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A multiplicidade não é uma sopa de letrinhas (uninomade.net)

“A potência está numa afirmação criadora onde se é todo nela, e não em um monte de essenciazinhas meia bomba espalhadas por aí, expressões do niilismo da forma-mercadoria,”

A multiplicidade não é uma sopa de letrinhas de clichês e o fascismo não é mais um estilo vida entre outros possíveis

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Por Rodrigo Guerón, no facebook – 

24/06/2013

– mal traçadas e não revisadas linhas, escritas na correria dos acontecimentos das revoltas dos últimos dias, depois de uma troca de ideias virtuais com minha amiga Ivana Bentes –

 Escrevi há apenas cinco dias um texto, http://www.releasevirtual.com.br/o-que-e-e-o-que-nao-pode-ser-que-nao-e/,no qual mostrei entusiasmo como o movimento que começou contra o aumento das passagens, falei sobre a relação entre desejo e política mostrando como o capital sempre deixa o desejo aflorar para capturá-lo e as esquerdas, por sua vez, têm medo do desejo (as oficiais, burocratizadas, acadêmicas, hirarquizadas em partido, com exceções portanto: eis o pessoal do MPL mandando bem), isto é, não percebem que ele é revolucionário, ou no mínimo transformador: por isso perdem constantemente a batalha. Ainda por cima bati duro, sempre numa crítica que se pretendia “pela esquerda”, em certas posições de certos petistas e alguns militantes de esquerda (alguns, insisto, com exceções), chamando-os de “Reginas Duarte de vermelho”.

O problema, no entanto, é que não dá para usar, como vejo alguns fazerem, uma espécie de “cartilha pós-moderna padrão” para explicar tudo o tempo todo, sem avaliar cada momento a cada dia, como as coisas mudaram, foram e voltaram, as muitas forças ( e contra forças), quais são elas, quando e onde estão, mais e/ou menos forte e, sobretudo, onde cada um de nós está, se posiciona e age, em vez de ficar pairando sobre tudo (num sintoma de verticalização intelectual, de autoridade acadêmica, de especialista em “novos movimentos”, “multiplicidade” e etc). Em outros termos, não dá para desprezar os fatos e os acontecimentos. Se não fizermos assim vamos terminar por apresentar uma concepção de “multiplicidade” que mais parece ser uma grande sopa de letrinhas de clichês onde, no final, a potência da diferença, do singular, aquilo que escapa a maneira homogeneizadora como o capital regula os modos de vida, se esvazia quase que completamente.

Além disso, desqualificar qualquer relação com a história, numa espécie de “positivismo pós-moderno”, teleologia hegeliana rasteira, determinismo histórico com brinco no umbigo, encarando a pós-modernidade como “uma grande nova fase” onde todo o resto estaria “velho” e “superado”, é impotência pura, prato cheio para ações reacionárias (no sentido de “reativas”). Se há uma potência no pós-moderno (noção bem problemática, mas não tenho dúvidas que não somos mais modernos, e gosto disso) é exatamente no fato dele nos jogar para fora de qualquer teleologia histórica, isto é, o pós-moderno não pode ser visto como nenhum “fim da história” e sim como a oportunidade (a ser efetivada ou não) do fim da “grande narrativa histórica” e a liberação de novas histórias para além de qualquer “telos”. Estou completamente de acordo com aquele velho filósofo bigodudo que disse que não há criação e nem reinvenção na vida sem que façamos um movimento de “livre-se do seu passado”, mas o mesmo filósofo pensou isso num texto cujo título é “Das Utilidades e dos Inconvenientes da História para a Vida”, ou seja, as “utilidades” da história estão aí também.

Assim, sobre as manifestações da última quinta-feira (e não em relação a quase todas antes), o que eu achei é que as coisas ficaram esquisitas. Poderíamos até ver ainda ali uma multiplicidade que não era “sopa de letrinhas” (potente em suas diferenças), onde tinha de tudo, mas numa correlação de forças já bem diferente de antes; ou seja, um certo movimento pasteurizador de tudo me parecia cada vez mais evidente. Um grupo grande de meninos que pareciam de uma escola pública, ou de algum coletivo, bem espertos politicamente, com o qual andamos durante um tempo, estava também muito incomodado com isso; ou seja, a antipolítica que se espelhava pela manifestação que, mesmo como carnaval, parecia pobre: mais pra micareta do que pra bloco de rua; mais pra auditório de Luciano Hulk que pra baile funk.

No caso da predominância do hino nacional e da bandeira, posso até concordar com o argumento que diz ser meio absurdo ficar cobrando dos garotos o fato deles só cantarem hino nacional e gritos de torcida do Brasil se muitos deles estão indo pela primeira vez às ruas para se manifestar; ou seja, eles cantam o que sabem. Mas isso não significa que algum determinismo fatalista supostamente pós-moderno vá fazer com que eu deixe de considerar toda a semiótica destes símbolos na ligação com outros momentos da história do Brasil. Dizer que tudo já passou e é outro momento é um argumento que pode ser usado numa nota oficial das forças armadas contra a apuração dos crimes da ditadura.

Mas sim, evidentemente, é outro momento (radicalmente outro), e é o mesmo (assustadoramente repetitivo): “tudo ao mesmo tempo agora”. Por exemplo, a falta de apuração dos crimes da ditadura têm uma íntima relação com a violência da polícia militar sobre as pessoas que estavam nos bares da Lapa: violência molar e molecular a qual não fomos capazes, ao longo de todos estes anos, de se contrapor com eficácia (força) política. E que aliás, foi fichinha perto do que acontece na periferia e nas favelas frequentemente.

Ainda me detendo na última quinta-feira, eu acho que a ação conservadora foi de fato efetiva: os partidos, e alguns movimentos sociais, foram expulsos da manifestação debaixo porrada. Quando atacaram o pessoal da CUT foi bem em frente ao carro de som e o babaca lá, que não era nenhum neófito, ficou gritando o tal “sem violência” em vez de falar dos direitos que as pessoas têm de levar a bandeira. Na frente do ataque estavam visivelmente uns caras que pareciam milicos a paisana. Acabei de escrever que é ridículo a esquerda não ver a crise da democracia representativa e da forma-partido, mas quando o “grande” analista político da Globo fala isso, está querendo outra coisa do que eu. Como disse mais uma vez o filósofo, a pergunta não é “o que é?” e sim “o que quer?” tal ou tal força. Já ao pessoal que se concentrou no IFCS para ir, no momento em que saiu em direção à Presidente Vargas, foi atacado por uns caras que pareciam milicianos e que sabiam muito bem quem eram os líderes. Em Sampa, na Paulista, eles batiam em quem estava apenas com uma camisa vermelha, e não foi só a bandeira dos partidos, mas também a bandeira do Educafro que foi rasgada. Existe ( e eu apurei com cuidado esta informação) uma pauta própria da PM, em especial do Rio e na Bahia, ou seja, os policiais estão em franco confronto com os governadores e secretários de segurança (não que o Cabral não fosse capaz de ordenar aquela repressão na Lapa).

