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Ijeoma Oluo: Confrontar o racismo não é focar nas necessidades e sentimentos dos brancos (Guardian)

Artigo original: amp.theguardian.com

Ijeoma Oluo, @IjeomaOluo

Qui, 28 de março de 2019, 06h00 GMT (Traduzido por Google Tradutor. A expressão “de cor” foi substituída por “racializado”).

Escolha do editor: o melhor de 2019

‘Se o seu trabalho antirracismo prioriza o ‘crescimento’ e ‘iluminação’ da América branca sobre a dignidade e a humanidade das pessoas racializadas – não é um trabalho antirracismo. É supremacia branca.’ Ilustração: Mikyung Lee para Guardian US

Frequentemente, pessoas brancas em discussões sobre raça decidem por si mesmos o que será discutido, o que ouvirão, o que aprenderão. E é o espaço deles. Todos os espaços são.

Eu estava saindo de um prédio corporativo depois de um dia inteiro conduzindo workshops sobre como falar sobre raça de maneira ponderada e deliberada. A audiência de cada sessão foi semelhante às dezenas que eu havia enfrentado antes. Houve uma super-representação de funcionários racializados, uma sub-representação de funcionários brancos. Os participantes racializados tendiam a fazer contato visual comigo e acenar com a cabeça – até ouvi alguns “Améns” – mas nunca foram os primeiros a levantar a mão com perguntas ou comentários. Enquanto isso, sempre havia um homem branco ansioso para compartilhar seus pensamentos sobre raça. Nessas sessões, normalmente confio no feedback silencioso dos participantes racializados para ter certeza de que estou no caminho certo, enquanto tento moderar o forte centramento da branquitude.

No corredor, uma mulher asiático-americana me encarou e murmurou: “Obrigada”. Um negro apertou meu ombro e murmurou: “Menina, se você soubesse”. Uma mulher negra me parou, olhou em volta com cuidado para se certificar de que ninguém estava ao alcance da voz e disse: “Você falou a verdade. Eu gostaria de ter compartilhado minha história para que você soubesse como é verdade. Mas este não era o lugar.”

Este não era o lugar. Apesar do cuidado que tenho nessas sessões para centralizar as pessoas racializadas, para mantê-las seguras, esse ainda não era o lugar. Mais uma vez, o que poderia ter sido uma discussão sobre o dano real e quantificável causado a pessoas racializadas foi subsumido por uma discussão sobre os sentimentos dos brancos, as expectativas dos brancos, as necessidades dos brancos.

Enquanto eu estava lá, olhando para a memória de centenas de conversas abafadas sobre raça, fui chamado à atenção por uma mulher branca. Ela não estava olhando nervosamente ao redor para ver quem poderia estar ouvindo. Ela não perguntou se eu tinha tempo para conversar, embora eu estivesse parada na porta.

“Sua sessão foi muito legal,” ela começou. “Você disse muitas coisas boas que serão úteis para muitas pessoas.”

Ela fez uma breve pausa: “Mas o fato é que nada do que você falou hoje vai me ajudar a fazer mais amigos negros”.

Lembrei-me de um dos primeiros painéis sobre raça em que participei. Um homem negro em Seattle havia sido pulverizado com pimenta por um guarda de segurança por não fazer nada além de caminhar por um shopping center. Tinha sido capturado na câmera. Um grupo de escritores e ativistas negros, inclusive eu, estava no palco diante de um público de maioria branca em Seattle, falando sobre o incidente. O colega palestrante Charles Mudede, um escritor brilhante, cineasta e teórico econômico, abordou os mecanismos econômicos no trabalho: esse segurança foi informado de que seu trabalho era proteger a capacidade de lucro de seus empregadores. Disseram-lhe que seu trabalho era manter os clientes que tinham dinheiro para gastar felizes e seguros. E todos os dias ele recebia mensagens culturais sobre quem tinha dinheiro e quem não tinha. Quem era violento e quem não era. Charles argumentou que o segurança estava fazendo seu trabalho. Em um sistema capitalista de supremacia branca, é assim que você faz o seu trabalho.

Bem, pelo menos ele estava tentando argumentar sobre esse ponto. Porque no meio do caminho uma mulher branca se levantou e o interrompeu.

