TORCIDA ORGANIZADA NÃO É SINÔNIMO DE VIOLÊNCIA
Por Katryn Dias – Esporte Essencial – 4 de dezembro de 2012
Em meados de 2001, cursando a pós-graduação em antropologia na Universidade de Columbia, em Nova York, Renzo Taddei iniciou sua pesquisa de campo, de caráter etnográfico. Como seu plano era estudar a violência, optou por um tema muito recorrente no cotidiano de diversos países: as torcidas organizadas. Comumente associadas a atos criminosos, de vandalismo ou brigas, as torcidas da Argentina foram o foco principal.
Nesta entrevista exclusiva, Taddei, que atualmente é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica um pouco do que pode observar enquanto esteve em contato com torcedores e líderes de torcidas, vivenciando o cotidiano daquele grupo. Na medida do possível, também traça alguns paralelos entre o que viu na Argentina e o que encontra hoje no Brasil.
Esporte Essencial: Durante a sua pesquisa de campo, você teve oportunidade de conhecer de perto uma torcida organizada em Buenos Aires. O que você observou lá também se adequa ao cenário brasileiro? Em que sentido?
Renzo Taddei: Há diferenças marcantes entre a forma como as torcidas existem e se organizam na Argentina e no Brasil. Uma delas é a associação com partidos políticos. Isso é muito forte na Argentina, mas, até onde eu sei, não ocorre no Brasil. Em parte isso se dá porque o Partido Peronista tem uma imensa base popular naquele país, do tamanho que nenhum partido tem no Brasil. Muitos políticos estabelecem relações com grupos de torcedores, muitas vezes inclusive usando-os para causar confusão em eventos políticos de rivais. Mas raramente se pode dizer que uma torcida organizada participa disso; em geral são grupos pequenos.
Outra diferença deve-se à distribuição espacial dos clubes. No ano em que fiz minha pesquisa de campo mais longa, em 2001, 13 dos 20 clubes da primeira divisão Argentina estavam sediados em Buenos Aires. No Brasil, não há mais de dois ou três clubes por cidade, o que reduz a relevância espacial do lugar onde o clube está sediado. Não há muita relação entre torcer pelo Botafogo e viver em Botafogo, ou torcer pelo Palmeiras e viver próximo ao Parque Antártica, em São Paulo. Na Argentina, com exceção de times como o Boca Júniors e o River Plate, que conjugam uma participação de bairro forte com uma existência que transcende o bairro onde estão, os demais times são muito fortemente ligados às localidades e bairros em que ficam. Isso significa que outras formas de conflito, como tensões entre bairros, tendem a contaminar a relação entre as torcidas.
“HÁ MUITO MAIS NA VIDA SOCIAL DAS TORCIDAS DO QUE A VIOLÊNCIA. ESSA É UMA PARTE ÍNFIMA DA ATIVIDADE DAS TORCIDAS, E DA QUAL PARTICIPAM POUCAS PESSOAS. MAS, INFELIZMENTE, É O QUE CHAMA A ATENÇÃO E VIRA NOTÍCIA”
Eu converso bastante com torcedores no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, e acompanho pela imprensa as notícias sobre as torcidas organizadas. Leio também os trabalhos acadêmicos produzidos no Brasil sobre o tema. Creio que há muitas semelhanças entre os dois países – ou pelo menos entre as três cidades: Buenos Aires, Rio e São Paulo. Mas minhas opiniões sobre as torcidas no Brasil não são fundamentadas em trabalho de campo sistemático, como é minha visão sobre as torcidas argentinas, e em razão disso os paralelos têm que ser traçados com muito cuidado.
EE: O que você pode concluir com a pesquisa sobre a violência nas torcidas organizadas?
