Por Fabiane Albuquerque, enviado ao Portal Geledés
24/10/2021
Moro na França há alguns anos. Também já morei na Itália e, além dos meus estudos sobre branquitude, convivo com brasileiras no exterior e tenho uma vasta experiência com as frustrações, queixas e crises de mulheres brancas, sobretudo das classes médias e altas. Eu observo pessoas brancas há muito tempo. Acho que comecei a refletir sobre elas ouvindo as histórias das mulheres da minha família que trabalhavam nas suas cozinhas, fazendas, em estreita relação com a branquitude brasileira. Então, não me faltaram relatos sobre como se comportavam, pensavam, diziam e se relacionavam, sobretudo com os seus iguais e o seu Outro (negros e negras).
Essas mulheres, contudo, não nos viam (e ainda não nos veem) porque estão ocupadas demais em projetar em corpos negros as coisas mal resolvidas em si mesmas. Incrível como falam da pobreza no Brasil, dos problemas políticos e sociais, da falta de educação do povo brasileiro, sem ao menos se darem conta dos problemas dentro de seus lares. Lourenço Cardoso escreve sobre isso na sua tese de doutorado intitulada: “O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil” e explica que negros, mesmo sendo desumanizados por brancos, ainda conseguem vê-los enquanto humanos; já o contrário é difícil.
Pois bem, vejo estas mulheres que, acostumadas a projetar o olhar para fora, para o outro, raramente se questionam e se veem como de fato são. Não se enxergam brancas, privilegiadas, construídas e projetadas como seres superiores com base na raça e no pertencimento de classe no Brasil. E, quando chegam na Europa e descobrem que, por serem brancas e possuírem dinheiro, não podem tirar proveito da situação como fazem no país que as endeusou, entram em crise. A crise dessas mulheres é uma das coisas mais interessantes que meu olhar de pesquisadora pôde ver. Essa não é consciente para elas, assim como não é o fato de que a brancura lhes garantiu um lugar confortável na sociedade de origem.
Por três anos meu filho estudou na mesma classe que o filho de uma brasileira branca, loira, de Santa Catarina, advogada e apoiadora de Bolsonaro, antipetista, antilulista e possuidora de uma visão estereotipada sobre a esquerda, os negros e os pobres. Mas, uma coisa aqui mudou na vida dela: embora nós duas tenhamos origem social e raça diferentes, a França nos nivelou. Eu e ela moramos no mesmo bairro e nossos filhos frequentaram a mesma escola, diga-se de passagem, pública. Para ela, mais do que para mim, isso constituiu um grande incômodo, manifesto na sua tentativa constante de mostrar-me o que ela tinha de diferencial em relação à mim.
Como a questão financeira não era o principal mobilizador de superioridade, tampouco ela possuía conhecimentos sobre cultura, ou seja, enquanto eu sou amante de livros, pesquisadora, escritora, conheço de literatura brasileira, francesa, italiana, dentre outras, vou ao teatro e cinema, ela se orgulhava de ser frequentadora assídua de academia, Disneylândia e Mcdonalds. No Brasil, parece que a futilidade dessas pessoas é ofuscada pelo privilégio de raça e de classe.
Certo dia, na porta da escola, ela me abordou da seguinte forma:
-Ai guria, tem dias aqui que é difícil, estou para ficar louca. Outro dia fui ao banco sozinha e me trataram como uma qualquer, você acredita?
Incrédula com a expressão, pois esse “ser qualquer um” deveria ser o sentimento de todo cidadão, de juiz a gari, de professor à médico, de político à banqueiro, balancei a cabeça dando-lhe corda:
-Verdade?
E ela continuou:
-Eu tive que ligar para o meu marido ir até lá para ver se com ele seria diferente. Ele vive recebendo propostas para investimento do banco porque ganha bem.
Fiquei pensando nas suas palavras. Aqui na França, ela não pode mobilizar um tratamento diferenciado por ser loira e muito menos pela sua classe social. Aqui o “você sabe com quem está falando?” não cola como no Brasil. Afinal, ela é só mais uma branca dentre brancos. E os brancos daqui, como diz o pesquisador Lourenço Cardoso, são “mais brancos” que os nossos brancos devido a impressão digital deixada pela colonização que hierarquizou povos e nações. Quanto mais nórdico, como os ingleses, mais branco e ideal é um povo.
Como eu jamais a bajulei por ser branca (como geralmente acontece entre brasileiros), outra vez, na porta da escola, ela me abordou novamente. Eu disse que estava indo caminhar e ela logo se oferece para ir junto. No caminho, sem nenhum pudor, me solta essa:
-Quando meu filho nasceu, a preocupação do meu marido era com o cabelo, se ia nascer ruim como o dele. Eu até achei engraçado porque assim que ele nasceu, ele correu para mim e disse “parece que é ruim, é bem enrolado”.
Eu, que tenho cabelo “ruim” na concepção da sua família somente soltei um “é mesmo?” e parece que aquilo liberou nela seu racismo mais latente. Esse só sai quando a pessoa não se sente julgada ou rechaçada, quando acha abertura e acredita que o interlocutor não a está julgando:
-Meu marido (branco no Brasil) ‘rapa’ a cabeça porque ele odeia o próprio cabelo. Mas quando viu que puxou a mim ficou mais tranquilo.
O que essa mulher queria ao me dizer tudo isso? Ela estava buscando que eu reconhecesse a sua superioridade, pelo menos aquela racial, já que eu, por espontânea vontade não o fiz, ela estava ali me lembrando disso. A igualdade é um dos maiores sofrimentos psíquicos para mulheres brancas brasileiras das camadas altas que chegam para morar aqui na Europa. Digo de mulheres porque convivo pouco com os homens brancos brasileiros. E não parou aqui, não. Outra vez ela fez o seguinte comentário:
-Guria, falei com minha prima que mora na Inglaterra e ela me disse que sou louca de colocar meu filho em escola pública, de me misturar com esta gente.
Ela se referia à grande presença de crianças imigrantes na escola, de origem africana e de países árabes. A escola pública foi o espaço que acolheu o seu filho, o ensinou a falar francês, lhe proporcionou uma base e uma convivência respeitosa e igualitária com diferentes nacionalidades, sobretudo aquelas as quais ele nunca teve contato no Brasil por viver segregado no seu pequeno mundinho burguês. Mas, ela insistia em tentar se colocar como um ser especial.
Antes que alguém diga que tive muita paciência, só resisti porque estudo brancos e quando descobri que é melhor lhes dar corda para ter material, meu envolvimento afetivo e emocional me causa menos sofrimento.
O estupor por não ser tratada com distinção não vem somente de gente de extrema direita. Nesse ponto, a branquitude se assemelha muito, tanto de direita quanto de esquerda. Uma moça branca, paulistana e segundo ela mesma, de classe média alta, revelou-me que estava surpresa por sofrer discriminação dentro da universidade francesa. A pergunta que ela me fez foi a seguinte:
– Eu posso me comparar com os negros por sofrer racismo?
Lhe respondi que com negros, jamais. E continuei dizendo que aqui, antes de tudo, ela é brasileira e tinha alguns traços árabes como o nariz e o formado do rosto. Ela estava desorientada por não poder usufruir da “invisibilidade” da raça como acontecia no Brasil e talvez, sem se dar conta, da visibilidade por ser branca e burguesa na hora de receber privilégios. Essas mulheres estão acostumadas, desde pequenas, a serem paparicadas e, quando isso não acontece, o Eu se fragiliza.
Uma outra, branca de olhos verdes, vendo que eu jamais comentei algo sobre a sua aparência física, como está acostumada, depois de um tempo de convivência, tirou os óculos diante de mim, arregalou os olhos e disse:
–Todo mundo fala que eu deveria parar de usar óculos, pois desvalorizam meus olhos. Você já viu os meus olhos?
