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Artigos sobre o PL 2.159/2021 – Lei Geral do Licenciamento Ambiental

PL do licenciamento ambiental é “maior retrocesso em 40 anos”, diz ex-presidente do Ibama (Agência Pública)

Projeto de lei que desmonta regras de proteção ao meio ambiente deve ir a votação hoje (21) no plenário do Senado

Artigo original

21 de maio de 2025
Por Leandro Aguiar

Sob o argumento de que irá “desburocratizar” os processos de licenciamentos ambientais no Brasil, dinamizando a economia e gerando empregos, está para ser votado nesta quarta-feira (21), no plenário do Senado, o projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021). Os relatórios foram aprovados nesta terça nas comissões de meio ambiente e de agricultura da Casa e o texto já seguiu, com regime de urgência, para o plenário.

Aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados, onde tramitou por mais de 17 anos, o projeto foi apelidado de “PL da Devastação” por ambientalistas, e sua possível transformação em lei é vista por diferentes organizações como o mais grave ataque legislativo ao meio ambiente desde a redemocratização do Brasil. Caso aprovado no Senado, ele voltará à Câmara para mais uma votação, seguindo então para a sanção ou o veto da Presidência da República.

Em entrevista à Agência Pública, Suely Araújo, que presidiu o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) entre 2016 e 2018 e atualmente é coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, analisou alguns dos pontos que considera mais problemáticos no atual projeto. Pela organização, ela assinou uma nota técnica que analisa o texto em tramitação no Senado em comparação com o que foi aprovado na Câmara.

Na avaliação de Araújo, além de abraçar os “principais retrocessos” do PL aprovado na Câmara, os relatores do projeto no Senado, Tereza Cristina (PP-MS) e Confúcio Moura (MDB-RO), alcançaram uma proeza: piorá-lo. “Com o mecanismo do ‘autolicenciamento’, a proposta simplesmente transforma quase todas as licenças ambientais do país, cerca 90% delas, em um simples apertar de botão, em que sai a licença impressa sem a entrega de estudo ambiental pelo empreendedor e sem análise de alternativas técnicas”, critica.

O “autolicenciamento” é apenas um dos muitos pontos negativos do projeto elencados por Araújo. As condicionantes ambientais – espécie de contrapartida social e econômica que empreendimentos de grande impacto têm de oferecer às regiões afetadas – seriam flexibilizadas, assim como a validade de estudos ambientais, que poderiam ser desprezados pelo órgão expedidor das licenças ambientais.

Direitos indígenas e quilombolas, diz a especialista, também passam ao largo do projeto, que restringe a participação de autoridades que respondem pela proteção desses territórios na expedição das licenças, caso essas terras não estejam ainda formalmente homologadas. “É um negacionismo generalizado de direitos coletivos”, sintetiza Araújo.

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.

O Observatório do Clima produziu uma nota técnica sobre o PL do Licenciamento, em que afirma que os principais retrocessos presentes no texto aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados estão mantidos. Quais são eles?

Há, por exemplo, a questão do autolicenciamento. Da forma como está, o projeto, que prevê uma ampliação das possibilidades de licença por adesão e compromisso (LAC), simplesmente transforma quase todas as licenças ambientais do país, cerca de 90% dos processos, em um simples apertar de botão em que sai a licença impressa, sem entrega de estudo ambiental pelo empreendedor e sem análise de alternativas técnicas locacionais.

O que o empreendedor botar no papel, vai ficar. Esse é o pior artigo, que faz do PL o caso mais grave de retrocesso em políticas ambientais nos últimos 40 anos. Além disso, contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que determina que a LAC dos estados, que já existe hoje, só pode ser aplicada em empreendimentos de baixo risco e pequeno potencial poluidor.

Só que o texto do PL inclui [a possibilidade de que empreendimentos de] médio impacto e médio potencial [também peçam a LAC]. Com isso, eles pegam praticamente 90% dos processos de licenciamento, porque nem 10% dos processos de licenciamento têm o EIA, o estudo ambiental completo [esses não podem ser feitos via LAC].

Então isso implode com o licenciamento ambiental. Está nos dois textos [Câmara e Senado], e o texto do Senado consegue piorar, porque fala que a única coisa que o empreendedor entrega na LAC é um relatório de caracterização do empreendimento.

Há ainda uma emenda adicionada no Senado, um parágrafo que fala que a análise do relatório do empreendimento será feita por amostragem.

Ao priorizar o autolicenciamento e a flexibilização dos estudos ambientais, das condicionantes ambientais e do monitoramento, na prática, é possível afirmar que o licenciamento ambiental se tornará uma mera formalidade?

