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Paraisópolis controla melhor a pandemia do que a cidade de São Paulo (Galileu)

Graças às iniciativas dos moradores da favela, taxa de mortalidade por Covid-19 é menor do que no resto da capital paulista. Em outras regiões pobres, porém, o cenário é diferente

Redação Galileu

25 Jun 2020 – 14h44 Atualizado em 25 Jun 2020 – 14h51

Paraisópolis tem melhor controle da pandemia do que a cidade de São Paulo (Foto: Wikimedia Commons)
Paraisópolis tem melhor controle da pandemia do que a cidade de São Paulo (Foto: Wikimedia Commons)

A favela de Paraisópolis, em São Paulo, tem melhor controle da pandemia de Covid-19 do que outros bairros da capital paulista. Em 18 de maio de 2020, a taxa de mortalidade pelo novo coronavírus na região era de 21,7 pessoas por 100 mil habitantes, enquanto a média municipal era de 56,2. Os números são do Instituto Pólis, organização da sociedade civil que realiza pesquisas no Brasil e no exterior.

“Desde a confirmação dos primeiros casos em São Paulo, logo em março, a associação de moradores de Paraisópolis desenvolveu estratégias para suprir a falta de políticas públicas para a comunidade”, explicam os responsáveis pelo estudo em um relatório publicado em junho.

Logo no início da pandemia, os moradores da favela criaram o sistema de “presidentes de rua”, em que uma pessoa de cada rua ficou responsável por monitorar e ajudar as outras, orientando sobre os sintomas da doença, distribuindo cestas básicas e até combatendo a disseminação de fake news.

Além disso, a comunidade contratou ambulâncias para atender os sintomáticos e recrutou médicos e enfermeiros para suprir a favela 24 horas. Outros 240 moradores foram treinados como socorristas para apoiar as 60 bases de emergência criadas com a presença de bombeiros civis.

Com mais de 70 mil habitantes, a densidade demográfica de Paraisópolis chega a 61 mil hab/km². Tendo isso em vista, a associação de moradores pediu ao governo estadual para utilizar duas escolas públicas como centro de isolamento de pessoas infectadas. A medida possibilitou que os sintomáticos se isolassem de forma eficaz, sem colocar pessoas próximas e familiares em perigo.

Para os pesquisadores, as ações tomadas pelos moradores de Paraisópolis deixam claro que iniciativas de atenção básica à saúde e ações voltadas para garantir a segurança alimentar e outras despesas são essenciais em tempos de pandemia. “A favela, apesar das condições de precariedade e vulnerabilidade, tem sido eficiente em baixar a média de mortalidade do distrito como um todo”, afirma o relatório.

Outras regiões, outra realidade
Enquanto em Paraisópolis a situação parece estar menos preocupante, em outras regiões pobres da capital paulista o cenário não é o mesmo. Um documento divulgado também neste mês pelo Instituto Pólis indica que as áreas com maior situação de precariedade urbana são as mais castigadas pela Covid-19. As mais afetadas são Brasilândia, Sapopemba, Grajaú, Capão Redondo e Jardim Ângela.

Dentre as explicações para isso está a impossibilidade de distanciamento social, tanto pela alta densidade demográfica quanto pelo fato de que os trabalhos exercidos pelos moradores dessas regiões não pemitiram que ficassem em casa. a precariedade do saneamento básico, a baixa renda e a falta de acesso à saúde também contribuem para a realidade preocupante. 

Número de óbitos por Covid-19 a cada 100 mil habitantes nos bairros de São Paulo (Foto: Instituto Pólis)
Número de óbitos por Covid-19 a cada 100 mil habitantes nos bairros de São Paulo (Foto: Instituto Pólis)

Em relação às taxas de óbitos a cada 100 mil habitantes, o mapa de Covid-19 se concentra em outras regiões de São Paulo, nos bairros Pari, Brás, Belém, Campo Belo e Limão. “Por haver mais pessoas morando nas regiões periféricas, o maior número de mortes absoluto pode fazer com que se pense que apenas a periferia está vulnerável”, disse Danielle Klintowitz, do Instituto Pólis, em comunicado. “Mas há de se analisar o contágio em territórios precários mais centrais para que a situação não fuja do controle.”

