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Datafolha: 9 entre 10 brasileiros acham que mudanças climáticas terão impacto em suas vidas (Folha de S.Paulo)

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Preocupação com eventos extremos une apoiadores de Lula (PT) e Bolsonaro (PL)

Lucas Lacerda

6 de abril de 2023


Nove entre dez brasileiros acham que vão sofrer impactos das mudanças climáticas na vida pessoal, e dois terços da população enxergam que a vida será muito prejudicada por eventos climáticos extremos nos próximos cinco anos.

Também há consenso sobre a distribuição desse impacto: 95% das pessoas acham que a parcela mais pobre sofrerá com esses efeitos.

Os dados fazem parte de pesquisa do Datafolha que ouviu 2.028 pessoas, de 126 municípios, com mais de 16 anos, nos dias 29 e 30 de março. A margem de erro é de dois pontos percentuais.

Enquanto a maioria acha que as mudanças climáticas vão prejudicar muito a parcela mais pobre da população (82%), uma minoria acha que a população rica vai sofrer da mesma forma (24%).

Quando avaliam a preocupação com os impactos na vida pessoal, 70% das mulheres afirmam que haverá muito prejuízo —índice que cai para 62% entre os homens.

Um motivo possível é o dano desigual da crise do clima, que, como já identificado em estudos, gera problemas sociais como migração, violência infantil e casamentos forçados, que afetam mais a população feminina.

Para Lori Regattieri, senior fellow da Mozilla Foundation, o destaque indica ainda que as mulheres podem estar mais atentas a riscos para a saúde própria e da família, além de reagirem mais rápido.

“Elas despontam em nível de preocupação principalmente quando temos questões que envolvem a saúde delas, da família e dos filhos”, diz a pesquisadora, que estuda comportamento digital e desinformação na agenda climática e socioambiental.

Regattieri destaca que a percepção também precisa considerar aspectos de cor e renda. “Quando falamos de mulheres negras, há maior probabilidade de morarem em áreas de risco. É onde se percebe o racismo ambiental.”

A percepção de muito prejuízo na vida pessoal foi apontada por 69% das pessoas pretas e pardas ouvidas na pesquisa, contra 61% entre pessoas brancas. A margem de erro é de três pontos percentuais para pessoas pardas, e quatro e seis para brancos e negros, respectivamente.

A pesquisa revela ainda uma preocupação com as mudanças climáticas muito similar entre quem declarou voto no presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e quem disse ter votado no ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno das eleições de 2022. Os percentuais também são próximos quando comparam-se os de apoiadores de PT e PL (quando citadas apenas as siglas, sem mencionar os candidatos em questão).

O prejuízo na vida pessoal decorrente de mudanças no clima é apontado por 89% dos eleitores de Lula e 88% dos de Bolsonaro. A pesquisa, assim, pode indicar que o medo de impactos na própria vida supera o posicionamento político —em campanha, Lula disse que priorizaria a agenda climática, enquanto a gestão Bolsonaro promoveu um desmonte das políticas públicas ambientais.

Na visão de Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, rede de organizações socioambientais, isso ocorre porque a relação entre o apoio político e mudanças climáticas ainda não é tão direta no Brasil quanto problemas de emprego, fome, pobreza e saúde.

“Para a composição do voto, a questão de clima e ambiente não é tão decisiva [no Brasil] como em países que já venceram esses problemas”, diz.

Astrini opina ainda que os eleitores de Bolsonaro não creditam o enfraquecimento da política ambiental à figura do ex-presidente.

“O que verificamos é que há uma narrativa criada para esse público: que o Bolsonaro não é uma pessoa ruim para a agenda de meio ambiente, que as acusações são invenção de esquerdistas, que o movimento ambiental do mundo é bancado por comunistas contra o desenvolvimento do país.”

Os danos imediatos que possam ser causados por uma chuva extremamente forte são outra preocupação em destaque na pesquisa. Para mais da metade da população (61%), a precipitação extrema é um risco para a casa onde moram, e 86% apontam risco para a infraestrutura —ruas, pontes e avenidas— da cidade em que vivem.

