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João Moreira Salles: Nota sobre três presidentes, duas bombas e o fim do mundo (Piauí)

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João Moreira Salles | 25 mar 2022_10h37


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E aqui estamos nós, cidadãos do mundo, diante de Vladimir Putin como gregos diante da Esfinge: O que você quer, o que pensa, qual o seu enigma, quantos e o quão ferozes são os seus demônios? Qual a sua visão mística da História, o seu sonho imperial, a dimensão purificadora que a violência tem para você? Até onde está disposto a ir? Existem limites? Se existirem, será mais fácil respeitá-los no triunfo ou na derrota? Você é mais perigoso encurralado ou vitorioso?

Ninguém sabe. Numa entrevista ao jornalista Ezra Klein, o analista político e apresentador da CNN Fareed Zakaria diz que hoje no mundo não existe país mais instável do que a Rússia. Mesmo nos regimes totalitários mais fechados, alguma institucionalidade costuma sustentar os processos políticos; protocolos e trâmites burocráticos fazem saber como serão tomadas as decisões. Na antiga União Soviética, quando morria o secretário-geral do Partido Comunista, o Presidium do Soviete Supremo se reunia e era certo que de lá sairia o novo líder do país. Se amanhã o presidente chinês Xi Jinping falecer, a notícia será planetária, mas não traumática, pois virá desacompanhada do temor de abalos institucionais – um membro da alta tecnocracia política logo o substituirá. O mesmo vale para totalitarismos dinásticos, a exemplo da Arábia Saudita e da Coreia do Norte. Morre um Saud, entra um Saud; morre um Kim, entra um Kim.

Não é assim na Rússia de Putin, onde não existem sistemas claros de sucessão nem sucessores presumidos. E isso é um problema. A impressão é que a frase apócrifa de Luiz XIV, O Estado sou eu, dita supostamente por um monarca com herdeiros definidos, conselheiros numerosos e uma vasta entourage burocrática a seu serviço, caberia melhor na boca do atual Rei Sol do Kremlin: A Rússia sou eu.

De fato, é o que parece. As autocracias tradicionais tomam a forma de uma pirâmide, com o líder no vértice e, abaixo dele, por ordem de importância hierárquica, as diferentes camadas da burocracia do Estado. Na Rússia contemporânea, a pirâmide colapsou. Como um tripé que se fecha, os lados foram trazidos para o centro e se juntaram numa linha vertical. Um cajado é a nova forma do Estado, um báculo sobre cujo castão pesa exclusivamente a mão de Putin. A única, é claro, que pesa também sobre aquele botão.

Putin é o homem solitário que, isolado de tudo e de todos, usa quem sabe a suspeita de sua irracionalidade como arma política. Ou talvez, como especulam outros, já tenha se desprendido da realidade. A essa altura, não se desconta nenhuma hipótese. De fevereiro para cá, a possibilidade de um evento fatal entrou nos nossos cálculos. Se esse cenário ainda não é provável, hoje se tornou possível. Muito mais do que há um mês, incomparavelmente mais do que há um ano ou há uma década.

A Europa está assustada. Na Itália, uma empresa de abrigos nucleares que construiu cinquenta dessas estruturas nos últimos 22 anos, só nas duas primeiras semanas da guerra processou quinhentos pedidos. O governo da Bélgica está distribuindo pílulas de iodo a quem apresentar um passaporte belga. Tomado corretamente, o iodo ajuda a absorver a radiação que se aloja na tireoide. Na segunda semana de março, as farmácias do país distribuíram num único dia 30 mil caixas do comprimido.

Embora nem todos se deem conta, tamanha angústia aproxima povos que nunca imaginaram ter alguma afinidade. Gente que vive nas cidades europeias ou norte-americanas não sabe que, desde a invasão da Ucrânia, é nas florestas brasileiras que estão os interlocutores capazes de lhes ensinar como viver diariamente com o medo entranhado no corpo feito bicho. De acordo com uma observação precisa do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, se queremos compreender o que é o fim do mundo, basta perguntar aos habitantes originários das Américas. Eles são especialistas no tema. Dos guaranis no Brasil aos maias no México, muitos deles já experimentaram a destruição dos seus mundos.

