáveis. Isso pode significar, um dia, a chance de melhorar geneticamente culturas como soja e milho, tornando-as igualmente resistentes”, disse. “Não é fácil, mas precisamos começar.”
Assad destaca que o Brasil é líder em espécies resistentes. “O maior armazém do mundo de genes tolerantes ao aquecimento global está aqui, no Cerrado e no Semiárido Nordestino”, disse em sua palestra O impacto potencial das mudanças climáticas na agricultura.
Os modelos de pesquisa realizados pela Embrapa, muitos deles feitos em colaboração com instituições de outros 40 países, apontam que a redução de produtividade de culturas como milho, soja e arroz decorrente das mudanças climáticas deve se acentuar nas próximas décadas. “Isso vale para as variedades genéticas atuais. Uma das soluções é buscar genes alternativos para trabalhar com melhoramento”, disse Assad.
Outras plantas do Cerrado com grande capacidade adaptativa lembradas pelo pesquisador são a árvore pacari e os frutos do baru e da cagaita. No Semiárido Nordestino, árvores como a seriguela, o umbuzeiro e a cajazeira foram apontadas como opções importantes não só para estudos genéticos como também para programas voltados à geração de renda pela população local.
“Em vez de produzir culturas exóticas à região, é preciso investir naquelas que já fazem parte da biodiversidade nordestina e têm potencial de superar as consequências do aquecimento global”, adiantou Assad.
Para o melhoramento de espécies, de forma a que se tornem tolerantes ao estresse abiótico, a Embrapa planeja lançar, em 2015, uma soja resistente à deficiência hídrica, produzida a partir de um gene existente em uma planta do Japão. “Testamos essa variedade este ano, no Paraná, em um período sem chuvas. Ainda há estudos a serem feitos, mas ela está se saindo muito bem”, disse o pesquisador.
Assad também citou avanços empreendidos pelo Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), que já lançou quatro cultivares de feijão com tolerância a temperaturas elevadas, além de pesquisas feitas no município de Varginha (MG) em busca de variáveis mais tolerantes para o café.
Prejuízos e mudanças no sistema produtivo
Cálculos da Embrapa feitos com base na produtividade média da soja mostram que somente esse grão acumulou mais de US$ 8,4 bilhões em perdas relacionadas às mudanças climáticas no Brasil entre 2003 e 2013. Já a produção de milho perdeu mais de US$ 5,2 bilhões no mesmo período.
A área considerada de baixo risco para o cultivo do café arábica deve diminuir 9,45% até 2020, causando prejuízos de R$ 882 milhões, e 17,15% até 2050, elevando as perdas para R$ 1,6 bilhão, de acordo com análises feitas na Embrapa e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Diante dos prejuízos, outra solução apontada por Assad é a revisão do modelo produtivo agrícola. “A concentração de gases de efeito estufa na atmosfera aumentou mais de 20% nos últimos 30 anos, tornando indispensável a implantação de sistemas produtivos mais limpos”, disse à Agência FAPESP.
“O Brasil é muito respeitado nesse tema, em especial porque reduziu o desmatamento na Amazônia e, ao mesmo tempo, ampliou a produtividade na Região Amazônica”, disse.
Segundo Assad, isso abre canais de diálogo sobre a sustentabilidade na agricultura e sobre a adoção de estratégias como integração entre lavoura, pecuária e floresta, plantio direto na palha, uso de bactérias fixadoras de nitrogênio no solo, rochagem (uso de micro e macronutrientes para melhorar a fertilidade dos solos), aplicação de adubos organominerais, além do melhoramento genético.
“O confinamento do gado é outro ponto que está em discussão por pesquisadores e criadores em diversas partes do mundo. Ele pode resultar em menos emissão de gases de efeito estufa, mas torna o rebanho mais vulnerável à doença da vaca louca. Nesse caso, uma alternativa é a recuperação de pastos degradados”, afirmou Assad.
Estudos feitos na Embrapa Agrobiologia mostram que um quilo de carne produzido em pasto degradado emite mais de 32 quilos de CO2 equivalente por ano. Já em pasto recuperado a partir do que a agricultura de baixa emissão de carbono preconiza, a emissão por quilo de carne pode ser reduzida a três quilos de CO2 equivalente anuais.