RT: Inicialmente, a primeira coisa que eu concluí é que a percepção da violência varia muito em função do lugar de quem observa. Se nos basearmos em estatísticas policiais, como faz boa parte dos estudiosos sobre o assunto, o que veremos é apenas violência, que pode crescer ou diminuir, mas é sempre violência. A abordagem da antropologia parte de uma tentativa mais ampla de compreensão do mundo das torcidas, para só então analisar o papel que a violência desempenha aí. Há muito mais na vida social das torcidas do que a violência. Essa é uma parte ínfima da atividade das torcidas, e da qual participam poucas pessoas. Mas, infelizmente, é o que chama a atenção e vira notícia. Ninguém tem interesse nas demais atividades, com a exceção do carnaval, em São Paulo, onde as três maiores torcidas participam com suas escolas de samba. É óbvio que se torcida organizada fosse sinônimo de violência, como a imprensa faz parecer recorrentemente, seria impossível que essas mesmas torcidas organizassem algo grande e complexo, que demanda cooperação e organização, como um desfile de carnaval.
Minha pesquisa ocorreu em um bairro da periferia de Buenos Aires, Mataderos, numa região onde há áreas habitadas pela classe média, por famílias de classe média baixa, e onde está também uma das maiores favelas da Argentina, chamadaCiudad Oculta. E o que eu encontrei foram pessoas vivendo suas vidas e tentando resolver seus problemas, em geral sem muita ajuda do poder público. A imensa maioria dos torcedores-habitantes da região se esforçava para tentar prevenir as situações em que a violência das torcidas ocorre, incluindo aí todos os líderes de torcidas com os quais tive a oportunidade de conviver. Em geral, estavam preocupados com o crescimento do consumo de drogas (pasta base e cola de sapateiro, naquele momento) por crianças, e com o aumento da disponibilidade de armas de fogo no bairro; mas o que realmente os preocupava era o empobrecimento da população da periferia. Vi os líderes recorrentemente organizando churrascos na sede de clube, nas manhãs dos dias de jogos, onde grande quantidade de comida era distribuída entre os torcedores mais pobres. Muitas vezes os líderes dedicavam parte da semana coletando doações de comida entre diretores do clube, jogadores e alguns torcedores mais abastados do bairro. Uma vez um líder me disse que se os torcedores mais pobres entrassem no estádio com fome, coisa que não era incomum, a chance de confusão era muito maior.
Torcedor comemorando vitória do time Nueva Chicago, na Argentina, em ônibus da torcida.
Havia pessoas da comunidade que se envolviam em atividades ilícitas – como há em qualquer lugar, independente de classe social. Na torcida do Nueva Chicago, clube com o qual trabalhei, nenhum dos líderes era “bandido”, mas eram pessoas com perfil de líderes comunitários. Havia líderes do passado que tinham se envolvido com crimes, mas na época da minha pesquisa, eram todos trabalhadores. Quando voltei ao bairro, dez anos depois da pesquisa, todos os líderes de torcida com os quais eu havia trabalhado eram líderes comunitários; alguns eram líderes sindicais. Nenhum havia sido preso ou morrido.
O fato de que boa parte deles é grande, forte, barbudo, tatuado e tem “cara de mau” não faz qualquer diferença aqui. Grande parte do problema das torcidas é reflexo da discriminação social e racismo presentes em nossas sociedades – não apenas o racismo manifestado nas arquibancadas, pelas próprias torcidas, mas principalmente o racismo que não ganha espaço na mídia, o racismo das classes médias urbanas para com os jovens pobres de periferia. Esse racismo se manifesta, sobretudo, na relação tumultuada que a polícia tem com esses jovens.
Aliás, uma das “conveniências” da expressão “violência das torcidas” é o fato de que ela faz referência à violência associada à população jovem, pobre e negra, sem precisar ser explícito a respeito. Ninguém pensa em alguém rico e branco quando se evoca o problema das torcidas – como se essas pessoas não fizessem parte das torcidas. Tenho a impressão de que, muitas vezes, o uso dessa expressão permite que algumas pessoas e instituições sejam racistas sem parecer estarem sendo racistas.
“GRANDE PARTE DO PROBLEMA DAS TORCIDAS É REFLEXO DA DISCRIMINAÇÃO SOCIAL E RACISMO PRESENTES EM NOSSAS SOCIEDADES. PRINCIPALMENTE O RACISMO DAS CLASSES MÉDIAS URBANAS PARA COM OS JOVENS POBRES DE PERIFERIA”
EE: Quais as principais causas geradoras da violência dentro das torcidas organizadas? E como evitá-las?