Essa é a questão. Eles veem o licenciamento como entrave, e entrave se tira da frente. Então eles priorizaram o autolicenciamento, sem estudo ambiental prévio. É o único tipo de modalidade de licenciamento que não entrega estudo, só entrega uma descrição, com algumas condicionantes prontas. Isso significa que ninguém vai analisar o local, nem alternativas técnicas, nem locacionais. O PL fere de morte a avaliação de impactos ambientais, como é praticado no Brasil e no mundo.

A avaliação de impactos ambientais, que precisa de análises alternativas, eles eliminam, porque na LAC o empreendedor entrega o que quer fazer. E pelo texto do Senado, ninguém nem está obrigado a ler isso. Bota no computador alguma inteligência artificial que seleciona as condicionantes e acabou.

Outro ponto destacado na nota técnica é de que o PL pode não só aumentar a poluição e o desmatamento, mas as desigualdades sociais. Como?

Ao tratar das condicionantes, o PL procura afastar todas aquelas que têm um perfil de políticas públicas.

Hoje existem condicionantes para mitigar impacto e para compensar. E uma das áreas em que essas condicionantes são aplicadas é o que a gente chama de meio socioeconômico. Por exemplo, se uma cidade, onde se instalou uma hidrelétrica, multiplicou por cinco seu tamanho em pouquíssimos anos, o empreendedor, que é o concessionário da hidrelétrica, tem que assegurar, por um tempo, a instalação de escolas, de postos de saúde, porque a prefeitura não vai ter dinheiro para isso. Estamos falando de cidades que multiplicaram várias vezes de tamanho em poucos anos, mas que ainda nem estão recebendo royalties ou qualquer compensação em razão da obra.

Mas pelo projeto, a hidrelétrica não mais teria de se responsabilizar por contrapartidas consideradas “sociais”. Parte-se do princípio de que tudo isso tem de cair no colo do poder público. Mas é claro que naquilo que é decorrente diretamente da obra, o empreendedor teria de ter responsabilidade. Assim como por ajudar a fiscalizar um desmatamento que está aumentando demais por causa da obra.

A nota técnica aponta, ainda, pontos do PL que seriam inconstitucionais. Se aprovadas, é possível que as novas regras de licenciamento ambiental cheguem ao STF, sendo anuladas pela corte?

Não tenho dúvida nenhuma, e provavelmente [será judicializado] por mais de um autor, entre os legitimados para irem diretamente ao STF. Porque tem vários pontos sobre os quais o Supremo já tomou uma decisão contrária [ao que o PL propõe].

Um dos exemplos é a LAC, que o Supremo decidiu que só pode ser usada em empreendimentos de baixo risco e pequeno potencial poluidor. O PL está contrariando isso.

Tem outro ponto, que é a parte das autoridades envolvidas no processo de licenciamento. Isso é inconstitucional de pai e mãe. Pelo PL, só seriam chamados para se manifestar os órgãos ligados à proteção dos direitos indígenas e dos quilombolas se forem [afetados pelo empreendimento] terra indígena homologada e território quilombola titulado.

Quer dizer, um território pode não estar titulado por omissão do Estado, e a partir dessa omissão estatal, o PL pretende tornar invisível perante o licenciamento ambiental o direito indígena e quilombola. Acontece que tanto os direitos indígenas quanto os direitos quilombolas estão expressamente defendidos na Constituição.

O PL estabelece que os pareceres de órgãos técnicos de Estado (como Funai) não tenham caráter vinculante, ou seja, poderiam ser desconsiderados pelos órgãos licenciadores. Como a senhora avalia este ponto?

Trata-se de uma desconsideração da importância dos direitos indígenas, dos direitos dos quilombolas, da importância do patrimônio histórico do país, da importância da saúde pública, porque tem processo em que o Ministério da Saúde se manifesta, quando o projeto é em zonas endêmicas de malária, por exemplo.

Então, é desconsideração de muita coisa. É um negacionismo generalizado de direitos coletivos.

Desde a promulgação da Constituição de 1988 tramitam no Congresso projetos de regulamentação nacional do licenciamento ambiental. Por que é tão difícil chegar a um consenso sobre o tema no legislativo?

O primeiro projeto foi de 1988, do ex-deputado Fabio Feldman. Ele queria regulamentar o EIA [Estudo de Impacto Ambiental], mas no curso desse processo, o conteúdo foi ampliado para regulamentar, em geral, o licenciamento ambiental. Esse processo tramitou por muitos anos e acabou sendo arquivado. Aí, em 2004, começou esse processo em que nós estamos hoje.

Ele começa por um parlamentar ambientalista, o ex-deputado Luciano Zica. Ele tem uma trajetória na área de qualidade ambiental de cidades e era da bancada ambientalista. Com o passar do tempo, esse texto, principalmente por influência da bancada ruralista e da Confederação Nacional da Indústria, que atuam juntas nesse processo, foi se tornando a lei da não licença e a lei do autolicenciamento.

Isso realmente significa um retrocesso histórico. Eu não conheço um texto com tantos problemas para a legislação ambiental como esse. A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que institucionalizou o licenciamento em nível nacional, é de 1981.

