Em 1981, durante uma crise política grave no governo Figueiredo, o todo-poderoso Golbery do Couto e Silva pediu demissão do governo. Aos jornalistas justificou-se: “Não me perguntem nada. Eu acabo de sair de Sucupira”. A referência à cidade fictícia da novela O bem-amado (1973) e à minissérie homônima (1980-1984), de Dias Gomes, num momento delicado como aquele, revela o poder, à época, das telenovelas como representação da realidade nacional e de como os brasileiros se reconheciam nessas representações. “A partir de conflitos de gênero, geração, classe e religião, a novela fez crônicas do cotidiano que a transformaram num palco privilegiado de interpretação do Brasil. O país, que se modernizava num contexto de modernização centrada no consumo, e não na afirmação da cidadania, se reconhecia na tela da TV em um universo branco e glamoroso”, explica Esther Hamburger, professora do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo (USP) e autora do estudo O Brasil antenado (Jorge Zahar Editor). Ela analisou os novos rumos do gênero na pesquisa Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo, apoiada pela FAPESP e coordenada pelo sociólogo da USP Sérgio Miceli. O projeto reúne, além de Esther, outros pesquisadores de várias áreas e temas.
“No Brasil que se democratizava, a novela tratou em primeira mão de assuntos que pautariam a cena política na década seguinte. Mas, hoje, ela perdeu o seu status privilegiado de problematização das questões nacionais. Não consegue mobilizar a opinião pública, não é mais totalmente nacional e tampouco a vitrine do país. É provável que não seja mais capaz de sintetizar o país”, avisa a pesquisadora. “Afinal, aquele país centralizado, passível de uma representação hegemônica, não existe mais. Novos meios como TV a cabo e a internet tiraram da novela o seu caráter de arena de problematização. A sociedade mudou e há muita diversificação. A alfabetização aumentou e a TV não é mais o único lugar para achar informações”, observa. Para Esther, no país atual não é mais possível uma novela falar para toda a nação. “Não há mais um Brasil na TV, mas vários”, avalia.
Queda – “A novela permanece estratégica na receita e na competição entre as emissoras de televisão, mas sua capacidade de polarizar audiências nacionais está em queda. O gênero abusa de mensagens de conteúdo social, enquanto perde seu diferencial estético e sua força polêmica. A nação já não é mais o tema central, porque os temas extrapolam fronteiras. Há cada vez me-nos referências a assuntos atuais e polêmicos. A opção é por campanhas politicamente corretas, muitas vezes em detrimento da dramaturgia, amarrando a criatividade dos autores”, diz Esther. Segundo a mas vários”, avaliapesquisadora, a estrutura de conflitos melodramáticos que sustenta a narrativa ainda se mantém, mas em histórias que voltam a se restringir a espaços imaginados como femininos, o público inicial dos primórdios da telenovela nacional, e de menor valor cultural. O gênero também não atrai mais tantos talentos criativos, com textos fracos e enredos repetitivos que insistem em velhos clichês e convenções que fizeram sucesso no passado. “Ainda assim, não se pode negar que a novela pode voltar a ter o impacto político e cultural de antes, influindo no comportamento e na moda. Ela ainda é um lugar onde se pode aprender algo, em especial o novo público predominante, abaixo das classes A e B”, fala.
Do apogeu à crise recente de queda de audiências foi um longo caminho. No início imperava o estilo “fantasia”, cheio de sentimentalismo, em produções dos anos 1960, como o exótico Sheik de Agadir, paradigma quebrado com o realismo de Beto Rockfeller, representação da contemporaneidade das classes médias emergentes. Nos anos 1970 romperam-se os limites do dramalhão, mas as novelas viraram vitrines do ser moderno: a moda e o comportamento. “A Globo, durante a ditadura, adotou o discurso oficial, mas entendeu que, nas novelas, ao invés de esconder os problemas, era melhor incorporá-los nas tramas, como fez em O bem-amado. Foi o início de uma crítica crescente ao processo de modernização”, lembra Mauro Porto, professor da Tulane University e autor da pesquisa Telenovelas and national identity in Brazil. O realismo tomou conta do gênero: uma pesquisa de 1988 revelou que 58% dos entrevistados queriam ver “a realidade” nas novelas e 60% desejavam que as tramas falassem da política. “Os autores, de uma geração de esquerda, se viam como responsáveis por um projeto nacional e de consciên-cia popular”, nota Porto. “As novelas registraram os dramas da urbanização, das diferenças sociais, da fragmentação da família, da liberalização das relações conjugais e dos padrões de consumo. Chegaram ao seu ápice quando falaram dos problemas da modernização como Vale tudo (1988) e Roque Santeiro (1985)”, diz Esther. Mas a TV Manchete trouxe uma leitura alternativa do país com Pantanal, pleno do exótico e do erótico, o que rompeu o ciclo político das novelas, inclusive na Globo, que se viu obrigada a emular o novo conceito. “O ‘efeito Pantanal’, porém, não deixou herdeiros e hoje foi esquecido.”
Intimidade – “Nesse percurso, a telenovela criou um repertório comum pelo qual pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se reconheciam, uma ‘comunidade imaginada’ de problematização do Brasil, da intimidade com os problemas sociais, veículo ideal para se construir a cidadania, uma narrativa da nação”, analisa Maria Immacolata Lopes, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovelas. O modelo se desgastou e o país mudou. “Entre 1970 e 1980 houve uma mágica entre público e novela. Em Vale tudo, pela primeira vez se viu a corrupção num espaço público não político e as novelas estavam na vanguarda”, nota Esther. “Hoje a corrupção é banal, não é mais polêmica, só traz o tédio da repetição. Em 1988 era novidade; em 2011 é algo batido.” As novelas não estão mais antenadas com o país. “Mesmo a literatura contemporânea acadêmica estrangeira sobre televisão já não discute mais a telenovela brasileira e o ‘caso’ brasileiro perdeu espaço interna e externamente diante de uma renovação da ficção televisiva internacional, em especial os seriados americanos, que ganham espaço nos canais nacionais, um novo fluxo de importação de programação que as novelas haviam substituído nas décadas anteriores”, explica. Os sitcons de hoje, ao contrário do passado, quando eram “obras fechadas” e sem improviso, estão abertos aos indicadores de sucesso e podem mudar seu rumo enquanto estão no ar, trazendo alusões a elementos políticos e culturais da realidade americana e problematizando os EUA.
“Não temos a mesma audiência nacional com todas as classes e lugares. Tudo ficou mais popular e as novelas atendem esse público espectador com merchandising social, sexo, dinâmica de tramas que mudam toda hora, ação, assassinatos”, analisa. Para a pesquisadora, essa quebra na dramaturgia reduz ainda mais o escopo do público ao fazer cair o interesse de uma grande parte da au-diência. Esther cita novas alternativas como Cordel encantado, que remete às novelas fantasiosas. Há também a procura de novos autores e diretores ou o remake de antigos sucessos, como O astro, para recuperar fórmulas de sucesso do passado, mas, mesmo adaptadas, conservam sabor de “coisa velha”. “Não sabemos se os brasileiros ainda desejam o realismo, mas é certo que se cansaram das novelas urbanas no eixo Rio-São Paulo. Gostariam de conhecer novas rea-lidades e o aspecto regional antes desprezado ou caricaturado.” A renovação não é fácil, como mostra o fracasso de experimentações como Cidade de Deus ou Antonia. “Uma solução seria mostrar a violência das cidades, do tráfico, mas isso ainda é tabu nas novelas. O cinema se revelou mais ‘antenado’ ao mostrar os poderes paralelos das periferias, como em Tropa de elite. Ou, Dois filhos de Francisco, filme que traz um Brasil onde os humildes se realizam.” A novela, pela primeira vez, perdeu o bonde da história. Num escândalo recente, um colunista político não usou uma citação de novela, como Golbery, para falar do caso, mas o bordão do filme Tropa de elite: “Palocci, pede pra sair!”.
FRIDAY, AUGUST 26, 2011 (nakedcapitalism.com) What is Debt? – An Interview with Economic Anthropologist David Graeber
David Graeber currently holds the position of Reader in Social Anthropology at Goldsmiths University London. Prior to this he was an associate professor of anthropology at Yale University. He is the author of ‘Debt: The First 5,000 Years’ which is available from Amazon.
Interview conducted by Philip Pilkington, a journalist and writer based in Dublin, Ireland.
Philip Pilkington: Let’s begin. Most economists claim that money was invented to replace the barter system. But you’ve found something quite different, am I correct?
David Graeber: Yes there’s a standard story we’re all taught, a ‘once upon a time’ — it’s a fairy tale.
It really deserves no other introduction: according to this theory all transactions were by barter. “Tell you what, I’ll give you twenty chickens for that cow.” Or three arrow-heads for that beaver pelt or what-have-you. This created inconveniences, because maybe your neighbor doesn’t need chickens right now, so you have to invent money.
The story goes back at least to Adam Smith and in its own way it’s the founding myth of economics. Now, I’m an anthropologist and we anthropologists have long known this is a myth simply because if there were places where everyday transactions took the form of: “I’ll give you twenty chickens for that cow,” we’d have found one or two by now. After all people have been looking since 1776, when the Wealth of Nations first came out. But if you think about it for just a second, it’s hardly surprising that we haven’t found anything.
Think about what they’re saying here – basically: that a bunch of Neolithic farmers in a village somewhere, or Native Americans or whatever, will be engaging in transactions only through the spot trade. So, if your neighbor doesn’t have what you want right now, no big deal. Obviously what would really happen, and this is what anthropologists observe when neighbors do engage in something like exchange with each other, if you want your neighbor’s cow, you’d say, “wow, nice cow” and he’d say “you like it? Take it!” – and now you owe him one. Quite often people don’t even engage in exchange at all – if they were real Iroquois or other Native Americans, for example, all such things would probably be allocated by women’s councils.
So the real question is not how does barter generate some sort of medium of exchange, that then becomes money, but rather, how does that broad sense of ‘I owe you one’ turn into a precise system of measurement – that is: money as a unit of account?
By the time the curtain goes up on the historical record in ancient Mesopotamia, around 3200 BC, it’s already happened. There’s an elaborate system of money of account and complex credit systems. (Money as medium of exchange or as a standardized circulating units of gold, silver, bronze or whatever, only comes much later.)
So really, rather than the standard story – first there’s barter, then money, then finally credit comes out of that – if anything its precisely the other way around. Credit and debt comes first, then coinage emerges thousands of years later and then, when you do find “I’ll give you twenty chickens for that cow” type of barter systems, it’s usually when there used to be cash markets, but for some reason – as in Russia, for example, in 1998 – the currency collapses or disappears.
PP: You say that by the time historical records start to be written in the Mesopotamia around 3200 BC a complex financial architecture is already in place. At the same time is society divided into classes of debtors and creditors? If not then when does this occur? And do you see this as the most fundamental class division in human history?
DG: Well historically, there seem to have been two possibilities.
One is what you found in Egypt: a strong centralized state and administration extracting taxes from everyone else. For most of Egyptian history they never developed the habit of lending money at interest. Presumably, they didn’t have to.
Mesopotamia was different because the state emerged unevenly and incompletely. At first there were giant bureaucratic temples, then also palace complexes, but they weren’t exactly governments and they didn’t extract direct taxes – these were considered appropriate only for conquered populations. Rather they were huge industrial complexes with their own land, flocks and factories. This is where money begins as a unit of account; it’s used for allocating resources within these complexes.
Interest-bearing loans, in turn, probably originated in deals between the administrators and merchants who carried, say, the woollen goods produced in temple factories (which in the very earliest period were at least partly charitable enterprises, homes for orphans, refugees or disabled people for instance) and traded them to faraway lands for metal, timber, or lapis lazuli. The first markets form on the fringes of these complexes and appear to operate largely on credit, using the temples’ units of account. But this gave the merchants and temple administrators and other well-off types the opportunity to make consumer loans to farmers, and then, if say the harvest was bad, everybody would start falling into debt-traps.
This was the great social evil of antiquity – families would have to start pawning off their flocks, fields and before long, their wives and children would be taken off into debt peonage. Often people would start abandoning the cities entirely, joining semi-nomadic bands, threatening to come back in force and overturn the existing order entirely. Rulers would regularly conclude the only way to prevent complete social breakdown was to declare a clean slate or ‘washing of the tablets,’ they’d cancel all consumer debt and just start over. In fact, the first recorded word for ‘freedom’ in any human language is the Sumerian amargi, a word for debt-freedom, and by extension freedom more generally, which literally means ‘return to mother,’ since when they declared a clean slate, all the debt peons would get to go home.
PP: You have noted in the book that debt is a moral concept long before it becomes an economic concept. You’ve also noted that it is a very ambivalent moral concept insofar as it can be both positive and negative. Could you please talk about this a little? Which aspect is more prominent?
DG: Well it tends to pivot radically back and forth.
One could tell the history like this: eventually the Egyptian approach (taxes) and Mesopotamian approach (usury) fuse together, people have to borrow to pay their taxes and debt becomes institutionalized.
Taxes are also key to creating the first markets that operate on cash, since coinage seems to be invented or at least widely popularized to pay soldiers – more or less simultaneously in China, India, and the Mediterranean, where governments find the easiest way to provision the troops is to issue them standard-issue bits of gold or silver and then demand everyone else in the kingdom give them one of those coins back again. Thus we find that the language of debt and the language of morality start to merge.
In Sanskrit, Hebrew, Aramaic, ‘debt,’ ‘guilt,’ and ‘sin’ are actually the same word. Much of the language of the great religious movements – reckoning, redemption, karmic accounting and the like – are drawn from the language of ancient finance. But that language is always found wanting and inadequate and twisted around into something completely different. It’s as if the great prophets and religious teachers had no choice but to start with that kind of language because it’s the language that existed at the time, but they only adopted it so as to turn it into its opposite: as a way of saying debts are not sacred, but forgiveness of debt, or the ability to wipe out debt, or to realize that debts aren’t real – these are the acts that are truly sacred.
How did this happen? Well, remember I said that the big question in the origins of money is how a sense of obligation – an ‘I owe you one’ – turns into something that can be precisely quantified? Well, the answer seems to be: when there is a potential for violence. If you give someone a pig and they give you a few chickens back you might think they’re a cheapskate, and mock them, but you’re unlikely to come up with a mathematical formula for exactly how cheap you think they are. If someone pokes out your eye in a fight, or kills your brother, that’s when you start saying, “traditional compensation is exactly twenty-seven heifers of the finest quality and if they’re not of the finest quality, this means war!”
Money, in the sense of exact equivalents, seems to emerge from situations like that, but also, war and plunder, the disposal of loot, slavery. In early Medieval Ireland, for example, slave-girls were the highest denomination of currency. And you could specify the exact value of everything in a typical house even though very few of those items were available for sale anywhere because they were used to pay fines or damages if someone broke them.
But once you understand that taxes and money largely begin with war it becomes easier to see what really happened. After all, every Mafiosi understands this. If you want to take a relation of violent extortion, sheer power, and turn it into something moral, and most of all, make it seem like the victims are to blame, you turn it into a relation of debt. “You owe me, but I’ll cut you a break for now…” Most human beings in history have probably been told this by their debtors. And the crucial thing is: what possible reply can you make but, “wait a minute, who owes what to who here?” And of course for thousands of years, that’s what the victims have said, but the moment you do, you are using the rulers’ language, you’re admitting that debt and morality really are the same thing. That’s the situation the religious thinkers were stuck with, so they started with the language of debt, and then they tried to turn it around and make it into something else.