A percepção ampla sobre mudanças climáticas não é novidade no Brasil, de acordo com pesquisas anteriores do Datafolha. Levantamento realizado em 2010 mostrou que 75% dos brasileiros achavam que as atividades humanas contribuíam muito para o aquecimento global —o que é um consenso científico, amplamente difundido. Em 2019, esse índice caiu para 72%.

O mais recente relatório do painel científico do clima da ONU (IPCC, na sigla em inglês), lançado em 20 de março —poucos dias antes da realização da pesquisa do Datafolha, portanto—, enfatiza que o mundo vive sob pressão climática sem precedentes e que alguns danos já são irreversíveis.

Os cientistas alertam que o prazo para agir e frear o aquecimento do planeta em 1,5°C, meta do Acordo de Paris, é curto e exige ações rápidas dos países.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

Governo de SP foi alertado de risco no Sahy 48 horas antes, diz centro federal (Folha de S.Paulo)

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OUTRO LADO: Defesa Civil diz que enviou SMS para 34 mil celulares cadastrados na região do litoral norte

Isabela Palhares

22 de fevereiro de 2023


O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alerta para Desastres Naturais) afirma ter alertado o Governo de São Paulo cerca de 48 horas antes sobre o alto risco de desastre no litoral paulista.

Ao menos 48 pessoas morreram, sendo 47 em São Sebastião e 1 em Ubatuba —a última atualização foi feita nesta quarta (22) pela Defesa Civil.

Segundo o Cemaden, que é um órgão federal, a Defesa Civil estadual foi alertada sobre a ocorrência de chuvas fortes na região e o alto risco de desastres em uma reunião online na manhã de sexta (17). A vila do Sahy, o ponto em que mais pessoas morreram, foi citada como uma área de alto risco para deslizamento.

Em nota, a Defesa Civil diz que emitiu alertas preventivos à população desde que foi informada da previsão de fortes chuvas.

“Nós alertamos e avisamos a Defesa Civil na sexta, foram quase 48 horas antes de o desastre acontecer. Seguimos o protocolo que é estabelecido, alertando a Defesa Civil estadual para que ela se organizasse com os municípios”, disse Osvaldo Moraes, presidente do Cemaden.

O Cemaden é ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O centro é responsável por monitorar índices meteorológicos e geológicos e alertar, caso necessário, os órgãos de prevenção.

Moraes diz que, ainda na quinta-feira (16), um boletim meteorológico já indicava as fortes chuvas na região. Esse boletim foi repassado para a Defesa Civil do estado.

Depois desse primeiro alerta, o Cemaden se reuniu com um representante da Defesa Civil estadual na sexta de manhã. “Nós emitimos boletins diários, o de quinta já indicava o risco. Mas o de sexta-feira aumentou o nível de alerta para essa região.”

A Defesa Civil disse que enviou 14 alertas de mensagem de texto (SMS) para mais de 34 mil celulares cadastrados na região do litoral norte. O órgão informou ainda que começou a articular ações as defesas civis municipais na quinta-feira quando recebeu a previsão de fortes chuvas na região.

“Os primeiros avisos divulgados pela Defesa Civil do Estado, que ocorreram ainda de forma preventiva, foram publicados por volta das 15 horas de quinta-feira, nas redes sociais da Defesa Civil e do Governo com informações sobre o volume de chuvas estimado para o período, bem como as medidas de segurança que poderiam ser adotadas pela população em áreas de risco”, diz a nota.

O órgão disse ainda que à 00h52 de sexta, ao acompanhar imagens de radares e satélites, enviou a primeira mensagem de SMS com o alerta.

Nas redes sociais da Defesa Civil, a primeira mensagem de alertas para chuvas fortes no sábado foi feita às 12h22. A mensagem, no entanto, não fala sobre os riscos de desmoronamento.

Durante a noite, outros alertas foram postados pelo órgão e nenhum deles faz menção ao risco de desmoronamento de terra. Foi só às 19h49 uma mensagem recomendou que as pessoas deixassem o local se precisassem.

Para os especialistas, a proporção do desastre e o elevado número de vítimas mostram que apenas a estratégia de envio de SMS aos moradores não é eficiente. Além de não ser possível saber se as pessoas viram os alertas, não havia um plano ou orientação sobre o que fazer na situação.