RT: Não há sociedade sem violência. Nunca houve, na história da humanidade. O que temos são sociedades que sabem lidar melhor com certos tipos de violência; em geral, essas são as que tem uma visão mais aberta e realista sobre a violência, e não uma visão moralista, como a nossa. Fingimos o tempo todo que a violência não existe, apenas para nos chocarmos quando ela se manifesta.
Tratar a questão da violência das torcidas como problema de polícia faz parte desse panorama. É uma forma de evitar termos que pensar a sociedade em que vivemos, encarar nossos problemas a fundo. De qualquer forma, não acho que os atos de violência que ocorrem na relação entre torcidas tenham causas diferentes de outras formas de violência da sociedade. Posso elencar alguns fatores, correndo o risco de deixar muita coisa de fora. Há o fato de tentamos suprimir artificialmente as muitas formas de discriminação que existem em nossa sociedade, fingindo que elas não existem, o que apenas faz com que elas ressurjam de formas abruptas e violentas. Eu poderia também mencionar a impunidade, mas acho que essa é apenas a ponta de um iceberg. Pelo menos no que diz respeito às torcidas, por baixo disso – de atos violentos condenáveis – há o ressentimento por parte da população para com o poder público, e em especial para com a polícia, em razão da violência desmesurada e frequentemente aleatória por parte desta sobre a população jovem, pobre e negra. Tenho a impressão que, em situações de alteração emocional coletiva, esse ressentimento se transforma em ataque ao patrimônio público. No ano de 2001, durante a crise política argentina, a multidão incendiou o Congresso Nacional daquele país. Para grande parte daquelas pessoas, o Estado está ausente de suas vidas diárias, exceto pela presença da polícia. Ou seja, a polícia é a cara do Estado. E muita gente em Buenos Aires tem a experiência de ter apanhado da polícia ou de ter sido presa sem fazer a menor ideia do motivo para tanto. No Brasil não acho que isso é diferente.
Portanto, a questão passa pela legitimidade do Estado frente às populações, muito mais do que pelo tema da impunidade. O Estado não faz qualquer esforço no sentido de construir sua legitimidade política junto às populações mais pobres, com muito raras exceções. A percepção de que o Estado é ilegítimo, somada ao tratamento aviltante dado pela polícia à população em geral, e aos torcedores em particular, resulta em ações contra a ordem instituída – depredação do patrimônio e agressão contra a própria polícia. Mas essa reação não é planejada, não é articulada objetivamente, e por isso ela pode também ser parte de outras formas de violência, como a que ocorre entre torcidas. Ou seja, é um contexto que produz a violência como forma de expressão, e que produz pessoas que usam a violência como forma de expressão. O contexto violento impõe as regras violentas do jogo; as pessoas não são violentas por alguma “essência” interior. E isso é uma questão que se faz presente em diversos contextos sociais, não apenas no futebol.
Assassinos devem ser julgados e punidos; a não punição de assassinos não vai melhorar a situação no curto prazo, só piorar. Mas reduzir a questão mais ampla dos atos de violência associados às torcidas a um problema de polícia não vai resolver nada de forma definitiva. Na minha percepção, a maneira como o poder público trata o problema se reduz a um imenso teatro. E a população em geral não consegue pensar de outro modo que não seja “isso é problema do poder público”; por isso estamos atolados, sem sair do lugar. Ou seja, é preciso, no mínimo, transformar as forma de relação entre o Estado e a população, o que passa por transformar a polícia.
EE: No seu trabalho, você afirma que “a maioria dos torcedores torcia pelas torcidas”. Como você explica esse fato? E por que motivo o que acontece dentro do campo deixa de ser tão importante?