PP: You’d be forgiven for thinking this was all very Nietzschean. In his ‘On the Genealogy of Morals’ the German philosopher Friedrich Nietzsche famously argued that all morality was founded upon the extraction of debt under the threat of violence. The sense of obligation instilled in the debtor was, for Nietzsche, the origin of civilisation itself. You’ve been studying how morality and debt intertwine in great detail. How does Nietzsche’s argument look after over 100 years? And which do you see as primal: morality or debt?
DG: Well, to be honest, I’ve never been sure if Nietzsche was really serious in that passage or whether the whole argument is a way of annoying his bourgeois audience; a way of pointing out that if you start from existing bourgeois premises about human nature you logically end up in just the place that would make most of that audience most uncomfortable.
In fact, Nietzsche begins his argument from exactly the same place as Adam Smith: human beings are rational. But rational here means calculation, exchange and hence, trucking and bartering; buying and selling is then the first expression of human thought and is prior to any sort of social relations.
But then he reveals exactly why Adam Smith had to pretend that Neolithic villagers would be making transactions through the spot trade. Because if we have no prior moral relations with each other, and morality just emerges from exchange, then ongoing social relations between two people will only exist if the exchange is incomplete – if someone hasn’t paid up.
But in that case, one of the parties is a criminal, a deadbeat and justice would have to begin with the vindictive punishment of such deadbeats. Thus he says all those law codes where it says ‘twenty heifers for a gouged-out eye’ – really, originally, it was the other way around. If you owe someone twenty heifers and don’t pay they gouge out your eye. Morality begins with Shylock’s pound of flesh.
Needless to say there’s zero evidence for any of this – Nietzsche just completely made it up. The question is whether even he believed it. Maybe I’m an optimist, but I prefer to think he didn’t.
Anyway it only makes sense if you assume those premises; that all human interaction is exchange, and therefore, all ongoing relations are debts. This flies in the face of everything we actually know or experience of human life. But once you start thinking that the market is the model for all human behavior, that’s where you end up with.
If however you ditch the whole myth of barter, and start with a community where people do have prior moral relations, and then ask, how do those moral relations come to be framed as ‘debts’ – that is, as something precisely quantified, impersonal, and therefore, transferrable – well, that’s an entirely different question. In that case, yes, you do have to start with the role of violence.
PP: Interesting. Perhaps this is a good place to ask you about how you conceive your work on debt in relation to the great French anthropologist Marcel Mauss’ classic work on gift exchange.
DG: Oh, in my own way I think of myself as working very much in the Maussian tradition. Mauss was one of the first anthropologists to ask: well, all right, if not barter, then what? What do people who don’t use money actually do when things change hands? Anthropologists had documented an endless variety of such economic systems, but hadn’t really worked out common principles. What Mauss noticed was that in almost all of them, everyone pretended as if they were just giving one another gifts and then they fervently denied they expected anything back. But in actual fact everyone understood there were implicit rules and recipients would feel compelled to make some sort of return.
What fascinated Mauss was that this seemed to be universally true, even today. If I take a free-market economist out to dinner he’ll feel like he should return the favor and take me out to dinner later. He might even think that he is something of chump if he doesn’t and this even if his theory tells him he just got something for nothing and should be happy about it. Why is that? What is this force that compels me to want to return a gift?
This is an important argument, and it shows there is always a certain morality underlying what we call economic life. But it strikes me that if you focus too much on just that one aspect of Mauss’ argument you end up reducing everything to exchange again, with the proviso that some people are pretending they aren’t doing that.
Mauss didn’t really think of everything in terms of exchange; this becomes clear if you read his other writings besides ‘The Gift’. Mauss insisted there were lots of different principles at play besides reciprocity in any society – including our own.
For example, take hierarchy. Gifts given to inferiors or superiors don’t have to be repaid at all. If another professor takes our economist out to dinner, sure, he’ll feel that he should reciprocate; but if an eager grad student does, he’ll probably figure just accepting the invitation is favor enough; and if George Soros buys him dinner, then great, he did get something for nothing after all. In explicitly unequal relations, if you give somebody something, far from doing you a favor back, they’re more likely to expect you to do it again.
Or take communistic relations – and I define this, following Mauss actually, as any ones where people interact on the basis of ‘from each according to their abilities to each according to their needs’. In these relations people do not rely on reciprocity, for example, when trying to solve a problem, even inside a capitalist firm. (As I always say, if somebody working for Exxon says, “hand me the screwdriver,” the other guy doesn’t say, “yeah and what do I get for it?”) Communism is in a way the basis of all social relations – in that if the need is great enough (I’m drowning) or the cost small enough (can I have a light?) everyone will be expected to act that way.
Anyway that’s one thing I got from Mauss. There are always going to be lots of different sorts of principles at play simultaneously in any social or economic system – which is why we can never really boil these things down to a science. Economics tries to, but it does it by ignoring everything except exchange.
PP: Let’s move onto economic theory then. Economics has some pretty specific theories about what money is. There’s the mainstream approach that we discussed briefly above; this is the commodity theory of money in which specific commodities come to serve as a medium of exchange to replace crude barter economies. But there’s also alternative theories that are becoming increasingly popular at the moment. One is the Circuitist theory of money in which all money is seen as a debt incurred by some economic agent. The other – which actually integrates the Circuitist approach – is the Chartalist theory of money in which all money is seen as a medium of exchange issued by the Sovereign and backed by the enforcement of tax claims. Maybe you could say something about these theories?
DG: One of my inspirations for ‘Debt: The First 5,000 Years’ was Keith Hart’s essay ‘Two Sides of the Coin’. In that essay Hart points out that not only do different schools of economics have different theories on the nature of money, but there is also reason to believe that both are right. Money has, for most of its history, been a strange hybrid entity that takes on aspects of both commodity (object) and credit (social relation.) What I think I’ve managed to add to that is the historical realization that while money has always been both, it swings back and forth – there are periods where credit is primary, and everyone adopts more or less Chartalist theories of money and others where cash tends to predominate and commodity theories of money instead come to the fore. We tend to forget that in, say, the Middle Ages, from France to China, Chartalism was just common sense: money was just a social convention; in practice, it was whatever the king was willing to accept in taxes.
PP: You say that history swings between periods of commodity money and periods of virtual money. Do you not think that we’ve reached a point in history where due to technological and cultural evolution we may have seen the end of commodity money forever?
DG: Well, the cycles are getting a bit tighter as time goes by. But I think we’ll still have to wait at least 400 years to really find out. It is possible that this era is coming to an end but what I’m more concerned with now is the period of transition.
The last time we saw a broad shift from commodity money to credit money it wasn’t a very pretty sight. To name a few we had the fall of the Roman Empire, the Kali Age in India and the breakdown of the Han dynasty… There was a lot of death, catastrophe and mayhem. The final outcome was in many ways profoundly libratory for the bulk of those who lived through it – chattel slavery, for example, was largely eliminated from the great civilizations. This was a remarkable historical achievement. The decline of cities actually meant most people worked far less. But still, one does rather hope the dislocation won’t be quite so epic in its scale this time around. Especially since the actual means of destruction are so much greater this time around.
PP: Which do you see as playing a more important role in human history: money or debt?
DG: Well, it depends on your definitions. If you define money in the broadest sense, as any unit of account whereby you can say 10 of these are worth 7 of those, then you can’t have debt without money. Debt is just a promise that can be quantified by means of money (and therefore, becomes impersonal, and therefore, transferable.) But if you are asking which has been the more important form of money, credit or coin, then probably I would have to say credit.
PP: Let’s move on to some of the real world problems facing the world today. We know that in many Western countries over the past few years households have been running up enormous debts, from credit card debts to mortgages (the latter of which were one of the root causes of the recent financial crisis). Some economists are saying that economic growth since the Clinton era was essentially run on an unsustainable inflating of household debt. From an historical perspective what do you make of this phenomenon?
DG: From an historical perspective, it’s pretty ominous. One could go further than the Clinton era, actually – a case could be made that we are seeing now is the same crisis we were facing in the 70s; it’s just that we managed to fend it off for 30 or 35 years through all these elaborate credit arrangements (and of course, the super-exploitation of the global South, through the ‘Third World Debt Crisis’.)
As I said Eurasian history, taken in its broadest contours, shifts back and forth between periods dominated by virtual credit money and those dominated by actual coin and bullion. The credit systems of the ancient Near East give way to the great slave-holding empires of the Classical world in Europe, India, and China, which used coinage to pay their troops. In the Middle Ages the empires go and so does the coinage – the gold and silver is mostly locked up in temples and monasteries – and the world reverts to credit. Then after 1492 or so you have the return world empires again; and gold and silver currency together with slavery, for that matter.
What’s been happening since Nixon went off the gold standard in 1971 has just been another turn of the wheel – though of course it never happens the same way twice. However, in one sense, I think we’ve been going about things backwards. In the past, periods dominated by virtual credit money have also been periods where there have been social protections for debtors. Once you recognize that money is just a social construct, a credit, an IOU, then first of all what is to stop people from generating it endlessly? And how do you prevent the poor from falling into debt traps and becoming effectively enslaved to the rich? That’s why you had Mesopotamian clean slates, Biblical Jubilees, Medieval laws against usury in both Christianity and Islam and so on and so forth.
Since antiquity the worst-case scenario that everyone felt would lead to total social breakdown was a major debt crisis; ordinary people would become so indebted to the top one or two percent of the population that they would start selling family members into slavery, or eventually, even themselves.
Well, what happened this time around? Instead of creating some sort of overarching institution to protect debtors, they create these grandiose, world-scale institutions like the IMF or S&P to protect creditors. They essentially declare (in defiance of all traditional economic logic) that no debtor should ever be allowed to default. Needless to say the result is catastrophic. We are experiencing something that to me, at least, looks exactly like what the ancients were most afraid of: a population of debtors skating at the edge of disaster.
And, I might add, if Aristotle were around today, I very much doubt he would think that the distinction between renting yourself or members of your family out to work and selling yourself or members of your family to work was more than a legal nicety. He’d probably conclude that most Americans were, for all intents and purposes, slaves.
PP: You mention that the IMF and S&P are institutions that are mainly geared toward extracting debts for creditors. This seems to have become the case in the European monetary union too. What do you make of the situation in Europe at the moment?
DG: Well, I think this is a prime example of why existing arrangements are clearly untenable. Obviously the ‘whole debt’ cannot be paid. But even when some French banks offered voluntary write-downs for Greece, the others insisted they would treat it as if it were a default anyway. The UK takes the even weirder position that this is true even of debts the government owes to banks that have been nationalized – that is, technically, that they owe to themselves! If that means that disabled pensioners are no longer able to use public transit or youth centers have to be closed down, well that’s simply the ‘reality of the situation,’ as they put it.
These ‘realities’ are being increasingly revealed to simply be ones of power. Clearly any pretence that markets maintain themselves, that debts always have to be honored, went by the boards in 2008. That’s one of the reasons I think you see the beginnings of a reaction in a remarkably similar form to what we saw during the heyday of the ‘Third World debt crisis’ – what got called, rather weirdly, the ‘anti-globalization movement’. This movement called for genuine democracy and actually tried to practice forms of direct, horizontal democracy. In the face of this there was the insidious alliance between financial elites and global bureaucrats (whether the IMF, World Bank, WTO, now EU, or what-have-you).
When thousands of people begin assembling in squares in Greece and Spain calling for real democracy what they are effectively saying is: “Look, in 2008 you let the cat out of the bag. If money really is just a social construct now, a promise, a set of IOUs and even trillions of debts can be made to vanish if sufficiently powerful players demand it then, if democracy is to mean anything, it means that everyone gets to weigh in on the process of how these promises are made and renegotiated.” I find this extraordinarily hopeful.
PP: Broadly speaking how do you see the present debt/financial crisis unravelling? Without asking you to peer into the proverbial crystal-ball – because that’s a silly thing to ask of anyone – how do you see the future unfolding; in the sense of how do you take your bearings right now?
DG: For the long-term future, I’m pretty optimistic. We might have been doing things backwards for the last 40 years, but in terms of 500-year cycles, well, 40 years is nothing. Eventually there will have to be recognition that in a phase of virtual money, safeguards have to be put in place – and not just ones to protect creditors. How many disasters it will take to get there? I can’t say.
But in the meantime there is another question to be asked: once we do these reforms, will the results be something that could even be called ‘capitalism’?
Desenho geométrico em Plácido de Castro, no Acre: palco de cerimônias
Houve uma época em que os deuses parecem ter sido geométricos num canto da Amazônia, o leste do Acre, perto da divisa com a Bolívia. E essa época provavelmente começou bem antes do que se pensava. Doze datações por radiocarbono feitas em diferentes setores de três sítios arqueológicos dessa região sinalizam que a construção dos chamados geoglifos – grandes desenhos escavados no solo da floresta por uma cultura pré-colombiana ainda não determinada, admiradora das linhas retas de quadrados e retângulos e dos traços arredondados de círculos e elipses – teve início há no mínimo 2 mil anos. Coordenado pela arqueóloga Denise Schaan, da Universidade Federal do Pará (UFPA), o novo estudo, cujo artigo está sendo finalizado antes de ser submetido à publicação numa revista científica, amplia a cronologia da cultura amazônica dos geoglifos. Até agora existia apenas o dado de uma datação feita em 2003 no Acre por pesquisadores finlandeses num desses sítios arqueológicos, que situava os desenhos como tendo sido produzidos entre os séculos XIII e XIV.
Feita a partir de restos de carvão queimado encontrados numa camada geológica rica em pedaços de cerâmica, um indicativo de que houve ali alguma presença humana, a nova série de datações também sugere que os desconhecidos autores dos geoglifos podem ter desaparecido antes da chegada dos europeus nas Américas. Nenhum dos três sítios estudados (Fazenda Colorada, Jacó Sá e Severino Calazas), situados num raio de 20 quilômetros dentro de uma área de platô, de terra firme, não inundável, entre os vales dos rios Acre e Iquiri, forneceu, até agora, elementos de que foram habitados por tribos há mais de 500 anos. “O resultado das datações foi uma surpresa”, diz Denise, que comanda os trabalhos arqueológicos sobre os geoglifos desde 2005 com verbas do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da Academia de Ciências da Finlândia e do estado do Acre.
A idade dos desenhos geométricos, moldados no solo amazônico por meio da retirada de grandes quantidades de terra, não é o único ponto em revisão. A função primordial desses sítios, que podem apresentar mais de um tipo de geoglifo e vestígios de antigas estradas, também está em aberto. Desde os anos 1970, quando partes do Acre começaram a ser desmatadas por atividades agropecuárias e foram avistados os primeiros geoglifos em pontos até então cobertos pela floresta, os pesquisadores se indagam por que os antigos habitantes da região esculpiram círculos e quadrados em baixo-relevo no solo. A hipótese inicial de que as construções, cujos contornos são formados por valas contínuas abertas no terreno, poderiam ter tido funções defensivas, semelhantes à de um forte, parece fazer cada vez menos sentido. Escavações recentes feitas em quase uma dezena de sítios do Acre associados à ocorrência dos desenhos sinalizam que esses lugares não foram usados prioritariamente como moradia por povos antigos. Como uma espécie de praça tribal, a área interna dos geoglifos deve ter sido utilizada para cerimônias. “A evidência arqueológica sugere que esses sítios eram usados para encontros especiais, cultos religiosos e apenas ocasionalmente como aldeia”, diz Denise.