“Você cria um sistema de aviso, as pessoas podem até receber a mensagem, mas não sabem o que fazer com aquela informação. Não há uma orientação para onde devem ir, quando sair de casa, o que levar”, diz Eduardo Mario Mendiondo, coordenador científico do Ceped (Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres) da USP.

Para ele, a estratégias devem pensar também criação de rotas de fugas em áreas de risco e na orientação aos moradores. “A população precisa saber qual o risco está correndo e como se proteger. É injusto depois dizer que eles não queriam sair de casa, eles não tinham orientação correta do que fazer.”

Segundo ele, em diversas cidades do país, como Petrópolis e Salvador, o alerta ocorre por uma sirene.

“Você garante que todo mundo vai ouvir a qualquer momento do dia. É o instrumento mais antigo, mas que funciona. Uma sirene dá o recado claro do risco iminente”, diz.

Para Fernando Rocha Nogueira, coordenador do LabGRIS (Laboratório Gestão de Riscos) da UFABC, as autoridade brasileiras assistem de forma inerte aos desastres que ocorrem no país. Segundo ele, o Brasil conta com bons sistemas de monitoramento, mas não desenvolve estratégias para proteger a população.

“Temos um problema grave de comunicação no país. Tinha o mapeamento de que iria chover muito, que havia um alto risco e não se deu a atenção devida. Milhares de pessoas desceram para o litoral, ignorando a previsão. Nós não temos conscientização do risco, nós vivemos um negacionismo das informações climáticas”, diz.


Como foram os avisos

Quinta-feira (16)
Boletim do Cemaden alerta para a ocorrência de chuvas fortes e volumosas no litoral paulista durante o Carnaval

Sexta-feira (17)
Em reunião virtual, o Cemaden faz alerta sobre a previsão de chuvas fortes e o risco de deslizamentos de terra para integrantes da Defesa Civil do estado. A vila do Sahy estava entre as áreas apontadas como de maior risco

Sábado (18)

12h22: Defesa Civil do Estado avisa nas redes sociais que a chuva estava se espalhando pela região de Ubatuba e Caraguatatuba. “Tem vento e raios. Atinge municípios vizinhos. Tenha cuidado nas próximas horas”, diz a mensagem

18h33: Uma nova mensagem da Defesa Civil é postada alertando para chuva persistente na região.

19h49: Outra mensagem é postada pela Defesa Civil diz que a “chuva está se espalhando” pelo Litoral Norte e pede para que as pessoas “tenham cuidado nas próximas horas”

23h13: A Defesa Civil alerta que a chuva persiste na região e recomenda “não enfrente alagamentos. Fique atento a inclinação de muros e a rachaduras. Se precisar saia do local”

03h15: O órgão volta a alerta sobre a chuva forte e persistente no litoral norte e diz “não enfrente alagamentos. Fique atento a inclinação de muros e a rachaduras. Se precisar saia do local.”

Tragédia no litoral norte indica necessidade de aprimorar previsão de chuvas (Folha de S.Paulo)

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Especialistas apontam falta de investimento e defasagem do modelo; temporal foi agravado por ciclone extratropical, diz meteorologista

Carlos Petrocilo

22 de fevereiro de 2023


A falta de investimento em novas tecnologias, aliada à aceleração das mudanças climáticas, torna a previsão do tempo mais imprecisa no Brasil, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

O serviço de meteorologia é essencial para que órgãos públicos, como Defesa Civil, se preparem com antecedência na tentativa de mitigar os efeitos de um temporal.

No litoral norte, a Defesa Civil havia emitido alerta na quinta-feira (16) para a possibilidade de registrar um acumulado de 250 milímetros no final de semana. Porém, o volume de chuva chegou a 682 mm, de acordo com o Governo de São Paulo.

Como consequência do temporal, 48 pessoas morreram, sendo 47 em São Sebastião e uma em Ubatuba, conforme os dados desta quarta (22).

Segundo o professor Eduardo Mario Mendiondo, coordenador científico do Ceped (Centro de Educação e Pesquisa de Desastres) da USP, os modelos atuais de previsão utilizam parâmetros atmosféricos calibrados por condições históricas e precisam ser atualizados.