E, finalmente, tem toda a captura pela mídia, a pauta que ela tenta impor (com sucesso apenas parcial) e, sobretudo, o discurso dos “vândalos” que é abraçado por vários manifestantes que se apresentam prontamente como voluntários da polícia e da mídia contra os que não se manifestam nos padrões de “bom comportamento”. Padrões de bom comportamento estes que são rompidos de formas diferentes entre si, ou seja, não é apenas um tipo de ato de “quebra da ordem”, de insurgência – e podem ser mesmo eventualmente uma “ação da ordem” – que estoura em meio às manifestações; e é cínico não admitir que eles tiveram alguma função política na pressão para fazer baixar as passagens. E aí os eufóricos das novas tecnologias devem fazer uma pergunta: se é evidente que as mudanças políticas trazidas pelas redes sociais, as possibilidades de luta, de articulações produtivas e de resistência são enormes (vejamos o exemplo da Globo mostrando com 24 horas de atraso a violência na Lapa que antes tentou esconder – porque apoiou – graças a situação que se criou nas rede), por que tantas pessoas entram na rede para irem direto aos portais das grandes corporações de comunicação? Por que nas redes de relacionamento boa parte do que é compartilhado são notícias e imagens postadas por estas corporações? Por que tanto se busca este pensamento hierarquizado ali onde a potência está numa horizontalidade? É claro que vimos esses anos mil e uma formas de resistências e formas de organização produtiva nas redes, mas também não se pode deixar de notar o fascismo molecular impressionante que circula nelas (e que desceu às ruas quinta, principalmente na Paulista), e nem como as formas molares de organização têm tratado de aglutinar estas forças de forma mais sistemática de uns anos para cá, dentro da própria rede.

Não adianta ficar procurando linhas de fuga sem estar atento às capturas. E mais, uma das mais violentas formas do biopoder no capitalismo contemporâneo é impor esta alegria que nunca pode parar, esse otimismo que interdita a tristeza, a hesitação, a dor que provoca a dúvida. A propósito, eu já fiz um ensaio cinematográfico sobre isso “Eu estou bem cada vez melhor”…http://vimeo.com/65393274

Não fui o único a sair com um certo mal estar daquela manifestação, outras pessoas que também não são de uma esquerda burocrática e hierarquizada saíram. Aliás, o MPL se retirou em São Paulo e disse, em nota, que a direita tinha capturado o movimento. O mal estar, o incômodo, podem fazer pensar. Pelo que entendi do Espinosa e impressionante atualidade política da teoria dos afetos, não se trata de nenhuma forma de auto-ajuda antecipada em pleno século XVII.

E para encerrar, uma última reflexão: o fascismo não é parte da multiplicidade, ele é uma força anti-multipplicidade, destruidora das diferenças, e que pode se instalar no coração desta para diluí-las. Ou como disse aquele filósofo careca: o fascismo é “Eros fora”. Não se trata de escolher, ou usar tênis, ou ser punk, ou usar sandália de couro, ou entrar para PSTU, ou ser “coxinha”, ou gostar de funk, ou ser gay, ou ser fascista. A potência está numa afirmação criadora onde se é todo nela, e não em um monte de essenciazinhas meia bomba espalhadas por aí, expressões do niilismo da forma-mercadoria, que é a maneira como o capitalismo reduz os fluxos do desejo – sem os quais nem ele nem nós vivemos – a fluxos de merda. Nem muito menos pode haver possibilidade de vida numa força que existe para destruir toda e qualquer diferença: mesmo violento, do ponto de vista da vida e da política como forma de liberação social de novas possibilidades de vida, o fascismo é uma anti-força.

A falácia do liberalismo é tentar nos convencer que o fascismo é mais uma escolha que temos que “tolerar”, talvez porque o capital goste sempre de mantê-lo como uma carta na manga a qual ele pode lançar mão em situações limites. Assim, os que criticaram o filme “Tropa de Elite” de José Padilha, que fazia a apologia do Boppe e da violência policial, foram acusados de “intolerantes”, “patrulhadores” e etc. Pois bem, senhores liberais ingênuos e senhores liberais cínicos, o Boppe, o choque, a PM e etc, aparecem agora claramente como a carta na manga para manter os negócios copa – empreiteiras – Estado – corporações de comunicação – FIFA – patrocinadores em geral. “Não existe capitalismo liberal, só existe capitalismo de Estado”; disse o filósofo. E isso significa, inclusive, capitalismo com polícia sem limites: quando os limites existem, são as lutas que os conquistaram. O Wiki Leaks que nos ajude…

Por isso, que o mesmo filósofo que falou em multiplicidade, produção de subjetividade e diferença, afirmou a univocidade do ser. Isso não quer dizer que ele tenha dito, numa tentativa besta de quantificar, que o “Ser é Um”, mas que o Ser é todo no ato criador. A condescendência liberal com tudo na falsa multiplicidade-sopa-de-letrinha é a própria padronização-clichê que esvazia a possibilidade da criação da vida – e portanto da criação política – para além da forma mercadoria. Trata-se de uma operação política de poder que esvazia a possibilidade do devir revolucionário. Isso pode parecer uma simples elucubração filosófica, mas é a que faz politicamente toda a diferença; literalmente.

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Nem tudo é igual na revolta do Brasil (Desinformemonos)

“As manifestações criam um novo tipo de relação entre a população e o poder público. A Guerra da Água demonstrou isso na Bolívia e, agora no Brasil, dezenas de cidades também estão fazendo isso”, pontua Rafael Siqueira, do Movimento Passe Livre.

BRISA ARAUJO
FOTOS: MÍDIA NINJA
Número 98    junio 2013

midianinja11Centenas de milhares de pessoas continuam nas ruas do Brasil enquanto os governos baixam as tarifas dos transportes – demanda que detonou as primeiras marchas – numa tentativa de acalmar os manifestantes. Novos atores sociais chegam às manifestações para desconcerto dos políticos de todas as orientações.

No dia 19 de junho, o movimento social ganhou a revogação do aumento de 20 centavos na tarifa dos transportes públicos de São Paulo, seguida pela diminuição das tarifas em outras importantes cidades do país. Mas na marcha de comemoração do dia seguinte, algo mais saltou aos olhos: mais de um milhão e 200 mil brasileiros de distintos grupos sociais saíram às ruas de mais de cem cidades em marchas que reivindicaram causas diversas, desde saúde e educação pública até a ira contra os partidos políticos, a corrupção no governo e os altos impostos.

O transporte foi o princípio

As marchas explodiram na quinta maior economia do mundo por uma causa aparentemente local e pontual, que é o preço do transporte nas grandes cidades. De alguma maneira, foi a gota d’água.

Rafael Siqueira, professor de música e militante do Movimento Passe Livre (MPL), indica que a mobilidade é um problema nacional. “Os sistemas de transporte público são caóticos em todo o país e no início de 2013 aumentam as tarifas em várias idades. Ainda que cada cidade tenha a sua situação particular, o problema é nacional”, explica. O MPL é formado por trabalhadores e estudantes e atua nacionalmente desde 2005, depois de revoltas na Bahia, em 2003 e Santa Catarina, em 2004. Uma das principais bandeiras do movimento é o acesso universal ao sistema de transporte urbano, que para eles deve ser gerido pelo Estado e não por empresas privadas.