A cena foi cômica. A mulher com os olhos esbugalhados na minha frente mendigando elogios. Lhe respondi:
– Fulana, eu já vi os seus olhos.
Ela, muito sem graça, recolocou os óculos. O que ela queria de mim? O que todo mundo lhe dava: bajulação da sua corporeidade branca, dos seus olhos verdes e o reconhecimento do seu valor em base a isto.
Muitas dessas mulheres tentam reproduzir a mesma hierarquia social e racial que temos no Brasil, procurando por outras que estejam à disposição do ego delas. Conheci uma promotora de justiça de Brasília que chegou na França, juntamente com o marido para fazer mestrado. Os dois conseguiram uma licença de um ano do trabalho. No primeiro contato que tivemos ela perguntou: “Você conhece uma diarista para me apresentar?” Achei estranho o pedido, pois a mulher e o marido ficariam um ano sem trabalhar, morando em um pequeno apartamento, como ela descreveu, mas tinha que ter alguém para lhe servir. Essa gente fora do Brasil e das relações de dominação/servidão/ que se dão em base à racialização de corpos se perde.
Conheci brasileiras aqui que gostam de conviver com outras brasileiras porque entre nós, entendemos os códigos, as hierarquias e as leis ocultas do nosso país para reproduzir a mesma lógica de quem adora e de quem é adorado. Ou, em outros casos, preferem conviver somente com franceses, pois segundo elas, “não gostam de se misturar” e se agarram aos “brancos mais brancos” como se fosse um troféu para mostrar ao mundo e exibir para a família e amigos no Brasil: “Olha a minha amiga francesa!!!”. É um modo de participar da branquitude mais “pura” (mesmo que indiretamente), que o que temos nas terras Brasilis.
Uma coisa é certa, essa experiência na Europa poderia ser, para elas, uma grande chance de mudar de paradigma, de renascer, de se tornar uma pessoa melhor. Mas, na maioria dos casos, o privilégio é buscado com unhas e dentes. Se soubessem que podem abandoná-lo e viver mais livres, talvez o fariam. Mas alguém como elas, ou seja, branco, precisaria dizer. Pois, no meu caso, se lhes digo, passo por negra raivosa, ressentida, invejosa, que vê racismo em tudo. Eu torço pela mudança e pela emancipação humana, mas enquanto isso não acontece, continuo tendo-as como objeto de análise e estudo.
Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, autora do livro Cartas a um homem negro que amei, publicado pela Editora Malê.
Is it really just code for white people wishing to hold onto their way of life or to get “back to normal?”
People of color are disproportionately harmed by climate change, but whites disproportionately fret publicly about it. Credit: Spencer Platt Getty Images
The climate movement is ascendant, and it has become common to see climate change as a social justice issue. Climate change and its effects—pandemics, pollution, natural disasters—are not universally or uniformly felt: the people and communities suffering most are disproportionately Black, Indigenous and people of color. It is no surprise then that U.S. surveys show that these are the communities most concerned about climate change.
One year ago, I published a book called A Field Guide to Climate Anxiety. Since its publication, I have been struck by the fact that those responding to the concept of climate anxiety are overwhelmingly white. Indeed, these climate anxiety circles are even whiter than the environmental circles I’ve been in for decades. Today, a year into the pandemic, after the murder of George Floyd and the protests that followed, and the attack on the U.S. Capitol, I am deeply concerned about the racial implications of climate anxiety. If people of color are more concerned about climate change than white people, why is the interest in climate anxiety so white? Is climate anxiety a form of white fragility or even racial anxiety? Put another way, is climate anxiety just code for white people wishing to hold onto their way of life or get “back to normal,” to the comforts of their privilege?
The white response to climate change is literally suffocating to people of color. Climate anxiety can operate like white fragility, sucking up all the oxygen in the room and devoting resources toward appeasing the dominant group. As climate refugees are framed as a climate security threat, will the climate-anxious recognize their role in displacing people from around the globe? Will they be able to see their own fates tied to the fates of the dispossessed? Or will they hoard resources, limit the rights of the most affected and seek to save only their own, deluded that this xenophobic strategy will save them? How can we make sure that climate anxiety is harnessed for climate justice?
My book has connected me to a growing community focused on the emotional dimensions of climate change. As writer Britt Wray puts it, emotions like mourning, anger, dread and anxiety are “merely a sign of our attachment to the world.” Paradoxically, though, anxiety about environmental crisis can create apathy, inaction and burnout. Anxiety may be a rational response to the world that climate models predict, but it is unsustainable.
And climate panic can be as dangerous as it is galvanizing. Dealing with feelings of climate anxiety will require the existential tools I provided in A Field Guide to Climate Anxiety, but it will also require careful attention to extremism and climate zealotry. We can’t fight climate change with more racism. Climate anxiety must be directed toward addressing the ways that racism manifests as environmental trauma and vice versa—how environmentalism manifests as racialized violence. We need to channel grief toward collective liberation.
The prospect of an unlivable future has always shaped the emotional terrain for Black and brown people, whether that terrain is racism or climate change. Climate change compounds existing structures of injustice, and those structures exacerbate climate change. Exhaustion, anger, hope—the effects of oppression and resistance are not unique to this climate moment. What is unique is that people who had been insulated from oppression are now waking up to the prospect of their own unlivable future.
It is a surprisingly short step from “chronic fear of environmental doom,” as the American Psychological Association defines ecoanxiety, to xenophobia and fascism. Racism is not an accidental byproduct of environmentalism; it has been a constant reference point. As I wrote about in my first book, The Ecological Other, early environmentalists in the U.S. were anti-immigrant eugenicists whose ideas were later adopted by Nazis to implement their “blood and soil” ideology. In a recent, dramatic example, the gunman of the 2019 El Paso shooting was motivated by despair about the ecological fate of the planet: “My whole life I have been preparing for a future that currently doesn’t exist.” Intense emotions mobilize people, but not always for the good of all life on this planet.
Today’s progressives espouse climate change as the “greatest existential threat of our time,” a claim that ignores people who have been experiencing existential threats for much longer. Slavery, colonialism, ongoing police brutality—we can’t neglect history to save the future.
RESILIENCE AND RELATION AS RESISTANCE
I recently gave a college lecture about climate anxiety. One of the students e-mailed me to say she was so distressed that she’d be willing to submit to a green dictator if they would address climate change. Young people know the stakes, but they are not learning how to cope with the intensity of their dread. It would be tragic and dangerous if this generation of climate advocates becomes willing to sacrifice democracy and human rights in the name of climate change.
Oppressed and marginalized people have developed traditions of resilience out of necessity. Black, feminist and Indigenous leaders have painstakingly cultivated resilience over the long arc of the fight for justice. They know that protecting joy and hope is the ultimate resistance to domination. Persistence is nonnegotiable when your mental, physical and reproductive health are on the line.
Instead of asking “What can I do to stop feeling so anxious?”, “What can I do to save the planet?” and “What hope is there?”, people with privilege can be asking “Who am I?” and “How am I connected to all of this?” The answers reveal that we are deeply interconnected with the well-being of others on this planet, and that there are traditions of environmental stewardship that can be guides for where we need to go from here.
Author’s Note: I want to thank Jade Sasser, Britt Wray, Janet Fiskio, and Jennifer Atkinson for rich discussions about this topic, which inform this piece.
This is an opinion and analysis article.
Sarah Jaquette Ray, Ph.D., is professor and chair in the Environmental Studies Department at Humboldt State University.
Lia Vainer Schucman: O que o ‘medo branco’ tem a dizer sobre lugar de fala, raça, Beyoncé e cancelamento
Lia Vainer Schucman, 13 de agosto de 2020
[RESUMO] Para autora, onda de insatisfação com o tratamento da antropóloga Lilia Schwarcz pelo significante “branca” ensina que a posição de vantagem estrutural dos brancos em sociedades racistas pode aprisionar o grupo que a criou.