RT: O futebol, como esporte, passou por muitas transformações ao longo dos últimos 150 anos. Inicialmente, na Inglaterra, houve o esforço de “civilizar” a sua prática, que era notória por sua capacidade de gerar tumulto e confusão. Segundo Eric Dunning, um importante estudioso da violência no futebol, as autoridades inglesas iniciaram um combate ao futebol, através de leis que o proibiam em certos locais, por volta do ano 1314. No século 19, as regras que conhecemos foram desenvolvidas, com o objetivo de transformar uma prática de lazer popular em exercício de disciplinamento do corpo e da mente. Esse já foi um primeiro passo no processo de distanciamento entre a vida das classes populares e o esporte. Ao longo do século 20, duas outras coisas importantes ocorrem nesse sentido: o futebol se transforma em espetáculo, o que faz com que participantes sejam transformados em espectadores – a própria ideia de torcedor, que implica em alguém que não participa diretamente do jogo, aparece apenas no início do século passado. Em segundo lugar, e em especial na segunda metade do século, há um processo de profissionalização e de aburguesamento do esporte, o que distancia ainda mais o que ocorre dentro de campo e a comunidade de torcedores. Jogadores que antes eram membros da comunidade, como ainda ocorre em times pequenos, de segundas e terceiras divisões, passam a ser profissionais-celebridades com quem a torcida não interage de forma significativa; inclusive porque tais jogadores tendem a permanecer pouco tempo em cada clube. Qualquer resquício de experiência de comunidade ficou então restrito às torcidas, ao que ocorre nas arquibancadas. Foi o que eu vivenciei na Argentina: os jogadores eram festejados como celebridades, mas a relação com eles era superficial; a relação com a vida da comunidade de torcedores, com seus símbolos e rituais, no entanto, era muito mais forte e perene. Por isso eu disse que os torcedores em geral torcem muito mais por suas próprias torcidas do que pela equipe.
“REDUZIR A QUESTÃO MAIS AMPLA DOS ATOS DE VIOLÊNCIA ASSOCIADOS ÀS TORCIDAS A UM PROBLEMA DE POLÍCIA NÃO VAI RESOLVER NADA DE FORMA DEFINITIVA”
Mas isso marca mais os torcedores que frequentam os estádios e outros lugares das torcidas. Há vários tipos de torcedores. O torcedor de sofá, em geral, não tem essa experiência. O torcedor de boteco tem um pouco dela. Na relação com a torcida nos estádios, há muitos torcedores que são espectadores de terceiro grau: são espectadores do jogo e do espetáculo que as torcidas promovem nas arquibancadas, que eles só veem pela televisão. Aliás, parte do cinismo presente nos discursos midiáticos sobre a violência das torcidas é o fato de que estes jamais mencionam que muitos espectadores veem nas torcidas um espetáculo tão notável quanto o que ocorre em campo. Tenho amigos corintianos que falam com muito orgulho da Gaviões da Fiel, sem nunca terem se aproximado fisicamente da torcida. Vi a mesma coisa com a La 12, maior torcida do Boca Juniors, na Argentina.
EE: Em Buenos Aires, você descobriu que os torcedores mais jovens são geralmente os mais agressivos. No Brasil, um levantamento do jornal Lance! mostrou que, nos últimos 24 anos, mais de 150 pessoas foram mortas em decorrência de brigas entre torcidas, sendo 47% delas na faixa etária entre 11 e 20 anos. Esse número pode ser explicado pelo mesmo motivo?
RT: Ninguém deveria morrer indo ao estádio. Mas esses são números que revelam que o pânico moral em torno das torcidas é ridículo. Muito mais gente morre andando de bicicleta do que indo ao estádio. Pensemos através dos números: as grandes torcidas organizadas têm dezenas de milhares de associados; só no brasileirão de 2011, o público total foi de cinco milhões e meio de pessoas. Adicione aí os estaduais, e as outras divisões, e seguramente temos mais de 10 milhões de torcedores nos estádios anualmente. E temos uma média de 10 a 12 mortes por ano. Se esses números estiverem corretos, é como dizer que a taxa é de 0,1 mortes por 100.000 habitantes, e apenas levando em consideração as pessoas que efetivamente vão aos estádios. Estatisticamente, é obvio que ir ao estádio, e mesmo participar das torcidas, não está entre as coisas mais perigosas da vida urbana; pelo contrário. Para uma grande quantidade de gente – em especial os mais pobres nos grandes centros urbanos -, participar de uma torcida dá uma sensação de pertencimento e segurança não encontrada em outras áreas da vida. Foi isso que eu vi na Argentina: boa parte dos imigrantes de outras partes do país, ou de outros países, ia morar nas favelas da capital argentina, onde não tinham rede de apoio social, parentes, amigos. Encontravam isso nas torcidas.