Quando iniciaram as incursões de campo, os pesquisadores trabalhavam com a ideia de que os sítios com geoglifos pudessem fornecer algum tipo de evidência de ocupação humana em larga escala e por um período prolongado em sua vizinhança. Afinal, é mais do que razoável supor que o povo responsável pela confecção dos grandes e precisos desenhos no solo era numeroso e apresentava uma estrutura social complexa. “Os construtores dos geoglifos não tinham pedras naquela região, mas fizeram enormes trabalhos na terra que demandavam poderio e habilidades de organização comparáveis à de outras civilizações antigas”, diz o arqueólogo Martti Pärssinen, do Instituto Ibero-americano da Finlândia, sediado em Madri, que colabora com a equipe brasileira e também um dos autores do trabalho com as novas datações dos geoglifos acreanos.
Em média, a área interna de um geoglifo varia de 1 a 3 hectares. As figuras menores apresentam geralmente linhas arredondadas, enquanto as maiores podem ser tanto círculos como quadrados. Nos sítios estudados, a profundidade dos buracos no solo que formam os traços dos desenhos variou de 35 centímetros a 5 metros (m) e a amplitude das valetas foi de 1,75 a 20 m. A terra retirada para abrir os fossos era usada pelos arquitetos dos geoglifos para fazer pequenas muretas, de até 1,5 m, que seguiam os contornos das figuras. Para dar conta de todo esse serviço, milhares de pessoas deveriam ter vivido em algum momento nos arredores dos geoglifos e trabalhado de forma coordenada para sua construção. Mas os achados arqueológicos nos sítios investigados em detalhe não ratificam, uma vez mais, o pressuposto inicial dos pesquisadores.
Ossadas humanas preservadas não foram encontradas em nenhum lugar. Não há também manchas da chamada terra preta, um tipo de solo negro muito comum em outras partes da Amazônia, que se forma a partir de restos orgânicos produzidos pelo estabelecimento de ocupações humanas prolongadas numa área. Os poucos artefatos associados a uma cultura material, em geral alguns pedaços de cerâmica, foram resgatados no topo ou no fundo das valas que formam as linhas geométricas ou em pequenos montículos de terra, provavelmente restos de habitações pré-históricas, que se situam bem ao lado dos contornos dos geoglifos. Dentro da área plana demarcada pelos misteriosos círculos e quadrados escavados no chão nada de realmente relevante foi resgatado. “Ainda precisamos achar os locais de moradia e cemitérios dos construtores dos geoglifos”, afirma o paleontólogo Alceu Ranzi, hoje professor aposentado na Universidade Federal do Acre (Ufac), a quem se deve a (re)descoberta dos desenhos no solo nas duas últimas décadas. “Eles devem ter vivido em algum lugar não muito longe dos sítios.”
Diversidade de formas: geoglifos com linhas arredondadas e retas
A tecnologia aeroespacial tem sido uma aliada dos arqueólogos na tarefa de localizar e estudar os sítios amazônicos com geoglifos. Estar um pouco longe e acima dos desenhos, dentro de um avião ou tendo como olhos as lentes de um satélite, facilita o trabalho de procura das grandes figuras geométricas em meio a áreas desmatadas (se há floresta esse expediente não funciona). Inicialmente, os cientistas usaram as imagens gratuitas do serviço Google Earth para procurar novas ocorrências dos desenhos. A partir de 2007, com apoio do governo do Acre, obtiveram também as imagens do satélite taiwanês Formosat-2, que têm maior cobertura. Com o emprego dessas ferramentas de prospecção remota, a quantidade de sítios conhecidos com geoglifos deu um salto: saiu de 32 em 2005, chegou a 150 dois anos mais tarde e hoje está na casa dos 300. Esses são os números relativos ao Acre, que parece ter sido a região onde os desenhos se concentram e podem se espalhar por uma porção do estado com uma área de 25 mil quilômetros quadrados, 16 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Nos estados vizinhos do Amazonas e de Rondônia e também na Bolívia foram identificadas áreas com geoglifos por essa metodologia. “Não é mais tão fácil encontrar novos sítios, pois já fizemos várias varreduras sistemáticas”, explica a geógrafa Antonia Barbosa, da (Ufac), membro da equipe nacional que estudou os geoglifos. “Quando iniciamos o trabalho com imagens de satélite, encontrávamos em uma varredura uns 10 sítios. Hoje, com sorte, achamos um ou dois.”
Não há evidências concretas sobre quem foram os construtores dos geoglifos nem quanto tempo foi consumido nessa tarefa. A construção de valetas e muretas para cercar casas e aldeias já ocorria, por exemplo, na Europa há aproximadamente 10 mil anos, nos primórdios da agricultura. Mas na Amazônia esse tipo de construção é bem mais rara. Como até agora não há indícios de que a fronteira do Acre com a Bolívia foi a morada de uma única e grande civilização perdida, cujos restos das casas e grandes aldeias ninguém consegue encontrar, os arqueólogos passaram a trabalhar com um cenário intermediário. Não deve ter havido um enorme império perdido que cultuava deuses geométricos nesse canto da Amazônia, mas talvez dois ou três povos, ainda seminômades e espalhados por pequenas aldeias (hoje mais difíceis de serem encontradas), que partilhavam alguns traços culturais em comum, como a feitura dos geoglifos. “A sociedade dos geoglifos era de alguma forma complexa, mas estava num estágio formativo, de transição”, diz a arqueóloga Sanna Saunaluoma, da Universidade de Helsinque, que estuda os desenhos tanto na Bolívia como no Acre, aqui do lado dos brasileiros.
Membros das etnias Tacana e Aruaque, que hoje habitam respectivamente o lado boliviano e brasileiro dessa fronteira binacional, são apontados como os possíveis descendentes dos povos que tiveram a tradição de traçar enormes círculos e quadrados no solo. Mas, se um dia foram portadores dessa tradição comum, hoje não a professam mais. Para tornar o quadro mais incerto, não há provas de que as duas tribos estivessem realmente presentes nessa área na época em que os geoglifos foram feitos, tampouco se sabe qual era a divisa territorial que as separava. Uma pista, ainda tênue, de que ao menos uma dessas etnias, a Tacana, pode ter construído geoglifos vem de um texto do final do século XIX. O escrito relata o encontro de um coronel brasileiro, na divisa com a Bolívia, com 200 índios que moravam numa aldeia muito organizada e cultuavam deuses geométricos, talhados em madeira. A história não prova nada, mas pode ser um rastro a ser seguido.
No final do século XIX, o zoólogo suíço Emílio Goeldi fez uma expedição ao rio Cunani e encontrou grandes blocos de rocha que pareciam apontar para o céu em terras do atual norte do Amapá, uma área então em litígio entre o Brasil e a França. Ao longo das seis primeiras décadas do século passado, alguns pesquisadores de renome, como o alemão Curt Nimuendajú nos anos 1920 e os americanos Betty Meggers e Clifford Evans no final dos anos 1950, também avistaram essas construções humanas com os tais blocos de granito em alguns sítios arqueológicos. Pouca cerâmica associada aos locais dos megálitos, como são chamadas as grandes estruturas de pedra arranjadas ou construídas por mãos humanas, foi resgatada e ganhou corpo a interpretação de que, naquele pedaço quase perdido da Amazônia, apenas uma pequena população de algum povo pré-colombiano deve ter feito sua morada. Os sítios deveriam ter sido usados basicamente para fins cerimoniais. Depois disso, a região caiu num semiesquecimento para a ciência.
Até que, em 2005, um jovem casal de arqueólogos gaúchos, Mariana Petry Cabral e João Darcy de Moura Saldanha, deixou o Sul, se mudou para a capital amapaense e passou a se dedicar ao estudo de alguns 200 sítios pré-históricos do estado, dos quais uns 30 apresentam megálitos. Embora ainda haja muitas lacunas de conhecimento sobre a antiga cultura que talhou e ordenou os blocos de granito, alguns com até 2,5 metros de altura e 4 toneladas, a dupla de pesquisadores produziu uma série de novos dados sobre o contexto em que as estruturas foram erigidas. Pela primeira vez, o importante sítio do Rego Grande, dotado de vistosas pedras na posição vertical e situado em Calçoene, município distante 460 quilômetros ao norte de Macapá, foi alvo de uma datação por carbono 14, um dos métodos mais confiáveis. “Conseguimos realizar três datações de fragmentos de carvão encontrados dentro de poços funerários do Rego Grande”, diz Mariana, que, como Saldanha, trabalha no Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa). O local foi habitado há cerca de mil anos, dado que confirma as estimativas iniciais dos cientistas. Outros 10 sítios do Amapá, três deles com megálitos, também foram datados e todos parecem ter sido ocupados entre 700 e mil anos atrás.
É relativamente comum que sítios pré-históricos com megálitos exibam evidências de terem sido usados como lugares para observação de algum fenômeno astronômico. Essa é uma das funções que se atribuem comumente ao famoso círculo de pedras de Stonehenge, erigido há 4,5 mil anos no sul da Inglaterra. Seria o Rego Grande um Stonehenge amazônico? As evidências apoiam essa interpretação. Nos últimos anos os arqueólogos realizaram medições sistemáticas sempre na data de 21 ou 22 de dezembro, que marca o solstício de inverno (Calçoene está acima da linha do equador), e verificaram que um fino monólito parece estar alinhado com a trajetória do sol ao longo desse dia. Ao nascer, o sol está no topo da rocha e, com o passar das horas, vai descendo até morrer na base da rocha. “Nessa época do ano o solstício marca o início da temporada de chuvas na Amazônia”, comenta Saldanha. “Os índios deviam saber disso.” Dois outros blocos de granito, inclusive um com furo feito por mãos humanas, também ocupam posições aparentemente associadas ao movimento do astro nessa data. Como as pedras e blocos inclinados do Rego Grande exibem uma robusta fundação, feita também de pedras, os arqueólogos acreditam que a angulação do megálito foi pensada por seus idealizadores, e não seria fruto do desgaste natural sofrido pelos pedaços de granito do sítio.
Especialista em megálitos, em especial os do Alentejo, o arqueólogo português Manoel Calado, da Universidade de Lisboa, concorda com a hipótese de que as pedras inclinadas do Rego Grande podem ter sido dispostas dessa maneira para marcar a observação, na linha do horizonte, de eventos astronômicos simples, de caráter cíclico, como a trajetória do sol solsticial. “Não tenho nenhuma dúvida (disso)”, diz Calado, que já esteve no Amapá para conhecer as estruturas líticas desse sítio, mas não faz parte do grupo de pesquisa dos brasileiros. “Esse é um dos aspectos que tornam os megálitos amazônicos muito semelhantes aos da Europa.” Para ele, a construção desse tipo de estrutura pode ter sido realizada no Amapá num momento em que as tribos locais passavam por um processo de sedentarização e de eclosão ou desenvolvimento da agricultura. Era preciso estar fixo à terra para alterar a paisagem com estruturas como os megálitos.
Cemitério – Rego Grande e outros sítios com megálitos exibem traços de terem sido usados também como cemitérios, outra característica típica desse tipo de estrutura pré-histórica. Urnas funerárias feitas no estilo cerâmico aristé, marcado por desenhos vermelhos sob um fundo branco ou pontuado por gravuras feitas na argila ainda úmida, foram encontradas nesses locais. Pedaços de vasos decorados, achados junto às urnas, indicam que os mortos podem ter sido enterrados ao lado de oferendas. “Os sítios com grandes megálitos devem ter sido destinados às pessoas mais importantes da tribo”, afirma Saldanha. O problema é que cerâmicas desse estilo foram igualmente encontradas em sítios pré-históricos que não exibem monumentos de pedra. Comum em todo o litoral norte do Amapá e na Guiana Francesa, a elaborada cerâmica aristé deixou de ser produzida depois da chegada do europeu às Américas e, segundo Mariana, sua confecção não pode ser associada a nenhum povo indígena atual da região.
A dupla de pesquisadores, que representa dois terços da arqueologia amapaense (só há mais um especialista nesse tema no estado), escavou ainda duas aldeias antigas, também na região de Calçoene, onde devem ter morado os construtores das grandes estruturas líticas. Descobriram vestígios de apenas meia dúzia de habitações em cada aldeia. No início de seus trabalhos os arqueólogos ainda se amparavam na hipótese de que poderia ter havido uma sociedade complexa e organizada, com uma população numerosa e grandes acampamentos, no norte do Amapá, por volta do ano mil da era cristã, quando surgiram os primeiros megálitos. Agora acreditam que a alteração na paisagem natural do Amapá pode ter sido produzida por tribos com poucos representantes. “Eles parecem ter vivido em pequenas aldeias esparsas, mas tinham uma liderança e organização para ter feito os megálitos”, afirma Saldanha.
Formas completamente novas de narrativa surgirão a partir da revolução tecnológica. A previsão é de Bob Stein, editor de 65 anos que desde os anos 1980, bem antes do advento da internet, dedica-se à produção de conteúdo eletrônico.
Foi pioneiro ao lançar uma enciclopédia para computadores pessoais e como criador de CD-ROMs interativos e multimídias. Fundador do Institute for the Future of the Book, com pesquisadores sediados em Nova York e Londres, Stein promete abalar as convicções da plateia de editores do 2º Congresso Internacional do Livro Digital da Câmara Brasileira do Livro, que acontece amanhã e quarta-feira em São Paulo.
O futuro do livro, prevê o especialista, é se tornar uma praça pública virtual, um mundo no qual leitores se reúnem e criam suas próprias histórias, uma forma de contar histórias bem parecida com a dos games. A leitura como uma experiência solitária e silenciosa está com os dias contados, assim como o livro impresso, cujo futuro é sobreviver apenas como objeto de arte para consumo dos mais afortunados.
Como surgiu e qual foi a função do Institute for the Future of the Book?
BOB STEIN: Há sete anos, fui convidado pela MacArthur Foundation a voltar a ser editor. Mas naquela época, com a internet, eu acreditava que já não havia mais lugar para um editor, não entendia qual seria sua função. Relutei em aceitar o convite. Tive então a ideia de propor à fundação que financiasse uma pesquisa sobre o papel do editor nesta nova era. Eles foram extremamente generosos, doaram US$ 1 milhão para a criação do instituto. O instituto foi criado em 2004. A princípio, era um projeto de cinco anos de duração cujo objetivo era entender como as narrativas, o discurso, mudam ao deixar as páginas impressas rumo às mídias eletrônicas e à internet. Acredito que conseguimos entender como o mercado editorial vai evoluir. O livro será uma praça, um ponto de encontro e reunião de leitores. Não é algo que acontecerá da noite para o dia, mas chegaremos lá. Fundei recentemente uma nova empresa, a Social Books, e estamos criando plataformas para publicações eletrônicas e sociais.
A geração digital será capaz de ler um livro impresso como fazemos, sozinhos, concentrados, em silêncio por horas a fio ou ela não terá mais as habilidades cognitivas para tanto?
Ler da maneira que você descreveu é algo recente, não é uma prática tão tradicional e arraigada assim. No século XIX, o normal era as pessoas lerem em voz alta, em grupo. Uma biblioteca pessoal com estantes cheias de livros era raríssimo, privilégio dos ricos até depois da Segunda Guerra Mundial. Os comportamentos que envolvem a leitura solitária são recentes. Temos medo de perder algo se estes hábitos mudarem. Mas a Humanidade evoluiu durante muito tempo sem isso. As novas gerações encontrarão algo novo que será tão valioso quanto este tipo de leitura foi para nós.