Estima-se que no século XVI, quando os primeiros exploradores europeus chegaram à Amazônia, de 8 a 10 milhões de pessoas ocupavam a floresta. Passadas as primeiras décadas do contato, 90% dessa população desapareceria, um extermínio tão radical que seriam necessários quase cinco séculos para que o bioma voltasse ao patamar demográfico do mundo pré-cabralino, o que aconteceu na década de 1960. Os descendentes dessa hecatombe a guardam na memória. Corre pelo corpo deles o que foi vivido por seus ancestrais no passado remoto, por seus avós e pais no passado recente e, para vergonha de todos nós, brasileiros, corre pelo corpo deles o que significa vivê-la no presente. Hoje, mais ainda. No próximo mês, mais do que nunca, como se verá adiante.

O Brasil sempre foi mais lento (a ver, mais relaxado), menos eficiente do que as nações solidamente integradas à lógica industrial. Apesar disso, seria um erro supor que o mundo não tem razões para nos temer. Nossa arma verde-amarela de destruição em massa não produz efeitos tão instantâneos quanto as das nações nucleares, mas é igualmente letal. Trata-se, é claro, da destruição da Amazônia, a nossa bomba ecológica.

O bioma amazônico é um dos sistemas vitais para o funcionamento do planeta. Controla pelo menos três fluxos essenciais à manutenção da vida: o do carbono, o da biodiversidade e o dos ciclos hidrológicos. Esses fluxos vitais, “sistemas de suporte da vida”, na expressão de cientistas, não passam de nove,  o que nos torna responsáveis por pelo menos um terço deles.

Não temos exercido essa responsabilidade, mas já o fizemos, ainda que por apenas uma década. O cenário se agravou a partir de 2015 e entrou em fase crítica em 2019. A Amazônia está prestes a se inviabilizar como floresta tropical. As evidências científicas desse caminho sem volta se acumularam a grande velocidade, tanto que respeitados cientistas anteriormente céticos agora reconhecem: estamos a poucas casas da virada fatal. A continuar nesse ritmo a escalada do desmatamento, não muitos anos – poucos.

Nesse cenário de catástrofe iminente, o governo e sua base de apoio fazem correr em regime de urgência um projeto de lei que licencia a mineração, a exploração de óleo e a construção de hidrelétricas em terras indígenas. Em certas circunstâncias, o texto em discussão prevê autorização provisória de atividades mineradoras enquanto não houver autorização legislativa. Em terras ainda não homologadas, serão dispensados quaisquer estudos de impacto ambiental.

Isso é redação de quem tem pressa para destruir. Significa pilhagem de territórios ancestrais, da morada de povos que, desde o primeiro encontro com brancos, perderam muito, perderam sempre, perderam seu lugar no mundo, adoeceram, empobreceram, entristeceram, foram mendigar nos cruzamentos das cidades e se mataram de melancolia.

Apesar dessa violência histórica constante, são eles, os indígenas, os grandes responsáveis por proteger a maior selva tropical do planeta. Não existe melhor guarda florestal no mundo. Sem cobrar um tostão, eles preservam um sistema sem o qual o equilíbrio do planeta não se manteria. É em terras indígenas que se constata o menor índice de desmatamento. Elas são o último bastião da floresta.

Agora, o governo quer invadir o principal esteio da nossa quase inexistente responsabilidade ambiental. É instrutivo saber quem pretende avançar para dentro dessas terras. Grandes empresas que precisem prestar contas à sociedade hesitarão em entrar nesses territórios até então protegidos. Entre 2020 e 2021, por exemplo, a Vale desistiu de todos os processos minerários em terras indígenas do Brasil – eram 89 –, cancelando requerimentos de pesquisa e lavra. Entende-se: seria comprometer a reputação de uma companhia que, nos últimos anos, viu-se envolvida em dois dos maiores desastres ambientais da história brasileira.

Difícil crer que corporações do porte da Vale tomem caminho diferente. Equivaleria a suicídio corporativo. O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), entidade cujos associados respondem por 85% da produção mineral brasileira, publicou uma nota contrária ao projeto de lei, considerando-o inadequado “para os fins a que se destina”. É uma decisão tóxica, essa de avançar sobre terras indígenas incrustadas no maior bioma tropical do planeta, de tomar as últimas áreas em que uma floresta sob ataque ainda resiste, de ferir territórios em que os menores distúrbios ambientais são hoje registrados em tempo real pelos milhares de satélites que cruzam os seus céus. As mineradoras que eventualmente morderem a isca virão de países sem sociedade civil forte e, portanto, não sujeitas à obrigação de transparência. Virão da China, de países do Oriente Médio ou da Ásia Central. Não por coincidência, serão corporações que atuam de preferência em regiões pouco desenvolvidas para se valer de sistemas políticos maleáveis, legislação ambiental frágil e presença débil do Estado.