No debate sobre lugar de fala, mercado epistemológico de raça e cancelamento que tomou a polêmica em torno do texto de Lilia Schwarcz sobre Beyoncé, um aspecto pouco elaborado é o do medo branco.
Pude observar reações e sentimentos opostos (que também me acometem) por parte dos brancos com quem eu converso. A primeira e mais comum é um sentimento de solidariedade com Lilia Schwarcz, medo de ser o próximo a ser questionado. A outra reação é uma tentativa de se distanciar para afirmar uma branquitude mais crítica, ou seja: o medo de ser “igual”.
As duas reações fazem parte de um sentimento novo para nós brancos brasileiros. Significa que nossa racialidade está sendo marcada, algo que acontece há alguns séculos com negros e indígenas no Brasil, ou seja: é quando o grupo antecede o indivíduo (o que nomeamos de processo de racialização).
Quando isso ocorre, todo sujeito de um grupo passa a representar o grupo como um todo. Estudar raça sem acreditar absolutamente em nada que possa essencializar os humanos —o que significa dizer que não há nada intrínseco que possa diferenciar negros de brancos e indígenas— é o paradoxo que o tema impõe.
Não há raça, não há nada biologicamente ou até mesmo culturalmente que determine o que chamamos de brancos, negros e indígenas. Contudo, há sociológica e historicamente um mundo de determinações estruturais próprias das desigualdades ou vantagens sociais ancoradas nos corpos negros e brancos.
Dessa forma, o que não existe na biologia torna-se materialmente real nos corpos que circulam. Há uma prisão da raça que atinge todos os negros em uma sociedade racista —os estereótipos construídos sobre o negro aprisionam os corpos e limitam possibilidades: o olhar da polícia, a construção subjetiva do que é belo, a forma com que os sujeitos são localizados na sociedade (sempre como representantes de um grupo particular, enquanto os brancos representariam a humanidade como um todo).
Contudo, se a raça limita os negros, ela também aprisiona os brancos naquilo que se denomina branquitude. A branquitude, identidade racial dos brancos, caracteriza-se como um lugar de vantagem estrutural nas sociedades, sob a égide do racismo, e é definida pela socióloga Ruth Frankenberg como um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo: a racialização.
O que querem os brancos? A recusa dessa prisão. Nenhum branco quer ser olhado de forma racializada, nenhum de nós quer ser limitado em nossas subjetividades, ou seja, nenhum de nós quer ser resumido, em toda sua complexidade, ao nome “branco”.
Assim, nestes dias, pude observar uma onda de reclamações sobre a redução de uma intelectual como Lilia Schwarcz ao significante “branca”. O que isso nos ensina? Que obviamente se a raça foi e é criada cotidianamente para aprisionar o “outro”, em qualquer momento ela pode aprisionar os indivíduos do grupo que a criou.
A branquitude, no entanto, formou-se em cima do engodo de que nomear o outro é uma possibilidade apenas dada aos brancos, como se isso fosse uma essência garantida e hereditária. Essa possibilidade, assim como todas as questões que envolvem a raça, não está aí por essência, mas sim pelas relações de poder. E poder não é algo dado, e sim um exercício de dominação cotidiana —e, sendo um exercício, ele pode circular.
Ser nomeado como “branco” não como um desejo, e sim como um deboche é o maior medo de nós, brancos. Há sempre um receio de sermos “zombados”, de sermos objetos de um olhar que não seja de admiração ou de desejo de branqueamento. Há o medo de que a brancura tenha significados não positivos, mas sim aqueles que situem os brancos como responsáveis pela miséria do mundo ou, ainda, como muitos povos indígenas nos nomeiam, “o povo da mercadoria”, “o povo da destruição”. Trata-se do medo da racialização branca pelo outro, e não mais por si mesmo.
Considerar que o branco pode ser alvo do desprezo é o medo branco, e aí está o motivo de muitos terem medo de se misturarem em lugares onde a branquitude não é o lugar de desejo, mas sim de deboche. A opção por não se misturar protege os brancos, pois só assim nossa branquitude não será colocada em questão.
São o negro e o indígena que facilmente podem apontar e revelar nossa branquitude. Nesse sentido, não há como os brancos sermos livres da redução da raça enquanto estivermos em uma sociedade racista, afirmando a raça do outro.
É óbvio que é preciso pensar: o medo do deboche é próprio do que Robin DiAngelo nomeou como fragilidade branca. Sim, o deboche não mata e não promove impedimentos para quem tem privilégio. É possível ignorar, deixar de acessar ou até mesmo sublimar. Quando se está no poder, até as polêmicas e ataques podem ser rentáveis e vantajosas.
Sobre medo branco, recomendo o texto “Branquitude e branqueamento no Brasil“, de Maria Aparecida Bento. Sobre branquitude acrítica e branquitude crítica, ver Lourenço Cardoso.
Maria Rita Kehl e seu avô o pai da eugenia no Brasil, Renato Kehl – Imagem – Colagem Google Images
Maria Rita Kehl está sentindo o desconforto de viver em um mundo onde vozes de pessoas diferentes, principalmente negras têm maior impacto na sociedade. O desconforto grita na escolha do título “lugar de cale-se” e desce a ladeira ao longo de parágrafos que tentam construir a ideia de que os movimentos chamados identitários estão promovendo linchamentos virtuais.
Várias personalidades como o Emicida já abordaram isso em entrevistas recentes: nas décadas passadas quando uma dessas colunistas ou jornalistas escrevia sua versão da história não existia um espaço de debate tão massivo quanto hoje para poder provocar uma reação diferente sobre o tema. Isso que estão chamando de “cancelamento” não passa desse questionamento natural sobre um posicionamento, que hoje temos voz para cobrar.
Maria Rita Kehl precisa ter muito cuidado ao utilizar termos como linchamento virtual porque parece grande vitimista em um país que as pessoas que chama de identitários são as verdadeiras canceladas dos espaços de discussão e poder. Estou falando da maior parte do Brasil que ainda é impactada pelos estereótipos e estruturas racistas dos séculos passados e pode atravessar a linha da pobreza ao perder o emprego; Daquele entregador de Ifood que leva sua comida e se receber avaliações ruins no aplicativo vai ver a família passar fome ou daquele caixa do supermercado que enfrenta a Covid-19 e pode ter a luz cortada se alguém resolve reclamar com o gerente – isso sim é cancelamento.
Não é cancelamento quando a dona da maior editora brasileira é criticada na internet ou quando alguém que finge que o sobrenome da família não abriu portas na sociedade e que está longe de cair no esquecimento das elites com a mesma velocidade que o país se esquece de Ágatha Félix, João Pedro e Rafael Braga.
Realmente nós somos iguais ou parecemos “em direitos, em dignidade”, mas se engana quem acredita que somos iguais em “Liberdade de expressão”. Como igualar essa liberdade o veículos mais importantes do país, que alcançam milhões de pessoas, tem apenas 2% homens negros e 2% mulheres negras em suas redações?
Esse é o fracasso da “capacidade de empatia” da autora, que tenta se igualar à um negro escravizado e enforcado, utilizando a música Strangefruit como alegoria. Argumento de quem tenta empurrar pra baixo do tapete a estrutura racista do país que permitiu que pessoas como ela recebessem algumas vantagens, aliás que seu avô ajudou a construir. Maria Rita kehl é neta do chamado Pai da Eugenia brasileira, Renato Kehl, o cara que conseguiu institucionalizar as teorias racistas organizando congressos, publicações e discussões políticas como a esterilização dos considerados “degenerados” – crença da ciẽncia da época que considerava a herança da mestiçagem e do sangue africano inferior na escala da humanidade.