“O clima está mudando, com maior magnitude e com maior frequência de ocorrência de extremos. Os modelos precisam ser atualizados de forma constante, em escala global e em regiões específicas, com microclima e dinâmicas peculiares, como é o caso da Serra do Mar e da Baixada Santista”, afirma Mendiondo.

O professor chama atenção para falta de investimentos públicos. Segundo ele, o governo precisa reforçar o quadro de servidores e investir em novas ferramentas para Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia).

“Falta aumentar em 20 vezes o potencial de supercomputadores atuais em território nacional, falta contratar até 20 vezes o número servidores de manutenção e operação de supercomputadores e falta contratar até em dez vezes o número atual de técnicos operadores”, afirma o professor da USP.

Para suprir tais necessidades, Mendiondo estima que é necessário investimentos de R$ 25 bilhões por ano. “Isto para converter essas novas evidências científicas, melhorando as previsões, seguindo exemplos como Japão, Europa e Estados Unidos.”

O meteorologista Mamedes Luiz Melo afirma que o volume de chuva foi agravado pela ação do ciclone extratropical associado a uma frente fria que passou pelo Sul do país e por São Paulo. “A tecnologia vinha alertando, mas estamos lidando com algo móvel na atmosfera”, afirma Melo.

A Defesa Civil diz, em nota, que os boletins especiais e de aviso de risco meteorológicos são emitidos com base em simulações numéricas de previsão do tempo. “Tais limiares baseiam-se no histórico da chuva da região em que a chuva acumulada representa risco para transtornos, como deslizamentos, desabamentos, alagamentos, enchentes e ocorrências relacionadas a raios e ventos”, disse a Defesa Civil.

As projeções do Inmet, que emite alertas sobre riscos de deslizamentos para órgãos públicos, previram volumes de chuva menores do que um modelo usado pela empresa de meteorologia MetSul.

O modelo da empresa, chamado WRF, apontou que algumas áreas poderiam ter chuva acima de 600 mm em alguns pontos do terreno, o que acabou se confirmando. As previsões mais graves do instituto federal falavam em chuvas no patamar de 400 mm.

A previsão do Inmet para a chuva no litoral norte utilizou seis modelos numéricos diferentes. O instituto também usa o WRF, mas com uma resolução menor do que a da MetSul. Ou seja, a empresa conseguiu fazer os cálculos a partir de detalhes mais precisos do relevo do que o órgão público.

“O WRF tem se mostrado uma ferramenta muito importante na identificação de eventos extremos de chuva”, diz a meteorologista Estael Sias, da MetSul. “É importante assinalar que o modelo WRF é meramente uma ferramenta de trabalho, um produto, e não a previsão, e que o prognóstico final divulgado ao público e clientes leva em conta outros modelos e também a experiência do meteorologista para eventos extremos.”

Segundo o meteorologista Franco Nadal Villela, da equipe do Inmet em São Paulo, a resolução não é o fator mais decisivo na previsão de chuvas. Ele diz que os modelos usados pelo instituto deram conta de prever que o temporal em São Sebastião seria muito grave, embora não tenham chegado ao valor de 600 mm.

“Há modelos de menor resolução que pontualmente previram menos precipitação”, diz Villela. “As previsões modeladas estavam prevendo bem este evento e as variações na quantificação de precipitação [volume de chuva por hora] são mais uma das varáveis que ponderamos para emitir alertas.”

A Folha enviou perguntas através de email ao Inpe, que coordena o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Para José Marengo, climatologista e coordenador do Cemaden, defende mudanças [sic]. Ele explica que o modelo de previsão do tempo divide a região em áreas de até 200 quilômetros quadrados. Com isso, não é possível prever a quantidade de chuva aproximada em toda a região.

“O Brasil não está preparado tecnologicamente. É como se dividisse o Brasil em caixas grandes de 200 quilômetros quadrados, por isso há distorções dentro da mesma região. Pode ter áreas em que chove menos e outras que superaram os 600 milímetros, a modelagem não é perfeita”, afirma Marengo.

Ele também alerta para a falta de novas tecnologias. “O supercomputador do Inpe, o Tupã, que resolve as equações matemáticas em alta velocidade, é de 2010 e considerado obsoleto”, afirma o climatologista.

O professor Pedro Côrtes, do Instituto de Energia e Ambiente da USP, concorda que é área precise de mais recursos, mas pondera que as previsões dos órgãos do governo foram suficientes para apontar que uma tempestade grave se aproximava.