“SE HOUVESSE UMA MELHOR INTERLOCUÇÃO ENTRE OS DIVERSOS SETORES DA SOCIEDADE ENVOLVIDOS NA QUESTÃO, E EM ESPECIAL ENTRE AS TORCIDAS E AS AUTORIDADES, TENHO CERTEZA DE QUE AS PRÓPRIAS TORCIDAS AJUDARIAM NO CONTROLE DO PROBLEMA. MAS AS TORCIDAS E SEUS LÍDERES SÃO PREVIAMENTE TAXADOS DE BANDIDOS”
Com relação à idade dos participantes, isso remete a outras questões que eu ainda não mencionei. As culturas e sociedades humanas, quaisquer que sejam, têm que lidar com essa questão, a necessidade de controlar, de alguma forma, a abundância de energia e os comportamentos agonísticos, agressivos, dos garotos adolescentes e jovens adultos. O próprio surgimento dos esportes pode estar ligado a isso, de alguma forma. Entre os jovens ligados às torcidas organizadas, não é incomum a visão de que, para se transformar em um líder com fama e prestígio, é preciso demonstrar altos níveis de coragem e agressividade. Com o tempo, os membros das torcidas, e especialmente os líderes, que tendem a ser mais velhos, entendem que para ter a liderança é preciso muito mais do que coragem e valentia; é preciso, fundamentalmente, inteligência e carisma. E isso não se ganha no grito.
Por isso eu digo que, sem as torcidas e os controles que elas exercem sobre seus membros, os índices de violência e criminalidade em áreas periféricas, como a que eu pesquisei na Argentina, seriam provavelmente maiores. Qualquer grupo social exerce alguma forma de controle sobre seus membros; as torcidas não são diferentes. Como eu ouvi recorrentemente na Argentina, situações de violência e confusão não são convenientes aos líderes de torcida, porque estes têm muito a perder com isso. Também não são convenientes, para usar um exemplo mais chocante ao nosso senso comum, a quem trafica drogas dentro das torcidas: em situações violentas, eles correm o risco de perder a droga e serem presos. Eu vi traficantes atuando de forma a conter o ímpeto de violência de alguns torcedores, o que poderia desencadear eventos violentos coletivos. Não se trata de apresentar traficantes como “bons moços”; muitas vidas são efetivamente perdidas com o consumo de droga na torcida, e não descarto que eventos violentos podem ser desencadeados por ações tolas e desmesuradas cometidas por alguém sob efeito de drogas. O que eu estou tentando dizer é que a realidade é mais complexa do que o que faz crer essa tendência que temos de dividir o mundo entre “bons” e “maus”.
De qualquer forma, minha experiência com as torcidas me diz que, em geral, quando uma torcida é a causadora de atos de violência contra a polícia ou outra torcida, isso frequentemente se dá em decorrência de atos impensados e impulsivos dos torcedores mais jovens. Os torcedores mais velhos e os líderes precisam saber administrar o ímpeto dos mais jovens. Mas nem sempre são capazes de fazê-lo, e quando a situação sai de controle e o combate se estabelece, os líderes acabam tendo que entrar na briga ao lado dos jovens que a causaram.
Eu presenciei negociações entre líderes de torcida e delegados de polícia de bairros de periferia, em que os últimos autorizavam a entrada de bandeiras ou tambores nos estádios, coisa proibida em Buenos Aires quando fiz minha pesquisa, em troca da garantia dos líderes que estes iriam controlar los pibes, a “molecada”, e que não haveria confusão ao redor do estádio. Ou seja, essa relação entre as ações dos mais jovens e as brigas era entendida de forma semelhante tanto por líderes como por policiais de bairro.