Como a revolução digital está transformando o mercado editorial?
O mercado editorial sabia há muito tempo da iminência dos livros digitais. Mas, em vez de investir, permitiu que Amazon e Apple pilotassem o navio. Foi um erro grave. As editoras perderam a dianteira e agora têm de correr atrás do prejuízo. O problema é que estão acostumadas e se agarram a um modelo de negócios no qual vendem objetos impressos por uma quantidade justa de dinheiro. Agora todas estão convertendo e lançando seus livros em formatos eletrônicos e acreditam que assim será possível manter a mesma margem de lucro. Isto nunca vai acontecer. A verdadeira energia de transformação vem de fora do mercado editorial, principalmente do mundo dos games. As editoras terão de seguir este exemplo para aprender como integrar diferentes formas de mídia – não apenas adicionar fotos, vídeos e áudios aos textos -, e como lidar com comunidades de leitores. A indústria dos games já sabe muito bem como fazer isso. Um exemplo é “World of warcraft”, espécie de role-playing game on-line, com mais de 12 milhões de assinaturas por mês. É um conceito a ser estudado. Talvez o futuro da literatura esteja em autores que criam um mundo a ser habitado pelos leitores, que dentro deste universo escrevem suas próprias histórias. Não me surpreenderá se uma empresa de game comprar uma grande editora em algum momento dos próximos dez anos.
O mercado editorial vai passar pela mesma crise da indústria fonográfica?
Sim, é bem parecido. As editoras acreditam que o que aconteceu com as gravadoras e a indústria do cinema não acontecerá com elas. Infelizmente não é verdade. No Pirate Bay é possível encontrar milhares de livros, muito mais do que seremos capazes de ler a vida inteira.
Houve um momento em que o futuro parecia estar nos enhanced books (o primeiro foi uma adaptação interativa, com áudio e vídeo de “Alice no País das Maravilhas, lançada em 2010 como um aplicativo para iPad). Este formato já está ultrapassado?
Sim. Embora muito do meu trabalho seja aprimorar livros, filmes ou músicas adicionando conteúdo para que eles sejam mais bem compreendidos e apreciados, no fim do dia isto jamais será tão importante quanto criar uma maneira completamente nova de se consumir conteúdo. A revolução tecnológica propicia a criação de novas formas de narrativas. Algo como a invenção de um novo gênero literário, adequado aos novos tempos, a exemplo do que aconteceu quando Miguel de Cervantes inventou, com “Dom Quixote” o romance moderno.
Livros impressos vão sobreviver?
Sim. Mas irão se tornar uma espécie de objeto de arte. Só quem é muito rico será capaz de comprá-los. Algo como os livros para mesas de centro que compramos hoje em dia porque são bonitos, decorativos. No futuro, o livro como uma forma de transmitir ideias será eletrônico.
Em seu Sermão da quarta dominga depois da Páscoa, o padre Antônio Vieira (1608-1697) discute a tristeza a partir da passagem bíblica em que Cristo anuncia sua morte aos apóstolos, que se entristecem. Para Vieira, porém, a causa daquela tristeza não era a ausência iminente do mestre, mas o silêncio diante de sua partida. Se tivessem perguntado aonde Cristo iria teriam compreendido que não havia motivos para sofrer. Assim, a causa da tristeza era o silêncio. Num curioso paralelo, em 1895, Freud afirmou: “Sofremos de reminiscências que se curam lembrando”. A base da psicanálise freudiana era a cura pela palavra e pelo autoconhecimento da alma. Algo a que, em 1676, Vieira (leia mais na página 86) já aludia em As cinco pedras da funda de Davi: “O primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”, acrescentando no Sermão da quarta dominga do advento: “Nenhuma coisa trazemos mais esquecida, mais detrás de nós que a nós mesmos”.
“Nessa primeira modernidade havia uma forma de terapia que usava as palavras para tratar as dores da alma, ainda que identificá-la diretamente com a psicoterapia atual seja uma imprecisão”, explica o psicólogo Paulo José Carvalho da Silva, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), autor da pesquisa Ideias sobre as dores da alma no Brasil entre os séculos XVI e XVIII, apoiada pela FAPESP. “Ainda assim, investigar as noções de dores da alma nesse período é um desdobramento original da história das ideias psicológicas, uma área de pesquisa emergente na história da ciência. A psicologia como ciência de práticas terapêuticas só foi sistematizada no final do século XIX, mas desde a Antiguidade muitos pensadores quiseram compreender e tratar a alma e um dos nomes desses saberes era a medicina da alma”, analisa o pesquisador. “Muitos dos conceitos da psicologia moderna têm raízes no passado e olhar para esse passado nos permite reconhecer os elos de continuidade com nosso presente, as origens de teorias e métodos próprios do nosso modo de pensar. Se analisarmos o conjunto da produção luso-brasileira colonial, destacando-se o aporte dos jesuítas, notamos a criação de formas e métodos para a construção de um tipo de conhecimento da subjetividade e do comportamento humanos muito relevantes para a definição dos alicerces que darão origem à psicologia moderna”, afirma a psicóloga Marina Massimi, professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo e autora, entre outros, de História da psicologia brasileira (E.P.U.) “A preocupação com os fenômenos psicológicos no Brasil não é recente e desde os tempos da colônia eles aparecem em obras de filosofia, moral, teologia, medicina, política etc. cujo estudo mostra uma produção muitas vezes original e mesmo questões até hoje atuais”, concorda a psicóloga Mitsuko Makino Antunes, da PUC-SP, e autora de A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição.
O psicólogo e professor da USP Isaías Pessotti observa em seu estudo Notas para uma história da psicologia brasileira que “a evolução da psicologia moderna começa no Brasil colonial em que se veiculam ideias de interesse para a área em diversas áreas do saber mesmo sem a presunção de construir uma psicologia”. Segundo o pesquisador, esses textos eram explicitamente sobre outros temas, mas tratavam de questões como método de ensino, controle das emoções, causas da loucura, diferença de comportamentos entre sexos e raças etc. compondo o pensamento da elite cultural da época colonial. “É um período pré-institucional, pois o que se publica são obras desvinculadas de instituições da psicologia. São trabalhos individuais, sem compromisso com a construção ou difusão do saber psicológico, escritos por autores indiferentes ao progresso do saber psicológico per se. Na sua maioria são religiosos ou políticos, homens de projeção e poder, iluminados pela cultura europeia e interessados em usar essa ‘psicologia’ para a organização da sociedade e do Estado brasileiro.”
Os tratamentos para as patologias da alma eram assumidos, no início, pelos religiosos, no caso do Brasil colônia pelos missionários jesuítas, seguidos de outros, embora isso não significasse que a medicina da alma fosse uma empresa estritamente religiosa. Postulava-se, de modo geral, uma continuidade entre a dor do corpo e a da alma, identificada como tristeza, luto ou descontentamento. “Na primeira modernidade, o debate filosófico sobre a definição da natureza das paixões também incluía sua relação com a violência. Muitos sustentavam que a paixão era um perigoso elemento da natureza humana com enorme potencial subversivo. Filósofos das mais variadas tradições afirmavam que as paixões são capazes de corromper governos, arruinar sociedades ou mesmo provocar a morte. A paixão era um problema da ordem da ética, da política, estética, medicina e da teologia”, nota Carvalho da Silva. Para os que viviam no Brasil dos séculos XVI e XVII, experimentar uma paixão era sinônimo de “sentir”, de ter sentimentos, e ser afetado por uma paixão significava emocionar-se, viver uma emoção. “Há uma produção cultural elaborada no Brasil que mostra o interesse predominante dessa dimensão poderosa e frágil da experiência humana. O conhecimento, controle e manipulação das paixões, em sua natureza teórica e prática, eram um instrumento particularmente importante para os objetivos religiosos, sociais e políticos da Companhia de Jesus, como revela o interesse dos jesuítas sobre o tema”, avalia Marina Massimi.
O sistema baseava-se nas teorias formuladas por Aristóteles, revisitado no século XIII por Tomás de Aquino (daí a sua denominação de doutrina “aristotélico-tomista”), um caldo reelaborado pelos pensadores da companhia, nos chamados tratados Conimbrences (termo derivado de Conimbrica, nome latino da cidade de Coimbra, onde os estudos foram elaborados), comentários das obras aristotélicas sobre as paixões. Esses estudiosos atribuíam grande importância aos estados da alma definidos como paixões, entendidas como movimentos do apetite sensitivo, provenientes da apreensão do bem ou do mal, acarretando algum tipo de mutação não natural do corpo. “Os filósofos jesuítas reafirmaram, nos moldes de Aristóteles e Aquino, a função positiva das paixões, caso fossem ordenadas pela razão, o que ajudaria na sobrevivência do homem e o ajudariam a alcançar a virtude. Elas se transformariam em doenças ou distúrbios do ânimo apenas enquanto se afastam da regra e moderação da razão. Assim, a ‘psicologia’ dos Conimbrences é expressiva da posição cultural da modernidade nascente”, avalia Marina. Nesse movimento se estabelece uma analogia profunda entre o organismo do homem, considerado como realidade psicossomática, e o organismo político-social. “É nesse encontro que o controle e a terapia das paixões parecem encontrar sua função teórica e prática. Na dinâmica do corpo social, bem como na do corpo individual, o ‘despotismo’ das paixões deve ser submetido a uma ‘monarquia’ onde o governo da razão e da liberdade atribua a cada aspecto da vida psíquica sua função e seu lugar peculiar”, completa a pesquisadora.
“Daí decorre a importância da pregação, vista como fonte de transmissão de conceitos e práticas psicológicas, mas também como expressão da articulação entre retórica, teoria do conhecimento e psicologia filosófica, resultando numa prática de uso da palavra muito significativa e, num certo sentido, precursora da moderna confiança na força da palavra e do discurso que está presente na psicanálise e nas psicoterapias em geral.” A palavra do pregador seria capaz de mudar juízos e atitudes dos ouvintes e um dos alicerces desse poder, nota a autora, seria a possibilidade de a palavra atingir e mobilizar o dinamismo psíquico dos destinatários, nos termos das psicologias formuladas por Aristóteles, Tomás e Agostinho. “A palavra pregada visa ensinar o ato de conhecimento envolvendo todo o psiquismo humano”, afirma Marina. Um caso exemplar disso seriam os Sermões de Vieira, onde se combinariam a preocupação jesuítica com os efeitos morais da tristeza entre a população brasileira, a apreensão pela insatisfação melancólica dos colonos e a longa tradição europeia de meditações médicas, filosóficas e teológicas sobre essa paixão da alma. “Vieira enfatiza a universalidade e a gravidade da tristeza a que estão sujeitos mesmo os reis de todas as terras, os imperadores mais poderosos e os papa. Ela é tão perigosa para a saúde do corpo como para a salvação da alma. Mais ou menos aguda, a tristeza é sempre mortal, é como um verme que come por dentro, secando tudo até que o princípio da vida se apague. Também segundo ele, as tristezas que permanecem ocultas são as mais opressivas, sensíveis e perigosas”, explica Carvalho.
Mas a dor era entendida como um fenômeno da condição humana que extravasa os limites concebíveis entre a alma, o corpo e mesmo os limites que separariam um indivíduo de outro. O que revela que existia uma confluência de saberes e campos que ora se apresentavam dissociados, mas que, naquele período, dialogavam de modo mais ou menos fluente. Falar sobre a dor implicava abordar não apenas a saúde e a doença, mas temas como finitude e eternidade, perda e separação, fantasia e realidade, afeto e razão, gozo e sofrimento, vida e morte”, continua o pesquisador. “Que é este mundo senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças e mortes?”, escreveu o Padre Vieira. A consolação passou, então, a fazer parte das atividades pastorais, e ao lado da administração dos sacramentos os padres ofereciam a medicina da alma para aqueles que se encontravam na dor. “Para tanto, a identificação da verdadeira e legítima dor é uma referência fundamental para o consolador cristão e uma condição para a experiência de ir além da dor, necessária para a salvação da alma. Todo consolador, como todo confessor, deve saber nomear a dor de quem sofre”, diz Carvalho. Segundo o pesquisador, os sermões eram o meio mais utilizado para a realização da arte da consolação e da medicina da alma em sua função psicológica e espiritual, o que pressupunha um conhecimento prático sobre a importância da memória na experiência da dor e no seu tratamento, em especial, na sua função na origem e na permanência das dores da alma e, portanto, na sua superação. “Mas é importante lembrar que consolar-se é fruto de uma decisão solitária e pessoal. Na medida em que a noção de indivíduo e de vida interior ganhou mais espaço na mentalidade moderna, a relação entre conhecimento de si e a experiência da consolação foi se estreitando cada vez mais.”
Vieira, em particular, apostava na autonomia da razão humana para dominar suas paixões e apetites quando afirma que “o conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si, é uma força poderosa sobre as próprias ações”. É preciso voltar os olhos, sempre abertos em coisas exteriores, para o interior. “Frei Chagas, por exemplo, recomendava que era melhor empregar o tempo e a inteligência não tanto no exame da história, da geografia e da cultura, mas no da própria alma. Essa anatomia de si é o equivalente moderno do que se viria a ser a análise da alma, ou seja, a decomposição nas menores partes para poder compreendê-la melhor”, nota o autor. “O saber de si mesmo é visto como funcional para o controle sobre suas próprias ações, fundamentando-se na possibilidade de o sujeito representar sua vivência interior através do discurso. A necessidade da palavra para formular o autoconhecimento faz com que esse não seja possível, por exemplo, em experiências intensas como o choro simplesmente. O autoconhecimento se traduz num discurso cuja finalidade é comunicar para o outro a experiência vivenciada. O outro é um ouvinte. A escuta, que ele oferece ao sujeito, permite a este a melhor articulação de sua comunicação verbal e a catarse. O relacionamento interpessoal e o diálogo assumem uma função terapêutica, princípio, aliás, de toda psicoterapia moderna”, analisa Marina. Assim, o sujeito ocupa um lugar ativo, sendo o conhecimento possível pela transformação em discurso da vivência interior que ele próprio elabora. A consciência dos fenômenos e sua comunicação verbal são as condições para o entendimento deste fenômeno.
“As palavras, ao mesmo tempo que objetivam os fenômenos subjetivos, exteriorizando o que era contido na intimidade da pessoa, favorecem a libertação das emoções penosas desses estados.” Falar das dores podia aliviar o coração, bem como silenciá-las fazia com que essas se acumulassem e aumentassem ainda mais. “Era possível curar por meio da palavra. Acreditava-se também que o verdadeiro orador, como um médico de almas, curaria seus auditórios de suas enfermidades, combatendo as paixões que lhes são contrárias: eles apaziguam a cólera, aumentam a coragem e fazem suceder o amor ao ódio, e assim por diante”, fala Carvalho. “Vale lembrar ainda a importância da imagem, que, juntamente com a palavra, é um grande recurso de transmissão cultural em sociedades marcadas pela oralidade”, observa Marina.
