Autor de estudo sobre torcidas organizadas, Renzo comentou tentativa infundada dos dirigentes do futebol brasileiro em erradicar as torcidas organizadas
Por Amanda Duarte, Gabriel Mansour e Pedro Muxfeldt | Yahoo! Esporte Interativo – ter, 28 de mai de 2013 02:22 BRT
Autor de diversas pesquisas sobre o fenômeno das torcidas organizadas no Brasil e na Argentina, o antropólogo Renzo Taddei falou com exclusividade ao Yahoo! Esporte Interativo sobre a proposta de elitização do público do Maracanã contida no estudo de viabilidade econômica realizado pela IMX Venues.
Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Renzo também falou sobre a proposta de transformação do estádio em centro de entretenimento e, estudioso do assunto, enxergou conexão entre a política de aumento do valor dos ingressos com a tentativa de exclusão das organizadas dos estádios de futebol, algo que, para o acadêmico, não acontecerá da maneira prevista devido às ligações próximas entre as diretorias de clubes e suas torcidas e uma falha na visão que os comandantes do futebol e a mídia têm dos grupos de torcedores organizados. Confira a entrevista na íntegra:
Yahoo! Esporte Interativo: O estudo de viabilidade econômica do complexo do Maracanã prevê, textualmente, a “mudança do perfil do público e consequente aumento do valor médio dos ingressos”. Qual sua visão sobre esse processo de elitização do público dos estádios que já vem ocorrendo?
Renzo Taddei: Não está claro ao que exatamente o estudo se refere: se ao aumento da renda das classes populares, o que significa que o público se mantém o mesmo, ainda que seu “perfil” de consumo mude, ou à substituição das classes populares por classes médias e ricas, via encarecimento dos ingressos. Essas alternativas não são excludentes; em termos financeiros, podem até levar aos mesmos resultados. Em termos sociais e políticos, no entanto, são coisas muito diferentes.
Existe uma distinção importante a ser feita: uma coisa é um investimento privado ser economicamente viável, outra é uma política pública ser democrática e eficaz. Infelizmente o governo do Rio de Janeiro parece confundir as coisas: permitir que a iniciativa privada elabore políticas públicas é mais do que um erro político, é um tiro no próprio pé. No Brasil, como em diversos lugares do mundo, o futebol é muito mais do que um negócio, tem um papel importante na vida de muitas coletividades; o que o governo tem dificuldade de enxergar é que reduzir o futebol a um mero bom negócio pode ter consequências sociais funestas.
O futebol poderia ser um instrumento poderosíssimo na construção de uma sociedade melhor, dada a penetração que tem em diversos públicos e setores da sociedade. Para isso, deveria ser usado em conjunção com políticas públicas sérias e inteligentes. Se os gestores públicos soubessem usar o futebol com inteligência, seria possível até argumentar que ele deveria ser subsidiado. Mas, infelizmente, já há muitas décadas o futebol é controlado por interesses financeiros pouco comprometidos com objetivos e metas sociais maiores; a forma como o dinheiro que vem da transmissão televisiva define os rumos do esporte mostra como este é refém do mercado.
Ao usar critérios mercadológicos para julgar o valor de uma boa ideia, o governo permite que o apartheid social brasileiro se estenda às políticas sociais nas áreas de lazer e cultura.
Y!EI: Em outros pontos do estudo, fala-se na necessidade de transformar o complexo esportivo do Maracanã em “centro de entretenimento”. Que efeitos sociais a transformação de um símbolo cultural do Rio de Janeiro como o Maracanã em abrigo de shoppings e hotéis, como está previsto no estudo, podem causar?
RT: Colocando de forma direta, trata-se da transformação do mais importante espaço de comunhão que temos no Brasil em mais um espaço de segregação. A atratividade financeira do projeto faz com que nossos governantes se façam cegos ao papel simbólico do futebol, através do qual se dá um bocado da vida social das pessoas desse país, em todas as suas regiões e de todas as classes sociais. O futebol une gente que em outras ocasiões encontra-se separada em credos e partidos políticos distintos – credos e partidos que, via de regra, não funcionam com base em regras claras e conhecidas por todos, e num contexto em que os jogos sempre começam do zero a zero e o fair play é valorizado.