Segundo Carlos Eduardo Martins, cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a maciça adesão às manifestações inicialmente convocadas pelo MPL vem de uma indignação pela desmedida repressão policial contra o aumento, mas tem bases sociais mais profundas, como “a deterioração das condições materiais de vida pela inflação dos preços de habitação e a péssima qualidade dos serviços públicos de saúde, educação e transporte”. O professor afirma que a falta de definição entre o que é direita e esquerda no país também gera uma falta de esperança na política, já que “o Partido dos Trabalhadores (PT) passou a dirigir o bloco de poder que reúne o grande capital nacional e estrangeiro, as oligarquias financeiras e o agronegócio. A consequência é uma ampla corrupção da vida política nacional”.

Inconformidade com os gastos excessivos no futebol

Desde o sábado 15 de junho, outro fator entrou na complexa conjuntura política brasileira. A Copa das Confederações, torneio de futebol da FIFA, é o primeiro evento que utiliza as megaobras programadas para o Mundial de Futebol de 2014. Os estádios Mané Garrincha (Brasília), Mineirão (Belo Horizonte), Castelão (Fortaleza) e o tradicional Maracanã (Rio de Janeiro) são agora cenário de manifestações fortemente reprimidas pela polícia durante todos os partidos do torneio. Fora dos estádios, pessoas se expressaram “contra o que se consideram gastos excessivos e abusivos na construção dos estádios. Além disso, reivindicam que esses recursos sejam investidos em áreas mais importantes para os cidadãos, como saúde, educação e mobilidade urbana”, resume o sociólogo Wagner Iglecias, da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista com Desinformémonos.

Os Comitês Populares da Copa (COPACs) são movimentos sociais presentes nas 12 cidades que serão sede do torneio do próximo ano e estão articulados nacionalmente. Uma das principais preocupações dos comitês são os despejos nas cercanias dos estádios, assim como o aumento do fosso entre as classes altas e baixas das cidades. “Muitas das obras para o mundial são fruto de projetos antigos das classes dominantes, que agora encontram um motivo necessário para justificar reformas que provocarão o distanciamento dos pobres para a periferia mais distante de Fortaleza, causando segregação e distinção social”, defende o COPAC de Fortaleza, Ceará. Esta cidade já tem um claro exemplo deste processo: nas comunidades de Lagoa da Zeza e Vila Cazumba, mais de 5 mil pessoas foram desalojadas para um conjunto habitacional muito distante do centro, onde não há infraestrutura de escolas e creches.

O COPAC do Rio de Janeiro reforça as denúncias: “O que vemos hoje é o aumento da violação a direitos, principalmente contra comunidades pobres. Além disso, sabemos que a velocidade dos programas de urbanização de algumas favelas com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), assim como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são parte de um conjunto de ações para que a cidade passe uma imagem de ‘ordem e progresso’ para os investidores e os turistas”, denunciam.

Os novos atores, entre o conservadorismo e a ira contra a classe política

Grande parte dos participantes das últimas marchas, no entanto, não são parte de movimentos sociais nem de nenhum partido político. São tão contrários a eles que nas grandes marchas do dia 20 de junho atacaram física e verbalmente pessoas com camisas ou bandeiras de partidos políticos. Convocados pelas redes sociais e estimulados por palavras de ordem nacionalistas e contra a classe política, representam, pontua o jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto, “um Brasil muito conservador. As manifestações nos mostram que não porque centenas de milhares de pessoas saiam às ruas por uma reivindicação justa, a realidade mudou e vivemos agora numa comunidade de Ursinhos Carinhosos”, ironiza. O jornalista considera um erro assumir que estamos diante de um movimento fascista, como parte da esquerda teme. “É um grupo, principalmente de jovens, precariamente informado, que subitamente deu de cara com as manifestações de rua mas que não tem nenhuma formação política, somente muita raiva e indignação. Sua revolta não foi necessariamente contra os partidos, mas contra as instituições tradicionais que representam a autoridade como um todo”, analisou.

O futuro da política

Para Carlos Eduardo Martins, as marchas expressam “o colapso do sistema político brasileiro”. Iglecias acredita que são uma mostra de que o sistema políticos está demasiado afastado dos cidadãos e de suas preocupações cotidianas. “O sistema político brasileiro tem estado demasiado fechado em si mesmo, muito mais próximo dos interesses privados que da sociedade”, afirmou o sociólogo.

No calor do momento, algumas pessoas questionaram a ameaça de que as forças políticas de direita se aproveitassem da massificação para promover algum tipo de golpe de Estado, semelhante ao que aconteceu no Brasil em 1964 – quando a classe média descontente com os rumos do governo de João Goulart favoreceu um complô militar que derrubou o presidente. Para o professor da USP, esta possibilidade resulta pouco provável “porque há um sentimento muito forte de que este movimento pertence à sociedade civil, é um movimento que não quer a proteção de partidos, grupos, da mídia ou de qualquer outro ator político”, avaliou.

O que se pode dizer com segurança é que as manifestações que levaram mais de um milhão e meio de pessoas às ruas não são banais. O militante do MPL avalia que “a história prova que as manifestações mudam as coisas. Ou a escravidão ainda é normal? Ou a França ainda é uma monarquia? As manifestações criam um novo tipo de relação entre a população e o poder público. A Guerra da Água mostrou isso na Bolívia e agora no Brasil dezenas de cidades também estão mostrando”, finaliza Rafael Siqueira.

Brazil’s Protesters, in Their Own Words (N.Y.Times)

June 20, 2013, 3:13 pm9 Comments
By ROBERT MACKEY

A video interview with a supporter of the protests in Brazil, recorded during a demonstration in São Paulo on Monday night, by the filmmaker Otavio Cury and the journalist Dom Phillips.

As my colleague Simon Romero reports, Brazil is braced for another round of protests on Thursday, with demonstrations planned for dozens of cities, even after the authorities retreated from plans to raise bus fares across the country in the face of massive street protests.

Despite bus fare reductions in some cities, big protests planned in today. Follow them live & on social media http://bit.ly/14EUSUz 

18 RETWEETS 3 FAVORITES

The size and intensity of the demonstrations has created an instant demand in the global media for English-speaking academics and journalists who can explain the root causes of the protests to the rest of the world. Less often heard are the voices of the protesters themselves, and Brazilians who sympathize with their demands.

That makes the work of two contributors to the Brazilian newspaper Folha de São Paulo’s blog “From Brazil,” particularly valuable. Reporting from the streets of São Paulo this week, the filmmaker Otavio Cury and Dom Phillips, a British journalist based in Brazil, have produced two video reports, with English subtitles, in which Brazilians explain in clear terms the frustration and anger behind the movement.

In one video recorded on Monday night, a 46-year-old maid named Maria Lucia who was trying to make her way home through that night’s demonstration in São Paulo stopped to explain why she supported the protests. The second video report amplifies the voices of eight protesters who marched that night in a crowd estimated at more than 65,000.

The voices of Brazilian protesters in a video report recorded on Monday for the newspaper Folha de São Paulo’s “From Brazil” blog.

Mr. Cury offered one more, wordless, glimpse of the energy on São Paulo’s streets in a brief video clip of a protest marching band recorded during a demonstration Tuesday night.

Video of a marching band of protesters, recorded on Tuesday in São Paulo.