A chegada de novos princípios científicos ao Brasil colonial trazem mudanças nessa visão psicológica do homem. “Desenvolvem-se uma psicologia e uma psicopatologia inovadoras em relação à tradição cultural anterior. Sendo a mente redutível ao organismo e sendo este regulado pelas leis da natureza, é possível abordar o seu estudo por meio do método científico, que já se mostrara efetivo na física e na biologia. Os distúrbios psíquicos, assim, que dependem do funcionamento do organismo segundo essa nova visão iluminada, poderiam ser conhecidos causalmente, prevenidos e tratados, modificando as variáveis por remédios físicos e normas higiênicas”, explica a pesquisadora. “A terapêutica das dores da alma, agora, deve ser realizada por remédios farmacêuticos que acabam por subordinar a teologia moral à medicina, considerada a disciplina que ultimamente pode instrumentar os tratamentos da alma, inclusive aqueles tradicionalmente cuidados pelos confessores”, concorda Carvalho.
É o caso, por exemplo, de Francisco de Mello Franco (1757-1822), que em sua Medicina teológica postula que a figura do confessor seja substituída pela do médico que detém o conhecimento exato das causas das enfermidades da alma e proporciona os métodos terapêuticos como remédio, tudo fruto de uma análise objetiva e causal. “O objetivo da psicologia médica do século XVIII, que será consolidada no século XIX, é o de definir uma ‘verdade’ sobre o homem, alternativa à proclamada pelo saber tradicional de matriz cristã. A felicidade é identificada com a boa regulação da máquina corporal, segundo a ordem do sistema da natureza”, diz Marina. “Não é uma cura pela palavra, mas uma medicina propriamente dita. Obras como a de Mello Franco propõem a substituição dos confessores pela nova medicina dos nervos e defende que é necessário conhecer os nervos, sua estrutura, para poder tratar os vícios humanos. Na contramão da medicina da alma, abre-se uma nova via à medicina, fundada nas bases de uma nova concepção de homem, de ciência e de racionalidade”, defende Carvalho.
Afinal, o mundo ideal preconizado em sermões não se sustentava mais. “O sonho de uma sociedade ordenada pela verdade e pela justiça é substituído pela consciência da inevitabilidade do destino imposto pelo regime colonial. Então, a dimensão psicológica interior do homem não é mais concebida como o espelho da harmonia universal, como queria a reforma ordenada aristotélico-tomista, nem como o lugar onde mora no homem aquela faísca divina que garante a sua imortalidade, mas como o refúgio precário e passageiro do indivíduo ante os absolutismos do poder e a desordem exterior da sociedade”, explica a pesquisadora. Aos poucos, nasce a ideologia do caráter nacional brasileiro que manipula traços psicológicos na construção de teorias para definir características coletivas do “brasileiro”. “No século XIX, o processo de organização da sociedade nacional traz a necessidade de nivelar os sujeitos sociais e culturais. A nova pergunta é ‘quem somos nós?’ Creio que foi a ocorrência desse processo um dos motivos que explicam, parcialmente, por que a introdução e a difusão da psicologia moderna no país, em suas vertentes de ciência do comportamento ou da psicologia das diferenças individuais, com suas técnicas de avaliação e de medida do ser humano, foi muito favorecida e apoiada como instrumento oportuno e moderno a ser utilizado nessa perspectiva.” Até o início do século XIX não havia no Brasil uma psicologia propriamente dita como prática reconhecida. Mas era crescente o interesse da elite nacional pela produção e aplicação de saberes psicológicos, em especial nas recém-criadas faculdades de Medicina do Rio e da Bahia, onde se produziram várias teses sobre o tema.
Na Bahia, a preocupação principal era a aplicação da psicologia nos problemas sociais, como na higiene mental e psiquiatria forense. No Rio, o interesse era sobre a relação da psicologia com a neuropsiquiatria e a neurologia, com estudos de psicologia experimental. “Boa parte dessas produções se ligava ao movimento que buscava o saneamento das cidades, o que envolvia a eliminação das ‘imundícies’ físicas e morais dos centros urbanos. Os médicos se envolviam em ações para erradicar esses problemas e criar uma sociedade sadia, organizada, normalizada, livre da desordem e dos desvios da escória social. Chegaram os hospícios, com o argumento de ajudar o louco, os quais seriam asilos higiênicos, com base no tratamento moral, mas serviram apenas para excluir do convívio social os indesejáveis”, nota Mitsuko Antunes. Uma escolha que trouxe graves consequências para a psicologia nacional. “Um psicólogo enraizado em sua cultura e sociedade é um agente de transformação social e não de normalização. Hoje temos uma escolha: atuar na redução do ser humano como peça produtiva da sociedade globalizada ou atuar para afirmá-lo como protagonista da sociedade. Acho que o conhecimento das ideias psicológicas surgidas no âmago da história cultural de nosso país tem a função de iluminar essa escolha”, avalia Marina.
By Charles C. Mann
Photograph by Vincent J. Musi
June 2011
Göbekli Tepe
[…]
Anthropologists have assumed that organized religion began as a way of salving the tensions that inevitably arose when hunter-gatherers settled down, became farmers, and developed large societies. Compared to a nomadic band, the society of a village had longer term, more complex aims—storing grain and maintaining permanent homes. Villages would be more likely to accomplish those aims if their members were committed to the collective enterprise. Though primitive religious practices—burying the dead, creating cave art and figurines—had emerged tens of thousands of years earlier, organized religion arose, in this view, only when a common vision of a celestial order was needed to bind together these big, new, fragile groups of humankind. It could also have helped justify the social hierarchy that emerged in a more complex society: Those who rose to power were seen as having a special connection with the gods. Communities of the faithful, united in a common view of the world and their place in it, were more cohesive than ordinary clumps of quarreling people.
Göbekli Tepe, to Schmidt’s way of thinking, suggests a reversal of that scenario: The construction of a massive temple by a group of foragers is evidence that organized religion could have come before the rise of agriculture and other aspects of civilization. It suggests that the human impulse to gather for sacred rituals arose as humans shifted from seeing themselves as part of the natural world to seeking mastery over it. When foragers began settling down in villages, they unavoidably created a divide between the human realm—a fixed huddle of homes with hundreds of inhabitants—and the dangerous land beyond the campfire, populated by lethal beasts.
French archaeologist Jacques Cauvin believed this change in consciousness was a “revolution of symbols,” a conceptual shift that allowed humans to imagine gods—supernatural beings resembling humans—that existed in a universe beyond the physical world. Schmidt sees Göbekli Tepe as evidence for Cauvin’s theory. “The animals were guardians to the spirit world,” he says. “The reliefs on the T-shaped pillars illustrate that other world.”
Schmidt speculates that foragers living within a hundred-mile radius of Göbekli Tepe created the temple as a holy place to gather and meet, perhaps bringing gifts and tributes to its priests and craftspeople. Some kind of social organization would have been necessary not only to build it but also to deal with the crowds it attracted. One imagines chanting and drumming, the animals on the great pillars seeming to move in flickering torchlight. Surely there were feasts; Schmidt has uncovered stone basins that could have been used for beer. The temple was a spiritual locus, but it may also have been the Neolithic version of Disneyland.
Over time, Schmidt believes, the need to acquire sufficient food for those who worked and gathered for ceremonies at Göbekli Tepe may have led to the intensive cultivation of wild cereals and the creation of some of the first domestic strains. Indeed, scientists now believe that one center of agriculture arose in southern Turkey—well within trekking distance of Göbekli Tepe—at exactly the time the temple was at its height. Today the closest known wild ancestors of modern einkorn wheat are found on the slopes of Karaca Dağ, a mountain just 60 miles northeast of Göbekli Tepe. In other words, the turn to agriculture celebrated by V. Gordon Childe may have been the result of a need that runs deep in the human psyche, a hunger that still moves people today to travel the globe in search of awe-inspiring sights.
Some of the first evidence for plant domestication comes from Nevalı Çori (pronounced nuh-vah-LUH CHO-ree), a settlement in the mountains scarcely 20 miles away. Like Göbekli Tepe, Nevalı Çori came into existence right after the mini ice age, a time archaeologists describe with the unlovely term Pre-pottery Neolithic (PPN). Nevalı Çori is now inundated by a recently created lake that provides electricity and irrigation water for the region. But before the waters shut down research, archaeologists found T-shaped pillars and animal images much like those Schmidt would later uncover at Göbekli Tepe. Similar pillars and images occurred in PPN settlements up to a hundred miles from Göbekli Tepe. Much as one can surmise today that homes with images of the Virgin Mary belong to Christians, Schmidt says, the imagery in these PPN sites indicates a shared religion—a community of faith that surrounded Göbekli Tepe and may have been the world’s first truly large religious grouping.
Naturally, some of Schmidt’s colleagues disagree with his ideas. The lack of evidence of houses, for instance, doesn’t prove that nobody lived at Göbekli Tepe. And increasingly, archaeologists studying the origins of civilization in the Fertile Crescent are suspicious of any attempt to find a one-size-fits-all scenario, to single out one primary trigger. It is more as if the occupants of various archaeological sites were all playing with the building blocks of civilization, looking for combinations that worked. In one place agriculture may have been the foundation; in another, art and religion; and over there, population pressures or social organization and hierarchy. Eventually they all ended up in the same place. Perhaps there is no single path to civilization; instead it was arrived at by different means in different places.
Há 60 anos, o sociólogo “francês abrasileirado” (como o chamava Gilberto Freyre) Roger Bastide (1898-1974) realizou um sonho antigo, acalentado desde pouco depois de sua chegada ao país, em 1938, vindo como substituto do antropólogo Claude Lévi- -Strauss à frente da cadeira de sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Em dois dias plenos de cerimônia, entre 3 e 4 de agosto de 1951, Bastide foi iniciado no candomblé como filho de Xangô e passou a usar o colar de contas vermelho e branco com grande orgulho. Por um curioso paradoxo, a passagem religiosa foi o ápice de suas pesquisas científicas no Brasil e, ao mesmo tempo, expressão sincera do seu “encantamento” pelas descobertas. “A pesquisa científica exigia de mim a passagem preliminar pelo ritual de iniciação. Até a minha morte serei reconhecido a todas as Mães de Santo que me trataram como um filho branco e compreenderam, com seu dom superior de intuição, minha ânsia por novos alimentos culturais e pressentiram que meu pensamento cartesiano não suportaria as novas substâncias como verdadeiros alimentos”, escreveu em Estudos afro-brasileiros.
Chegou ao Brasil sem saber o que encontraria. “Partiremos em algumas horas e as gaivotas traçam sinos cabalísticos no céu”, escreveu a bordo do navio que o trazia aos trópicos, revelando o espírito aberto ao oculto, ao irracional. Aqui, deparou-se com uma questão complexa: gostaria de ser um intérprete do novo país, mas como fazer isso sendo um estrangeiro em busca da compreensão da “identidade brasileira”? Será seu encontro com os modernistas, em especial Mário de Andrade, que o ensinará a procura do “exótico do exótico” do “outro do outro”. Daí a importância de sua iniciação e, também, da sua inserção na discussão sobre as artes plásticas que os modernistas realizavam. “As artes plásticas, o folclore, o barroco ensinam a Bastide que a originalidade da cultura brasileira era seu hibridismo, a solução ímpar que aconteceu aqui com o cruzamento de civilizações distintas”, explica a antropóloga Fernanda Arêas Peixoto, professora da USP e autora deDiálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. Do Bastide do candomblé muito se fala, mas o crítico de arte que arregaçou as mangas e saiu da universidade para os jornais é bem menos conhecido, apesar da importância de seus escritos para a compreensão de seu pensamento. Essa lacuna está sendo, aos poucos, preenchida, como revela o lançamento de Impressões do Brasil (ver resenha “Impressão do Brasil”), livro recém- -lançado pela Imprensa Oficial, que reúne 11 artigos que retratam o processo de ambientação intelectual do francês no país e seu envolvimento com a cultura nacional. “Essa paixão pelas artes e pelas letras não era um passatempo dominical de Bastide, mas uma disciplina estética que ele soube cultivar. Os textos revelam a inclusão crescente de temas brasileiros em seu repertório intelectual. E de como, com rapidez e profundidade, ele se enganou com a matéria brasileira, antiga e contemporânea”, avalia o professor de literatura da USP, Samuel Titan Jr., que, ao lado da socióloga Fraya Frehse, foi responsável pela organização dos artigos do livro, entre esses: “Machado de Assis, paisagista”; “Igrejas barrocas e cavalinhos de pau”; “Estética de São Paulo”; “Variações sobre a porta barroca”; “Arte e religião: o culto aos gêmeos”; entre outros.
Há ainda outras boas-novas. “Os estudiosos da obra de Bastide são, em geral, das ciências sociais. Apesar da eficiência desse fio de Ariadne para nos movimentarmos nos aspectos gerais da sua produção, a literatura abre ramificações próprias. Ele trouxe uma contribuição importante com o seu olhar estrangeiro e aberto, iluminando de uma forma diferente a nossa própria literatura”, acredita Glória Carneiro do Amaral, professora livre-docente aposentada da USP, atualmente pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, autora de Navette literária França-Brasil: a crítica de Roger Bastide, recém-editado pela Edusp em dois volumes que analisam as críticas literárias bastidianas e as reúnem pela primeira vez, muitas delas quase desconhecidas de pesquisadores de sua obra.
“Bastide pensou e escreveu sobre o Brasil à medida que o foi conhecendo. No exercício rotineiro da crítica jornalística, ele comenta as artes visuais e a literatura nacional, discutindo obras no calor da hora. A arte é lida por ele como forma de compreensão da cultura brasileira mais ampla, ligando-se à análise cultural. Foi a partir da matéria artística que ele pensou os processos de ‘aculturação literária’, a incorporação do negro à literatura e mestiçagem estética. O mesmo se deu em outros campos da arte. Ele praticou a interdisciplinaridade num momento em que isso não era praticado como hoje em dia”, analisa Fernanda Peixoto. “O Brasil que emerge das artes e da cultura popular é um Brasil mestiço do que Bastide se aproxima dos mais diversos ângulos. Ele deve ser visto como um elemento de ligação entre o meio universitário e o cenário intelectual mais amplo, representando, com esses textos, dentro da universidade, a articulação entre a academia e os jornais; entre a sociologia acadêmica, a crítica e o ensaísmo; entre as ciências sociais e o modernismo literário”, completa a pesquisadora. “Bastide se interessou a fundo pela nossa arte e pela nossa literatura, tornando-se crítico militante e um estudioso que pesou de maneira notável na interpretação de fatos, ideias e obras. Sua visão sociológica concorria para a ampliação das interpretações, sendo um dos raros estudiosos a usar com segurança e felicidade essa combinação difícil da sociologia e da crítica da arte”, escreveu o ex-aluno Antonio Candido em Recortes.
Mas não se trata aqui da “arte pela arte”. “Nas análises que fez sobre a produção artística brasileira, eruditas ou populares (folclore, artes plásticas e literatura), Bastide se concentrou na busca das marcas africanas que estariam impressas nessa produção ou, nas palavras dele, ‘buscamos a raça na trama da obra escrita’. O que essa produção revela é a presença de uma África em surdina, oprimida por modelos cultos europeus, exemplificando o drama do africanismo oprimido no país. Daí ele ter se voltado, ao mesmo tempo, para os escritos sobre arte e os estudos sobre as religiões afro-brasileiras que obrigam a redefinir suas análises anteriores”, observa Fernanda. “Se as manifestações artísticas o levam a ver o Brasil a partir de uma trama sincrética (a competição desigual entre a civilização europeia e a africana, que luta para impor seus valores e modelos), a religião trouxe a ele outro ângulo de observação”, continua. Segundo Bastide, nota a pesquisadora, os cultos afro-brasileiros seriam redutos privilegiados da reação, o polo de resistência africana e permitem que se possa “decantar” a África pela sua composição mestiça, uma forma nova de compreender a presença africana no Brasil. “Esse é o campo de observação de Bastide aqui: o triângulo África, Europa e Brasil, este último o lugar da barganha dos dois sistemas simbólicos, africano e europeu”, diz a professora. A religião teria o poder de inverter o sentido da equação sincrética, pois seria o lugar em que a contribuição negra é a base e, assim, oferece ao intérprete o caminho preferencial para entender a África no Brasil.