UPP: o poder simplesmente mudou de mãos? (Le Monde Diplomatique Brasil)

REESTRUTURAÇÃO URBANA NO RIO DE JANEIRO

O coronel Robson Rodrigues, da Polícia Militar do Rio, uma das cabeças pensantes do projeto de pacificação, reconhece de bom grado: “Realmente são as Olimpíadas que ditam nossa escolha. Eu diria até que, sem esse evento, a pacificação nunca teria acontecido”

Por Anne Vigna – 07 de Janeiro de 2013

06845668(Helicóptero da Polícia Militar do Rio de Janeiro durante a operação para instalação de UPP na favela da Rocinha. Ilustração: Rafael Andrade / Folhapress)

A cena poderia acontecer em qualquer bairro da cidade: uma patrulha da polícia que desembarca com estrondo e piora ainda mais o engarrafamento. Mas é preciso estar numa favela do Rio de Janeiro para observar uma jovem tentando acalmar a polícia e ouvindo como resposta, aos gritos, que era melhor “não insistir” porque, afinal de contas, “quem manda aqui somos nós”. Desde 2009, os moradores da favela do Pavão dizem: “O dono do morro mudou”. Os traficantes deram lugar à polícia; as armas e o poder simplesmente mudaram de mãos. Trata-se aqui do resultado mais flagrante de um programa que data de 2008: a “pacificação” das favelas. Mas seu impacto nem sempre é negativo.

Os donos do morroé o título que a equipe do Laboratório de Análise da Violência, dirigido pelo sociólogo Ignácio Cano, escolheu para seu estudo (publicado em julho de 2012) sobre a pacificação no Rio.1 Os trabalhos mostram que, mesmo incompleto e imperfeito, o dispositivo ofereceria resultados incontestáveis em matéria de segurança. “Nas treze primeiras favelas pacificadas no Rio, o número de mortes violentas diminuiu em 70% e as que eram provocadas por intervenções policiais estão agora próximas de zero”, explica o sociólogo. Crítico de longa data da violência das forças da ordem, Cano não poderia ser acusado de idolatria securitária. E seu relatório não poupa os excessos policiais e as escolhas estratégicas duvidosas: “Teria sido bem mais inteligente pacificar em primeiro lugar as favelas mais violentas. Mas a escolha foi feita em função dos grandes eventos esportivos, não da realidade da criminalidade”. O coronel Robson Rodrigues, da Polícia Militar do Rio, uma das cabeças pensantes do projeto de pacificação, reconhece isso de bom grado: “Realmente são as Olimpíadas que ditam nossa escolha. Eu diria até que, sem esse evento, a pacificação nunca teria acontecido”.

A pacificação nasceu do que se chama no Rio uma “conjuntura excepcional”: a cidade ganhou a organização das Olimpíadas e, pela primeira vez, o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, o governador do estado, Sérgio Cabral, e o prefeito do Rio, Eduardo Paes, selaram uma aliança política. Há muito tempo a luta contra as facções criminosas do Rio não produzia quase nenhum resultado, apenas um número cada vez mais elevado de mortos, particularmente jovens negros. Um pequeno grupo de policiais foi então enviado a Boston, em 2005, para analisar a operação Cease fire (“Cessar fogo”), que acontecia nos bairros pobres (e portanto negros) da cidade. A ideia: criar uma unidade de polícia próxima, ao contrário das ideias que tinham sido defendidas pelo prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, e sua “tolerância zero” entre 1994 e 2001. Em Boston e no Rio, a polícia concentrou seus esforços contra as armas e renunciou a interferir no tráfico de drogas, mesmo que a tarefa se revelasse muito mais árdua no Brasil, onde era preciso também recuperar o acesso aos territórios onde a polícia só se aventurava esporadicamente numa efusão de violência.