“Olha, tenho certeza que você sabe muito sobre tudo isso”, disse ela, com as mãos nos quadris. “Mas eu não vim aqui para uma aula de economia. Eu vim aqui porque me sinto mal com o que aconteceu com esse homem e quero saber o que fazer.”

Aquela sala, aparentemente, também não era o lugar. Segundo essa mulher, essa conversa não era, ou não deveria ter sido, sobre os sentimentos do homem que levou spray de pimenta, ou os da comunidade negra em geral, que acabavam de receber mais evidências de como somos inseguros em nossa própria cidade. Ela se sentiu mal e queria parar de se sentir mal. E ela esperava que fornecêssemos isso a ela.

Em uma universidade no mês passado, onde eu estava discutindo o branqueamento no mundo editorial e a necessidade de mais narrativas não filtradas, elaboradas por pessoas racializadas, um homem branco insistiu que não havia como sermos compreendidos pelos brancos se não pudéssemos fazer nós mesmos mais acessíveis. Quando perguntei a ele se todos os elementos da cultura branca com os quais as pessoas racializadas precisam se familiarizar apenas para seguir adiante no seu dia serão um dia modificados para se adequar a nós, ele deu de ombros e olhou para o seu computador. Em um workshop que conduzi na semana passada, uma mulher branca se perguntou se talvez as pessoas racializadas na América fossem muito sensíveis em relação à raça. Como ela seria capaz de aprender se sempre ficávamos tão chateados com suas perguntas?

Eu experimentei interrupções e dispensas semelhantes mais vezes do que eu posso contar. Mesmo quando meu nome está no pôster, nenhum desses lugares parece o lugar certo para falar sobre o que eu e tantas pessoas racializadas precisamos falar. Frequentemente, os participantes brancos decidem por si mesmos o que será discutido, o que ouvirão, o que aprenderão. E é o espaço deles. Todos os espaços são.

Um dia, frustrada, postei este status de mídia social:

“Se o seu trabalho antirracismo prioriza o ‘crescimento’ e ‘iluminação’ da América branca sobre a segurança, dignidade e humanidade das pessoas racializadas – não é um trabalho antirracismo. É a supremacia branca.”

Uma das primeiras respostas que recebi de um comentarista branco foi: “OK, mas não é melhor do que nada?”

É isso? Um pouco de apagamento é melhor do que muito apagamento? Um pouco de supremacia branca vazada em nosso trabalho antirracismo é melhor do que nenhum trabalho antirracismo? Toda vez que estou diante de uma plateia para falar sobre a opressão racial na América, sei que estou enfrentando muitos brancos que estão na sala para se sentir menos mal com a discriminação racial e a violência nas notícias, para marcar pontos, para que todos saibam que não são como os outros, para fazer amigos negros. Sei que estou falando com muitos brancos que têm certeza de que não são o problema porque estão lá.

Apenas uma vez, quero falar para uma sala de brancos que sabem que estão lá porque são o problema. Que sabem que estão lá para começar o trabalho de ver onde foram cúmplices e prejudiciais para que possam começar a fazer melhor. Porque a supremacia branca é sua construção, uma construção da qual eles se beneficiaram, e desconstruir a supremacia branca é seu dever.

Eu e muitos dos participantes negros muitas vezes deixamos essas palestras cansados e desanimados, mas eu ainda apareço e falo. Eu apareço na esperança de que talvez, possivelmente, esta palestra seja a que finalmente rompe a barreira, ou me aproxime um passo daquela que irá. Eu apareço e falo por pessoas racializadas que não podem falar livremente, para que se sintam vistas e ouvidas. Falo porque há pessoas racializadas na sala que precisam ouvir que não deveriam carregar o fardo da opressão racial, enquanto aqueles que se beneficiam dessa mesma opressão esperam que os esforços antirracismo atendam às suas necessidades primeiro. Após minha palestra mais recente, uma mulher negra me passou um bilhete no qual havia escrito que nunca seria capaz de falar abertamente sobre as formas como o racismo estava impactando sua vida; não sem arriscar represálias de colegas brancos. “Vou me curar em casa em silêncio”, concluiu.