Mas por que a opção africana? O encontro entre Bastide e a África aconteceu em território brasileiro na sua primeira viagem ao Nordeste, em 1944. “Diante da fonte europeia e africana, que alimenta o misticismo brasileiro, ele vira sua atenção para a matriz africana. Isso não significa uma escolha, mas, pensa, a única opção segura para quem quer entender o caráter particular do misticismo nacional. Pode-se dizer que não é o intérprete que elege o mundo africano como objeto de reflexão, mas é a África que se impõe ao observador”, nota Fernanda. Afinal ela “penetra pelos ouvidos, pelo nariz e pela boca, bate no estômago, impõe seu ritmo ao corpo e ao espírito, obrigando-o a passar do estudo da mística das pedras e da madeira talhada para a religião dos pretos”, como escreveu Bastide emImagens do Nordeste em preto e branco, “reportagem literária” feita pelo francês em 1944 a pedido da revista O Cruzeiro. “A civilização africana, nos termos de Bastide, é recriada no Brasil a partir (e apesar) do encontro entre as três civilizações. Assim, a África brasileira, longe de cópia de um modelo original, é reelaboração, um produto também híbrido. É uma África sincrética, composta de brancos e negros, como mostram seus estudos sobre arte e literatura. Para ele, o negro está ao mesmo tempo unido e separado na sociedade brasileira.”
Assim, se Gilberto Freyre, referência fundamental para Bastide, ao lado dos modernistas e Florestan Fernandes (seu aluno e colega de pesquisas), estudou o sincretismo do ponto de vista da civilização brasileira, Bastide virou-se para as civilizações africanas, com isso, como escreveu, pretendendo “retomar o problema pelo outro lado da luneta”. O sincretismo bastidiano é, acima de tudo, sinônimo de resistência africana. Isso gerou críticas ao sociólogo, visto como passadista, um romântico em busca de purezas perdidas no tempo. “Se ele se esforça em isolar os universos africanos do amálgama mestiço, ao mesmo tempo está preocupado em entender como esses ‘nichos africanos’ se articulam na sociedade. A procura de ilhas africanas é inseparável da análise de relações, de aproximações e afastamentos”, nota Fernanda.
“O Brasil é um caso exemplar de interpenetração de civilizações a ser observado e produtor de teorias que Bastide irá usar, não apenas para entender as especificidades do Brasil, mas também para criar seu instrumental analítico e conceitual”, avisa Fernanda. “Bastide não era um sociólogo de gabinete, mas um intelectual que realizou detalhadas pesquisas etnográficas e históricas e seus textos têm o valor de reabilitar a cultura negra, agora vista como elaborada e plena de valores, recusando a perspectiva preconceituosa de autores brasileiros que o precederam”, observa o sociólogo Lísias Nogueira Negrão, professor titular da USP e autor de Roger Bastide: do candomblé à umbanda.
“Para Bastide, olhar a África no Brasil implica obrigatoriamente o mo-vimento inverso: olhar o Brasil sincrético a partir da África, já que sem o termo africano é impossível pensar o país”, nota Fernanda Peixoto. Entre 1950 e 1951, esse raciocínio avançará em novas direções por causa do convite feito a Bastide pela Unesco para investigar as relações raciais no Brasil, já que então o país parecia, ao menos de longe, sofrer menos do que os outros os efeitos do preconceito racial e seria desejável entender as raízes dessa suposta harmonia. Bastide une-se ao ex-aluno Florestan Fernandes na tarefa e o diálogo entre os dois será fecundo ao pensamento bastidiano em sua fase final, em especial na avaliação dos nexos entre “novo” e “velho” na sociedade brasileira.
“O tom otimista das previsões de Florestan não encontra eco em Bastide, mesmo que ele considere notável a maior aceitação dos negros pelas novas gerações”, observa Fernanda. “Mas, para Bastide, a matriz da análise é dada pela persistência dos elementos da sociedade tradicional no mundo moderno, e não pela mudança. As dificuldades dos negros para se organizarem politicamente se dão nesse contexto em que não há ideologia da revolta. Fruto de uma ambivalência ideológica entre o orgulho de ser negro e a sensação de inferioridade, a adoção do ponto de vista branco.” Nisso, apesar das críticas que sofreu, Bastide não vê uma aversão ao moderno. Pelo contrário, como revela numa palestra feita em 1973 quando remete seu pensamento ao mito de Prometeu, torturado pelos deuses com um abutre ao dar o “fogo divino” do saber aos homens. “A civilização ocidental traz em seu mito de origem o progresso e a decadência, gerados pela mesma fonte. Não é possível, diz Bastide, refletir sobre a civilização e sobre a modernidade (Prometeu) sem incorporar a análise da antimodernidade (o abutre), faces de uma mesma moeda.”
Assim, segundo o francês, a exportação de valores para países do Terceiro Mundo (a generalização da modernidade) que levaria a uma homogenização do modelo ocidental não aconteceu. Bastide, então, questiona se haveria mesmo só um único modelo para alcançar a modernidade e se coloca em defesa das “modernidades diferenciadas”, fruto do que viu e observou no Brasil com a cultura africana. Foi um entusiasta dos movimentos jovens dos anos 1960, exemplos da contramodernidade produtiva: a contestação jovem à sociedade ocidental era feita tendo como modelo as formas arcaicas de sociabilidade reeditadas porhippies e outros. O que provaria a vitalidade dos modelos arcaicos, que logram sobreviver às revoluções mais violentas, refugiando-se em nichos. “Na produção de Bastide, mesmo depois de seu retorno à França, persiste o interesse pelas ‘Áfricas’ do mundo todo”, analisa Fernanda. Um pensamento forjado em terras baianas, como recorda Jorge Amado ao lembrar-se do amigo francês, que falava um português enviesado, em visita a um terreiro. “Como se entenderam o sociólogo francês e a mãe- -pequena baiana, não sei até hoje; é para mim um mistério tão grande quanto o da Santíssima Trindade.”
Um precioso material cartográfico vem ganhando visibilidade irrestrita graças ao trabalho do grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) responsável pela construção da Biblioteca Digital de Cartografia Histórica. O acesso on-line é livre. Fruto de um conceito desenvolvido pelo Laboratório de Estudos de Cartografia Histórica (Lech), o site não só oferece a apreciação de um acervo de mapas raros impressos entre os séculos XVI e XIX, mas também torna possível uma série de referências cruzadas, comparações e chaves interpretativas com a pluralidade e a rapidez da internet. Afinal, “um mapa sozinho não faz verão”, como diz uma das coordenadoras do projeto, Iris Kantor, professora do Departamento de História da USP. O conjunto revela muito mais do que informações geográficas. Permite também perceber a elaboração de um imaginário ao longo do tempo, revelado por visões do Brasil concebidas fora do país. O trabalho se inseriu num grande projeto temático, denominadoDimensões do Império português e coordenado pela professora Laura de Mello e Souza, que teve apoio da Fapesp.
Até agora o acervo teve duas fontes principais. A primeira foi o conjunto de anotações realizadas ao longo de 60 anos pelo almirante Max Justo Lopes, um dos principais especialistas em cartografia do Brasil. A segunda foi a coleção particular do Banco Santos, recolhida à guarda do Estado durante o processo de intervenção no patrimônio do banqueiro Edemar Cid Ferreira, em 2005. Uma decisão judicial transferiu a custódia dos mapas ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – iniciativa louvável, uma vez que esse acervo, segundo Iris Kantor, “estava guardado em condições muito precárias num galpão, sem nenhuma preocupação de acondicionamento adequado”. Foram recolhidos cerca de 300 mapas. Sabe-se que o número total da coleção original era muito maior, mas ignora-se onde se encontram os demais.
O primeiro passo foi recuperar e restaurar os itens recolhidos. Eles chegaram à USP “totalmente nus”, sendo necessário todo o trabalho de identificação, datação, atribuição de autoria etc. Durante os anos de 2007 e 2008, o Laboratório de Reprodução Digital do IEB pesquisou, adquiriu e utilizou a tecnologia adequada para reproduzir em alta resolução o acervo de mapas. Foram necessárias várias tentativas até se atingir a precisão de traços e cores desejada. Em seguida, o Centro de Informática do campus da USP em São Carlos (Cisc/USP) desenvolveu um software específico, tornando possível construir uma base de dados capaz de interagir com o catálogo geral da biblioteca da USP (Dedalus), assim como colher e transferir dados de outras bases disponíveis na internet. Uma das fontes inspiradoras dos pesquisadores foi o site do colecionador e artista gráfico inglês David Rumsey, que abriga 17 mil mapas. Outra foi a pioneira Biblioteca Virtual da Cartografia Histórica, da Biblioteca Nacional, que reúne 22 mil documentos digitalizados. Futuramente, o acervo cartográfico da USP deverá integrar a Biblioteca Digital de Cartografia Histórica. Foi dada prioridade aos mapas do Banco Santos porque eles não pertencem à universidade, podendo a qualquer momento ser requisitados judicialmente para quitar dívidas.
Hoje estão disponíveis na Biblioteca Digital “informações cartobibliográficas, biográficas, dados de natureza técnica e editorial, assim como verbetes explicativos que procuram contextualizar o processo de produção, circulação e apropriação das imagens cartográficas”. “Não existe mapa ingênuo”, diz Iris Kantor, indicando a necessidade dessa reunião de informações para o entendimento do que está oculto sob a superfície dos contornos geográficos e da toponímia. “O pressuposto do historiador é que todos os mapas mentem; a manipulação é um dado importante a qualquer peça cartográfica.”
Fizeram parte dessa manipulação os interesses geopolíticos e comerciais da época determinada e daqueles que produziram ou encomendaram o mapa. O historiador Paulo Miceli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que no início da década passada havia sido chamado pelo Banco Santos para dar consultoria sobre a organização do acervo, lembra que o primeiro registro cartográfico daquilo que hoje se chama Brasil foi um mapa do navegador espanhol Juan de la Cosa (1460-1510), datado de 1506, que mostra “a linha demarcatória do Tratado de Tordesilhas, a África muito bem desenhada e, à sua esquerda, um triângulo bem pequeno para indicar a América do Sul”. “O Brasil foi surgindo de uma espécie de nevoeiro de documentos, condicionado, entre outras coisas, pelo rigor da coroa portuguesa sobre o trabalho dos cartógrafos, que estavam sujeitos até a pena de morte.” Essa “aparição” gradual do Brasil no esquema geopolítico imperial é o tema da tese de livre-docência de Miceli, intitulada, apropriadamente, de O desenho do Brasil no mapa do mundo, que sairá em livro ainda este ano pela editora da Unicamp. O título se refere aoTheatrum orbis terrarum (Teatro do mundo), do geógrafo flamengo Abraham Ortelius (1527-1598), considerado o primeiro atlas moderno.
Navegadores – Ao contrário do que se pode imaginar, os mapas antigos não tinham a função principal, e prática, de orientar exploradores e navegadores. Estes, até o século XIX, se valiam de roteiros escritos, as “cartas de marear”, registrados em “pergaminhos sem beleza nem ambiguidade, perfurados por compassos e outros instrumentos, e que viraram invólucros de pastas de documentos em acervos cartográficos”, segundo Miceli. “Os mapas eram objetos de ostentação e prestígio, com valor de fruição e ornamentação, para nobres e eruditos”, diz Iris Kantor. “Um dos tesouros do Vaticano era sua coleção cartográfica.” Já os roteiros de navegação eram apenas manuscritos e não impressos, processo que dava aos mapas status de documentos privilegiados. As chapas originais de metal, com as alterações ao longo do tempo, duravam até 200 anos, sempre nas mãos de “famílias” de cartógrafos, editores e livreiros. Às vezes essas famílias eram mesmo grupos consanguíneos com funções hereditárias, outras vezes eram ateliês altamente especializados. Os artistas, com experiência acumulada ao longo de décadas, não viajavam e recolhiam suas informações de “navegadores muitas vezes analfabetos”, segundo Miceli. Para dar uma ideia do prestígio atribuído à cartografia, ele lembra que o Atlas maior, do holandês Willem Blaue (1571-1638), pintado com tinta de ouro, foi considerado o livro mais caro do Renascimento.
Um dos critérios de busca da Biblioteca Digital de Cartografia Histórica é justamente por “escolas” de cartógrafos, entre elas a flamenga, a francesa e a veneziana – sempre lembrando que o saber fundamental veio dos navegadores e cosmógrafos portugueses. Iris Kantor considera que elas se interpenetram e planeja, futuramente, substituir a palavra “escola” por “estilo”. Também está nos planos da equipe reconstituir a genealogia da produção de mapas ao longo do período coberto. No estudo desses documentos se inclui a identificação daqueles que contêm erros voluntários como parte de um esforço de contrainformação, chamado por Miceli de “adulteração patriótica”. Como os mapas que falsificam a localização de recursos naturais, como rios, para favorecer portugueses ou espanhóis na divisão do Tratado de Tordesilhas.
Uma evidência da função quase propagandística da cartografia está no mapa Brasil, de 1565, produzido pela escola veneziana, que ilustra a abertura desta reportagem. Nele não se destaca exatamente a precisão geográfica. “A toponímia não é muito intensa, embora toda a costa já estivesse nomeada nessa época”, diz Iris Kantor. “É uma obra voltada para o público leigo, talvez mais para os comerciantes, como indicam os barquinhos com os brasões das coroas da França e de Portugal. Vemos o comércio do pau-brasil, ainda sem identificação da soberania política. Parece uma região de franco acesso. A representação dos indígenas e seu contato com o estrangeiro transmite cordialidade e reciprocidade.”
“No fundo, os mapas servem como representação de nós mesmos”, prossegue a professora da USP. “Pelo estudo da cartografia brasileira pós-independência, por exemplo, chama a atenção nossa visão de identidade nacional baseada numa cultura geográfica romântica, liberal e naturalista, que representa o país como um contínuo geográfico entre a Amazônia e o Prata. No mesmo período, a ideia do povo não era tão homogênea. Não é por acaso que os homens que fizeram a independência e constituíram o arcabouço legal do país fossem ligados às ciências naturais, à cartografia etc. A questão geográfica foi imperativa na criação da identidade nacional.”
Um exemplo bem diferente de utilização de recursos digitais na pesquisa com mapas está em andamento na Unicamp, derivado do projeto Trabalhadores no Brasil: identidades, direitos e política, coordenado pela professora Silvia Hunold Lara e apoiado pela Fapesp. Trata-se do estudo Mapas temáticos de Santana e Bexiga, sobre o cotidiano dos trabalhadores urbanos entre 1870 e 1930. Segundo a professora, pode-se reconstituir o cotidiano dos moradores dos bairros, “não dissociados de seu modo de trabalho e de suas reivindicações por direitos”.
Lorelei Stathopoulos is concerned Salem will lose its “quaint reputation.” Photo: Gretchen Ertl for The New York Times.
By KATIE ZEZIMA. Published: May 26, 2011
SALEM, Mass. — Like any good psychic, Barbara Szafranski claims she foresaw the problems coming.