A primeira operação ocorreu em 2008: foi uma agência de comunicação que criou o termo “pacificação” (que não era utilizado em Boston). Depois disso, alguns símbolos permaneceram: a polícia de elite do Batalhão de Operações Especiais (Bope) – que se tornou célebre pelo filme Tropa de elite (2007) – fincou sua bandeira no meio do território, antes que uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) fosse instalada. Uma maneira de deixar bem clara a “mudança de proprietários”. Com a preocupação de evitar a violência, as operações eram comunicadas com antecedência a fim de que os traficantes e as armas pudessem desaparecer. A maioria das pacificações aconteceu, então, sem que se atirasse uma só bala.

Uma vez que a UPP é estabelecida, entra em ação a segunda fase da pacificação: a UPP social, “um componente essencial sem o qual a política de segurança não pode funcionar”, insiste o coronel Rodrigues. O objetivo é instalar serviços públicos e criar equipamentos destinados a dinamizar a economia local. “No papel, o projeto é maravilhoso, mas na prática há poucos meios e nenhuma democracia”, deplora a urbanista Neiva Vieira da Cunha. Censuram a cidade por construir teleféricos custosos nos morros, ao passo que os moradores pedem em primeiro lugar hospitais e serviços de saneamento básico.

No entanto, algumas mudanças sociais e econômicas já são visíveis. Para Cano, esse é inclusive um dos efeitos mais positivos da pacificação: “A diminuição da estigmatização das favelas é real; os moradores não sentem mais a necessidade de omitir seu endereço no momento de procurar emprego”. Os moradores das favelas pacificadas finalmente obtêm empregos formais. Será o suficiente para afastar os jovens do tráfico de drogas? “O tráfico não é apenas questão de dinheiro, mas também de poder. Ao tirar as armas, a pacificação derrubou os bastiões e o tráfico perdeu muito de seu atrativo”, estima Rubem César, diretor da ONG Viva Rio, que trabalha há vinte anos nas favelas. Um atrativo que a polícia ainda não possui, principalmente quando ela se comporta, como é por vezes o caso, num “terreno conquistado” e exerce a mesma forma de controle social autoritário.

Anne Vigna é jornalista.

1 . Laboratório de Ánalise da Violência, “Os donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro”. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012

Favelas: preservar o quê? (riorealblog.com)

By Julia Michaels

Posted on December 23, 2012

Um mundo na van

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Não existe ônibus direto para Copacabana, vindo da avenida Brasil, altura da passarela nove, Parque União.  Então, o jeito é andar de van. Só que o caminho até o ponto é um desafio mortal.

“Há cracudos,” avisa Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas, “e eles avançam. Conhecem as caras das pessoas, e avançam em quem tem cara de gringo.” Ele pede para uma funcionária fazer o papel de guardacostas. No caminho, a acompanhante opina que o governo devia colocar os viciados para trabalhar. “Podiam estampar camisetas,” sugere.

thinktank Observatório de Favelas é localizado na beirada do Complexo da Maré, uma coleção de 16 favelas e conjuntos habitacionais espremidos entre a avenida Brasil e a baía de Guanabara. A pacificação não chegou ainda à Maré. Souza e  Silva morou lá sete anos, e mais onze numa favela perto da Penha.

O interior da van, quase totalmente ocupada, é escuro, fresco, sonorizado de samba. O ar está ligado e os vidros estão abertos, para aproveitar a brisa de uma das últimas tardes de primavera carioca. Não se demora muito para sair, mas na hora da partida aparece uma mulher negra, repleta de curvas e megahair. O motorista, rapaz sólido de olhos doces e redondos, para, desce, e deixa-a subir para se sentar na metade de um lugar na frente, junto a ele e mais duas mulheres.

Mas nem se andou meio metro e alguém lembra que a polícia está por aí na avenida, entre os viciados, de moto, sirene, e revólver, feita pastor de zumbi– espalhando fieis. O motorista para novamente, a bonitona desce, dá volta, e sobe na parte traseira da van, para ficar em pé junto ao cobrador.