Não é hora de sair do movimento (uninomade.net)

Por Giuseppe Cocco, no facebook

22/06/2013

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Esquematicamente, faço um balanço depois das manifestações de quinta-feira, 20 de junho de 2013, a partir da experiência no Rio de Janeiro:

1) A partir de ontem o movimento pelo passe livre “passou” a ser outra coisa. Realmente monstruosa e o monstro é horrível e belo ao mesmo tempo.

2) Essa outra coisa ninguém sabe o que é e está totalmente em disputa.

O fato que as agremiações de esquerda tenham sido agredidas não significa que o movimento seja de direita. Foram agredidas por pequenos grupos, mas no meio de uma hostilidade geral à politica, ao mesmo tempo em que as organizações populares passeavam tranquilamente.

O que é certo é que o movimento coloca em crise todas as representações políticas e os planos de governo, político-partidários, eleitorais etc.

A grande mídia e a direita estão jogando pesado. Pra começar, é preciso entender quem agrediu.

O PT subavaliou e subavalia o custo de se manter em coalizões espúrias, de pensar que poderia resolver tudo desde cima, com base no neodesenvolvimentismo e nas técnicas gerenciais e de marketing eleitoral. O PT poderia perceber que tudo isso entrou em pane e se faz necessário inovar. Rapidamente! Dar sinais fortes disso.

3) O campo progressista passa – ele todo – inclusive a oposição de esquerda e o setores multitudinários do movimento, por três desafios e armadilhas:

a) O campo de governo (o PT) não tem um plano B. A atuação do Haddad admitindo um recuo junto ao Alckmin é desastrosa: amplifica a sensação: direita e esquerda são a mesma coisa. Uma sensação difusa, que não se materializava eleitoralmente, mas agora explodiu. Aí, o governo espera que “passe”, só que não passa e o monstro continua lá.

b) Diante do imobilismo do governo federal, o campo do PT está tentado (sobretudo depois de ontem) em polarizar em torno do golpismo e, ao invés de ira para dentro do movimento, com base no que deveria ser uma franca abertura — por exempo, colocando um Paulo Vannucchi no MJ, um Célio Turino no MinC, uma Ermínia Maricato nos Transportes e Cidade (ministerios unificados), — declarando moratória geral sobre preços dos transportes, aberturas de assembleias de participação em todos os territorios etc etc.

c) Decretar a idiotice que todo o movimento é direita, além de ser uma inverdade, é entregá-lo nas mãos do golpismo e da direita. Entre esses indigentes políticos do PT, há aqueles que pedem repressão. Não dá nem para acreditar. E não se trata apenas de um princípio, mas do óbvio que a repressão quem faz e quem se aproveita é a direita. É só ler O Globo do dia seguinte, depois que PM gazeou todo mundo ontem até a meia-noite.

Aqueles que “fazem multidão” dentro do movimento tem o desafio nada simples de se organizar para entender que a radicalização é democrática e passa também por dentro do movimento. Criticar – inclusive radicalmente – a Copa e as Olimpíadas de Cabral e Paes, os símbolos do poder e não estar preocupado com a proliferação de cartazes e comportamentos fascistas NAS manifestações está virando uma outra forma de idiotice.

Isto significa que é preciso passar a criticar a forma-manifestação e – com base no recuo geral dos preços das passagens – propor outras coisas que propiciem processos instituintes.

Agora, tudo isso passa hoje por dentro das manifestações. É ali que é preciso fazer essa batalha política, e está tudo muito complicado. Mas é aí, dentro do movimento, que a democracia precisa avançar.

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O sistema de transporte é mais violento do que a polícia (uninomade.net)

Por Bruno Cava, republicação do Quadrado dos loucos

14/06/2013

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Ligo o rádio e ouço que o trânsito está um caos. Desconfio imediatamente. O trânsito me parece muito organizado. Vejo fluxos turbulentos de ônibus, carros, motos, trens, indo e vindo do subúrbio ao centro e então do centro ao subúrbio. Todos os dias, ininterruptamente. São milhões de veículos abarrotados de uma gente resignada, olhares perdidos, no tempo morto do transporte diário. Vamos sentadinhos ou de pé, em qualquer caso comprimidos na massa de semelhantes de cara fechada. Acordamos cedo para enfrentar essa via-crúcis e no final do dia só queremos que acabe logo para chegar em casa, tomar banho e no dia seguinte subir a pedra de novo. São milhões e milhões de horas humanas gastas, jamais remuneradas. Pelo contrário, taxadas a preços que não param de aumentar.

Todos os dias nos acotovelamos, nos estranhamos, nos empurramos, passamos à frente, ou somos sobrepujados pelos mais espertos ou fortes. Brigamos por lugares apertadíssimos, repelindo a carne alheia. De carro, buzinamos, fechamos, brigamos com o motorista vizinho, xingamos o motociclista. A culpa é sempre do outro mal educado. Ou então é nossa, por ainda não podermos comprar o conforto do carro particular, por não morarmos ou trabalharmos no lugar correto. No mais das vezes, nos refugiamos nas mentes, lamentando a condição miserável de passageiro. Que passe logo.

Enquanto isso, uma dinheirama à noite estará depositada nos caixas dos ônibus, ficará nas bilheterias do metrô, do trem, das barcas, ou então estará trocada nos postos de gasolina, por ainda mais crédito medido em quilômetros para rodar no purgatório de asfalto. Esse dinheiro irrigará empresários, dirigentes, burocratas, campanhas eleitorais. Será reaplicado para tirar ainda mais valor dos fluxos. Não. Sejamos realistas. O trânsito está bem organizado. Nós somos a maior prova disso. Como poderíamos aguentar ainda outro dia, amanhã mesmo, se não tivesse sido pensado de cabo a rabo para funcionar assim? Só pode ser por que é para funcionar assim.

A grande imprensa faz crer que bastaria ajustar a eficiência do sistema, melhorar a gestão, reduzir a corrupção etc. Detalhes de minúscula importância. Vejo a TV chamando o trânsito de caótico, mas nenhuma palavra sobre o completo alijamento das pessoas na decisão sobre as linhas, as empresas, as obras e os equipamentos. A ausência de caráter democrático nas macro ou micro decisões no plano dos transportes é absoluta. Tampouco alguma reportagem, notícia ou artigo a respeito da confusão de prefeitura e empresa de ônibus, unha e carne num projeto político que vai das eleições à governabilidade. Nenhum jornalista dá nome aos bois. Aí quando um ônibus cai do viaduto, a culpa foi de um passageiro agressivo. Quando a mulher é estuprada numa vã ou num ônibus, a culpa é de alguns marginais. Escondem o fato que, por trás dessas exceções, subsiste uma regra menos confessável. Atrás do que o sensacionalismo diverte, há razões estruturais. O capitalismo é um sistema de dominação indireta.

Como se a tensão entre passageiros e motoristas/cobradores não fosse causada pelo ódio que todos têm dos ônibus. O que, por sua vez, exprime vicariamente o ódio que se tem pelo sistema de transportes como um todo. Isto é, pela simbiose entre prefeitura e empresa, numa gestão que parece operar mediante algum inacessível plano divino. Como se não fôssemos desgastados e estressados diariamente, até a exaustão mental (não fossem os tarjas pretas!). Como se as mulheres não tivessem de encarar, até a neurose, um abuso sexual sistemático, quase naturalizado pela indiferença com que esse abuso é observado pelos outros ao redor. Porque muitos homens se esfregam nelas nos veículos lotados, passam-lhes o pau, e alguns fazem isso como um ritual diário. Várias são estupradas nos pontos mais isolados, de dia ou de noite.