“Isso mostra que ambientalistas, ruralistas, governo e setor privado precisam sentar e decidir o que fazer daqui em diante – qual sistema de produção adotar? Com ou sem pasto? Com ou sem árvores? Rotacionado ou não? São mudanças difíceis, de longo prazo, mas muitos agricultores já estão preocupados com essas questões, com os prejuízos que o aquecimento global pode trazer, e começam a buscar soluções”, disse.
Em 1956, quando o presidente Juscelino Kubitschek lançou o seu Plano de Metas, destinado a modernizar o país, Guimarães Rosa (1908-1967) publicou as novelas de Corpo de baile e Grande sertão: veredas. Era embaixador e trabalhava no Itamaraty, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, João Cabral de Melo Neto (1920-1999) publicou Duas águas e os inéditos Morte e vida Severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina. O diplomata foi transferido para Barcelona, como cônsul-adjunto. Ainda em 1956, Vinicius de Moraes (1913-1980), voltava de Paris, após ocupar o cargo de segundo secretário de embaixada. Escreve o poema Um operário em construção para o primeiro número da revista Para Todos, convidado por Jorge Amado. Também inicia a parceria com Tom Jobim, a quem convida para musicar Orfeu da Conceição, encenada no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro naquele ano. Na contramão do otimismo geral do Brasil novo, nas obras do trio transita uma multidão pelo sertão e pelas favelas, estrangeiros na sua terra.
“O ano de 1956 foi emblemático, porque nesses textos nota-se uma não integração à verdade alardeada pela produção da modernidade. Há, nos autores, um deslocamento da percepção para lugares mais recônditos da estrutura social, dos sujeitos menos favorecidos pela escala social. Cabral, Rosa e Vinicius questionam os lugares hierárquicos tradicionais, impostos como naturais à ordem coletiva”, explica o crítico literário Roniere Menezes, professor do Centro Federal de Educação de Minas Gerais (Cefet-MG) e autor da pesquisa O traço, a letra e a bossa: literatura e diplomacia em Cabral, Rosa e Vinicius (Editora UFMG). Os três, além de se destacarem do otimismo nacional, também apresentavam um “sertão” (ou, no caso de Vinicius, as favelas, análogas ao sertão) muito diverso do sertão exótico, saudosista e contrário ao moderno – muitas vezes tratado com tintas da política representativa tradicional –, como ocorre na obra de alguns colegas de letras. Os autores, ao construírem suas imagens do povo brasileiro, interessaram-se mais pela questão ética que pelo viés político partidário.
Se há diferenças entre os autores, eles apresentam um ponto semelhante: eram diplomatas. “Mais do que uma coincidência, o trabalho diplomático, ou seja, a aproximação com a exterioridade de um sistema, abertura para o jogo de diferenças existentes na vida social, cultural e política, permite articular os projetos tão heterogêneos dos três, com caminhos estéticos diversos, mas uma mesma preocupação: a tensão entre o discurso do Brasil desenvolvimentista das elites e o discurso do Brasil arcaico, carente, rural ou urbano”, observa Menezes. “Esses escritores-diplomatas corroeram a ideia de um regionalismo fechado, enrijecido, alheio às conexões com o mundo exterior. Ao mesmo tempo, caminham na contramão das pretensões de um Estado desenvolvimentista focado na ideia de unidade nacional. Seus textos enfatizam as identidades diversas do país, a multiplicidade de culturas e demandas sociais do Brasil”, analisa. Da mesma forma que o movimento da escrita diplomática se pauta pela “desterritorialização”.
Os escritores diplomatas são viajantes de um Brasil perdido nos labirintos da modernização. “A tensão criada no espírito ao mesmo tempo burocrata (eram funcionários do Estado) e ‘turista’ desses autores traz um olhar agudo para aqueles ‘estrangeiros’ nativos que perambulam pelo seu país, como as massas de refugiados do pós-guerra, buscando uma moradia. O deslocamento, o exílio, a adaptação complexa a outras terras, parte vida diplomática, contribui para a desterritorialização do pensamento”, avalia o pesquisador. A realidade social que seus textos revelam é abordada por uma ótica de exterioridade.