Ponto de van e de mototáxi

Ponto de van e de mototáxi

Co-autor do recém-lançado livro O Novo Carioca, Souza e Silva faz parte de um grupo de pensadores e agitadores no Rio de Janeiro, que observa e encoraja o surgimento do tal “Novo Carioca”. Trata-se de pessoas, na sua maioria jovens, que aproveitam cada vez mais a cidade. Aventuram-se por bairros e morros, fazendo conexões e amizades, criando e participando em uma gama de manifestações culturais. A integração urbana– e a cara futura da cidade– dizem os autores do livro, dependem muito do novo carioca.

De acordo com Souza e Silva, “[…] não existe uma identidade carioca independente das favelas […] a cidade tornou-se uma referência nacional e internacional também em função do peso arquitetônico, cultural e social de seus espaços favelados. A garantia dessa riqueza paisagística e dessa pluralidade cultural é central para o Rio de Janeiro”, conforme ele escreve no livro.

Jailson de Souza e Silva

Dali a alguns metros, passados vários cracudos solitários e em grupo, alguns no meio fio,  depois da polícia, a van encosta. O motorista e a moça descem, ela dá volta,  e sobe para ficar novamente no meio, ao lado dele, na frente. E o samba brada. A viagem recomeça, a van entrando numa passarela de retorno ao outro lado da avenida. Do alto, mais cracudos a vista.

“Vamos parar pro diesel,” avisa o cobrador. Ninguém diz nada, mas ele– saradão, de tênis, regata e bermuda, cabeça raspada menos um topete aloirado e encaracolado, de tatuagens, pede desculpas. O motorista queria encher o tanque antes, mas não deu. O cobrador desliza a porta e desce para cuidar do combustível. O posto também vende empadas, e pela porta aberta o motorista e o frentista trocam comentários engraçadinhos porém herméticos para quem é de fora, sobre empadões.

Passa uma mulher negra de soutien roxo e micro saia de material elástico e barato, descalça, pedindo esmola no balcāo das empadas. Passa um rapaz de muletas, faltando uma perna.

Há pouco, Souza e Silva disse que nunca quis sair da favela. “Não é verdade que as pessoas queiram sair da favela,” falou. “Eu sou o exemplo mais concreto. Eu só me mudei da favela– eu fiz uma ótima casa na favela– porque a guerra tornou impossível criar meu filho na favela […] se fóssemos só eu e minha mulher não sairíamos, mas criar um filho com isso, com bala perdida o tempo inteiro, sem poder andar na rua, porque tem jovens com fuzis, e a policia desrespeitando o morador– foi isso que me fez sair da favela. Onde eu morava tinha coleta de esgoto, calçamento, comercio imenso, grau de solidariedade com as pessoas, grau de intensidade de vida, de festa muito forte, de envolvimento, pertencimento grande, e cada vez mais criando opções [culturais].”

Para o americano nascido num subúrbio de casas com quintal para brincar, grama para cortar, e folhas para juntar, soa familiar a descrição de vida comunitária de favela. No subúrbio americano, os vizinhos sabem quem está doente, quem precisa de canja de galinha, carona, uma visita. Lá, o estado é mais eficaz do que no Brasil– as escolas públicas geralmente são boas, por exemplo– mas fora das grandes cidades as pessoas vivem espalhadas, precisando de apoio, e dando apoio, nas horas de dificuldade. Vizinhos limpam a neve da entrada da casa dos mais velhos, andam de porta em porta distribuindo panfletos de candidatos, dão carona para a igreja, fazem babysitting, passeiam cachorros, regam plantas, distribuem balas às crianças no Halloween.

Pit stop

Pit stop

O carioca do asfalto conhece e cumprimenta vizinhos, porteiros, entregadores, feirantes, comerciantes do bairro. Brinca, zoa o time do outro. Participa de bloco de carnaval, e de festa junina na praça. Compartilha praia, cerveja, galeto, pelada de futebol. Mas raramente se junta aos vizinhos para providenciar algo necessário e de utilidade geral: água, luz, casa. No Brasil, quem mora no asfalto paga imposto, paga porteiro, paga pedreiro, passeador e empregada– e assim resolve a vida.