“A espera pelo investimento não pode postergar a solução do problema, as previsões já funcionam.”

A Folha publicou, no dia 28 de dezembro de 2010, a inauguração do supercomputador. Na ocasião, o Tupã custou R$ 31 milhões e era utilizado em países como Estados Unidos, China, Alemanha e Rússia. Para operá-lo, o Inpe precisou construir uma nova central elétrica, de mil quilowatts —antes tinha só 280 quilowatts disponíveis no instituto.

Até hoje os especialistas apontam o Tupã como o melhor equipamento que o Brasil possui para prever, além de enchentes, ondas de calor e frio e os períodos de seca.

Deslizamentos e enchentes: culpar as chuvas mais uma vez? (JC)

JC 5373, 14 de março de 2016

Artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos, geólogo e consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente

A cada novo período chuvoso voltam às manchetes as mortes e sinistros associados a deslizamentos de encostas e enchentes. Tragédias insistentemente anunciadas, mas anualmente recorrentes dado ao descompromisso com que a administração pública em seus três níveis tem lidado com a questão.

Todos estão fartos de saber que esses fenômenos decorrem diretamente das formas equivocadas com que se expandem nossas cidades, impermeabilizando seus territórios, canalizando e retificando seus rios, ocupando terrenos, como encostas de alta declividade e margens de córrego, que não poderiam nunca ser ocupados dada sua já altíssima suscetibilidade natural a riscos, mas também ocupando terrenos de média declividade, onde a ocupação urbana seria aceitável, com a utilização de técnicas construtivas e urbanísticas totalmente inadequadas, que acabam transformando mesmo essas áreas em um verdadeiro canteiro de situações de risco.

E com toda essa realidade, escancarada anualmente pelo meio técnico e repercutida pelos meios de comunicação, a pungente verdade é que nossas autoridades sequer tomaram a providência mínima e cristalina de parar de errar, ou seja, parar de cometer os erros que estão na exata origem causal dessas tragédias de cunho geológico, geotécnico e hidrológico. Por consequência, o que se vê é, ao invés da redução do número de áreas de risco, a sua contínua multiplicação.

Como resultado, uma perspectiva de futuro assustadora: as tragédias em áreas de risco tendem a crescer em frequência e letalidade, na exata proporção do crescimento de nossas cidades.

Dentro desse panorama é preciso que se compreenda que do ponto de vista técnico não há lacuna alguma nos conhecimentos básicos de geologia, geotecnia e hidrologia, necessários para a boa solução desses problemas. Os fenômenos de enchentes e deslizamentos nos mais variados contextos geológicos do País são já bastante estudados e conhecidos. Os instrumentos que permitirão um correto planejamento do uso e ocupação do solo urbano são dominados, como a essencial Carta Geotécnica, um mapa municipal que informa sobre os locais que não poderão nunca ser ocupados e as áreas que poderão ser ocupadas caso sejam utilizadas as técnicas adequadas para tanto. Por paradoxal que possa parecer, o Brasil é liderança internacional nesse campo tecnológico.

Vale registrar apenas que não possuímos no País uma cultura técnica arquitetônica e urbanística especialmente adequada à ocupação de terrenos com maior declividade. Isso se verifica tanto nas formas espontâneas utilizadas pela própria população de baixa renda na autoconstrução de suas moradias, como também em projetos privados ou públicos  de maior porte que contam com o suporte técnico de arquitetos e urbanistas e têm, apesar do erro básico e grave de concepção, sua implantação autorizada pelos órgãos municipais responsáveis para tanto.

Em ambos os casos, ou seja, no empirismo popular e nos projetos mais elaborados, prevalece infelizmente a cultura técnica da área plana. Isto é, através de cortes e aterros obtidos por operações de terraplenagem nas encostas obsessivamente se procura produzir platôs planos sobre os quais irá ser edificado o empreendimento. Um fatal erro técnico de concepção. Esse tem sido o cacoete técnico que está invariavelmente presente na maciça produção de áreas de risco nas cidades brasileiras que, de alguma forma, crescem sobre relevos mais acidentados.