Claro que ela não carrega nenhuma culpa por isso, como a própria descreveu no texto “Entendi, na adolescência, que ele a defendia supremacia da “boaraça”. Que conceito desprezível, para dizer o mínimo.”
Agora não dá para dizer que, mesmo sem culpa, sua posição na sociedade brasileira não recebeu o prestígio desse nome. Afinal, Renato Kehl fez carreira com o ódio à miscigenação, assessorou governos, se reuniu com políticos, foi diretor de multinacional (Bayer) durante 23 anos, fundou revistas farmacéuticas, escreveu no jornal “A Gazeta” de São Paulo, também, por duas décadas e até hoje é médico emérito da Academia Nacional de Medicina
Repito, ninguém carrega culpa dos seus ancestrais, o que carrega é mesmo dinheiro, reputação e acesso às estruturas de um país desigual. Falar de igualdade dessa posição que se ocupa é muito confortável. Questionar os movimentos negros e chamá-los de identitários por criticar essa posição e por reivindicar para si um espaço de discussão que não existia antes é uma tentativa de reforçar seu privilégio. Tenho a infeliz certeza de que ninguém tem o poder de silenciar sua obra, seu trabalho e atuação. Só que o mundo mudou bastante e agora estamos aqui e ali, discutindo na internet, mantendo a memória viva de quem são e como surgiram as pessoas que estão se sentindo ameaçadas com a ascensão da intelectualidade negra ao debate público nesse país.
O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público?
Decidi participar do debate entre setores do Movimento Negro e Lilian Schwarcz a respeito da Beyoncé, porque admiro muito tanto Lilian quanto o MNU. Acompanhei com interesse a divergência; admiro a Lilian por sua retratação pública, considerando que ela tenha sido convencida pelas críticas do Movimento Negro. Não gosto de imaginar que tenha feito isso apenas porque lhe sugeriram que calasse a boca. Acredito que a palavra, quando utilizada para argumentar e convidar o outro a pensar e debater conosco, seja o melhor recurso para resolver, ou ao menos dialetizar, ideias e valores situados em polos aparentemente opostos do vasto campo da opinião pública.
Decidi agora, a partir do que aconteceu também com Djamila Ribeiro, debater essa questão de Movimentos Identitários e Cultura do Cancelamento. Apesar da enorme diferença entre minha experiência de vida e as experiências de vida dos descendentes de escravizados – prática horrenda que, no Brasil, durou 300 anos! – eu nos considero iguais em direitos e na capacidade de compreender o mundo para além de nossos diferentes quintais. Sim, estou ciente de que o quintal onde nasci é privilegiado, em relação ao de Djamila. Mais ainda em relação ao de muitos descendentes de africanos pobres. Peço desculpas se mesmo assim insisto em me considerar, como no verso de Baudelaire, sua igual, sua irmã.
O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público? Cada um na sua casinha…? O que seria da solidariedade, essa atitude baseada na identificação com o nosso semelhante na diferença, se só conseguíssemos nos solidarizar com quem vive as mesmas experiências que nós? Bom, tem gente que é assim, não sai de seu cercadinho. Não pertenço a esse grupo, e creio que você, Djamila, também não. Se eu fosse torturada você se importaria, imagino, a despeito da cor da minha pele. O mesmo vale de mim para você.
Meu “lugar de fala” é aquele de quem se identifica com a dor dos outros. Mas também é o de quem se permite criticar atitudes preconceituosas ou injustas, venham de onde vierem. Embora seja importante reconhecer a dignidade da condição de quem é vítima de alguma opressão – econômica, racial, sexual – não há motivos para acreditar que os oprimidos sejam santos. Isso não tem nenhuma importância. Você, “pecadora” como todos nós, foi vítima de discriminação por parte de seus irmãos de cor, membros do Movimento Negro Unificado.
Considero as políticas identitárias como recursos essenciais para impor respeito, exigir reparação por todos os crimes do racismo assim como lutar (ainda!) por igualdade de direitos. Abomino todas as formas de discriminação baseadas na cor da pele, no país de origem, na fé religiosa ou nas diferenças de práticas culturais. Nenhuma “palavra de ordem” se manteve mais atual, ao longo dos séculos, do que o lema da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade. Me parece que o que está em causa, quanto ao que acontece com pessoas de descendência europeia e as descendentes de africanos, seja a “igualdade”. Como considerar iguais pessoas oriundas de classes sociais, grupos étnicos e experiências de vida tão desiguais?
Mas, sim, em alguns pontos somos iguais. Em direitos (embora, no Brasil, tantos deles sejam desrespeitados). Em dignidade. Na capacidade de produzir cultura, seja musical, pictórica, teatral. Nesse aspecto da produção de cultura, entra em causa a liberdade de expressão. Podemos participar, sem pedir licença a ninguém, de todos os debates que nos interessem. Podemos nos pronunciar a respeito de problemas e questões que não fazem parte de nosso dia a dia. São questões dos “outros”. Mas que nos importam. Queremos falar. Se a palavra não é livre, o que mais será? Mas, claro: abomino a palavra que induz a linchamentos virtuais.
Não quero imaginar um mundo em que cada um de nós só pudesse dialogar com seus supostos “iguais” em gênero, cor da pele ou classe social. Senão como pude eu, branquela de classe média urbana, ter sido aceita pelos “compas” do MST com quem trabalhei entre 2006 e 2011, até ingressar na Comissão da Verdade? Como pude ser respeitada entre grupos indígenas para relatar, no capítulo que me coube escrever, o genocídio sofrido por eles durante a ditadura se nunca, antes disso, tinha sequer pisado em uma aldeia?
Durante o nazismo, um dos períodos mais horrendos que a humanidade atravessou, algumas famílias alemãs não hitleristas abrigaram famílias judias em suas casas, salvando muitas delas. Alguns esses alemães antirracistas foram denunciados por seus vizinhos e assassinados pela Gestapo. Mesmo pertencendo à “raça ariana”, foram mártires em sua ação solidária contra o genocídio.
Meu sobrenome é alemão. Meu avô, muito carinhoso comigo na infância, era antissemita por razões “eugenistas”. Entendi, na adolescência, que ele a defendia supremacia da “boaraça”. Que conceito desprezível, para dizer o mínimo. Mais justo é dizer: que conceito criminoso. Nenhum dos seis netos dele compartilha aquelas ideias. E defendo que nenhum de nós deva ser calado num debate sobre “raça” por conta de nossa ascendência e de nosso avô.
Aliás, por conta dessa essa ascendência que não escolhi (para mim, ele era só um doce avô), talvez o Movimento Negro me considere a última pessoa autorizada a dialogar com seus ativistas. Mas quero correr o risco. Acima de todas as diferenças, aposto sempre na livre circulação da palavra e do debate. E afirmo que nosso habitat “natural” é esse caldo de culturas que constitui o vasto mundo da palavra – fora do qual, o que seria do ser humano? Como escreveu Pessoa, apenas um “cadáver adiado que procria”.
Já participei, com alegria, de muitas manifestações do dia da Consciência Negra. Tenho inúmeras afinidades com a cultura que seus antepassados, generosamente, nos legaram. Sou do samba, desde criancinha. Meus tios maternos, boêmios, tocavam e cantavam. “Caí no caldeirão”, como Obelix. Às vezes penso que sei, de cor, todos os sambas desde o final do século dezenove até o final do vinte. Sou filha de Santo: que pretensão, não é? Nem pedi para isso acontecer, foi o santo que “mandou”. Essa filiação me encoraja muito na hora das dificuldades.