Se essas empresas periféricas vierem, é certo que bons negócios serão feitos, parte deles tão secreta quanto as emendas do relator ao Orçamento da União. O projeto, contudo, não se destina a atrair chineses ou cazaques. Nas palavras do presidente da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM), Luis Mauricio Ferraiuoli Azevedo, não propriamente um ambientalista: “Da forma como está, tem uma veia muito mais voltada ao garimpo do que à mineração.”

Conhecemos bem o garimpo. Como mostram vários estudos recentes, ele se tornou um braço das facções criminosas, a começar pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), que hoje domina a atividade em terras yanomamis. O garimpeiro de bateia na beira do rio, brasileiro pobre atrás do seu pão, é um personagem extemporâneo sem outra serventia a não ser mascarar com tinturas sociais uma atividade cada vez mais violenta e capitalizada. Os meios de produção do garimpo atual são balsas que custam 2 milhões de reais, mercúrio de comercialização ilegal no Brasil, condições de trabalho degradantes e fuzis AR-15, agora municiados com projéteis não rastreáveis graças à bonomia presidencial.

Uma novidade dos últimos quatro anos é a expansão vertiginosa do crime organizado para o interior do bioma amazônico. Hoje a floresta é o grande palco da disputa entre o PCC e o Comando Vermelho (CV). As facções estão fazendo a gestão da ilegalidade na Amazônia, seja no garimpo, seja na grilagem, seja no corte de madeira, seja no controle das rotas do tráfico de drogas para a Europa. Comunidades ribeirinhas e indígenas estão sendo cooptadas. O dia a dia de inúmeras cidades pequenas já depende do crime.

Não deixa de ser um projeto de desenvolvimento, o modelo político-administrativo da Baixada Fluminense transplantado para a Amazônia. Tudo considerado – do apoio a grileiros, desmatadores e garimpeiros ao desmonte das agências de vigilância como o Ibama –, não seria errado chamá-lo Programa de Aceleração do Crime. Aproveita-se assim a sigla consagrada.

Dizer que o que está sendo gestado na Amazônia é bem conhecido da primeira família da nação não passa de redundância. Trata-se, afinal, da expansão do esquema das milícias e das facções, precisamente o mundo do qual brotou a engrenagem política que hoje se espraia por todo o país. Há um sentido pedagógico em jamais esquecer que o filho mais velho do presidente, hoje senador da República, condecorou um dos maiores matadores do Rio de Janeiro, o miliciano Adriano da Nóbrega; preso, acusado de homicídio, Nóbrega recebeu na cadeia a mais alta condecoração do Poder Legislativo fluminense, a Medalha Tiradentes.

E aqui estamos nós, brasileiros, diante de Jair Bolsonaro, mas não como se diante da Esfinge, pois o homem não tem enigmas. Sabemos o que ele é e o que ele quer. Conhecemos o seu compêndio de iniquidades.

Conhecemos a sua obscenidade quando se diz solidário com a Rússia, solidário, portanto, com os responsáveis por cenas como a registrada na dolorosa foto de uma família estirada no chão, a mãe de 43 anos, o filho de 18, a filha de 9, mochilas ainda às costas, mortos os três ao tentar fugir da artilharia russa numa ponte nos arredores de Kiev (há um quarto morto na foto, um voluntário de 26 anos que ajudava a família na fuga). Não é uma solidariedade que surpreenda. O presidente, sabemos faz tempo, não é indiferente ao espetáculo da morte violenta. Ao contrário, ela o excita.

Família morta ao tentar fugir da artilharia russa nos arredores de Kiev: a mãe, o filho e a filha, além de um voluntário que os ajudava – Foto: Lynsey Addario/The New York Times/Fotoarena

Conhecemos a sua covardia, o patético dela, quando chama de comediante o presidente da Ucrânia.