É melhor do que nada? Ou é o fato que em 2019 ainda tenho que me fazer essa pergunta todos os dias o mais prejudicial de todos?

Ijeoma Oluo: Confronting racism is not about the needs and feelings of white people (Guardian)

amp.theguardian.com

Ijeoma Oluo, @IjeomaOluo

Thu 28 Mar 2019 06.00 GMT

Editor’s pick: best of 2019


‘If your anti-racism work prioritizes the ‘growth’ and ‘enlightenment’ of white America over the dignity and humanity of people of color – it’s not anti-racism work. It’s white supremacy.’
‘If your anti-racism work prioritizes the ‘growth’ and ‘enlightenment’ of white America over the dignity and humanity of people of color – it’s not anti-racism work. It’s white supremacy.’ Illustration: Mikyung Lee for Guardian US

Too often whites at discussions on race decide for themselves what will be discussed, what they will hear, what they will learn. And it is their space. All spaces are.

I was leaving a corporate office building after a full day of leading workshops on how to talk about race thoughtfully and deliberately. The audience for each session had been similar to the dozens I had faced before. There was an overrepresentation of employees of color, an underrepresentation of white employees. The participants of color tended to make eye contact with me and nod – I even heard a few “Amens” – but were never the first to raise their hands with questions or comments. Meanwhile, there was always a white man eager to share his thoughts on race. In these sessions I typically rely on silent feedback from participants of color to make sure I am on the right track, while trying to moderate the loud centering of whiteness.

In the hallway an Asian American woman locked eyes with me and mouthed: “Thank you.” A black man squeezed my shoulder and muttered: “Girl, if you only knew.” A black woman stopped me, looked around cautiously to make sure no one was within earshot, and then said: “You spoke the truth. I wish I could have shared my story so you’d know how true. But this was not the place.”

This was not the place. Despite the care I take in these sessions to center people of color, to keep them safe, this still was not the place. Once again, what might have been a discussion about the real, quantifiable harm being done to people of color had been subsumed by a discussion about the feelings of white people, the expectations of white people, the needs of white people.

As I stood there, gazing off into the memory of hundreds of stifled conversations about race, I was brought to attention by a white woman. She was not nervously looking around to see who might be listening. She didn’t ask if I had time to talk, though I was standing at the door.

“Your session was really nice,” she started. “You said a lot of good things that will be useful to a lot of people.”

She paused briefly: “But the thing is, nothing you talked about today is going to help me make more black friends.”

I was reminded of one of the very first panels on race I had participated in. A black man in Seattle had been pepper-sprayed by a security guard for doing nothing more than walking through a shopping center. It had been caught on camera. A group of black writers and activists, myself included, were onstage in front of a majority-white Seattle audience, talking about the incident. Fellow panelist Charles Mudede, a brilliant writer, film-maker and economic theorist, addressed the economic mechanisms at work: this security guard had been told that his job was to protect his employers’ ability to make a profit. He had been told that his job was to keep customers who had money to spend happy and safe. And every day he was fed cultural messages about who had money and who didn’t. Who was violent and who wasn’t. Charles argued that the security guard had been doing his job. In a white supremacist capitalist system, this is what doing your job looked like.

Well, at least he was trying to argue that point. Because halfway through, a white woman stood up and interrupted him.

“Look, I’m sure you know a lot about all this stuff,” she said, hands on hips. “But I didn’t come here for an economics lesson. I came here because I feel bad about what happened to this man and I want to know what to do.”

That room, apparently, wasn’t the place either. According to this woman, this talk was not, or should not have been, about the feelings of the man who was pepper-sprayed, or those of the broader black community, which had just been delivered even more evidence of how unsafe we are in our own city. She felt bad and wanted to stop feeling bad. And she expected us to provide that to her.

At a university last month, where I was discussing the whitewashing of publishing and the need for more unfiltered narratives by people of color, a white man insisted that there was no way we were going to be understood by white people if we couldn’t make ourselves more accessible. When I asked him if all of the elements of white culture that people of color have to familiarize themselves with just to get through the day are ever modified to suit us, he shrugged and looked down at his notebook. At a workshop I led last week a white woman wondered if perhaps people of color in America are too sensitive about race. How was she going to be able to learn if we were always getting so upset at her questions?