Antigamente, os escravos eram gastos no engenho e tinham de ser trocados a cada 7 ou 8 anos. Revoltavam-se demasiado. Fugiam. Culpavam o senhor. Hoje, a carne é moída pelo menos duas vezes ao dia, de manhã cedo e à tardinha. Mas os músculos e nervos a gente dá sobrevida com os modernos tratamentos da medicina do trabalho. Principalmente a televisão, a nossa maior terapeuta. A culpa geralmente é atribuída a nós mesmos, muitas vezes autoatribuída: se estamos sofrendo é porque fracassamos. Por não nos esforçarmos o suficiente para sair dessa vida de merda, como fulana ou beltrano…

Em vez de admitir como seria muito mais fácil, muito mais prático, lutar coletivamente por um transporte para todos, achamos que o problema é individual, que no fundo teríamos uma parcela da culpa, e nos resignamos. Imagine contudo o efeito político, se as energias que despendemos para, num esforço individual inglório, sair dessa condição e “subir na vida” fossem aplicadas coletivamente na luta dos transportes? Como teríamos um transporte muito melhor e para todos, do que tentar subir sozinho somente mais um degrau na escala de degradação generalizada da vida na metrópole?

Os movimentos e lutas do passe livre são a melhor saída. Talvez a única. Arregaçam à força um rombo no beco sem saída, aonde nos coloca a falsa oposição entre “público” e “privado”. Rejeitam em bloco as narrativas da grande imprensa, seus opinólogos e especialistas, de que faltaria gestão ou eficiência (e que o povo é mal educado). O problema do transporte afinal não é ele ser público nem privado, como estas também não são suas soluções. Nem ser mal gerido. O problema é e sempre foi falta de democracia.

E democracia, inexoravelmente, significa tumulto. O tumulto é o pulmão das democracias. É nele que atua o poder constituinte, o que faz a constituição e a lei não serem apenas folhas de papel para a exegese das faculdades de direito. Não devemos confiar a constituição a capas-pretas, cortes supremas ou ao francamente conservador discurso do “ativismo judicial”. O tumulto é o momento em que nós a fazemos nossa, e de onde dimanam todos os direitos e todas as instâncias democráticas. O tumulto é um ato de dignidade, o que só acontece ao irresignar-se diante do intolerável. A dignidade não é humana: é o oposto da humilhação. Uma das maiores e mais disseminadas violências hoje está no sistema de transportes.

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Bens públicos e violência: notas sobre São Paulo (uninomade.net)

Por Rafael Zanatta, no E-mancipação

14/06/2013

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Voltei terça-feira dos Estados Unidos e me deparei com a velha confusão de São Paulo. Ao olhar a cidade da janela do ônibus que me transportava de Garulhos até o centro, tudo parecia normal. Na minha mente, a maior preocupação era a vigilância de dados pelo governo estadunidense (cf. o texto-chave de Glenn Greenwald ‘NSA Prism program taps in to user data of Apple, Google and others‘). Como estava fora do país, não havia notado o que estava se passando no Brasil em termos de mobilizações sociais. Tampouco desconfiava da organização concertada dos protestos contra o aumento das tarifas dos transportes públicos (cf. ‘Protestos contra aumento da tarifa repercutem na imprensa internacional‘). Foi somente no trabalho que percebi algo estranho. Alguém comentou na Fundação Getulio Vargas: “Será que precisamos avisar que as aulas vão começar mais tarde? O protestou travou a Consolação e o congestionamento está gigantesco”.

De noite, no intervalo de uma aula, fui alertado pelo meu colega Francisco Cruz que a violência havia se alastrado no centro de São Paulo. O protesto – pacífico, alegre e cativante (cf. o relato ‘Contra o aumento das tarifas de ônibus: o protesto que eu não vi pela TV‘, do Bruno Passos) – foi conturbado por uma série de depredações e atos violentos de pequenos grupos. Essas ações, geralmente realizadas por grupos e associações radicais, levaram ao uso desproporcional e ilimitado da violência por parte da Polícia Militar. O cenário, então, virou caótico. As imagens gravadas ontem, e que circularam nas redes sociais hoje, são apavorantes. Um exemplo é o espancamento do jornalista Pedro Ribeiro Nogueira, encurralado e agredido por diversos homens que integram a estrutura burocrática que detém o “uso legítimo da força” em nosso “regime democrático”. Não dê play se você não tiver nervos para encarar a realidade.

O uso desmedido da violência causa indignação para alguns, mas não para todos. A maioria da população paulistana acha que “esses baderneiros devem levar um cacete mesmo”. O paulistano médio apoia a violência policial (e não é à toa que tanto Fernando Haddad quanto Geraldo Alckmin – os dois em Paris negociando a realização de um mega-evento comercial em São Paulo – apelam para o discurso de que é preciso mais repressão). Dizer publicamente que os vândalos devem ser punidos é o mecanismo mais fácil para ganhar capital político.

O posicionamento reacionário é o senso comum. É um absurdo (mas como reverter a fabricação de consensos e a manipulação das massas?). Além de ignorarem o fato de que o pequeno grupo radical não faz parte doMovimento Passe Livre, consideram plenamente normal que diversos homens investidos em uma estrutura burocrática estatal possam utilizar da força para deixar uma pessoa inconsciente, algemá-la, colocá-la em um camburão, conduzi-la até uma delegacia e prendê-la. Para muitos, a violência de terça-feira foi basicamente o quebra-quebra de estações de metrô, bancas de jornal e pixações de locais públicos.

Mas a dimensão da violência não é outra?

Como bem colocou minha caríssima Silvia Horta, “violência é aquela diariamente praticada contra a dignidade dos trabalhadores que dependem de um transporte caro e ineficiente pra se deslocar; dano ao ‘patrimônio público’ são os milhões anualmente surrupiados do povo para manter o monopólio das empresas de transporte coletivo“. Aí está a violência, uma violência sistêmica que é nutrida pelo capitalismo-dependente brasileiro e pela deformação das instituições, que talvez já nasceram deformadas pela condição colonial e patrimonialista deste país. A revolta não é contra a correção inflacionária das tarifas, mas sim contra todo a teia de relações político-econômicas que sustentam um sistema de apropriação das rendas do povo sem uma contra-prestação eficaz de serviços estatais.

Ressalto mais uma vez esse ponto. O protesto do Movimento Passe Livre não está brigando por 20 centavos. A questão não é somente a correção das tarifas de transporte – algo que, em um raciocínio típico de economista, faria sentido considerando a inflação e o congelamento do valor do transporte há algum tempo em São Paulo. A passeata e a revolta estão direcionados a elementos mais amplos (cf. ‘Protestos vão muito além de R$0,20‘, de Orlando Pedroso).