Gretchen Ertl for The New York Times
Christian Day, who owns two shops, thinks competition is a good thing.
Gretchen Ertl for The New York Times
Debra Ann Freeman read a customer’s tarot cards in Salem, Mass.
Her prophecy came in 2007, as the City Council was easing its restrictions on the number of psychics allowed to practice in this seaside city, where self-proclaimed witches, angels, clairvoyants and healers still flock 319 years after the notorious Salem witch trials. Some hoped for added revenues from extra licenses and tourists. Others just wanted to bring underground psychics into the light.
Just as Ms. Szafranski predicted, the number of psychic licenses has drastically increased, to 75 today, up from a mere handful in 2007. And now Ms. Szafranski, some fellow psychics and city officials worry the city is on psychic overload.
“It’s like little ants running all over the place, trying to get a buck,” grumbled Ms. Szafranski, 75, who quit her job as an accountant in 1991 to open Angelica of the Angels, a store that sells angel figurines and crystals and provides psychic readings. She says she has lost business since the licensing change.
“Many of them are not trained,” she said of her rivals. “They don’t understand that when you do a reading you hold a person’s life in your hands.”
Christian Day, a warlock who calls himself the “Kathy Griffin of witchcraft,” thinks the competition is good for Salem.
“I want Salem to be the Las Vegas of psychics,” said Mr. Day, who used to work in advertising and helped draft the 2007 regulations. Since they went into effect, he has opened two stores, Hex and Omen.
But not everyone is sure that quantity can ensure quality. Lorelei Stathopoulos, formerly an exotic dancer known as Toppsey Curvey, has been doing psychic readings at her store, Crow Haven Corner, for 15 years. She thinks psychics should have years of experience to practice here.
“I want Salem to keep its wonderful quaint reputation,” said Ms. Stathopoulos, who was wearing a black tank top that read “Sexy witch.” “And with that you have to have wonderful people working.”
Under the 2007 regulations, psychics must have lived in the city for at least a year to obtain an individual license, and businesses must be open for at least a year to hire five psychics. License applicants are also subject to criminal background checks.
Ms. Stathopoulos says a garden-variety reader makes 40 percent of a $35 reading that lasts 15 minutes. She charges $90 and up for a half-hour of her services, and keeps all of that.
Now, talk has started about new regulations that would include a cap on the number of psychic businesses, but the grumbling has in no way reached the level of viciousness that occurred in 2007, when someone left the mutilated body of a raccoon outside Ms. Szafranski’s shop and Mr. Day and Ms. Stathopoulos got into a fight.
Ms. Szafranski says she plans to send the council an official complaint in June.
This time, she has no prediction how it will turn out.
Quinta, 19 de maio de 2011, 08h14 Atualizada às 18h50 (link original aqui).
Trecho do livro “Por uma Vida Melhor” apresenta a pergunta “posso falar ‘os livro’?”
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
De vez em quando, alguém diz que lingüistas “aceitam” tudo (isto é, que acham certa qualquer construção). Um comentário semelhante foi postado na semana passada. Achei que seria uma boa oportunidade para tentar esclarecer de novo o que fazem os linguistas.
Mas a razão para tentar ser claro não tem mais a ver apenas com aquele comentário. Surgiu uma celeuma causada por notas, comentários, entrevistas etc. a propósito de um livro de português que o MEC aprovou e que ensinaria que é certo dizer Os livro. Perguntado no espaço dos comentários, quando fiquei sabendo da questão, disse que não acreditava na matéria do IG, primeira fonte do debate. Depois tive acesso à indigitada página, no mesmo IG, e constatei que todos os que a leram a leram errado. Mas aposto que muitos a comentaram sem ler.
Vou tratar do tal “aceitam tudo”, que vale também para o caso do livro.
Primeiro: duvido que alguém encontre esta afirmação em qualquer texto de linguística. É uma avaliação simplificada, na verdade, um simulacro, da posição dos linguistas em relação a um dos tópicos de seus estudos – a questão da variação ou da diversidade interna de qualquer língua. Vale a pena insistir: de qualquer língua.
Segundo: “aceitar” é um termo completamente sem sentido quando se trata de pesquisa. Imaginem o ridículo que seria perguntar a um químico se ele aceita que o oxigênio queime, a um físico se aceita a gravitação ou a fissão, a um ornitólogo se ele aceita que um tucano tenha bico tão desproporcional, a um botânico se ele aceita o cheiro da jaca, ou mesmo a um linguista se ele aceita que o inglês não tenha gênero nem subjuntivo e que o latim não tivesse artigo definido.
Não só não se pergunta se eles “aceitam”, como também não se pergunta se isso tudo está certo. Como se sabe, houve época em que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou quem dissesse “quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?”
Ou seja: não se trata de aceitar ou de não aceitar nem de achar ou de não achar correto que as pessoas digam os livro. Acabo de sair de uma fila de supermercado e ouvi duas lata, dez real, três quilo a dar com pau. Eu deveria mandar esses consumidores calar a boca? Ora! Estávamos num caixa de supermercado, todos de bermuda e chinelo! Não era um congresso científico, nem um julgamento do Supremo!
Um linguista simplesmente “anota” os dados e tenta encontrar uma regra, isto é, uma regularidade, uma lei (não uma ordem, um mandato).
O caso é manjado: nesta variedade do português, só há marca de plural no elemento que precede o nome – artigo ou numeral (os livro, duas lata, dez real, três quilo). Se houver mais de dois elementos, a complexidade pode ser maior (meus dez livro, os meus livro verde etc.). O nome permanece invariável. O linguista vê isso, constata isso. Não só na fila do supermercado, mas também em documentos da Torre do Tombo anteriores a Camões. Portanto, mesmo na língua escrita dos sábios de antanho.
O linguista também constata the books no inglês, isto é, que não há marca de plural no artigo, só no nome, como se o inglês fosse uma espécie de avesso do português informal ou popular. O linguista aceita isso? Ora, ele não tem alternativa! É um dado, é um fato, como a combustão, a gravitação, o bico do tucano ou as marés. O linguista diz que a escola deve ensinar formas como os livro? Esse é outro departamento, ao qual volto logo.
Faço uma digressão para dar um exemplo de regra, porque sei que é um conceito problemático. Se dizemos “as cargas”, a primeira sílaba desta sequência é “as”. O “s” final é surdo (as cordas vocais não vibram para produzir o “s”). Se dizemos “as gatas”, a primeira sílaba é a “mesma”, mas nós pronunciamos “az” – com as cordas vocais vibrando para produzir o “z”. Por que dizemos um “z” neste caso? Porque a primeira consoante de “gatas” é sonora, e, por isso, a consoante que a antecede também se sonoriza. Não acredita? Vá a um laboratório e faça um teste. Ou, o que é mais barato, ponha os dedos na sua garganta, diga “as gatas” e perceberá a vibração. Tem mais: se dizemos “as asas”, não só dizemos um “z” no final de “as”, como também reordenamos as sílabas: dizemos as.ga.tas e as.ca.sas, mas dizemos a.sa.sas (“as” se dividiu, porque o “a” da palavra seguinte puxou o “s/z” para si). Dividimos “asas” em “a.sas”, mas dividimos “as asas” em a.sa.sas.
Volto ao tema do linguista que aceitaria tudo! Para quem só teve aula de certo / errado e acha que isso é tudo, especialmente se não tiver nenhuma formação histórica que lhe permitiria saber que o certo de agora pode ter sido o errado de antes, pode ser difícil entender que o trabalho do linguista é completamente diferente do trabalho do professor de português.
Não “aceitar” construções como as acima mencionadas ou mesmo algumas mais “chocantes” é, para um linguista, o que seria para um botânico não “aceitar” uma gramínea. O que não significa que o botânico paste.
Proponho o seguinte experimento mental: suponha que um descendente seu nasça no ano 2500. Suponha que o português culto de então inclua formas como “A casa que eu moro nela mais os dois armário vale 300 cabral” (acho que não será o caso, mas é só um experimento). Seu descendente nunca saberá que fala uma língua errada. Saberá, talvez (se estudar mais do que você), que um ancestral dele falava formas arcaicas do português, como 300 cabrais.
Outro tema: o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso.
O linguista não propõe isso por duas razões: a) as pessoas já sabem falar os livro, não precisam ser ensinadas (observe-se que ninguém falao livros, o que não é banal); b) ele acha – e nisso tem razão – que é mais fácil que alguém aprenda os livros se lhe dizem que há duas formas de falar do que se lhe dizem que ele é burro e não sabe nem falar, que fala tudo errado. Há muitos relatos de experiências bem sucedidas porque adotaram uma postura diferente em relação à fala dos alunos.
Enfim, cada campo tem seus Bolsonaros. Merecidos ou não.
PS 1 – todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado.
PS 2 – Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: “quando eu TAVA na escola…”. Uma carta de leitor que criticava a forma “os livro” dizia “ensinam os alunos DE que se pode falar errado”. Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse “a língua é ONDE nos une” e Monforte perguntou “Onde FICA as leis de concordância?”. Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!
* * *
[Quatro dias após esse excelente artigo de Sírio Possenti, O Globo publica editorial – abaixo – onde fica evidente que, como sugere Sírio, tanto foco em questões formais tem o intuito de esconder a baixa qualidade dos argumentos (e do jornalismo que daí decorre). Um verdadeiro show de conservadorismo reducionista: escola é pra “salvar os pobres” inculcando-lhes “a verdadeira cultura”, essa que também deve ser a marca da “inteligência do País”. A qualidade da educação, sugere o texto, se mede com indicadores estatísticos apenas – e não tem nada que ver com a formação de cidadãos, membros ativos de suas comunidades, etc. Ou seja, a educação é um problema técnico, e não político. Na minha opinião, a classe média carioca não merece tanto bolsonarismo.]
Desatino nas escolas
Editorial do jornal O Globo de 23/05/2011.
Os dicionários definem o termo “didática” como a técnica de ensinar, meio para dirigir e orientar o aprendizado. Os livros didáticos, por extensão, se constituem no instrumento pelo qual o ensino do uso correto da língua é ministrado nas escolas. Ao permitir na rede pública – base da formação educacional da grande maioria dos estudantes do País – a adoção de um livro que permite erros de português como parte do processo de aprendizagem, o MEC dá abrigo a uma perigosa contradição. Em nome de uma ideologia de proteção a “excluídos da sociedade”, o governo avaliza um projeto que, na prática, inviabiliza a inclusão. Coonestar erros de gramática, sob o falso princípio de que se deve derrubar preconceitos linguísticos, agrava o marginalismo cultural a que o desconhecimento da língua condena aqueles que, por enfrentar condições sociais adversas, têm poucas chances de adquirir conhecimentos que lhes permitam mudar sua realidade.
O argumento da autora do livro “Por uma vida melhor”, Heloísa Ramos, de que em vez de “certo” e “errado” na avaliação do aprendizado da língua deve-se usar a ideia de “adequado” ou “inadequado”, transfere a discussão para o plano da linguística, quando o que de fato interessa é a questão da didática do ensino, a maneira como as crianças serão alfabetizadas e os instrumentos de instrução que lhes serão fornecidos para aprenderem a escrever corretamente.
Trata-se de questão muito mais séria do que é capaz de alcançar a ideologia de almanaque que justifica tais agressões à língua, à inteligência do País e, não menos importante, à formação dos próprios jovens alunos. A defesa de erros primários de concordância verbal e de princípios da gramática, por si só, é inconcebível em qualquer nação que zele por sua língua. E se torna ainda mais indefensável num País como o Brasil, onde o precário nível de ensino, particularmente nas escolas públicas, é responsável por vergonhosos indicadores educacionais. Pode-se imaginar a confusão na cabeça do jovem aluno que, despendendo esforços para aprender as regras da sua língua, seja confrontado com um livro – logo, instrumento supostamente confiável – em que se tem como corretas frases do tipo “nós pega o peixe” ou “dois real”.
Por outros exemplos de semelhantes ataques a padrões de comportamento, tem-se por óbvio que a questão do livro de Heloísa Ramos não é episódio isolado no País. Faz parte de um contexto mais amplo, que se move pelo princípio do “politicamente correto”. É a mesma cartilha que, no plano do ensino, instrui adeptos do racialismo a condenar, como racista, a obra de Monteiro Lobato (e, como decorrência, a praticar boçalidades como a manifestação, no Rio, contra um bloco de carnaval, e iniquidades como a edição, pelo MEC, de uma bula que oriente os professores como “ensinar” a obra do escritor nas escolas).
Em última análise, permitir a circulação de tal livro é uma agressão não só ao bom senso, mas ao direito do aluno de receber ensino de boa qualidade. Ao aceitar tal desatino, em nome de um ideário de suposta defesa dos excluídos, o MEC boicota o esforço de melhorar os indicadores da Educação no País. Em vez de ajudar a abrir fronteiras da cultura a uma considerável parcela de brasileiros, para os quais o acesso a instrução é tábua de salvação contra adversidades sociais, o ministério apenas os estimula a cultivar erros – que no futuro, na luta pela inclusão social (seja no mercado de trabalho, ou em instituições de ensino que lhes cobrarão conhecimento da língua), lhes custarão caro.
Agência FAPESP – O Projeto de história do português paulista (Projeto Caipira), coordenado pelo professor Ataliba Teixeira de Castilho, mobiliza pesquisadores de diversas instituições com o objetivo de resgatar a história da língua trazida pelos portugueses que desembarcaram na Baía de São Vicente, em 1532.
Do litoral paulista, a língua se espalhou pelo país por diversas vertentes. O Temático, que reúne mais de 200 pesquisadores – 60 deles em São Paulo –, estuda, em uma espécie de “bandeirantismo”, os caminhos percorridos pelos falantes da língua portuguesa e sua transformação até chegar à língua falada hoje.
A 12ª edição do Seminário do Projeto de História do Português Paulista termina nesta sexta-feira (15/4) no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). O encontro procura avaliar os resultados obtidos pelo projeto apoiado pela FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático, concluído no fim de 2010.
Castilho foi professor titular da USP, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, aos 74 anos, é professor colaborador voluntário na Unicamp.
O pesquisador presidiu a Área de Letras e Linguística da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (1987-1990), a Associação Brasileira de Linguística (1983-1985) e a Associação de Linguística e Filologia da América Latina (1999-2005).
Entre seus livros recentes estão Nova Gramática do Português Brasileiro (Contexto, 2010), Gramática do Português Culto Falado no Brasil (Editora da Unicamp, 2008), Descrição, História e Aquisição do Português Brasileiro (Pontes, 2007), Gramática do Português Culto Falado no Brasil (Editora da Unicamp, 2006).
Agência FAPESP – Professor Castilho, como surgiu o Projeto Caipira? Ataliba Teixeira de Castilho – O projeto de pesquisa teve origem em 1998, durante o primeiro seminário que fizemos sobre o tema. Participaram professores brasileiros especializados em linguística histórica. Pensei em convidá-los para o projeto de modo que eles pudessem transformar aquele projeto estadual em nacional. E deu certo.
Agência FAPESP – E por que fazer esse projeto em São Paulo? Castilho – Porque a língua portuguesa começou a ser implantada em 1532, em São Vicente, aqui no Estado de São Paulo. Foi o primeiro povoamento, quando os portugueses decidiram explorar de fato o território. Isso não ocorreu quando Pedro Álvares Cabral chegou à Bahia e partiu em seguida para as Índias. Durante 32 anos o território descoberto não foi colonizado ou ocupado. Foi em 1532, em São Vicente, que o Brasil realmente começou.