Escrevi um ensaio sobre a história do samba que começa com o abandono dos escravizados depois da Abolição; é claro que o “sinhozinho” que explorava trezentos africanos, ao ter que pagar pelo menos um salário de fome a cada um, preferiu botar duzentos e cinquenta na rua e explorar até o osso os outros cinquenta. Ao contrário do que aconteceu em alguns Estados do sul dos Estados Unidos, aqui ninguém recebeu nenhuma reparação pelos abusos sofridos durante gerações. Foi preciso que um operário chegasse ao poder para instaurar algumas políticas reparatórias, como as cotas para afrodescendentes ingressarem nas universidades ou a legalização das terras quilombolas.
Nos Estados Unidos, país hoje governado por um dos ídolos do desgovernante brasileiro, existe uma grande população afrodescendente de classe média. Um descendente de africanos presidiu o país, por dois mandatos, de forma relativamente progressista – até onde o congresso permitiu. Outro deles é um cineasta genial. A produtora de Spyke Lee se chama “Forty Acres and a Mule” em referência à reparação que deveria ter sido recebida por seus antepassados após a Guerra Civil..
Vamos também contar os compositores, músicos e cantores de jazz. Tocavam em espaços que os brancos não racistas nunca foram proibidos de frequentar e ouvir.
Aqui no Brasil, diante do abandono dos escravizados recém libertos, os brasileiros descendentes de portugueses, italianos e outros europeus racistas estabeleceram uma associação vergonhosa entre as pessoas de pele escura e a “vadiagem”. Uma ruindade a mais, entre tantas outras.Mas os exescravizados, sem trabalho depois da Abolição [1], que se reuniam na Pedra do Sal, na zona portuária do Rio, a espera do trabalho pesado de ajudar a descarregar navios que chegavam, nas suas horas vagas criaram o samba: uma das marcas mais fortes da cultura brasileira. Que nunca nós, brancos, fomos proibidos de cantar e dançar. Na Bahia, surgiram os terreiros de Candomblé, que não atendem apenas os negros. Brancos podem se consultar e se for o caso, a mando do santo, se filiar.
Para que você não pense que o atrevimento de me identificar com a riquíssima cultura que você compartilha com “mais de cinquenta mil manos”seja um “abuso” exclusivo em relação aos afrodescendentes, te conto que sou incuravelmente heterossexual, mas participo todos os anos da Parada Gay. Nenhum de meus amigos gays, um dos quais já sofreu perseguições homofóbicas no trabalho, me desautorizou a me identificar com eles. Mas também nenhum se ofendeu nas ocasiões em que discordamos sobre algum assunto, mesmo referente à sua causa identitária.
Às vezes, no debate, me convenceram. Outras vezes eu os convenci. Liberdade de opinião combinada com igualdade de direitos podem dar resultados excelentes. No entanto, você sabe, existem negros racistas – não contra os brancos, o que até seria compreensível. Contra outros negros. Sérgio Camargo, que preside a Fundação Palmares no atual governo, enfrentou controvérsias por conta de declarações racistas.
Uma das razões dessa minha iniciativa de escrever, em público, para os companheiros do MNU, é que acredito que sejamos iguais também na capacidade de empatia. Não preciso ter sido amarrada no tronco para ter horror disso. O país inteiro, até mesmo os indiferentes, sofre de baixa estima por conta de nosso longo período escravista. E nós, brancos antirracistas, somos sim capazes de nos colocar emocionalmente no lugar daqueles que ainda sofrem o que nunca sofremos. No entanto, não tenho dúvidas de que até hoje os descendentes de africanos sofreram e sofrem, no Brasil, muito mais do que os descendentes de europeus.
Somos iguais. Não em experiência de vida, nem na cor da pele. Em direitos, em dignidade e, como tento fazer agora, em liberdade de expressão. Eu desrespeitaria os membros do Movimento Negro Unificado se fosse condescendente. Ou se eu fingisse concordar para não sofrer linchamentos virtuais. A consideração e o respeito é que me autorizam, em casos como esse, a discordar. De igual para igual. Por isso não aceito que, em função de nossas origens diferentes – e dos privilégios dos quais tenho consciência – os companheiros membros do MNU eventualmente exigissem que eu calasse a minha.
Para terminar, deixo para os leitores que ainda não conhecem a letra de uma das canções mais tocantes já escritas para denunciar um dos muitos atos de barbárie racista, nos Estados Unidos: um ex escravizado que foi enforcado em uma árvore.Tenho certeza de que muitos de vocês a conhecem. Aí vai, na versão do poeta (branco) Carlos Rennó:
Strangefruit
(Fruta estranha)
Árvores do sul dão uma fruta estranha: Folha o raiz em sangue se banha: Corpo negro balançando, lento: Folha pendendo de um galho ao vento.
Cena pastoril do Sul celebrado: A boca torta e o olho inchado Cheiro de magnólia chega e passa De repente o odor de carne em brasa
Eis uma fruta que o vento segue, Para que um corvo puxe, para que a chuva enrugue. Para que o sol resseque, para que o chão degluta. Eis uma estranha e amarga fruta [2]
Ao digitar esses versos, já tenho vontade de chorar. Vocês devem saber que ela não foi composta por um negro e sim por um judeu novaiorquino, Abel Meeropol (com pseudônimo de Lewis Allan). Como desautorizá-lo com o argumento de que ele não teria o “lugar de fala” apropriado? Para estender esse argumento até o absurdo: como conseguiríamos sequer dialogar com nossos não-iguais? A empatia e a solidariedade seriam sempre hipócritas? A proposta é “cada um na sua caixinha”? Não quero viver em um mundo desses.
*Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo).
Notas
[1] Evidentemente o senhor de escravos que explorava 500 indivíduos, ao ter que lhes pagar ao menos um salário de fome, preferia mandar 400 para a rua, ao Deus dará, e abusar ao máximo da força de trabalho dos cem restantes.
[2] Southern treesbear a strangefruit/ Bloodontheleavesandbloodatthe root/ Black bodyswuiguing in the Southern breeze/ Strangefruithanguingfromthepoplartrees. //Pastoral sceneofthegallant South/ The bulguingeyes ande thetwistedmouth/Scentofmagnoliasweetandfresh/ Andthesuddensmellofburningflesh! // Here is a fruit for thecrowstopluck/ For heraintogather, for thewindtosuck/ For hesuntorot, for theteetodrop/ Hereis a strangeandbittercrop.
‘Black is King’: intelectuais negros falam sobre texto de Lilia Schwarcz
João Vieira. Colaboração para o TAB 05/08/2020
As incessantes tragédias têm tornado difícil para a comunidade preta a missão de reverenciar sua ancestralidade e imaginar um futuro próspero e afrocentrado, ou seja, onde África e a diáspora (imigração forçada) sejam a bússola de um novo projeto de vida.
Esta é uma entre tantas propostas de Beyoncé no filme “Black is King”, lançado pela Disney como conteúdo exclusivo do seu serviço de streaming, o Disney Plus. A peça ilustra a narrativa do álbum “The Gift”, feito em cima do remake de “O Rei Leão”, onde a cantora dubla a personagem Nala.
“Black is King”, inclusive, é uma releitura do clássico Disney protagonizado por Simba. Só que aqui, o filho de Mufasa se transforma em um garoto negro que enxerga em seus ancestrais e sua cultura de origem a força para encarar os tempos atuais e mudar o futuro. Diferentemente do desenho animado, o lançamento da artista inverte a lógica da tragédia shakespeariana de Hamlet, príncipe da Dinamarca, que busca vingar a morte do pai, o rei, cometida por seu irmão, Cláudio, como aponta a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz em seu artigo publicado na Folha de S.Paulo no último domingo (2), sobre o filme de Beyoncé.