Conhecemos a sua corrupção, que começou pequena e vagabunda, miúda como ele à época, e hoje é imensa, do tamanho dos seus meios atuais, que lhe permitem franquear a farra do dinheiro público distribuído sem fiscalização ou vigilância. Corridos três anos e meio de mandato, seria interessante perguntar aos arautos da moralidade se estão satisfeitos com o Orçamento da União entregue a Arthur Lira. Se apaziguados com o sistema que produz parlamentares como Josimar Maranhãozinho (PL-MA), deputado do partido do presidente, investigado pela PF por usar grupos armados para extorquir a sua parte do dinheiro que prefeitos haviam recebido por meio das emendas nebulosas do relator. Se animados com a entrega do Ministério da Educação a pastores evangélicos que cobram os seus bons serviços em barras de ouro. Se reconfortados com o círculo mais íntimo do poder, irmãos de fé e aconselhadores eventuais tais como Fabrício Queiroz e Frederick Wassef – o primeiro, ocupando seus dias pós-cadeia com exegeses no YouTube em que justifica com perspicácia geopolítica a ação russa contra a Ucrânia, país amaldiçoado por “esse governo frouxo, esse governo comédia, que desarmou o povo e entregou as armas”, essa fraqueza típica de “governo de esquerda”; o segundo, réu por injúria racial e racismo, protagonista do triste espetáculo de se recusar a ser atendido por uma garçonete de 18 anos numa pizzaria de Brasília: “Porque você é negra e tem cara de sonsa.” São esses os habitantes do mundo cultivado pelo homem escolhido para restaurar a honra do Brasil.

Sabíamos de tudo isso, e foi com esse catálogo de imoralidades que chegamos a essa versão toda nossa do fim do mundo que agora corre pelo Congresso com a pressa de um bandido.

A floresta será transformada em terra miliciana, numa dinâmica já iniciada. O projeto será votado em abril, sem qualquer debate qualificado. Se passar, o Brasil terá cometido o crime perfeito contra o futuro – o seu próprio e o do planeta. A tristeza disso é infinita. Teremos de viver confrontados cotidianamente pela injustiça cometida no decorrer de nossas vidas, sob os nossos olhos, contra aqueles que, antes de nós, não só fizeram da floresta a sua casa, mas a manipularam e a construíram, num trabalho de milênios em consórcio com outras criaturas. A Amazônia não é apenas um bem natural, é um bem cultural, o legado de uma civilização orgânica que erigiu sua obra não com pedras ou metais, mas com solo e plantas, com madeiras e fungos – essas florestas que, na linda formulação do arqueólogo Eduardo Neves, “são as nossas pirâmides”. São essas pirâmides que agora serão oficialmente entregues à pirataria.

Portanto, aqui estamos, nós brasileiros, a poucos meses de uma escolha que há muito deixou de ser questão apenas política para se tornar questão de civilização.

A Ucrânia “confiou a um comediante o destino de uma nação”, declarou o presidente do Brasil, como quem diz: E deu nisso. De fato, deu em um povo que se uniu numa batalha de vida ou morte pela autodeterminação, pela liberdade e pelo direito de dizer aos pósteros que, na hora terrível, eles se apresentaram e foram honrados. Não é um mau legado.

O Brasil elegeu Bolsonaro e deu nisso. O anjo da História diria: Olhem em volta e contemplem as ruínas. Elas nos cercam e envergonham bem mais do que as de Mariupol ou Kiev. Estas são obra do agressor; aquelas, de brasileiros. A ruína da educação, a ruína da fome, a ruína sanitária, a ruína do desemprego, a ruína política, a ruína ambiental, a ruína moral de bem-pensantes, de liberais com bons diplomas universitários e empregos bem pagos que referendaram um projeto que nunca disfarçou suas tintas.

Historiadores rejeitam o conceito de “homem providencial”, mas em certos momentos é difícil duvidar de sua existência. Gerados pelas circunstâncias históricas, ao chegar ao poder os homens providenciais as radicalizam a tal ponto que desencadeiam mudanças não de intensidade, mas de qualidade. Churchill é um homem providencial, Fidel, Mandela, Gandhi, talvez Volodymyr Zelensky (ainda é cedo). E com certeza Putin, ainda que sua providência seja sinistra.

Em outubro, estaremos diante do nosso grande enigma: Quem somos nós, os brasileiros? Aqueles que dizem não à terra barbarizada ou os que reafirmam a escolha de 2018? Seremos Zelensky ou Putin? Escolheremos vida ou morte?

Queda de homicídios em SP é obra do PCC, e não da polícia, diz pesquisador (BBC Brasil)

Thiago Guimarães
De Londres

12/02/2016, 15h21 

Policiais militares da Rota durante operação na periferia de São Paulo

Policiais militares da Rota durante operação na periferia de São Paulo. Mario Ângelo/ SigmaPress/AE

Em anúncio recente, o governo de São Paulo informou ter alcançado a menor taxa de homicídios dolosos do Estado em 20 anos. O índice em 2015 ficou em 8,73 por 100 mil habitantes – abaixo de 10 por 100 mil pela primeira vez desde 2001.