“A escritura diplomática desconfia do vínculo limitado com os lugares. Cabral, Rosa e Vinicius sabem que não podem escrever ‘de dentro’, não têm o discurso do sertanejo ou do favelado. Por isso criam ‘espaços do fora’, onde fazem ressoar as vozes do ‘dentro’. Essa perspectiva de fronteira, nem dentro nem fora, busca o constante diálogo entre diversas proposições, gerando novas reflexões, novas configurações estéticas”, nota Menezes.
No itinerário dos escritores-diplomatas surgem ressonâncias, aproximações, traduções entre as produções culturais de várias partes do mundo, exatamente num momento em que o país experimenta sua modernidade tardia, em que a produção local se articula com a estrangeira e os conceitos de dependência começam a sofrer interferência dos conceitos de simultaneidade cultural. Ainda que, no Brasil, a ideia de modernidade tenha surgido antes do processo de modernização. Brasília é o símbolo disso, como capital de um Estado de “vanguarda” numa nação em que muitos valores da modernidade não foram sequer assimilados. “Nisso, os três escritores foram sábios em lançar mão da escritura diplomática, em especial na utilização do afeto em relação ao outro no reconhecimento do exterior aos lugares estabelecidos”, analisa o pesquisador.
O trabalho com a diplomacia funciona como alegoria do processo de criação literária de se pensar a escritura como uma relação com a alteridade. Daí a imagem da simpatia que os autores desenvolvem pelos “estrangeiros” da modernidade que circulam em território brasileiro.
“Os autores desenvolveram o pensamento da ‘estrangeiridade’, a abertura para outros modos de saber e de expressão. Ao mesmo tempo em que atuam no campo burocrático ou literário, buscam a convivência com diversidade social, estética e cultural nativa, subjetiva ou concreta, ligada à grande arte ou à tradição popular”, avalia Menezes. Rosa, em suas experiências na Europa, durante a guerra, viveu a perda de certezas na própria humanidade e fez da insegurança diante da ordem estrangeira a possibilidade de criação de linhas de fuga pela literatura. “O enfrentamento das fragilidades humanas em terras inóspitas liga-se intimamente à formulação artística. O trabalho estético, então, ganha força política restauradora, pois se relaciona à vontade de transformação individual e coletiva.
Dualista
Para o pesquisador, a transdisciplinaridade possibilita a criação de espaços de estrangeiridade mesmo em relação aos pensamentos mais íntimos. “Rompe-se com o pensamento estanque, dualista, aprende-se a olhar com as lentes do outro, a sentir um pouco da insegurança das terras desconhecidas. A experiência com a terra estrangeira, com os espaços diferentes cria no viajante o interesse pelo novo de forma aguçada. Isso faz com que eles reconheçam suas limitações, fiquem mais abertos e mais tolerantes aos diversos modos de existência”, observa.
Há a constatação de que é preciso sair da interioridade e ir em direção a outras formas de pensamento e o conceito de diplomacia é fundamental como a busca de um diálogo com uma exterioridade em relação ao sistema instituído. “A diplomacia oferece à escritura a capacidade de pensar o outro não por regras consolidadas, mas pela capacidade de ser olhado por esse outro, de deixá-lo invadir o discurso e dar novo significado ao pensamento e ao próprio ato de criação”, fala Menezes.
A isso se junta o apuro da escrita, já que os diplomatas sabem o quanto há de construção linguística, de técnica retórica, de jogos de poder em cada trecho de um argumento. “A atenção e o cuidado com as minúcias da linguagem, as estratégias de convencimento, o preparo intelectual, o controle para que aspectos sentimentais ou irrefletidos não interfiram nas negociações refletem a ‘prudência’ diplomática presente na produção artística dos três.” Mas, ao contrário da diplomacia oficial, com regras e dogmas, a “diplomacia literária” ou “diplomacia menor” tem como força maior o questionamento. Não se quer fechar acordos definitivos, mas revelar novos olhares políticos sobre o mundo. Não destruir a ideia de modernidade em propor um retorno saudosista ao passado, mas revelar as incongruências da modernização forçada e propor formas alternativas de se pensar o país. “Se o diplomata às vezes mente, ou esconde conhecimento para conseguir acordos melhores, o escritor inventa mentiras que nos possibilitam enxergar verdades maiores que as certezas aparentes”, analisa o pesquisador.