Vale insistir, no entanto, a maior dificuldade para a boa solução desses problemas continua a residir na falta de vontade e no descompromisso das administrações públicas em finalmente decidir ordenar corretamente a expansão urbana de suas cidades. Nesse mister é fundamental perceber que as populações mais pobres somente deixarão de optar por áreas de risco para instalar suas moradias quando o poder público, através de ousados Programas Habitacionais, lhes oferecer alternativas dignas e seguras de moradia na mesma faixa de custos que ela hoje só encontra na ocupação das áreas de risco. Essa é a verdade nua e crua da questão. Ou essa equação básica é resolvida, ou a instalação de novas situações de risco sempre superarão, em muito, o esforço em desarmar as já instaladas.

Em resumo, é preciso que as autoridades públicas deixem de irresponsavelmente ver a questão das áreas de risco como um problema de Defesa Civil e Corpo de Bombeiros, por mais heroicas que sejam essas corporações, e passem a entendê-la como um elemento próprio do campo das Políticas Habitacionais e de Planejamento Urbano. Somente sob essa ótica a administração pública passará ao comando ativo da situação, deixando de agir apenas a reboque das tragédias, situação em que lhes sobra apenas a descompostura esperta de, como sempre, culpar as chuvas pelos infortúnios.

Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

  • Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”.
  • Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia 

* Esse artigo expressa apenas a opinião do autor.

Nova legislação dará base científica à prevenção de desastres naturais, dizem especialistas (Fapesp)

Lei sancionada em abril obrigará municípios a elaborar carta geotécnica, instrumento multidisciplinar que orientará implantação de sistemas de alerta e planos diretores (Valter Campanato/ABr)

08/08/2012

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – Em janeiro de 2011, enchentes e deslizamentos deixaram cerca de mil mortos e 500 desaparecidos na Região Serrana do Rio de Janeiro. A tragédia evidenciou a precariedade dos sistemas de alerta no Brasil e foi considerada por especialistas como a prova definitiva de que era preciso investir na prevenção de desastres.

O mais importante desdobramento dessa análise foi a Lei 12.608, sancionada em abril, que estabelece a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e cria o sistema de informações e monitoramento de desastres, de acordo com especialistas reunidos no seminário “Caminhos da política nacional de defesa de áreas de risco”, realizado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) no dia 6 de agosto.

A nova lei obriga as prefeituras a investir em planejamento urbano na prevenção de desastres do tipo enchentes e deslizamentos de terra. Segundo os especialistas, pela primeira vez a prevenção de desastres poderá ser feita com fundamento técnico e científico sólido, já que a lei determina que, para fazer o planejamento, todas as prefeituras precisarão elaborar cartas geotécnicas dos municípios.

Katia Canil, pesquisadora do Laboratório de Riscos Ambientais do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), disse que as prefeituras terão dois anos para elaborar as cartas geotécnicas para lastrear seus planos diretores, que deverão contemplar ações de prevenção e mitigação de desastres. Os municípios que não apresentarem esse planejamento não receberão recursos federais para obras de prevenção e mitigação.

“As cartas geotécnicas são documentos cartográficos que reúnem informações sobre as características geológicas e geomorfológicas dos municípios, identificando riscos geológicos e facilitando a criação de regras para a ocupação urbana. Com a obrigatoriedade desse instrumento, expressa na lei, poderemos ter estratégias de prevenção de desastres traçadas com base no conhecimento técnico e científico”, disse Canil à Agência FAPESP.

A primeira carta geotécnica do Brasil foi feita em 1979, no município de Santos (SP), mas, ainda assim, o instrumento se manteve pouco difundido no país. Segundo Canil, a institucionalização da ferramenta será um fator importante para a adequação dos planos diretores em relação às características geotécnicas dos terrenos.

“Poucos municípios têm carta geotécnica, porque não era um instrumento obrigatório. Agora, esse panorama deve mudar. Mas a legislação irá gerar uma grande demanda de especialistas em diversas áreas, porque as cartas geotécnicas integram uma gama de dados interdisciplinares”, disse a pesquisadora do IPT.

As cartas geotécnicas reúnem documentos que resultam de levantamentos geológicos e geotécnicos de campo, além de análises laboratoriais, com o objetivo de sintetizar todo o conhecimento disponível sobre o meio físico e sua relação com os processos geológicos e humanos presentes no local. “E tudo isso precisa ser expresso em uma linguagem adequada para que os gestores compreendam”, disse Canil.