No Brasil, o nivel de confiança no outro é baixo, sobretudo quando o outro não é parente ou colega. Mas na favela a confiança é maior do que em geral, porque há menos desigualdade. O outro é mais parecido, menos assustador, disse Souza e Silva. E a vida é mais pública.

A van tem termometro. No painel acima da cabeça da moça de megahair, marca mais de 36 graus. Mas a brisa é fresca, o samba incita, e Mara, a moça do lado, está negociando com o motorista o transporte de um grupo em janeiro, para Jacarepaguá. Haverá um casamento. “Seu?” pergunta o cobrador, com um sorriso malicioso. Pelo tom de voz e a plenitude de expressões faciais, mais a roupa, conclui-se que ele é homossexual.

“É ruim, hein!” exclama Mara. “Eu casar em Jacarepaguá? Vou casar no Copacabana Palace!” Ela pede um preço do motorista. Ele diz que está pensando.  E para num ponto de ônibus. Sobe um rapaz de pele enrugado pelo sol, que fica em pé ao lado do cobrador. No próximo ponto, o cobrador abre a porta para revelar uma loira, segurando uma grande sacola. Ela faz não com a cabeça. O motorista diz que tem lugar. “Vem, sim!” ele exorta, dobrando-se por cima das três moças no banco de frente para que sua voz chegue aos ouvidos da cliente em potencial. Mas ela se recusa.

“Agora mete o pé!” diz um passageiro, ao passo que a van engrena na avenida Brasil.

“Vou meter,” responde o motorista. “Tem que estar em Copacabana às duas horas.”

As vans surgiram nos anos 90 no Rio de Janeiro, como resposta informal à falta de transporte entre bairros afastados e áreas centrais da cidade. “Sem a van Copacanana-Maré, nao sei o que seria da gente, galera que circula dia e noite construindo novas formas de viver a cidade,” comentou Souza e Silva.

Hoje, milicianos controlam grande parte do negócio e o prefeito Eduardo Paes tenta racionalizar o transporte urbano. Para reduzir o número de veículos nas ruas, fariam muito mais sentido linhas de ônibus ou de metrô. A questão não é tāo diferente da de ocupaçāo do solo. Já existem prédios em favelas.

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“Quanto, então?” pergunta a Mara. “Vinte,” diz o motorista.

“Por pessoa? Isso sai do meu bolso!” Ela mexe com o celular e mostra alguma coisa, uma foto talvez, à moça do lado dela.

Neste momento, quatro anos após o início da pacificação no Rio de Janeiro, com vários reflexos economicos e imobiliarios dela em curso, fala-se muito na preservação da favela, sobretudo das na Zona Sul. Sabe-se que um número crescente de jovens estrangeiros brinca de casinha no Vidigal, na Rocinha, no Pavão-Pavãozinho e no Cantagalo. Uma breve caminhada em qualquer um desses morros revela sacas de cimento, tijolos recém-colocados. A vida ficou mais segura em muitas favelas pacificadas. As pessoas investem, a cidade se transforma. A barreira entre morro e asfalto fica um tanto menos nítida.

O que deveria ser preservado, nestas áreas da cidade tão longamente negligenciadas? “Uma grande confusão que se faz,” disse mais cedo Souza e Silva na sala dele no Observatório, “é de considerar, quando se fala em preservar a favela como habitat, [que trata-se de] preservar  paisagem.”

A paisagem, mesmo nas favelas mais cinematográficas, mesmo onde as crianças hoje brincam tranquilamente na rua e faz-se churrasco de Reveillon para turista, ainda é frequentemente feia e malcheirosa.

“Tem que garantir todas as condições básicas: saneamento, luz, água, esgoto, coleta de lixo, crêche, educação, equipamentos culturais,” acrescentou Souza e Silva. “Tudo que se tem para viver com dignidade num centro urbano tem que ter na favela. Só que isso não quer dizer eliminar a favela,” explicou. “Significa reconhecer que a favela tem uma geografia particular, que pode ser preservada como as cidades medievais foram preservadas […] podemos ter vários tipos de habitat, de estrutura urbana, sem perder a dignidade.”