Ainda que não intencionalmente – ou, quem sabe, intencionalmente -, shoppings centers e hotéis são espaços de segregação, onde descamisados e gente de chinelo não entra. Aqui estou falando das dimensões simbólicas do futebol; vai da solução arquitetônica mesclar isso tudo e ver até onde o espírito do futebol vai ser descaracterizado.
De qualquer forma, para que um hotel exista num estádio haverá que se instalar barreiras e restrições à mobilidade das massas que hoje não existem. Não vejo como o resultado possa ser bom, em qualquer dimensão que não seja estritamente financeira, e apenas para quem vai investir no projeto. Em minha opinião, essa é apenas mais uma etapa do processo, apoiado pela Fifa, pela CBF e pelas federações estaduais, que transforma o futebol em refém do capital financeiro. Só não vê que parte do comportamento das torcidas é uma reação negativa a isso tudo quem não quer – e há um bocado de gente em postos importantes que efetivamente não tem qualquer interesse em enxergar isso.
Basta seguir os perfis das torcidas em redes sociais e ver a forma como elas se manifestam contra o que chamam de “futebol moderno”, que é nada mais do que o futebol refém do capital financeiro – das verbas de patrocínio que definem regras e formas de funcionamento do esporte, dos contratos que induzem os jogadores a estabelecerem relações muito superficiais com os times em que atuam, dentre muitas outras coisas.
Y!EI: Já nos dias de hoje, jogos às vezes de pouco apelo dos campeonatos estaduais, por exemplo o Carioca, têm ingressos com preços que chegam a R$ 80. Neste cenário, são nas torcidas organizadas onde mais se concentram integrantes das classes mais pobres da sociedade. O processo de “demonização” das organizadas pode ser entendido como um outro passo para a retirada da população pobre – especialmente jovem e negra – dos estádios?
RT: Sem dúvida. Mas isso só se dá porque há uma compreensão muito ruim, por parte do poder público e da mídia, de como funcionam as torcidas organizadas. Elas nunca deixarão de estar nos estádios, porque na maioria das vezes suas lideranças não pagam os ingressos. Há uma relação entre os clubes e as torcidas que não está considerada nessa abordagem econômica, porque esse é uma questão da política interna do futebol.
Os próprios dirigentes facilitam a entrada das organizadas, porque elas são parte fundamental do fenômeno e do espetáculo que é o futebol, e os jogadores e dirigentes reconhecem isso. É mais fácil ver isso quando se joga de visitante: muitas vezes quem vai ao jogo é apenas a torcida organizada, que viajou mil, dois mil quilômetros, em veículos mal conservados e lentos, apenas para assistir o jogo e voltar para casa.
Num estádio hostil, uma torcida atuante, que canta e demonstra apoio ao time pode afetar positivamente o estado psicológico dos jogadores do seu time – não há jogador ou técnico que não reconheça isso.
Por outro lado, é equivocado achar que os torcedores mais pobres estão nas torcidas organizadas. Algumas torcidas têm um faturamento alto, de atividades legais. O que se está confundindo aqui é a forma como as elites pensam o mundo, com seus maniqueísmos e preconceitos, e a forma como o mundo do futebol efetivamente existe; as duas coisas não são equivalentes, obviamente. O futebol não se resume à divisão de classes sociais, exatamente porque em grande parte do tempo funciona como elemento de comunhão social, e não de divisão. Transformar o futebol de acordo com a visão que as elites têm da divisão de classes sociais é assassinar o espírito do esporte, o que pra mim deveria ser crime inafiançável.
Veja também:
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– Especial Maracanã PARTE 2: Sociólogo analisa processo de elitização
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