Em seu texto, Lilia, professora da USP (Universidade de São Paulo) e da Universidade de Princeton (EUA), autora, entre outros, do “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, teoriza que, apesar de chegar em boa hora, fortalecendo o pulso das manifestações mundo afora contra o genocídio da população negra, o filme destoa dos anseios atuais da comunidade por recorrer a “imagens tão estereotipadas” que criam “uma África caricata e perdida nos tempos das savanas isoladas”.
“Neste contexto politizado e racializado do Black Lives Matter, e de movimentos como Decolonize This Place, que não aceitam mais o sentido único e Ocidental da história, duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamourizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal”, ela diz.
Brancos podem dar pitaco?
O texto de Schwarcz rendeu críticas entre intelectuais e influenciadores negros nos últimos dias. Diversos recorreram às redes sociais para manifestar repúdio ao fato de, na visão deles, a historiadora, uma mulher branca, estar dizendo a Beyoncé como ela deve retratar sua própria história enquanto mulher negra. A jornalista Aline Ramos afirma, em texto publicado na sua coluna no UOL, que a opinião de Schwarcz não causou indignação por apresentar uma visão negativa do filme, mas sim por “desdenhar do trabalho e da importância de Beyoncé dentro da indústria cultural”.
Antropóloga social, Izabel Accioly também conversou com o TAB sobre o tema. Na visão dela, carece em análises de pessoas brancas colocar como referência o olhar da negritude e sua relação com determinados temas. “A branquitude acha que é universal, está sempre pensando a partir de suas próprias narrativas e faz, a todo custo, movimentos de apagamento de outras narrativas. É incapaz de compreender outras referências e analisar a partir de um referencial negro”, diz ela. “Por isso, parte de um olhar enviesado sobre o que produzimos, o que falamos e o que somos.”
Brancos podem, então, dar pitaco sobre vivências negras? “Mais do que tentar analisar algo que não conhecem, brancos deveriam analisar e repensar seu pertencimento étnico-racial, a branquitude. Em vez de adotar um ar soberbo, deveriam ouvir quando não têm nada de edificante a falar”, diz Accioly.
Para Monique Evelle, empreendedora e comandante do podcast “Fora da Curva”, do TAB, lugar de fala também tem a ver com o contexto social onde se está inserido. “A diferença é como a gente usa. Não é sobre poder ou não falar. É sobre entender que, a partir do lugar e do contexto em que você está inserido, você acha realmente que deveria opinar sobre relações raciais de outros grupos étnicos?”.
Beyoncé e a representatividade preta
A carreira de Beyoncé se transformou na década de 2010. Se, até então, a cantora colocava sua negritude de forma menos incisiva, abusando de elementos da música negra do século passado, valorizando a cultura hip-hop e dando espaço para releituras de clássicos de antigas divas da black music, de 2010 para cá a artista passou a colocar o dedo na ferida e falar diretamente sobre a população negra.
Em “Lemonade” (2016), Beyoncé faz críticas diretas contra violência policial que assombra negros (não só) nos Estados Unidos. E agora, com “The Gift” e “Black is King”, ela se aproveita da janela conquistada ao dublar Nala no remake de “O Rei Leão” para desenvolver uma narrativa de realeza negra.
Beyoncé no clipe de Formation, single de Lemonade Imagem: YouTube
“O conceito que Beyoncé nos apresenta é de criação de um lugar bom próspero e seguro para o povo negro. Ela pensa esse lugar sem esquecer nossas origens e nossas referências. Faz como o Sankofa, o adinkra, que significa ‘retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro'”, diz Izabel Accioly. “Acho que a gente está tão acostumado a viver essa vida em que estamos separados, e também a ver nossos irmãos pretos em lugares subalternos, que quando chegamos a esse ponto de ver uma produção como a que Beyoncé apresenta, que nos mostra outras possibilidades em um local possível, em que a família negra está unida, em que o povo negro está unido, isso é muito representativo. É uma reconexão consigo mesmo.”
A autoridade da mulher negra como dona de sua jornada também é vista como importante dentro da narrativa proposta por “Black is King” e por trabalhos recentes de Beyoncé.
Para Evelle, essa autoridade sempre existiu, com a diferença de que agora ela tem o “aval” da sociedade. “Com toda a repercussão pós-George Floyd nos Estados Unidos, as pessoas acenderam o sinal de alerta relacionado a raça, sobretudo a branquitude, que agora está se movimentando um pouco mais para entender essa luta antirracista e como ser antirracista, mas não significa que, antes, as mulheres negras não tivessem importância para movimentar as estruturas da sociedade.”
Monique Evelle Imagem: Divulgação
Romantização da monarquia?
Parte da comunidade criticou “Black is King” por relacionar o afrofuturismo a uma suposta romantização da monarquia, regime geracional que já promoveu desigualdades e escravidão.
Professor e pesquisador da história da cultura negra, com ênfase no Ceará, Hilário Ferreira julga a crítica como procedente, mas afirma que o conceito de realeza é utilizado por Beyoncé como forma de desconstruir uma visão histórica de inferioridade do negro, visto sempre como escravizado, e de desvalorização do continente africano. “Quando se trata dessa questão dos reinados, você também traz embutida aí a ruptura com aquela visão, também dentro de uma perspectiva ‘epistemicida’, de matar o conhecimento — que o europeu sempre fez sobre África — e dele escrever uma visão equivocada desse continente, do qual ele é um reflexo do filme Tarzan, em que a África é vista a partir dessa perspectiva construída pelo europeu, como um continente atrasado, de tribos”, diz ao TAB.
O professor também faz questão de valorizar o afrocentrismo e a organização da comunidade. “Creio que dentro dessa realidade de genocídio em qual vivemos, o pensamento afrocentrado e as produções afrofuturistas têm um papel fundamental no próprio empoderamento de uma identidade sólida, de um referencial de valorização de autoestima, que irá contrapor todo esse processo de invenção do negro, onde este negro é criado e identificado com o objetivo de inferiorizá-lo”, aponta.
Lilia admite soberba
Em publicação no seu Instagram nesta terça-feira (4), Lilia se desculpou pelo artigo publicado. “Não deveria ter aceito o convite da Folha, a despeito de apreciar muito o trabalho de Beyoncé; seria melhor uma analista ou um analista negro estudiosos dos temas e questões que a cantora e o filme abordam. Ao aceitar, não deveria ter concordado com o prazo curto que atropela a reflexão mais sedimentada. Deveria também ter passado o artigo para colegas opinarem. Não ter dúvidas é ato de soberba. Também não deveria ter escrito aquele final; era irônico e aprendi que é melhor dizer, com respeito, do que insinuar”, disse ela.
Fabiana Moraes – Black Is King: Preto é pra brilhar, na periferia ou em Hollywood
Fabiana Moraes, 5 de agosto de 2020
Os rostos cintilantes de Marylin Monroe, Madonna, Taylor Swift; os olhos azuis faiscantes de Alain Delon, Frank Sinatra, Bradley Cooper. A pedagogia hollywoodiana nos ensina há cem anos que humanos podem se tornar superpessoas, e os nomes citados aqui são exemplos desses seres mágicos tocados pela varinha do glamour.
Com essas atrizes e atores, cantoras e bailarinos, aprendemos — fosse em Jaipur, Cabrobó ou Miami — que era possível viajar para outros mundos, contracenar com desenhos animados, dançar sob a chuva em ruas desertas. Aprendemos, em síntese, a sonhar.
Os rostos sofridos de Hattie McDaniel, Viola Davis, Lupita Nyong’o; os olhos lacrimejantes de Sidney Poitier, Forest Whitaker, Mahershala Ali. A mesma escola baseada em Hollywood também foi importante para ensinar ao mundo alguns lugares “comuns” às pessoas negras.