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E, supondo que a favela ganhe essa dimensão toda nos próximos anos– pois o programa Morar Carioca, financiado pelo BID, pretende justamente urbanizar todas as favelas cariocas até 2020– o que Souza Silva e outros representantes das regiões populares da cidade querem preservar é um estilo de vida.

O cobrador manda a Mara tomar nota do celular dele, no dela. “Agora liga para mim,” ele diz. ” Para eu ter teu número também.” A negociação será demorada.

“Alguém vai para o Aterro?” pergunta o motorista. “Eu,” diz a moça do outro lado da Mara.

“Serve o Largo do Machado?”

“Serve.”

“Você que vai casar?” pergunta o cobrador novamente, como se fosse policial tentando desvendar mentiras. “So no Copa Palace,” reitera a Mara.

“Faz tempo que não vejo sua namorada,” provoca a amiga da Mara ao motorista.

“Que namorada!” ele corrige. “Sou casado.”

O próximo é próximo: cobrador e passageiro

A van passa pela estação de trem Leopoldina, pelo Sambódromo, e finalmente encosta no Largo do Machado. A temperatura já baixou um grau. O samba ameniza, e a brisa idem. A amiga da Mara desce. Mara diz que vai para São Conrado, mas para chegar lá terá que descer antes do Shopping Rio Sul e pegar outro transporte.

O passageiro de pele enrugado quer pagar seus três reais ao cobrador. “Na saída,” afirma este.

Cariocas do asfalto criam e mantém vínculos no bairro, na cidade. Os vínculos entre moradores de favela, disse Souza e Silva, precisam ser preservados. Muitas vezes, advêm de fortes experiências de vida.

Não devem ser muito diferentes dos vínculos comunitários evidentes na pequena cidade de Sandy Hook, por exemplo, cidade norte americana recentemente atingida por uma tragédia terrível. Vizinhos lá estranharam nunca terem entrado na casa da māe do matador, de acordo com reportagens. Pois lá, entra-se na casa de vizinho, mesmo que não seja amigo. Tomar essa liberdade, e sentir a confiança embutida no ato, fazem parte da democracia americana.

No Brasil, tal comportamento pode ser considerado uma intrusão. Na Zona Sul do Rio de Janeiro, pede-se licença, cheio de dedos, para conferir a criatividade de um decorador ou arquiteto, num apartamento de layout igual.

“Reconhecer que a favela é mais do que paisagem é reconhecer esses vínculos,” finalizou Souza e Silva.

O passageiro de rugas chegou no destino. A van para, o cobrador desce, o passageiro paga na calçada. “Não quer receber antes,” lamenta o motorista. “Só viado, mesmo.”

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Não casa em Jacarepaguá

A van chega na praia do Flamengo, e descem vários passageiros, criando mais espaço. “Onde você trabalha em São Conrado?” pergunta o motorista, agora sozinho no banco da frente, para Mara.

“No Fashion Mall?” aposta o cobrador. É o shopping mais chique do Rio de Janeiro. Ela diz que sim. “Qual loja?” ele pergunta. Agora resolve receber de todo mundo. O dinheiro é passado adiante, troco feito.

“Armani,” responde a Mara. A van passa por um túnel pequeno. Na saída, Mara está colocando um óculos de sol com um AX no haste. Logo a van para no ponto, ela desce, e daí aparece no vão da porta aberta um jovem de topete e sobrancelha feita, mão sugestivamente na cintura, um pé esticado à frente do outro para ressaltar um quadril amplo.

“Seu irmão?” pergunta o motorista ao cobrador. O rapaz sobe requebrando para o assento de carona agora vazio, e o cobrador, de sorriso maroto, desce para comprar água gelada para ele e o colega de trabalho.

Enquanto os dois bebem das garrafinhas suadas de plástico azul, a van chega em Copacabana, o bairro mais denso do Rio de Janeiro. A brisa do mar adentra os vidros; o samba flui para fora. Fazem 33 graus, de acordo com os números vermelhos do painel. Os últimos descem na altura da Francisco Sá, e lá vai a dupla Copacabana-Maré pelo retorno, pela praia, de volta ao Parque União.