O tumulto e os protestos, reprimidos de forma violenta pela Polícia Militar, atacam justamente a violência sistêmica brasileira, sendo o trânsito das metrópoles apenas um exemplo. Trata-se de uma violência que, segundo o argumento de Bruno Cava, foi arquitetada para funcionar assim (cf. ‘O sistema de transporte é mais violento do que a polícia‘).

O ponto central dos protestos contra o aumento das tarifas talvez seja que eles vão muito além de reivindicações por reduções nos preços das passagens. Ele canaliza uma série de frustrações e rebeldias contra o “Estado de Direito” brasileiro, contra a falácia da democracia e a precarização da vida no século 21, consequência das reestruturações do capitalismo em escala global – um capitalismo baseado em “cidades competitivas”, que acumulam riquezas e aprofundam desigualdades.

Qual a alternativa então?

Não há caminho fácil ou simplista. O que nos resta é aprofundar a experiência democrática com mais protestos, debates e articulações. Nesse sentido, o movimento de ir às ruas gritar por um transporte de qualidade deve ser apoiado por todos os indignados brasileiros. Trata-se de quebrar a docilidade dos corpos e as pedagogias dos afetos (tristes) e ir para o tumulto, onde a voz de um não é somente a voz de um, mas a voz de um todo, de uma luta comum. Não se trata de um incentivo à baderna. É uma práxis política. Precisamos repensar, tal como propõe Murilo Duarte Corrêa, o significado dos corpos rebeldes e da liberdade (cf. ‘Notas sobre a revolta profunda dos corpos‘).

Não proponho aqui nada de inovador, apenas que encaremos os protestos de São Paulo com outros olhos, enxergando a verdadeira violência política que se exerce de modo obscuro. Subverter o discurso raso do Estado de Direito e, em um exercício crítico, seguir o conselho político de Michel Foucault. O alerta de décadas atrás é extremamente válido: a verdadeira tarefa política é a de criticar o jogo das instituições aparentemente neutras e independentes; criticá-las e a de atacá-las de tal maneira que a violência política que se exercia obscuramente nelas seja desmascarada e que se possa lutar contra elas.

Voltei terça-feira dos Estados Unidos e me deparei com a velha confusão de São Paulo. Ao olhar a cidade da janela do ônibus que me transportava de Garulhos até o centro, tudo parecia normal. Na minha mente, a maior preocupação era a vigilância de dados pelo governo estadunidense (cf. o texto-chave de Glenn Greenwald ‘NSA Prism program taps in to user data of Apple, Google and others‘). Como estava fora do país, não havia notado o que estava se passando no Brasil em termos de mobilizações sociais. Tampouco desconfiava da organização concertada dos protestos contra o aumento das tarifas dos transportes públicos (cf. ‘Protestos contra aumento da tarifa repercutem na imprensa internacional‘). Foi somente no trabalho que percebi algo estranho. Alguém comentou na Fundação Getulio Vargas: “Será que precisamos avisar que as aulas vão começar mais tarde? O protestou travou a Consolação e o congestionamento está gigantesco”.

De noite, no intervalo de uma aula, fui alertado pelo meu colega Francisco Cruz que a violência havia se alastrado no centro de São Paulo. O protesto – pacífico, alegre e cativante (cf. o relato ‘Contra o aumento das tarifas de ônibus: o protesto que eu não vi pela TV‘, do Bruno Passos) – foi conturbado por uma série de depredações e atos violentos de pequenos grupos. Essas ações, geralmente realizadas por grupos e associações radicais, levaram ao uso desproporcional e ilimitado da violência por parte da Polícia Militar. O cenário, então, virou caótico. As imagens gravadas ontem, e que circularam nas redes sociais hoje, são apavorantes. Um exemplo é o espancamento do jornalista Pedro Ribeiro Nogueira, encurralado e agredido por diversos homens que integram a estrutura burocrática que detém o “uso legítimo da força” em nosso “regime democrático”. Não dê play se você não tiver nervos para encarar a realidade.

O uso desmedido da violência causa indignação para alguns, mas não para todos. A maioria da população paulistana acha que “esses baderneiros devem levar um cacete mesmo”. O paulistano médio apoia a violência policial (e não é à toa que tanto Fernando Haddad quanto Geraldo Alckmin – os dois em Paris negociando a realização de um mega-evento comercial em São Paulo – apelam para o discurso de que é preciso mais repressão). Dizer publicamente que os vândalos devem ser punidos é o mecanismo mais fácil para ganhar capital político.

O posicionamento reacionário é o senso comum. É um absurdo (mas como reverter a fabricação de consensos e a manipulação das massas?). Além de ignorarem o fato de que o pequeno grupo radical não faz parte doMovimento Passe Livre, consideram plenamente normal que diversos homens investidos em uma estrutura burocrática estatal possam utilizar da força para deixar uma pessoa inconsciente, algemá-la, colocá-la em um camburão, conduzi-la até uma delegacia e prendê-la. Para muitos, a violência de terça-feira foi basicamente o quebra-quebra de estações de metrô, bancas de jornal e pixações de locais públicos.

Mas a dimensão da violência não é outra?

Como bem colocou minha caríssima Silvia Horta, “violência é aquela diariamente praticada contra a dignidade dos trabalhadores que dependem de um transporte caro e ineficiente pra se deslocar; dano ao ‘patrimônio público’ são os milhões anualmente surrupiados do povo para manter o monopólio das empresas de transporte coletivo“. Aí está a violência, uma violência sistêmica que é nutrida pelo capitalismo-dependente brasileiro e pela deformação das instituições, que talvez já nasceram deformadas pela condição colonial e patrimonialista deste país. A revolta não é contra a correção inflacionária das tarifas, mas sim contra todo a teia de relações político-econômicas que sustentam um sistema de apropriação das rendas do povo sem uma contra-prestação eficaz de serviços estatais.

Ressalto mais uma vez esse ponto. O protesto do Movimento Passe Livre não está brigando por 20 centavos. A questão não é somente a correção das tarifas de transporte – algo que, em um raciocínio típico de economista, faria sentido considerando a inflação e o congelamento do valor do transporte há algum tempo em São Paulo. A passeata e a revolta estão direcionados a elementos mais amplos (cf. ‘Protestos vão muito além de R$0,20‘, de Orlando Pedroso).

O tumulto e os protestos, reprimidos de forma violenta pela Polícia Militar, atacam justamente a violência sistêmica brasileira, sendo o trânsito das metrópoles apenas um exemplo. Trata-se de uma violência que, segundo o argumento de Bruno Cava, foi arquitetada para funcionar assim (cf. ‘O sistema de transporte é mais violento do que a polícia‘).

O ponto central dos protestos contra o aumento das tarifas talvez seja que eles vão muito além de reivindicações por reduções nos preços das passagens. Ele canaliza uma série de frustrações e rebeldias contra o “Estado de Direito” brasileiro, contra a falácia da democracia e a precarização da vida no século 21, consequência das reestruturações do capitalismo em escala global – um capitalismo baseado em “cidades competitivas”, que acumulam riquezas e aprofundam desigualdades.

Qual a alternativa então?