I’ve experienced similar interruptions and dismissals more times than I can count. Even when my name is on the poster, none of these places seem like the right places in which to talk about what I and so many people of color need to talk about. So often the white attendees have decided for themselves what will be discussed, what they will hear, what they will learn. And it is their space. All spaces are.

One day, in frustration, I posted this social media status:

“If your anti-racism work prioritizes the ‘growth’ and ‘enlightenment’ of white America over the safety, dignity and humanity of people of color – it’s not anti-racism work. It’s white supremacy.”

One of the very first responses I received from a white commenter was: “OK, but isn’t it better than nothing?”

Is it? Is a little erasure better than a lot of erasure? Is a little white supremacy leaked into our anti-racism work better than no anti-racism work at all? Every time I stand in front of an audience to address racial oppression in America, I know that I am facing a lot of white people who are in the room to feel less bad about racial discrimination and violence in the news, to score points, to let everyone know that they are not like the others, to make black friends. I know that I am speaking to a lot of white people who are certain they are not the problem because they are there.

Just once I want to speak to a room of white people who know they are there because they are the problem. Who know they are there to begin the work of seeing where they have been complicit and harmful so that they can start doing better. Because white supremacy is their construct, a construct they have benefited from, and deconstructing white supremacy is their duty.

Myself and many of the attendees of color often leave these talks feeling tired and disheartened, but I still show up and speak. I show up in the hopes that maybe, possibly, this talk will be the one that finally breaks through, or will bring me a step closer to the one that will. I show up and speak for people of color who can’t speak freely, so that they might feel seen and heard. I speak because there are people of color in the room who need to hear that they shouldn’t have to carry the burden of racial oppression, while those who benefit from that same oppression expect anti-racism efforts to meet their needs first. After my most recent talk, a black woman slipped me a note in which she had written that she would never be able to speak openly about the ways that racism was impacting her life, not without risking reprisals from white peers. “I will heal at home in silence,” she concluded.

Is it better than nothing? Or is the fact that in 2019 I still have to ask myself that question every day most harmful of all?

Quando brasileiras brancas descobrem na Europa que, com a brancura, não podem mobilizar privilégios (Geledés)

geledes.org.br

Por Fabiane Albuquerque, enviado ao Portal Geledés

24/10/2021


Moro na França há alguns anos. Também já morei na Itália e, além dos meus estudos sobre branquitude, convivo com brasileiras no exterior e tenho uma vasta experiência com as frustrações, queixas e crises de mulheres brancas, sobretudo das classes médias e altas. Eu observo pessoas brancas há muito tempo. Acho que comecei a refletir sobre elas ouvindo as histórias das mulheres da minha família que trabalhavam nas suas cozinhas, fazendas, em estreita relação com a branquitude brasileira. Então, não me faltaram relatos sobre como se comportavam, pensavam, diziam e se relacionavam, sobretudo com os seus iguais e o seu Outro (negros e negras). 

Essas mulheres, contudo, não nos viam (e ainda não nos veem) porque estão ocupadas demais em projetar em corpos negros as coisas mal resolvidas em si mesmas. Incrível como falam da pobreza no Brasil, dos problemas políticos e sociais, da falta de educação do povo brasileiro, sem ao menos se darem conta dos problemas dentro de seus lares. Lourenço Cardoso escreve sobre isso na sua tese de doutorado intitulada: “O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil” e explica que negros, mesmo sendo desumanizados por brancos, ainda conseguem vê-los enquanto humanos; já o contrário é difícil. 

Pois bem, vejo estas mulheres que, acostumadas a projetar o olhar para fora, para o outro, raramente se questionam e se veem como de fato são. Não se enxergam brancas, privilegiadas, construídas e projetadas como seres superiores com base na raça e no pertencimento de classe no Brasil. E, quando chegam na Europa e descobrem que, por serem brancas e possuírem dinheiro, não podem tirar proveito da situação como fazem no país que as endeusou, entram em crise.  A crise dessas mulheres é uma das coisas mais interessantes que meu olhar de pesquisadora pôde ver.  Essa não é consciente para elas, assim como não é o fato de que a brancura lhes garantiu um lugar confortável na sociedade de origem. 