Com elas e eles, entendemos que as possibilidades de felicidade, do desejado glamour e do sonho eram quase nulas. Estas limitações e interdições, sabemos, não eram apenas simbólicas: McDaniel, primeira negra a ganhar, em 1940, um Oscar por seu papel em E o Vento Levou (do qual não pôde comparecer à estreia), tinha um pedido pós-morte: ser enterrada no cemitério Hollywood Forever. Morta, foi novamente barrada: o cemitério só aceitava brancos.
O debate provocado pela coluna da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz a respeito do lançamento do álbum visual Black is King, de Beyoncé, nos mostra como a cultura popular massiva, fundamental em nossas relações sociais, foi eficiente em estabilizar quem pode ou não acessar o idílico, o luxo, o lado bom dos holofotes.
Quando negros do hip hop aparecem com seus grandes colares de ouro, quando MC Loma surge sentada em um trono ou quando Beyoncé dança coberta de dourado, pompa, brilho e cristal, nossas imagens internalizadas e cristalizadas do sofrimento e dos olhos lacrimejantes entram em pane. Não crescemos vendo negros felizes, ricos e autônomos, afinal de contas.
MC Loma Imagem: Reprodução/ Instagram A periferia também quer brilhar
Esse estranhamento, percebam, também tem relação vital com outro fator: classe.
É preciso lembrar que, no Brasil, pobreza e cor estão fundamentalmente associados: negros formam 75% entre os mais pobres, enquanto brancos formam 70% entre os mais ricos (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019).
Enquanto o debate crescia nas redes sociais por conta da coluna, lembrei bastante de uma cena do filme Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes. Nela, um rapaz fala para um assombrado cineasta sobre os modelos de calças e shorts jeans mais procurados pelo público. “Tem que ter brilho”, afirma ele, enquanto vemos as peças sapecadas com pedrarias que logo serão vendidas para o popularíssimo mercado de Toritama, cidade do Agreste de Pernambuco.
Os jeans brilhantes vestidos em sua maioria por pessoas que tentam esticar o salário até o fim do mês também nos remetem à famosa frase “pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”, atribuída tanto ao carnavalesco Joãosinho Trinta quanto ao jornalista Elio Gaspari.
Em que se pese o certo folclore e o tom essencialista da máxima, esses testemunhos nos indicam outras possibilidades de existência e de desejo por parte de milhões de brasileiras e brasileiros. Mais: jogam luz em uma percepção redutora e estereotipada que muitas vezes jornalistas e pesquisadores, elite e classe média, internet e programas de TV, possuem da periferia.
A periferia, vejam só, não é necessariamente indigna, não é necessariamente triste, não necessariamente fala aos berros. É também um espaço no qual ocorre a felicidade. E, sim, deseja brilhar, como a maioria dos seres humanos nascidos sobre a terra.
(“Se eu estou brilhando, todo mundo vai brilhar”, canta a maravilhosa Lizzo).
Cena de …E o Vento Levou, filme lançado em 1940 no Brasil Imagem: MGM
O peso das celebridades na cultura
A visão pouco ampla se estende a outro tópico essencial do debate: as celebridades. Tanto a elite cultural (à direita, centro e esquerda) quanto a academia, torceram historicamente o nariz para o tema. Era coisa de jovem, de gay, de dona de casa, de amantes da fofoca. Coisa de quem não se interessa pelos problemas “reais” da nação e não entende de política.
Coisa, percebam, de gente que não ocupa os espaços mais privilegiados de poder. Mas a temperatura da discussão provocada pelo texto nos mostra bem que a política é um assunto que está no cotidiano, nas cozinhas, filas de ônibus, nos salões de beleza. Mostra que as pessoas cuja fama é o grande capital — e cujo capital é gerado pela fama — articulam como poucas, por conta de suas visibilidades, questões de gênero, de raça, território e classe, mesmo quando suas aparições não almejam este propósito.
Celebridades, já foi dito, são algumas das moedas culturais mais preciosas da sociedade contemporânea, estejam nuas, de manto ou vestidas com estampa de oncinha. Aprendemos também através delas a conceber o mundo, o que pensar, fotografar, falar e escrever sobre as pessoas dos Estados Unidos, da América Latina, da África, etc.
Essas aulas foram muitas vezes escritas não com giz, mas justamente com o cristal e o glamour reservados a uns e não a outros. Essa distinção faz enorme diferença. Assim, se foi com esses materiais que aprendemos a ter uma certa compreensão do espaço que nos cerca, a tal didática hollywoodiana pode nos ajudar também a remoldar percepções, a reinstalar novos códigos em nosso racista e classista arcabouço cultural.
Ou seja: a luta antirracista também pode ser feita com pompa, artifício hollywoodiano e brilho — aliás, Hollywood, que não é boba nem nada, tem se capitalizado com isso através de uma muitas vezes superficial concepção de representatividade.
Lugar do preto e lugar do branco
Para completar, é preciso falar de outro ponto inflamado não só pelo texto de Lilia, mas por todo necessário debate que o cerca (as declarações de figuras públicas como Iza, Preto Zezé, por exemplo): o conforto com o qual pessoas brancas dirigem seus imperativos e orientações a pessoas negras.
Dizer o que nós devemos fazer, seja sair da sala de jantar (palavras da antropóloga) ou nos esforçar mais para compreender até mesmo nossa própria negritude (palavras da edição) são apenas exemplos de práticas cotidianas comuns, mas nem por isso menos racistas. Algo fortemente derivado de uma sociedade na qual até hoje os espaços de servidão são majoritariamente negros, uma herança escravista.
Essa realidade também é formada pela distinção entre o fazer e o pensar, com o primeiro verbo sendo associado aos de pele escura, enquanto o segundo é relacionado à pele clara.
É algo tão “natural” que, mesmo uma pesquisadora com uma importante contribuição teórica sobre as questões raciais no Brasil — seu livro Retrato em Branco e Negro é, para mim, um excelente documento para entender o jornalismo brasileiro — comete o ato sem identificar nele uma assimetria.
Também deve nos fazer pensar a respeito de uma academia branca e pretensamente universal que, durante séculos, se trancou em sua famosa torre de marfim, seus gabinetes refrigerados e, claro, salas de jantar para falar do mundo lá fora. Este distanciamento — que não se traduz em pesquisas diversas, inclusive as da própria antropóloga — vem sendo felizmente modificado a partir do próprio contexto acadêmico, que passa por suas negras revoluções.
PS: Esta é a primeira de uma série de colunas que passo a assinar aqui no UOL. Neste espaço, discuto cultura e política, política e cultura. Mandem sugestões de temas, pitacos, conversa. Cancelo somente quem não gosta de farofa. Saravá.
* * *
Antropóloga critica Beyoncé por “glamorizar negritude” em Black is King e famosos se posicionam a favor da cantora
O álbum visual Black is King, lançado por Beyoncé na última sexta-feira (31 de Julho), tem gerado diversos comentários nas redes sociais. Em seu novo trabalho, a cantora quis exaltar a cultura negra recriando a história de O Rei Leão.
Entre muitas opiniões positivas sobre o novo projeto, uma análise feita pela antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz chamou a atenção de artistas e internautas.
Lilia, que também é professora da USP e da Universidade Princeton, disse no título de um texto publicado no jornal Folha de São Paulo (via Portal POPLine) que o “filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha”. Em seu texto, ela descreve:
Nesse contexto politizado e racializado do Black Lives Matter, e de movimentos como o Decolonize This Place, que não aceitam mais o sentido único e Ocidental da história, duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamorizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal.
Esse e outros comentários da antropóloga, que é uma mulher branca, deixaram muitas pessoas revoltadas, principalmente por acreditarem que ela não tem um lugar de fala para fazer determinadas críticas. A partir disso, famosos negros utilizaram suas redes sociais para se manifestar contra a opinião de Lilia.