“Isso não é obra do acaso. É fruto de muita dedicação. Policiais morreram, perderam suas vidas, heróis anônimos, para que São Paulo pudesse conseguir essa conquista”, disse na ocasião o governador Geraldo Alckmin (PSDB).Para um pesquisador que acompanhou a rotina de investigadores de homicídios em São Paulo, o responsável pela queda é outro: o próprio crime organizado – no caso, o PCC (Primeiro Comando da Capital), a facção que atua dentro e fora dos presídios do Estado.

“A regulação do PCC é o principal fator sobre a vida e a morte em São Paulo. O PCC é produto, produtor e regulador da violência”, diz o canadense Graham Willis, em defesa da hipótese que circula no meio acadêmico e é considerada “ridícula” pelo governo paulista.

Professor da Universidade de Cambridge (Inglaterra), Willis lança nova luz sobre a chamada “hipótese PCC”, num trabalho de imersão que acompanhou a rotina de policiais do DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa) de São Paulo entre 2009 e 2012.

A pesquisa teve acesso a dezenas de documentos internos apreendidos com um membro do PCC e ouviu moradores, comerciantes e criminosos em uma comunidade dominada pela facção na zona leste de São Paulo, em 2007 e 2011.

Teorias do ‘quase tudo’

O trabalho questiona teorias que, segundo Willis, procuram apoio em “quase tudo” para explicar o notório declínio da violência homicida em São Paulo: mudanças demográficas, desarmamento, redução do desemprego, reforço do policiamento em áreas críticas.

“O sistema de segurança pública nunca estabeleceu por que houve essa queda de homicídios nos últimos 15 anos. E nunca transmitiu uma história crível. Falam em políticas públicas, policiamento de hotspots (áreas críticas), mas isso não dá para explicar”, diz.

Em geral, a argumentação de Willis é a seguinte: a queda de 73% nos homicídios no Estado desde 2001, marco inicial da atual série histórica, é muito brusca para ser explicada por fatores de longo prazo como avanços socioeconômicos e mudanças na polícia.

Isso fica claro, diz o pesquisador, quando se constata que, antes da redução, os homicídios se concentravam de forma desproporcional em bairros da periferia da capital paulista: Jardim Ângela, Cidade Tiradentes, Capão Redondo, Brasilândia.

A pacificação nesses locais – com quedas de quase 80% – coincide com o momento, a partir de 2003, em que a estrutura do PCC se ramifica e chega ao cotidiano dessas regiões.

“A queda foi tão rápida que não indica um fator socioeconômico ou de policiamento, que seria algo de longo prazo. Deu-se em vários espaços da cidade mais ou menos na mesma época. E não há dados sobre políticas públicas específicas nesses locais para explicar essas tendências”, diz ele, que baseou suas conclusões em observações de campo.

Vídeo: http://tvuol.tv/bgdw3x

Canal de autoridade

Criado em 1993 com o objetivo declarado de “combater a opressão no sistema prisional paulista” e “vingar” as 111 mortes do massacre do Carandiru, o PCC começa a representar um canal de autoridade em áreas até então caracterizadas pela ausência estatal a partir dos anos 2000, à medida que descentraliza suas decisões.

Os pilares dessa autoridade, segundo Willis e outros pesquisadores que estudaram a facção, são a segurança relativa, noções de solidariedade e estruturas de assistência social. Nesse sentido, a polícia, tradicionalmente vista nesses locais como violenta e corrupta, foi substituída por outra ordem social.

“Quando estive numa comunidade controlada pela facção, moradores diziam que podiam dormir tranquilos com portas e janelas destrancadas”, escreve Willis no recém-lançado The Killing Consensus: Police, Organized Crime and the Regulation of Life and Death in Urban Brazil (O Consenso Assassino: Polícia, Crime Organizado e a Regulação da Vida e da Morte no Brasil Urbano, em tradução livre), livro em que descreve os resultados da investigação.

Antes do domínio do PCC, relata Willis, predominava uma violência difusa e intensa na capital paulista (que responde por 25% dos homicídios no Estado). Gangues lutavam na economia das drogas e abriam espaço para a criminalidade generalizada. O cenário muda quando a facção transpõe às ruas as regras de controle da violência que estabelecera nos presídios.

“Para a organização manter suas atividades criminosas é muito melhor ficar ‘muda’ para não chamar atenção e ter um ambiente de segurança controlado, com regras internas muito rígidas que funcionem”, avalia Willis, que descreve no livro os sistemas de punição da facção.