Por três anos meu filho estudou na mesma classe que o filho de uma brasileira branca, loira, de Santa Catarina, advogada e apoiadora de Bolsonaro, antipetista, antilulista e possuidora de uma visão estereotipada sobre a esquerda, os negros e os pobres. Mas, uma coisa aqui mudou na vida dela: embora nós duas tenhamos origem social e raça diferentes, a França nos nivelou. Eu e ela moramos no mesmo bairro e nossos filhos frequentaram a mesma escola, diga-se de passagem, pública. Para ela, mais do que para mim, isso constituiu um grande incômodo, manifesto na sua tentativa constante de mostrar-me o que ela tinha de diferencial em relação à mim. 

Como a questão financeira não era o principal mobilizador de superioridade, tampouco ela possuía conhecimentos sobre cultura, ou seja, enquanto eu sou amante de livros, pesquisadora, escritora, conheço de literatura brasileira, francesa, italiana, dentre outras, vou ao teatro e cinema, ela se orgulhava de ser frequentadora assídua de academia, Disneylândia e Mcdonalds. No Brasil, parece que a futilidade dessas pessoas é ofuscada pelo privilégio de raça e de classe.

Certo dia, na porta da escola, ela me abordou da seguinte forma: 

-Ai guria, tem dias aqui que é difícil, estou para ficar louca. Outro dia fui ao banco sozinha e me trataram como uma qualquer, você acredita?

Incrédula com a expressão, pois esse “ser qualquer um” deveria ser o sentimento de todo cidadão, de juiz a gari, de professor à médico, de político à banqueiro, balancei a cabeça dando-lhe corda: 

-Verdade? 

E ela continuou:

-Eu tive que ligar para o meu marido ir até lá para ver se com ele seria diferente. Ele vive recebendo propostas para investimento do banco porque ganha bem.

Fiquei pensando nas suas palavras. Aqui na França, ela não pode mobilizar um tratamento diferenciado por ser loira e muito menos pela sua classe social. Aqui o “você sabe com quem está falando?” não cola como no Brasil. Afinal, ela é só mais uma branca dentre brancos. E os brancos daqui, como diz o pesquisador Lourenço Cardoso, são “mais brancos” que os nossos brancos devido a impressão digital deixada pela colonização que hierarquizou povos e nações. Quanto mais nórdico, como os ingleses, mais branco e ideal é um povo.

Como eu jamais a bajulei por ser branca (como geralmente acontece entre brasileiros), outra vez, na porta da escola, ela me abordou novamente. Eu disse que estava indo caminhar e ela logo se oferece para ir junto. No caminho, sem nenhum pudor, me solta essa:

-Quando meu filho nasceu, a preocupação do meu marido era com o cabelo, se ia nascer ruim como o dele. Eu até achei engraçado porque assim que ele nasceu, ele correu para mim e disse “parece que é ruim, é bem enrolado”. 

Eu, que tenho cabelo “ruim” na concepção da sua família somente soltei um “é mesmo?” e parece que aquilo liberou nela seu racismo mais latente. Esse só sai quando a pessoa não se sente julgada ou rechaçada, quando acha abertura e acredita que o interlocutor não a está julgando:

-Meu marido (branco no Brasil) ‘rapa’ a cabeça porque ele odeia o próprio cabelo. Mas quando viu que puxou a mim ficou mais tranquilo. 

O que essa mulher queria ao me dizer tudo isso? Ela estava buscando que eu reconhecesse a sua superioridade, pelo menos aquela racial, já que eu, por espontânea vontade não o fiz, ela estava ali me lembrando disso. A igualdade é um dos maiores sofrimentos psíquicos para mulheres brancas brasileiras das camadas altas que chegam para morar aqui na Europa. Digo de mulheres porque convivo pouco com os homens brancos brasileiros. E não parou aqui, não. Outra vez ela fez o seguinte comentário:

-Guria, falei com minha prima que mora na Inglaterra e ela me disse que sou louca de colocar meu filho em escola pública, de me misturar com esta gente

Ela se referia à grande presença de crianças imigrantes na escola, de origem africana e de países árabes. A escola pública foi o espaço que acolheu o seu filho, o ensinou a falar francês, lhe proporcionou uma base e uma convivência respeitosa e igualitária com diferentes nacionalidades, sobretudo aquelas as quais ele nunca teve contato no Brasil por viver segregado no seu pequeno mundinho burguês.  Mas, ela insistia em tentar se colocar como um ser especial. 