As cidades terão que se organizar para elaborar cartas geotécnicas e a capacitação técnica necessária não é trivial. “Não se trata apenas de cruzar mapas. É preciso ter experiência aliada ao treinamento em áreas como geologia, engenharia, engenharia geotécnica, cartografia, geografia, arquitetura e urbanismo”, disse Canil. O IPT já oferece um curso de capacitação para elaboração de cartas geotécnicas.

Uma dificuldade importante para a elaboração das cartas será a carência de mapeamento geológico de base nos municípios brasileiros. “A maior parte dos municípios não tem dados primários, como mapeamentos geomorfológicos, pedológicos e geológicos”, disse Canil.

Plano nacional de prevenção

A tragédia da Região Serrana fluminense, em janeiro de 2011, foi um marco que mudou o rumo das discussões sobre desastres, destacando definitivamente o papel central da prevenção, segundo Carlos Nobre, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

“Aquele episódio foi um solavanco que chacoalhou a percepção brasileira para o tema dos grandes desastres. Tornou-se óbvio para os gestores e para a população que é preciso enfatizar o eixo da prevenção. Foi um marco que mudou nossa perspectiva para sempre: prevenção é fundamental”, disse durante o evento.

Segundo Nobre, que também é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, a experiência internacional mostra que a prevenção pode reduzir em até 90% o número de vítimas fatais em desastres naturais, além de diminuir em cerca de 35% os danos materiais. “Além de poupar vidas, a economia com os prejuízos materiais já compensa com sobras todos os investimentos em prevenção”, disse.

De acordo com Nobre, a engenharia terá um papel cada vez mais importante na prevenção, à medida que os desastres naturais se tornarem mais extremos por consequência das mudanças climáticas.

“O engenheiro do século 21 precisará ser treinado para a engenharia da sustentabilidade – um campo transversal da engenharia que ganhará cada vez mais espaço. A engenharia, se bem conduzida, é central para solucionar alguns dos principais problemas da atualidade”, afirmou.

Segundo Nobre, além da nova legislação, que obrigará o planejamento com base em cartas geotécnicas dos municípios, o Brasil conta com diversas iniciativas na área de prevenção de desastres. Uma delas será anunciada nesta quarta-feira (08/08): o Plano Nacional de Prevenção a Desastres Naturais, que enfatiza as obras voltadas para a instalação de sistemas de alerta.

“Há obras de grande escala necessárias no Brasil, especialmente no que se refere aos sistemas de alerta. Um dos elementos importantes do novo plano é a questão do alerta precoce. Experiências internacionais mostram que um alerta feito até duas horas antes de um deslizamento é capaz de salvar vidas”, disse.

Segundo Nobre, as iniciativas do plano serão coerentes com a nova legislação. O governo federal deverá investir R$ 4,6 bilhões, nos próximos meses, em iniciativas de prevenção de desastres nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina.

Mas, para pleitear verbas federais, o município deverá cumprir uma série de requisitos, como incorporar as ações de proteção e defesa civil no planejamento municipal, identificar e mapear as áreas de risco de desastres naturais, impedir novas ocupações e vistoriar edificações nessas áreas.

Segundo Nobre, outra ação voltada para a prevenção de desastres foi a implantação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do MCTI, que começou a operar em dezembro de 2011, no campus do Inpe em Cachoeira Paulista (SP).

“Esse centro já tinha um papel importante na previsão de tempo, mas foi reformulado e contratou 35 profissionais. O Cemaden nasce como um emblema dos novos sistemas de alerta: uma concepção que une geólogos, meteorólogos e especialistas em desastres naturais para identificar vulnerabilidades, algo raro no mundo”, afirmou.

Segundo ele, essa nova estrutura já tem um sistema de alertas em funcionamento. “É um sistema que ainda vai precisar ser avaliado com o tempo. Mas até agora, desde dezembro de 2011, já foram lançados mais de 100 alertas. O país levará vários anos para reduzir as fatalidades como os países que têm bons sistemas de prevenção. Mas estamos no caminho certo”, disse Nobre.