“PARA UMA GRANDE QUANTIDADE DE GENTE, EM ESPECIAL OS MAIS POBRES NOS GRANDES CENTROS URBANOS, PARTICIPAR DE UMA TORCIDA DÁ UMA SENSAÇÃO DE PERTENCIMENTO E SEGURANÇA NÃO ENCONTRADA EM OUTRAS ÁREAS DA VIDA”
Na Europa, uma das iniciativas mais ousadas de que tenho notícia é a contratação de assistentes sociais, na Bélgica, Holanda e Alemanha, com o intuito de conviver com as torcidas, e agir estrategicamente nos momentos em que ações de poucos indivíduos poderiam desencadear reações em cadeia, se alastrando para toda uma multidão e resultando em violência e depredação. Ou seja, a ideia era, ao invés de criminalizar todo um contingente de pessoas, evitar que a fagulha que produz a explosão coletiva ocorresse. Acho isso uma ideia genial; liberal demais, talvez, para o pensamento de nossas elites políticas, porque desarticula as formas de discriminação que existem na base de nossa existência social.
EE: Depois da obra, o Maracanã vai contar com um conjunto de ações anti-vandalismo, que inclui a utilização de materiais anticorrosivos e resistentes a pancadas. Você acredita que essa é a maneira correta de prevenir esse tipo de ação? Como evitar confusões entre torcedores em eventos de grandes proporções, como a Copa do Mundo?
RT: O Maracanã está saindo muito caro para a sociedade. Acho bom que ele seja, pelo menos, durável. Mas não há qualquer prevenção nisso.
Pensando em escala de curtíssimo prazo, para os grandes eventos que se aproximam, as autoridades devem ser capazes de identificar agressores e submetê-los à justiça, mas de forma precisa, objetiva, isenta. Se houvesse uma melhor interlocução entre os diversos setores da sociedade envolvidos na questão, e em especial entre as torcidas e as autoridades, tenho certeza de que as próprias torcidas ajudariam no controle do problema. Mas as torcidas e seus líderes são previamente taxados de bandidos, e o que se vê pautando a percepção coletiva, via mídia, é então apenas o discurso da polícia, repetido no jornalismo de forma quase sempre acrítica. Muitos jornalistas, infelizmente, pensam: “não vou dar espaço a esses bandidos” – sem perceber que, ao fazê-lo, estão pré-julgando e condenando muita gente que nunca se envolveu em violência. Essa é uma das razões pelas quais nunca se ouve a voz de quem participa das torcidas. Ou seja, em geral, a cobertura jornalística sobre a questão das torcidas tende a refletir apenas um ponto de vista, dentre muitos outros possíveis: o que manifesta certo moralismo das classes médias urbanas. Como conclusão, eu diria então que um pré-requisito para qualquer avanço nessa área é a melhoria na interlocução entre torcidas, jornalistas, autoridades e demais envolvidos.
Num prazo mais longo, é preciso mudar a relação entre o Estado e os segmentos da população diretamente envolvidos. Uma das coisas que as lideranças da polícia do Rio de Janeiro aprenderam, a duras penas, com a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, é que o treinamento dado aos policiais para o policiamento das ruas não era adequado para a situação de convivência com as comunidades. É justamente essa a questão, o mesmo ocorre nos estádios: os policiais precisam, antes de tudo, ser treinados para a convivência com os torcedores, entendendo as lógicas específicas dos contextos das torcidas, e só então o combate ao crime entra em cena. Não se pode pensar que a convivência é uma coisa óbvia, e o combate ao crime é que é complexo: a convivência entre torcedores e policiais deve ser tomada como um elemento fundamental, tão importante e complexo, do ponto de vista dos policiais, quanto ser capaz de identificar um crime. Por essa razão, eu sinceramente espero que o Coronel Robson, uma das autoridades policiais mais esclarecidas a esse respeito no Rio de Janeiro, seja envolvido na preparação das polícias de todo o Brasil para a Copa do Mundo de 2014.
Fotos: Renzo Taddei