Antes que alguém diga que tive muita paciência, só resisti porque estudo brancos e quando descobri que é melhor lhes dar corda para ter material, meu envolvimento afetivo e emocional me causa menos sofrimento.  

O estupor por não ser tratada com distinção não vem somente de gente de extrema direita. Nesse ponto, a branquitude se assemelha muito, tanto de direita quanto de esquerda. Uma moça branca, paulistana e segundo ela mesma, de classe média alta, revelou-me que estava surpresa por sofrer discriminação dentro da universidade francesa. A pergunta que ela me fez foi a seguinte:

– Eu posso me comparar com os negros por sofrer racismo

Lhe respondi que com negros, jamais. E continuei dizendo que aqui, antes de tudo, ela é brasileira e tinha alguns traços árabes como o nariz e o formado do rosto. Ela estava desorientada por não poder usufruir da “invisibilidade” da raça como acontecia no Brasil e talvez, sem se dar conta, da visibilidade por ser branca e burguesa na hora de receber privilégios. Essas mulheres estão acostumadas, desde pequenas, a serem paparicadas e, quando isso não acontece, o Eu se fragiliza. 

Uma outra, branca de olhos verdes, vendo que eu jamais comentei algo sobre a sua aparência física, como está acostumada, depois de um tempo de convivência, tirou os óculos diante de mim, arregalou os olhos e disse:

Todo mundo fala que eu deveria parar de usar óculos, pois desvalorizam meus olhos. Você já viu os meus olhos?

A cena foi cômica. A mulher com os olhos esbugalhados na minha frente mendigando elogios.  Lhe respondi:

– Fulana, eu já vi os seus olhos.

 Ela, muito sem graça, recolocou os óculos. O que ela queria de mim? O que todo mundo lhe dava: bajulação da sua corporeidade branca, dos seus olhos verdes e o reconhecimento do seu valor em base a isto. 

Muitas dessas mulheres tentam reproduzir a mesma hierarquia social e racial que temos no Brasil, procurando por outras que estejam à disposição do ego delas. Conheci uma promotora de justiça de Brasília que chegou na França, juntamente com o marido para fazer mestrado. Os dois conseguiram uma licença de um ano do trabalho. No primeiro contato que tivemos ela perguntou: “Você conhece uma diarista para me apresentar?” Achei estranho o pedido, pois a mulher e o marido ficariam um ano sem trabalhar, morando em um pequeno apartamento, como ela descreveu, mas tinha que ter alguém para lhe servir. Essa gente fora do Brasil e das relações de dominação/servidão/ que se dão em base à racialização de corpos se perde. 

Conheci brasileiras aqui que gostam de conviver com outras brasileiras porque entre nós, entendemos os códigos, as hierarquias e as leis ocultas do nosso país para reproduzir a mesma lógica de quem adora e de quem é adorado. Ou, em outros casos, preferem conviver somente com franceses, pois segundo elas, “não gostam de se misturar” e se agarram aos “brancos mais brancos” como se fosse um troféu para mostrar ao mundo e exibir para a família e amigos no Brasil: “Olha a minha amiga francesa!!!”. É um modo de participar da branquitude mais “pura” (mesmo que indiretamente), que o que temos nas terras Brasilis. 

Uma coisa é certa, essa experiência na Europa poderia ser, para elas, uma grande chance de mudar de paradigma, de renascer, de se tornar uma pessoa melhor. Mas, na maioria dos casos, o privilégio é buscado com unhas e dentes. Se soubessem que podem abandoná-lo e viver mais livres, talvez o fariam. Mas alguém como elas, ou seja, branco, precisaria dizer. Pois, no meu caso, se lhes digo, passo por negra raivosa, ressentida, invejosa, que vê racismo em tudo. Eu torço pela mudança e pela emancipação humana, mas enquanto isso não acontece, continuo tendo-as como objeto de análise e estudo.  