Repercussão
Iza, uma das cantoras brasileiras de destaque da atualidade, utilizou sua conta do Instagram para se posicionar sobre o texto da historiadora:
Lilia Schwarcz, meu anjo, quem precisa entender SOU EU. Eu preciso entender que privilégio é esse que te faz pensar que você tem uma autoridade para ensinar uma mulher negra como ela deve, ou não, falar sobre seu povo. Se eu fosse você (valeu Deus) estaria com vergonha agora. MELHORE!
O ator e cantor Ícaro Silva, também expôs sua revolta:
Você é uma grande, grande vergonha. Não somente para o Brasil e para o povo preto, mas para todos os povos aqui presentes. Não vejo por onde defender seu declarado racismo, sua arrogância branca elitista em se dar o direito não somente de reduzir uma obra prima ao nicho ‘antirracista’ mas em acreditar que tem conhecimento antropológico sobre África.
Maíra Azevedo, mais conhecida por Tia Ma, é jornalista, humorista e ativista, e também não se calou sobre o assunto:
O erro é uma mulher branca acreditar que pode dizer a uma mulher preta como ela pode contar a história e narrar a sua ancestralidade. A branquitude acostumou a ter a negritude como objeto de estudo e segue crendo que pode nos dizer o que falar sobre nossas narrativas e trajetórias.
Lilia é uma historiadora, pesquisa sobre escravidão? Mas está longe de sentir na pele o que é ser uma mulher preta. Beyoncé do alto da sua realeza no mundo pop nunca deixar de ser negra, mesmo sentada no trono em sua sala de estar. A branquitude segue acreditando que pode nos ensinar a contar nossa própria história. Enquanto todas as pessoas negras se emocionam, se reconhecem e se identificam, a branca aliada diz que Beyoncé deixa a desejar! É isso! No final nós por nós e falando por nós
Explicações e pedido de desculpas
Após a repercussão negativa, Lila Schwarcz decidiu fazer uma publicação em sua conta do Instagram tentando explicar elementos do seu texto e pedindo desculpas:
Agradeço a todos os comentários e sugestões. Sempre. Gostaria de esclarecer que gostei demais do trabalho de Beyoncé. Penso que faz parte da democracia discordar. Faz parte da democracia inclusive apresentar com respeito argumentos discordantes. Já escrevi artigo super elogioso à Beyoncé, nesse mesmo jornal o que só mostra meu respeito pela artista. E por respeitar, me permiti comentar um aspecto e não o vídeo todo.
Agradeço demais a leitura completa do ensaio. Penso que o título também levou a má compreensão. Dito isso, sei que todo texto pode ter várias interpretações e me desculpo diante das pessoas que ofendi. Não foi minha intenção. Continuamos no diálogo que nos une por aqui.
Opinião: Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha
Lilia Moritz Schwarcz, 2 de agosto de 2020
Como tudo que Beyoncé faz, seu novo álbum visual, “Black Is King”, chega causando polêmica e trazendo muito barulho. Nele, a cantora e compositora retoma a história clássica de Hamlet, personagem icônico de Shakespeare, mas a ambienta em algum lugar perdido do continente africano.
O Hamlet de Shakespeare se passa na Dinamarca e conta a história do príncipe que tem como missão vingar a morte de seu pai, o rei, executado pelo próprio irmão, Cláudio. Traição, incesto e loucura são temas fortes da trama e da própria humanidade, de uma forma geral.
Já a versão da Disney é ambientada na África e tem como personagem principal uma alcateia de leões –os “reis dos animais”. No enredo, o filho Simba, herdeiro do trono, instado pelo irmão invejoso, desobedece ao pai e, não propositadamente, acaba sendo o pivô da morte dele e de um golpe de Estado.
O tema retoma a culpa edipiana do filho que, não conseguindo vingar ou salvar o pai, perde seu prumo na vida e esquece sua história. “Toda história é remorso”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade, e é esse o mote da peça elisabetana, e do filme da Disney, que retoma em linguagem infantil o sentido clássico do parricídio, que representa, a seu modo, a própria negação da história e da memória.
Já Beyoncé evoca mais uma vez a tragédia de Hamlet, mas inverte a mão da narrativa. Simba vira um menino negro que procura por suas raízes para conseguir sobreviver no mundo racista americano de 2020. O que falta de força no filme explode no clipe da cantora.
“Todo mundo é alguém”, assim começa a produção, que continua com um forte “eu vou lhe mostrar quem você é”. A história esquecida e preterida renasce como sina daquele que obliterou o seu destino e como uma incessante procura do orgulho perdido.
É uma espécie de ode do retorno às origens africanas; uma sorte de ritual de iniciação do filho pródigo que volta, finalmente, à casa. Beyoncé subverte a lógica primeira da lenda do rei leão, que, nesse caso, se transforma numa viagem de ida e volta, rumo a um passado silenciado e ausente.
“Black Is King” é assim uma elegia da procura. Beyoncé introduz bailarinos, atores e cantores, no lugar de animais, e recupera, dessa forma, o sentido da experiência negra nos Estados Unidos da América, mas sobretudo na África, e confere a elas a forma de celebração. Não mata o pai, o continente africano; procura, quase que didaticamente, unir as pontas desses elos soltos –na e pela– história.
A loucura é a alienação de dar as costas ao passado. A traição remete àqueles que procuraram omitir o orgulho diante da ancestralidade africana. Em vez do esquecimento, melhor é começar a história outra vez, a partir daquilo que foi pretensamente apagado pelo trauma colonial, mas continua pulsando vivo à espera do seu resgate.
“Creio que quando nós negros contamos nossas próprias histórias podemos mudar o eixo do mundo e narrar a verdadeira história da prosperidade geracional e da riqueza da alma que não se conta em nossos livros de história”, disse Beyoncé em seu Instagram.
“Black Is King” tira a personagem de Nala – a namorada de Simba – dos bastidores e confere a ela centralidade. É Nala, ou Beyoncé, quem chama o príncipe para que assuma as suas responsabilidades e recupere o reino usurpado.
Não por acaso, Nala é encarnada pela cantora, que aparece como narradora privilegiada e onisciente da história. Ela nada tem de donzela desamparada que espera que seu príncipe encantado a encontre e salve. Ao contrário, é a leoa que faz com que o rapaz retome sua própria história e faça as pazes com o passado.
O vídeo chega em boa hora nesse momento em que, depois do assassinato covarde de George Floyd, o genocídio negro e a violência da polícia do Estado, finalmente, entraram na pauta, como um alerta forte de que não existe democracia com racismo.
Não há como negar as qualidades de “Black Is King”. Mas, como nada na obra de Beyoncé cabe apenas numa caixinha, causa estranheza, nesses tempos agitados do presente, que a cantora recorra a imagens tão estereotipadas e crie uma África caricata e perdida no tempo das savanas isoladas.
Nesse contexto politizado e racializado do Black Lives Matter, e de movimentos como o Decolonize This Place, que não aceitam mais o sentido único e Ocidental da história, duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamorizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal.
“Black Is King” retrata a negritude como a nova realeza desse século 21, que começa sob o signo do imprevisto, do indeterminado e da conquista de direitos por parte das populações negras, que já faz tempo tiraram a África do lugar da barbárie e revelaram um continente repleto de filosofias, cosmologias, técnicas, saberes, religiões, culturas materiais e imateriais e estéticas visuais.
A África das savanas, dos elefantes, leões, leopardos convive com um continente moderno que relê seu passado nos termos e a partir dos desafios do presente.
Essa África essencial e idílica por certo combina com o ritmo e a genialidade dessa estrela do pop que sacode até estruturas de concreto. Visto sob esse ângulo, o trabalho é uma exaltação, bem-vinda e sem pejas, de uma experiência secular que circulou por essa diáspora afro-atlântica e condicionou sua realidade. Mas o álbum decepciona também. Quem sabe seja hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido.
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