Agência FAPESP – Então, foi a partir do Estado de São Paulo que ocorreu a penetração da língua portuguesa pelo país? Castilho – Sim, foi onde tudo começou. Depois de São Vicente vieram Santo André, São Paulo e Santana do Parnaíba. Foi por essas quatro cidades que começou a penetração do português no Brasil – com exceção do então Norte (Grão Pará e Estado do Maranhão), que era praticamente outro país e onde a colonização começou entre os séculos 17 e 18. Devido à proximidade do rio Tietê, o movimento do bandeirismo partiu de Santana do Parnaíba e começou a expansão da língua para o Mato Grosso. De Santana do Parnaíba, os bandeirantes também foram até o Peru, atrás das minas de prata, percorrendo um caminho construído pelos índios Peabirus. Como lá a colonização foi espanhola, o português não se implantou. De São Miguel Paulista, os bandeirantes levaram o português para Minas Gerais, subindo por Itaquaquecetuba e Taubaté, atrás do ouro.
Agência FAPESP – A partir do Estado de São Paulo ocorreu a penetração da língua portuguesa pelo país por esses caminhos? Castilho – Sim, mas no fim do século 18 surgiu um terceiro caminho: o dos comerciantes que andavam com mulas. Esses tropeiros levaram o português até o Uruguai, que no tempo do império era uma província brasileira, a Cisplatina. Chegaram à Colônia do Sacramento, cidade uruguaia criada por tropeiros de Sorocaba. Tudo isso foi movimento dos paulistas. Quando São Paulo se desenvolveu mais do que todas as outras, tornou-se a maior capitania do Brasil, que inclui o que hoje são estados independentes. O termo capitania foi substituído por província e depois por estado. Então, pode-se ver que ao estudar que língua portuguesa chegou aqui e como ela se desenvolveu e mudou, conhecemos a própria história do português brasileiro.
Agência FAPESP – Uma dimensão que está espelhada no número de pesquisadores reunidos pelo projeto coordenado pelo senhor. Castilho – Tem que ser assim, é preciso reunir muitos especialistas. Só no Estado de São Paulo somos em 60 pesquisadores, das três universidades públicas e também da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Esse grupo maior também fez uma espécie de bandeirismo (risos). Hoje, o Projeto de História do Português Brasileiro (PHPB) tem cerca de 200 pesquisadores integrados em 11 equipes regionais, cada uma trabalhando com questões locais.
Agência FAPESP – Em todo o Brasil? Castilho – Não, pois ainda não temos ninguém no Norte. Mas queremos ter colaboradores nessa região.
Agência FAPESP – Poderia dar alguns exemplos de contribuições do projeto para o conhecimento da história do português brasileiro? Castilho – Esse projeto trata do conhecimento de como o português se implantou e de como ele mudou. A grande pergunta, como diz um colega nosso, é: “Que língua foi aquela que saiu das caravelas?”. Sabemos hoje que foi o português médio, um momento da história do português europeu. E aqueles navegadores que saíram das caravelas quando crianças aprenderam a falar essa modalidade, o português arcaico médio, que vai de 1450 até 1530. Essa é justamente a base do nosso português. Temos um grupo em nosso projeto que estuda como foi esse português médio para poder descrevê-lo. Nesse grupo está minha mulher, Célia Maria Moraes de Castilho, que também é linguista e leu o que se publicou dos inventários e testamentos, do século 16 até 1920, que estão guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Para entender como se deu o espalhamento desse português a partir de São Paulo, outro grupo, coordenado pelo professor Manoel Morivaldo Santiago Almeida, da USP, estudou como foi o deslocamento da língua pelo Tietê, levado pelos bandeirantes. Esse grupo verificou, por exemplo, que no Mato Grosso se guarda até hoje pronúncias do português médio arcaico. Em vez de dizer chão, eles dizem “tchon”. Palavras com “ch” são ditas com “tch”, e “x” é dito “xê”. Então temos “tchapéu” ou “tchuva”. Eles não têm o ditongo nasal “ão”, e sim a vogal nasal “on”, como era no português antigo. Estou falando de fonética, mas há também outras características gramaticais que se conservaram lá.
Agência FAPESP – E isso até na capital, Cuiabá? Castilho – Sim. E é no meio familiar que você surpreende isso, essas pronúncias todas do português de antes.
Agência FAPESP – Como se desenvolveram aqui em São Paulo o português popular e o português culto? Castilho – A professora Ângela Cecília Souza Rodrigues, da USP, é a responsável pelo projeto sobre o português não padrão, que é o dos analfabetos e de pessoas que aprendem em casa. O objetivo é documentar e achar nos documentos traços desse português popular.
Agência FAPESP – Ela já obteve resultados? Castilho – Ela começou de trás para frente, descreveu primeiro o que tem hoje no português popular. Não é só paulista que fala o português popular, pois o estado atraiu gente de todos os lados. A professora Ângela encontrou nos primeiros documentos de traços linguísticos a questão da concordância. Ela observou que muito da concordância que hoje se considera padrão popular era usada pelos portugueses naquele tempo, como em “os menino chegou”, por exemplo. Isso não foi uma criação daqui não, estava lá. Outro grupo de pesquisa estuda a formação do padrão culto, a história do português ensinado nas escolas. As professoras Marilza de Oliveira (USP) e Maria Célia Lima-Hernandes (USP) estudam esse ponto, de como se formou o português culto em São Paulo.
Agência FAPESP – O que elas descobriram? Castilho – O que se descobriu é que até algum tempo atrás o português culto era idêntico ao português europeu, mesmo aqui em São Paulo. Só se começou a falar o português culto bem tardiamente. No começo era um povão, indistinto, que falava o português popular. Foi preciso surgir escolas para que aparecesse essa outra variedade. Aqui em São Paulo foi muito importante a fundação da Faculdade de Direito, em 1827, que trouxe gente do Brasil inteiro. Na mesma época, começou a haver um interesse maior em ler jornais, escrever e ler poesias, romances. Era o Romantismo. Pois esse grupo de pesquisa analisa esses documentos e observa que reação as pessoas que vinham para cá tinham em relação à língua falada aqui, que era o caipira.
Agência FAPESP – E como se desenvolveu o português culto? Castilho – Do início do século 19 até a instituição da USP, em 1934, foram criadas várias escolas isoladas, pois não havia a concepção de universidade como existe hoje. No século 19, o português culto era imitação exata do português culto europeu. Em 1922, com o movimento modernista e o crescimento da comunidade de São Paulo, não se considerava mais que o português culto era o português dos portugueses, nós nos descolamos disso. Ainda em 1920, 1930, tínhamos certa sensação de nação colonizada. Quando isso passou é que nos desgarramos do português escrito culto europeu. E aí os modernistas tiveram um papel muito importante, sobretudo Mário de Andrade. Ele criou biblioteca, departamento de cultura, fundou a revista do Arquivo Municipal. Houve uma grande agitação cultural e as pessoas foram assumindo com mais naturalidade a forma como elas escreviam.
Agência FAPESP – Hoje, a característica caipira é muitas vezes encarada de forma depreciativa. Naquela época ocorria a mesma coisa? Castilho – Caipira não era uma palavra depreciativa, era a designação do português falado pelos paulistas. Depois, com o desenvolvimento da cidade de São Paulo como centro cultural, aí sim ficou muito assemelhado ao português popular, de pessoas sem escolaridade. E como a cidade cresceu demais, esse português foi empurrado para o interior do estado e ali ficou.
Agência FAPESP – Em uma entrevista, o senhor fala sobre o uso da internet pelas crianças e diz que elas passaram a escrever mais, o que seria positivo. Mas, ao mesmo tempo, a rede não incentiva a grafia errada? Castilho – Sim, as crianças passaram a escrever mais e, sobretudo, não por que o professor manda. Para nós, linguistas, essa questão do escrever errado ocorre quando uma pessoa escreve e a outra não consegue entender. No mais, é uma variedade que você está jogando. O que é escrever errado? É o português não culto? A internet não atrapalha, ela ajuda e resolve um problema de ortografia, no caso de uso de abreviações, como é tudo abreviado. A ortografia é convenção, ela vai atrás da língua com o seu dinamismo. Eu vejo muito o lado positivo. Como linguistas nos perguntamos o tempo todo como é que a mente humana conseguiu criar essa variedade louca de expressões, essa enorme complexidade. Essa é a nossa grande questão.
Por Fábio de CastroAgência FAPESP – O português falado no Brasil tem certas propriedades sintáticas que não se encontram no português europeu, nem em outros idiomas. Durante mais de quatro anos, um grupo de pesquisadores se dedicou a analisar o conhecimento já reunido sobre essas propriedades, a fim de discuti-lo sob a perspectiva do mais novo paradigma da pesquisa linguística: o chamado Programa Minimalista.
De acordo com Nunes, o principal resultado do projeto foi o livro Minimalist Essays on Brazilian Portuguese Syntax (“Ensaios minimalistas sobre a sintaxe do português brasileiro”), lançado em 2009, que reúne dez artigos produzidos por seus participantes.
“O objetivo central do projeto consistiu em capitalizar o conhecimento já adquirido sobre as propriedades sintáticas distintivas do português brasileiro e discuti-lo à luz do Programa Minimalista, descobrindo em que medida essas propriedades podiam ser explicadas na sua interface com outros componentes da gramática”, disse à Agência FAPESP.
O Programa Minimalista foi estabelecido a partir de 1995 pelo linguista Noam Chomsky, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, derivado da Teoria de Princípios e Parâmetros, formulada pelo mesmo autor na década de 1980 a partir de uma tradição linguística iniciada em meados do século 20.
A Teoria de Princípios e Parâmetros estabeleceu a ideia de que há um componente inato, biologicamente fundamentado, na predisposição humana a aprender uma língua, e que todas as produções linguísticas seguiriam uma “gramática universal”, comum a todos os seres humanos.
“Descobriu-se então que o conhecimento linguístico se organiza em termos de princípios – propriedades invariáveis de todas as línguas – e parâmetros, que são os padrões e opções que codificam feixes dessas propriedades. A tarefa de uma criança que aprende uma língua seria, portanto, estabelecer os valores desses parâmetros”, explicou Nunes.
O Programa Minimalista tem a proposta de não apenas investigar quais são as propriedades da faculdade da linguagem e seu papel na aquisição de uma língua natural, mas também tentar explicar por que a faculdade da linguagem tem exatamente essas e não outras propriedades.
Por estabelecer um fundo comum entre todos os idiomas, o novo paradigma da Teoria de Princípios e Parâmetros, de acordo com Nunes, possibilitou a comparação detalhada entre as línguas mais variadas, em diversos estágios de desenvolvimento.
“Isso desencadeou uma gigantesca explosão de conhecimento no domínio da linguística. Não é nenhum exagero dizer que, a partir da década de 1980, aprendemos mais sobre a língua humana que em todos os séculos anteriores”, afirmou.
De acordo com Nunes, desde então houve uma grande profusão de trabalhos sobre o português brasileiro, que mostraram que a língua falada no Brasil possui uma gramática muito especial em relação ao português europeu e às outras línguas românicas.
“A partir da década de 1980, a pergunta que orientava as pesquisas era: quais são e como se organizam as propriedades das línguas humanas? No Projeto Temático, procuramos redimensionar esse conhecimento acumulado à luz dos novos avanços conquistados pelo Programa Minimalista. A pergunta central passou então a ser: por que as propriedades se organizam da maneira que se observa?”, disse.
Sujeito nulo
Um dos tópicos centrais na discussão feita sobre o português brasileiro, segundo Nunes, é a questão do chamado “sujeito nulo”, conhecido na gramática tradicional como “sujeito oculto”.
“Quando comparado ao sujeito nulo do português europeu, ou das outras línguas românicas, o sujeito nulo do português brasileiro é muito singular. O uso que fazemos do sujeito nulo é mais parecido com as construções infinitivas do inglês, ou as formas subjuntivas das línguas balcânicas, por exemplo”, disse.
O impacto dessa característica singular é muito grande, já que o tipo de sujeito nulo encontrado no português brasileiro simplesmente não deveria existir.
“Na medida em que as nossas pesquisas demonstraram que essa possibilidade teórica existe, propusemos que boa parte do modelo de análise linguística deverá ser reformulada, a fim de incorporar esses dados relativos ao português brasileiro”, disse o professor da FFLCH-USP.
A proposta de reformulação foi reportada no livro Control as movement, publicado em 2010 pela Cambridge Press University, de autoria de Nunes, Cedric Boeckx, da Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), e Norbert Hornstein, da Universidade de Maryland (Estados Unidos).
“Boa parte da discussão procura retomar os dados sobre o sujeito nulo. Mostramos como o modelo teórico terá que ser modificado em função das novas descobertas nesse campo”, afirmou.
Tanto o português brasileiro como o lusitano permitem o sujeito nulo, segundo Nunes. Mas, quando se observam os usos específicos, percebe-se que essa estrutura recebe um sentido bem diferente na língua falada no Brasil. “Uma das hipóteses que levantamos para explicar isso se relaciona com o enfraquecimento da concordância verbal e nominal no português brasileiro”, disse.
A previsão que se fazia antes das descobertas era de que não deveria haver línguas com o sujeito nulo em orações indicativas, com uma série de propriedades associadas com o que chamamos de movimento sintático.
“Imaginava-se que essa seria uma das propriedades universais: nenhuma língua teria esse tipo de sujeito. Mas mostramos que ele é encontrado no português brasileiro. Portanto, não é uma propriedade universal. O novo modelo terá que explicar não apenas a característica do nosso português, mas também precisará explicar por que essa ocorrência é tão rara”, afirmou.
A interpretação da frase “o João acha que a mãe do Pedro disse que vai viajar”, segundo Nunes, é clara para o brasileiro: a mãe é o sujeito de “vai viajar”, que está oculto. “Mas, para as outras línguas, se a frase for construída dessa forma, não fica claro se quem vai viajar é a mãe, o Pedro, ou o João. A interpretação nesse caso é muito difícil para quem não é brasileiro”, apontou.
Por outro lado, na frase “Maria disse que a médica acha que está grávida”, a interpretação para os brasileiros é que se torna difícil. “Soa muito estranho para nós. Dá a impressão de que a médica está grávida. Para o português europeu, não há nenhuma dúvida: quem está grávida é a Maria”, explicou.
Para uma sentença como “o João é difícil de elogiar”, o português brasileiro admite dois significados. Mas no português europeu, o significado está claro: “é difícil elogiar o João”. “Em alguns casos vamos ter mais possibilidades interpretativas no português brasileiro, em outros, no português europeu”, disse Nunes.
Outro tópico explorado no Projeto Temático no tema do sujeito nulo se refere a frases comuns no português brasileiro coloquial, como “eles parecem que vão viajar”.
“Isso é completamente impossível no português europeu. É algo que só se explica pelo que chamamos de ‘movimento’. Mas basta um deslocamento do pronome para que a frase se torne compreensível em Portugal: ‘parece que eles vão viajar’”, disse.
O movimento pode envolver expressões idiomáticas do português brasileiro, configurando um tipo de sentença que se tornaria ainda mais incompreensível em outras línguas.
“Podemos dizer ‘a vaca parece que foi para o brejo’. Isso é impossível em outra língua, ou no português europeu. O sujeito nulo só pode ser usado dessa forma no português brasileiro graças à ação de um feixe de propriedades diferentes”, disse Nunes.
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