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, autora do livro Cartas a um homem negro que amei, publicado pela Editora Malê.

Neutralidade é um lugar que não existe (Le Monde Diplomatique Brasil)

Acervo Online | Brasil por Carla Rodrigues 19 de agosto de 2020

A história da minha educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser racista.

Sou branca e fui criada como branca. Mais do que isso, fui educada para saber identificar os fenótipos das pessoas negras, de modo a estabelecer rigorosas distinções entre pessoas brancas, pessoas então chamadas de “mulatas” e pessoas negras. Cresci aprendendo que pessoas negras são sujas e que a cor preta estava associada ao nojo, ao abjeto. Na escola progressista em que estudei, havia apenas duas pessoas negras, ambas filhas de funcionários. Durante décadas, escutei a exaltação dos ancestrais portugueses e italianos, que nos legaram pele branca, cabelos lisos e, no meu caso, olhos azuis, joia rara na família e objeto de disputa como  signo da herança materna portuguesa ou da herança paterna italiana.

Fui ensinada a ser superior porque branca, embora a superioridade de uma mulher branca de família pequeno burguesa estivesse fundamentada na cor, não em privilégios de classe ou gênero. Quando analiso para a minha educação para ser racista, vejo retrospectivamente que as pessoas brancas da minha família de imigrantes pobres talvez precisassem afirmar o privilégio de cor para escapar da subalternidade justo por não terem o privilégio de classe.

Por isso, inclusive, além de racistas, eram também classistas e repetiam os estereótipos que o racismo usa ainda hoje: pessoas pretas e pobres são igualmente perigosas, eventualmente preguiçosas, embora as mulheres negras tenham sido sempre alocadas nos trabalhos braçais do cuidado da casa e no cuidado de crianças. Esta divisão marcou a minha infância. Quando criança, nunca entendi a divisão subjetiva entre não poder gostar de pessoas pretas e adorar a mulher preta que cuidava de mim quando minha mãe não estava.

Há muito tempo quero escrever sobre minha experiência pessoal de ter sido educada para ser racista e, portanto, ter chegado à vida adulta naturalizando a desigualdade racial. Do debate que se seguiu ao artigo de Lilia Schwarcz a respeito do novo vídeo da Beyoncé, foi o texto de Lia Vainer Schucman que me motivou a escrever. Isso porque considero o argumento dela irrefutável: “nossa racialidade está sendo marcada, algo que acontece há alguns séculos com negros e indígenas no Brasil, ou seja: é quando o grupo antecede o indivíduo (o que nomeamos de processo de racialização).” A história da minha educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser racista. Já Schucman defende uma racialização que, como reconhecimento de que todas as pessoas são marcadas, poderia nos levar ao fim do racismo. Parece contraditório, eu sei, mas vamos lá.

Há muitos anos tenho trabalhado para desconstruir as camadas de racismo que me foram sobrepostas. Aqui, uso o verbo descontruir como foi proposto pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, a quem dediquei minhas pesquisas de mestrado e doutorado e com quem comecei a aprender que quem fala, o faz a partir de algum lugar. Isso porque um dos objetivos da desconstrução é a crítica à suposição da neutralidade dos discursos, que serve como anteparo a todas as premissas ocultas que os discursos de saber-poder contém.

Como mulher, experimentei inúmeras vezes – e infelizmente ainda experimento – a diferença de poder entre o discurso masculino de autoridade e o meu. Como pesquisadora, fui aprendendo a perceber e denunciar que esse discurso masculino obtém sua autoridade de uma suposição de neutralidade do saber. Daí para a leitura da filósofa Donna Haraway e seu clássico “Saberes localizados” foi um passo curto. No ensaio, Haraway desconstrói a suposição de neutralidade do discurso da ciência e confere às feministas a responsabilidade de produzir conhecimento como saber situado. É o que venho tentando fazer há algum tempo, tanto na minha escrita quanto no meu trabalho de orientadora de pesquisas acadêmicas que, muitas vezes, procuram a neutralidade em busca de autoridade, mesmo que para isso acabe abrindo mão da autoria do texto.