Não há caminho fácil ou simplista. O que nos resta é aprofundar a experiência democrática com mais protestos, debates e articulações. Nesse sentido, o movimento de ir às ruas gritar por um transporte de qualidade deve ser apoiado por todos os indignados brasileiros. Trata-se de quebrar a docilidade dos corpos e as pedagogias dos afetos (tristes) e ir para o tumulto, onde a voz de um não é somente a voz de um, mas a voz de um todo, de uma luta comum. Não se trata de um incentivo à baderna. É uma práxis política. Precisamos repensar, tal como propõe Murilo Duarte Corrêa, o significado dos corpos rebeldes e da liberdade (cf. ‘Notas sobre a revolta profunda dos corpos‘).

Não proponho aqui nada de inovador, apenas que encaremos os protestos de São Paulo com outros olhos, enxergando a verdadeira violência política que se exerce de modo obscuro. Subverter o discurso raso do Estado de Direito e, em um exercício crítico, seguir o conselho político de Michel Foucault. O alerta de décadas atrás é extremamente válido: a verdadeira tarefa política é a de criticar o jogo das instituições aparentemente neutras e independentes; criticá-las e a de atacá-las de tal maneira que a violência política que se exercia obscuramente nelas seja desmascarada e que se possa lutar contra elas.

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Eliane Brum: “Quanto valem 20 centavos?” (Revista Época)

17/06/2013 10h01

O que une os manifestantes de São Paulo é o movimento: o ato literal e simbólico de romper o imobilismo da cidade parada e andar

ELIANE BRUM

Vinte centavos não são vinte centavos. Vinte centavos tornaram-se ao mesmo tempo estopim e símbolo de um movimento tão grávido de possibilidades que foi reprimido a balas de borracha, a bombas de gás lacrimogêneo e também a golpes de caneta. O que começou com o aumento da passagem do ônibus, se alargou, se metamorfoseou e virou um grito coletivo que tomou a Avenida Paulista e ecoou nas ruas do Brasil. O que há de tão ameaçador nestes 20 centavos, a ponto de fazer com que governos da democracia protagonizem cenas da ditadura, é talvez algo que se acreditava morto por aqui: utopia. A notícia perigosa anunciada pelas ruas, a novidade que o Estado tentou esmagar com os cascos dos cavalos da polícia paulista, é que, enfim, estamos vivos.

A multidão que tomou as ruas de São Paulo, ecoando o que já vinha acontecendo em outras cidades do Brasil, está longe de ser homogênea. Há grupos organizados – e alguns deles acreditam que a depredação é um ato legítimo de defesa, diante da violência sistemática praticada pelo Estado e pelo capital –, há partidos políticos de esquerda e há uma massa de pessoas, a maioria jovens, que aderiram movidas por suas próprias aspirações. O que une “os vários movimentos dentro de um” são os 20 centavos. Mas os 20 centavos deixaram de ser 20 centavos para se tornar expressão de um descontentamento difuso, mas nem por isso menos profundo. Uma decepção com a vida que se vive e um anseio por sentido.

As manifestações de rua são talvez a melhor notícia da democracia, a prova maior de sua vitalidade, mas elas expressam o sentimento de que os políticos que aí estão, os partidos que aí estão, a concepção de mundo, de país e de política que eles representam, já não representam um número crescente de pessoas. Especialmente os jovens pós-internet, mas não só. Contra aquilo que não se entende, mas que ameaça o poder estabelecido, joga-se a polícia. O que se viu na quinta-feira (13/6) foram cenas que lembravam a ditadura militar. Mas as semelhanças acabam aí. A demonstração de força era a expressão de uma fragilidade com a marca deste tempo histórico, do hoje.

A prova mais eloquente, talvez, se revela nas frases postadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) no Twitter. Para qualquer pessoa que seguisse o governador e também pessoas que estavam na manifestação, a narrativa simultânea do momento era extremamente reveladora. Reproduzo aqui a sequência de frases de 140 hectares de Alckmin e frases de diferentes manifestantes ou jornalistas que cobriam a manifestação, postadas ao mesmo tempo que as do governador. Todos estão identificadas com nome e sobrenome no Twitter, mas, depois do que vi na quinta-feira, por precaução, eu prefiro chamá-los aqui apenas de @manifestantes:

“@GeraldoAlckmin O direito à livre manifestação é um princípio basilar da democracia. Assim como o direito de ir e vir e a preservação do patrimônio público/@manifestante: Praça enchendo em paz… bonito/ @GeraldoAlckmin Depredação, violência e obstrução de vias públicas não são aceitáveis. O Governo de São Paulo não vai tolerar vandalismo/@manifestante: Repressão brutal, pessoas desesperadas, moradores com crianças correndo. Se o Haddad compactuar com isso é o fim definitivo do PT!! /@GeraldoAlckmin Participei hoje, em Santos, da comemoração aos 250 anos do nascimento de José Bonifácio Andrada e Silva, o patriarca da independência/@manifestante: Ônibus pegando fogo na Augusta. Milhares correndo, descendo a rua pedindo paz. PM segue com bombas. Motoristas encurralados por gás/@GeraldoAlckmin Ainda em Santos inaugurei nova delegacia de polícia do Porto de Santos, que ano passado recebeu 1.1 milhão de turistas /@manifestante: Tentei sair. Eles atiraram na minha frente. Virei, atiraram atrás. Fiquei cega, entrei num motel. Consegui me recompor/@GeraldoAlckmin No Guarujá inaugurei o novo Hospital Emílio Ribas e anunciei a implantação do Restaurante Bom Prato/@manifestante: Pra dispersar, faz sentido jogar uma bomba no começo, uma no fim? Fiquei presa entre duas bombas de gás. Muita gente machucada/@GeraldoAlckmin Para Cubatão liberamos R$ 21,5 milhões para construir 800 apartamentos e mais 1.448 apartamentos para Santos que receberá mais uma Etec/@manifestante: Eu nunca vi nada parecido. Muita gente ‘refugiada’ no hotel, sangrando/@GeraldoAlckmin Estive também em São Vicente p/ autorizar a recuperação da belíssima Ponte Pênsil, a construção de 1.120 moradias e a implantação da 2ª ETEC/ @manifestante: Augusta em chamas”.

O governador despediu-se no Twitter, na noite que já está assinalada na história de São Paulo, a maior cidade do país, como uma das mais violentas desde a volta da democracia, com a seguinte frase: “@GeraldoAlckmin Parabéns a toda a população de Guaratinguetá pelos 383 anos da cidade. Boa noite a todos!”.

A frase fala por si. A simultaneidade de realidades também. Se alguém quiser documentar essa noite histórica num livro/e-book, a melhor expressão me parece ser a reprodução das narrativas simultâneas do governador e de alguns narradores que estavam na manifestação. O mesmo vale para quem estiver sem tema para uma tese de doutorado. É um retrato do momento, que abre uma rica paleta de possibilidades de análise e de interpretação.

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), não se manifestou diretamente nas redes sociais na noite de quinta-feira. Mas sua ausência, em vários sentidos, esteve bem presente. Tão logo ficou claro que a violência policial era condenada até mesmo por aqueles que antes a haviam pedido em letras garrafais, o prefeito passou a se esforçar para se descolar do governador. Assim como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que, se hoje critica a ação da polícia paulista, antes de os ventos mudarem tinha se apressado a oferecer apoio “no que for necessário” ao governo de São Paulo. Desta vez, PSDB e PT estiveram unidos pela incompreensão do momento histórico que vivem, atarantados diante da força das ruas e de uma linguagem que não dominam, nem sequer entendem.