O pesquisador considera que as ondas de violência promovidas pelo PCC em São Paulo em 2006 e em 2012, com ataques a policiais e a instalações públicas, são pontos fora da curva, episódios de resposta à violência estatal.

“Eles não ficam violentos quando o problema é a repressão ao tráfico, por exemplo, mas quando sentem a sua segurança ameaçada. E a resposta da polícia é ser mais violenta, o que fortalece a ideia entre criminosos de que precisam de proteção. Ou seja, quanto mais você ataca o PCC, mais forte ele fica.”

Apuração em xeque

Willis critica a forma como São Paulo contabiliza seus mortos em situações violentas – e diz que o cenário real é provavelmente mais grave do que o discurso oficial sugere.

Ele questiona, por exemplo, a existência de ao menos nove classificações de mortes violentas em potencial (ossadas encontradas, suicídio, morte suspeita, morte a esclarecer, roubo seguido de morte/latrocínio, homicídio culposo, resistência seguida de morte e homicídio doloso) e diz que a multiplicidade de categorias mascara a realidade.

“Em geral, a investigação de homicídios não acontece em todo o caso. Cada morte suspeita tem que ser avaliada primeiramente por um delegado antes de se decidir se vai ser investigado como homicídio, enquanto em varias cidades do mundo qualquer morte suspeita é investigada como homicídio.”

Para ele, deveria haver mais transparência sobre a taxa de resolução de homicídios (que em São Paulo, diz, fica em torno de 30%, mas inclui casos arquivados sem definições de responsáveis) e sobre o próprio trabalho dos policiais que apuram os casos, que ele vê como um dos mais desvalorizados dentro da instituição.

“Normalmente se pensa em divisão de homicídios como organização de ponta. Mas é o contrário: é um lugar profundamente subvalorizado dentro da polícia, de policiais jovens ou em fim de carreira que desejam sair de lá o mais rápido possível. Policiais suspeitam de quem trabalha lá, em parte porque investigam policiais envolvidos em mortes, mas também porque as vidas que investigam em geral não têm valor, são pessoas de partes pobres da cidade.”

Para ele, o desaparelhamento da investigação de homicídios contrasta com a estrutura de batalhões especializados em repressão, como a Rota e a Força Tática da Polícia Militar.

“Esses policiais têm carros incríveis, caveirões, armas de ponta. Isso mostra muito bem a prioridade dos políticos, que é a repressão física a moradores pobres e negros da periferia. Não é investigar a vida dessas pessoas quando morrem.”

Outro lado

Críticos da chamada “hipótese PCC” costumam levantar a seguinte questão: se a retração nos homicídios não ocorreu por ação da polícia, como explicar a queda em outros índices criminais? Segundo o governo, por exemplo, São Paulo teve queda geral da criminalidade no ano passado em relação a 2014. A facção, ironizam os críticos, estaria então ajudando na queda desses crimes também?

“Variações estatísticas não necessariamente refletem ações do Estado”, diz Willis. Para ele, estudos já mostraram que mais atividade policial não significa sempre menor criminalidade.

Willis diz ainda que as variações estatísticas nesses outros crimes não são significativas, e que o PCC não depende de roubos de carga, veículos ou bancos, mas do pequeno tráfico de drogas com o qual os membros bancam as contribuições obrigatórias à facção.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse considerar a hipótese de Willis sobre o declínio dos homicídios “ridícula e amplamente desmentida pela realidade de todos os índices criminais” do Estado.

Afirma que a taxa no Estado é quase três vezes menor do que a média nacional (25,1 casos por 100 mil habitantes) e “qualquer pesquisador com o mínimo de rigor sabe que propor uma relação de causa e efeito neste sentido é brigar contra as regras básicas da ciência”.

A pasta informou que todos crimes cometidos por policiais no Estado são punidos – citou 1.445 expulsões, 654 demissões e 1.849 policiais presos desde 2011 – e negou a existência de grupos de extermínio nas corporações.

Sobre o fato de não incluir mortes cometidas por policiais na soma oficial dos homicídios, mas em categoria à parte, disse que “todos os Estados” brasileiros e a “maioria dos países, inclusive os Estados Unidos” adotam a mesma metodologia.

A secretaria não comentou as considerações de Willis sobre a estrutura da investigação de homicídios no Estado e a suposta prioridade dada à forças voltadas à repressão.