O trio, porém, destoava de muitos colegas diplomatas. Como, por exemplo, se vê no ofício de Aluízio de Magalhães, cônsul-geral do Brasil em Marselha, em 1958, em que critica a cantora Marlene, e grupos brasileiros de balé negro e frevo na Europa. “A brasileira se desmancha em movimentos epiléticos, enquanto uns negros, sem compostura, batendo tambores, saracoteavam ao derredor que nem macacos à orla da mata”, escreve o cônsul-geral.
“Os escritores-diplomatas, quando lidam com a política da escritura, sabem que o trabalho político mais importante não se liga às fronteiras físicas visíveis, mas com as formas de separação das linhas invisíveis do preconceito, da discriminação”, afirma Menezes. É nesse “lugar menor” que buscam corroer a separação e a exclusão. “Na diplomacia oficial, o trabalho é feito por meio das instituições políticas, jurídicas e econômicas. Na ‘diplomacia menor’ ele se realiza, por exemplo, pela representação do povo simples, exposto à crueza da realidade, no seu modo de lidar com a biopolítica, com os limites que devem atravessar todo dia para sobreviver”, observa. “Traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controle de uma sociedade sobre seu destino é, no meu entender, a tarefa da política externa”, escreve o diplomata e professor da Universidade de São Paulo Celso Lafer em O Itamaraty na cultura brasileira (Instituto Rio Branco, 2001).
“A capacidade de Rosa de usar registros linguísticos diversos era, no plano literário, o correlato perfeito do primeiro item de qualquer agenda diplomática: a fixação das fronteiras, base da política externa que pressupõe uma diferença entre o ‘interno’ (o espaço nacional) e o ‘externo’ (o mundo)”, analisa Lafer. “Ele traduzia na sua literatura um dos princípios básicos da diplomacia brasileira, uma linha de ação voltada para transformar nossas fronteiras de clássicas fronteiras-separação em modernas fronteiras-cooperação”, avalia. Ao contrário de Rosa e de Cabral, que tiveram essa experiência do sertão na infância, Vinicius só vai conhecer o Nordeste e o Norte aos 29 anos, em 1942. Seu ingresso no Itamaraty ocorre no momento em que está descobrindo o país e assumindo a sua nova brasilidade e, com isso, sua produção artística começa a ser influenciada pela realidade social do Brasil e dos saberes populares.
No lugar do sertão, Vinicius insere em sua obra imagens da favela e das zonas boê-mias do Rio de Janeiro. Sua permanência diplomática nos EUA o fez conhecer melhor o jazz e o cinema. Mas, ao contrário dos colegas de letras, foi o único a ser desligado do Itamaraty. Cabral havia enfrentado um processo de cassação em 1952, por Vargas, mas retornou ao ministério. O “poetinha”, não. Durante um show em Portugal, em 1968, ataca o regime militar. Contra esta e outras ações do poeta, o regime reage com uma aposentadoria compulsória. Em nota grosseira, o então presidente Costa e Silva fez questão de anotar: “Demita-se esse vagabundo”. A diplomacia libera definitivamente seu talento para a música popular.
“O texto do trio não está pautado pela luta de classes, partidos ou poder, mas pelas mediações, negociações”, observa Menezes. Nos textos dos três diplomatas aparecem imagens incômodas, dissonantes em relação ao discurso da nação desenvolvimentista simbolizada por Brasília, que o trio, cada um a seu modo, soube admirar e criticar.
“Num período em que o país quis ingressar no concerto das nações, com investimentos na modernização e no progresso, eles tinham confiança no futuro, mas desconfiavam dos processos com que se conduzia o país a esse novo estágio político e econômico”, nota o pesquisador. Então, enveredam-se pelos sertões, morros e periferias buscando valorizar os saberes e as criações populares. “A ‘diplomacia menor’ e as ‘poéticas de fronteiras’ mostram a necessidade do encontro com alguma coisa que force o pensamento a sair da sua interioridade. “O movimento rumo ao exterior dos lugares convencionais contribuiu para o desenvolvimento da imaginação e do olhar crítico dos autores”, diz Menezes.
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