Quando Alckmin só consegue enxergar “vândalos” e “baderneiros”, é o que não enxerga que aparece. Quando Haddad tenta se amparar no discurso de que o aumento do preço do transporte público foi abaixo da inflação, é a sua dificuldade de compreender o discurso novo das ruas que se torna explícita. Não é mesmo fácil ser político neste momento histórico em que as ruas nas quais os movimentos se iniciam não têm mais chão. Desorientados diante da novidade, alguns quadros e militantes do PT têm repetido que é preciso resgatar bandeiras históricas do partido que se forjou nas ruas, mas agora se descobre apartado delas. Se isso já se torna cada vez mais difícil, dada as posições retrógradas do governo de Dilma Rousseff, é preciso perceber que essas bandeiras perdidas são do século XX. Ainda que as reivindicações estruturais, de fundo, permaneçam, algumas delas com suas raízes no Brasil Colônia, elas foram acrescidas de novos desafios e nuances e de uma forma inteiramente diferente de se relacionar com o mundo. O que está em jogo hoje são bandeiras do século XXI, em que até o conceito de bandeira já não é mais o mesmo.

A avassaladora velocidade das mudanças nos deixa a todos perplexos. E também a imprensa, que vive um momento delicadíssimo. A cobertura ao vivo das TVs era acompanhada por quem estava no Twitter, mas já com uma leitura crítica. E com a comparação imediata do que era dito pelos apresentadores com a narrativa polifônica, em primeira pessoa, feita pelos manifestantes que estavam no centro dos acontecimentos. Em seguida, o relato de quem testemunhava o protesto nas ruas era comentado e replicado pelos manifestantes que não estavam nas ruas, mas também se manifestavam. E não só em São Paulo, mas no Brasil e também fora do país.

Quem tanto ironiza os “ativistas de sofá” precisa começar a entender que as fronteiras entre as ruas já não existem – ou pelo menos exigem outro tipo de interpretação. Mesmo jornalistas que estavam cobrindo o protesto para seus veículos, fizeram seu relato em tempo real no Twitter e no Facebook – e alguns escreveram artigos independentes depois. Para compreender melhor esse aspecto da manifestação de quinta-feira, sugiro a leitura da ótima análise de Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório de Estudos em Internet e Cultura (Labic) – aqui.

Os 20 centavos se alargam, sua teia de significados ganha dimensões cada vez maiores, superando qualquer fronteira física ou virtual. A violência da polícia paulista motivou a reação de outras camadas da população e de outras faixas etárias, levando novas adesões ao movimento. O que se vê nas redes agora é a soma daqueles que dizem ser preciso lutar pela democracia e pela liberdade de protestar. Esse sentimento é demonstrado nas quatro frases do Twitter mais republicadas, segundo a análise do professor Fabio Malini: “@LeoRossatto A tarifa virou a menor das questões agora. Os próximos protestos precisam ser, antes de tudo, pela liberdade de protestar/ @choracuica Não é mais sobre a tarifa. F…-se a tarifa. Isso ficou muito maior que a questão da tarifa/@gaiapassarelli Há algo grande acontecendo e é menos sobre aumento de tarifa e mais sobre tomar posição. Todo mundo deveria prestar atenção/ @tavasconcellos Não é mais uma discussão sobre tarifa. Transporte. Baderna. Sobre nada disso. É sobre o direito de se manifestar por qualquer causa”.

Tenho recebido e-mails de amigos e também de desconhecidos. Edson Natale, músico e produtor cultural, mandou o seguinte texto para o seu mailing, do qual também faço parte: “Vou pra rua na segunda (17/6). E vou porque acho que devo cuidar da rua e porque o Brasil não é só a rua por onde ando. Vou pra rua por minhas crenças e pelas crenças dos filhos: dos meus filhos e dos filhos dos outros. Não é muita coisa ir pra rua, mas não quero perder o direito de ir, quando quiser. Não tenho partido, nem religião, mas acredito sobretudo na vida, nas pessoas e no futuro, por exemplo. Tenho 51 anos e poderei (tentar) ajudar a evitar a violência ou a quebradeira, seja lá de quem for. Estarei lá para mostrar que não tenho gostado dos conchavos, das negociatas, das simulações e das dissimulações que têm acontecido tão intensamente nos bairros, cidades e estados; nas florestas, litorais e sertão, independentemente dos partidos responsáveis por elas. Tenho 51 anos e digo – com maturidade – que é preciso ir para a rua e levar as nossas crenças para passear um pouco e encontrar-se com outras crenças, diferenças e verdades. Acho que é assim que se faz um País e eu tinha me esquecido disso. Por isso agradeço aos que ocuparam as ruas antes de mim e por mim. E antes que alguém diga, ressalto que não vou para a rua defender partidos políticos, violência, quebradeira ou ódio… nem para impor a ‘minha’ verdade. E dessa forma encerro aqui o meu convite: vamos?”.

É possível que seja de qualificação do desejo que esse movimento fale. Talvez seja esta a única coesão entre tantos anseios diferentes, organizados ou não. O sentimento de que essa vida é pouca, de que essa política pautada mais pela reprodução das relações de poder do que por ideias de um Brasil melhor já não motiva ninguém. Em São Paulo, mais do qualquer uma das outras capitais que também se levantaram e se levantam, a questão do transporte explicita todo esse desencanto. É muito simbólico que Alckmin e sua polícia tenham frisado tanto que defendiam “o direito de ir e vir” dos cidadãos, como se cidadãos também não fossem aqueles que se manifestavam. Mas o mais irônico dessa justificativa para a repressão é que “ir e vir” é o que não se consegue fazer em São Paulo, imobilizados em ônibus e carros no trânsito parado, uma oposição já cristalizada na linguagem. Talvez o que una os manifestantes tão diferentes de São Paulo seja o movimento – o ato mesmo de literalmente romper o imobilismo e se mover. A maior transgressão é andar – e por isso era também crucial andar na imensamente simbólica Avenida Paulista. Pessoas, não carros, não ônibus 20 centavos mais caros. Não mais como zumbis sustentando uma vida insustentável em passos claudicantes e limitados, mas como pessoas no movimento desejante em busca de uma vida que faça mais sentido.

Vinte centavos talvez sejam o tanto de morte que uma vida humana já não pode suportar. Em São Paulo, mas também em Porto Alegre, no Rio, em Brasília, em várias cidades e capitais. Assim como em outras partes do mundo – antes, agora, possivelmente depois –, em cada uma delas com contextos, peculiaridades e rostos próprios, mas com algo em comum que é possível reconhecer. Algo que revela de um mundo que apodrece, de um modo de vida que já não dá conta da vida.

Talvez quem melhor tenha sintetizado os protestos que hoje tomam conta do Brasil tenha sido um velho, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em outro canto do mundo, quase dois anos atrás. Ao falar aos jovens que tomaram as ruas de cidades da Espanha como Barcelona e Madri, ele disse uma frase que se disseminou pela internet, traduzida para várias línguas: “Este mundo de merda está grávido de outro”.

Tomara que esteja. E que tenhamos a grandeza de sonhar com um mundo em que exista espaço para a vida.