Neste processo, ainda em curso, precisei aprender que branco também é cor. Enxergar-se branca é enxergar-se marcada pela própria branquitude. É este aspecto que me mobiliza no debate sobre lugar de fala: a desconstrução da suposição de neutralidade de qualquer discurso. Quem continua pretendendo se ver como neutro ou neutra é quem, por acreditar que não tem cor, pode continuar oprimindo – seja as pessoas negras, seja as pessoas brancas subalternizadas – por uma suposta neutralidade do saber.

Não por acaso, o livro de Djamila Ribeiro (“O que é lugar de fala”, editora Letramento, 2017) tem como epígrafe trecho de um artigo de Lélia Gonzalez: “Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos) que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.”

Aqui posso fazer Djamila e Lélia conversarem com Achille Mbembe de “Crítica da razão negra” (N-1 Edições, 2019), em que ele divide a razão negra em dois momentos: o primeiro, o da consciência ocidental do negro, orientando pela interpelação do colonizador com perguntas como “quem é ele?; como o reconhecemos?; o que o diferencia de nós? poderá ele tornar-se nosso semelhante? como governá-lo e a que fins?”. No segundo momento, Mbembe percebe que as perguntas são as mesmas, a mudança está em quem as enuncia: “Quem sou eu?; serei eu, de verdade, quem dizem que eu sou?;  Será verdade que não sou nada além disto – minha aparência, aquilo que se diz de mim?; Qual o meu verdadeiro estado civil e histórico?”.

Ehimetalor Akhere Unuabona/ Unsplash

Quando me reconheço portadora de uma cor – branca – também posso enunciar estas perguntas, de tal modo a não precisar mais sustentar a posição de ter que repetir ao outro as perguntas do colonizador. Eu sou branca, e quanto a isso não há opção. Mas quanto a continuar sendo herdeira da violência da tradição colonizadora, acredito que haja escolha possível e que esta passa pelo desejo de cura da ferida colonial.

Retomo então minha experiência. Foi o racismo que me ensinou que sou branca. Fui marcada como branca a fim de que esta marcação funcionasse como signo de superioridade. Mas a mim hoje parece fácil perceber que a necessidade de marcação de superioridade só existe para aquele que se sente inferior, que se sabe fora do lugar de superioridade que almeja. Numa formação social marcada pela violência colonial, sobreviver é, entre tantas outras coisas, escapar do lugar de subalternidade.

Refletir sobre a experiência de ter sido marcada com a cor branca me ajudou a fazer a distinção que estou propondo aqui entre suposição de neutralidade do branco – a “branquitude” que não pretende se assumir como tal – e a admissão de que branco também é uma cor, uma marcação ou, para falar em termos interseccionais, um marcador que, se existe negativamente para a pessoa negra no racismo estrutural da sociedade brasileira, existe positivamente para a pessoa branca.

Com essa diferença, esboço uma hipótese: a maior rejeição à ideia de que todo discurso é situado, e que certos discursos estão autorizados por estarem situados a partir de um lugar de poder, e outros estão desautorizados por estarem situados fora desses lugares, a maior reação vem de quem ainda não vê a sua branquitude por se acreditar “neutra”. Para isso, é preciso negar que branco seja cor. É desse lugar de neutro que intelectuais, mesmos os/as mais respeitados/as, parecem não poder abrir mão. E aí caem na pior armadilha: “sou branco/a mas sou legal” (uma espécie de versão atualizada de “tenho até amigo gay”).

Fui racializada como branca porque fui educada para ser racista, o que me obrigou a assumir a minha cor e a carregar com ela o peso do racismo estrutural brasileiro. Se hoje penso, escrevo, pesquiso e ensino contra o racismo é por não suportar mais o sofrimento de viver num país em que pessoas negras são brutalmente excluídas, violentadas e exterminadas em nome da minha suposta superioridade branca. Esta é a cor da minha pele. Já o meu desejo tem sido destruir o racismo que me impôs uma suposição de superioridade branca na qual não me reconheço.

Carla Rodrigues é professora de Ética no Departamento de Filosofia da UFRJ, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e bolsista de produtividade da Faperj.