Desde então, não vai haver nada com retrocesso tão forte. O licenciamento pode ser racionalizado, ninguém nega isso. Agora, o que eles estão fazendo é implodir com o licenciamento.

É muito assustador, é uma ferramenta que é importante em todos os países que têm política ambiental, é a principal ferramenta de prevenção de danos ambientais e socioambientais que existe no país. Um projeto como esse, eu acho que era melhor jogar fora e ficar com a confusão normativa que temos hoje, porque ninguém vai ganhar com esse texto.

E não vai trazer segurança jurídica, porque os próprios processos de licenciamento vão ser judicializados, mesmo que o conteúdo esteja em lei.

O texto em votação no Senado põe em risco a segurança hídrica nacional?

Sim, porque desvincula a outorga dos direitos de recursos hídricos e a certidão de uso do solo. A outorga é dada pelos órgãos de gerenciamento de recursos hídricos, e a certidão de uso do solo, pelos municípios. O projeto prevê que  o empreendedor, na licença, não precisa provar que tem outorga, nem que tem certidão municipal de uso do solo.

O que vai acontecer? O licenciador vai começar a dar licença, por exemplo, para uma termelétrica que não tem água [garantida]. Se não mostrar no processo que tem outorga de direitos de uso de recursos hídricos, o licenciador pode perder todo o trabalho dele, porque ele vai dar licença para uma termelétrica que não tem como captar água.

Então, essa desvinculação não ajuda em nada. Ela vai atrapalhar o empreendedor em vez de ajudar. Parece que está eliminando a burocracia, mas está atrapalhando, porque as coisas são conectadas. Eu não posso dar licença para um empreendimento, uma indústria em área urbana por exemplo, em uma área que for estritamente residencial. Mas se eu não tiver a certidão municipal de uso do solo, isso pode acontecer.

Se aprovado, o PL pode prejudicar acordos comerciais brasileiros com o exterior, ao contrariar compromissos internacionais de proteção ao meio ambiente assumidos pelo Brasil?

Olha, eu acho que o impacto será até mais amplo, porque os compradores vão saber que os nossos produtos estão sendo gerados sem controle ambiental. Isso vai gerar desconfiança, vai tirar a credibilidade dos produtos brasileiros.

Você enxerga esforços do governo para barrar a aprovação do PL ou para amenizar seu atual teor?

A ministra Marina Silva [do Meio Ambiente e Mudança do Clima] tem se manifestado com muita preocupação sobre as consequências do projeto. Há uma posição da liderança do governo que aponta problemas no projeto. Mas, na prática, essas manifestações ainda não têm tido a repercussão necessária. O governo não está conseguindo colocar obstáculos na votação desse texto. A impressão que dá é que vai passar de tratorado.

É possível acelerar os processos de licenciamento ambiental sem desbaratar a legislação que protege o meio ambiente?

Processos mais ágeis serão conseguidos com estudos ambientais melhores. Muitas vezes, no processo, o que o gestor agroambiental faz é devolver o estudo várias vezes porque ele faz uma demanda e o empreendedor nunca entrega o material completo.

Isso está acontecendo, por exemplo, no processo da perfuração do Bloco 59 na Foz do Amazonas. A Petrobras já teve N oportunidades de completar o estudo. O problema da incapacidade do empreendedor de entregar estudos completos ou de entregar estudos bons, robustos, é notório.

Muitos órgãos ambientais sofrem com esse problema. E vários tipos de empreendedores, tanto públicos quanto privados. Esse é um problema grave no licenciamento. Estudos insuficientes, malfeitos, copiados.

Outra coisa: os órgãos ambientais têm que ter equipe. Não dá para fazer milagre. Você trabalha com equipes que teriam que ser multiplicadas duas vezes, três vezes, em termos de número de servidores.

Isso no Ibama, que ainda tem servidor. Então, se houvesse estudos melhores e equipes completas, o licenciamento sairia de forma mais ágil.

Por que, mesmo existindo o licenciamento hoje, a gente convive com tantos problemas ambientais?

O licenciamento como é hoje tem problemas, tem dificuldades, mas nós mudamos o país com o licenciamento ambiental. Antes de ser regra nacional, a gente convivia com situações como a de Cubatão [cidade na Baixada Santista], com aquele polo industrial tão grande.

Cubatão era uma área absolutamente contaminada, com a população sofrendo problemas de saúde gravíssimos. Era chamado de Vale da Morte. Entre outros problemas que ocorriam, as crianças nasciam muitas vezes anencéfalas. É isso que o licenciamento ambiental mudou. O licenciamento mudou a realidade do país, com todas as suas dificuldades, com todos os seus problemas.

O duro é ver que em 2025, a gente pode estar voltando à situação como a de Cubatão. Porque isso ocorrerá se esse projeto for aprovado.

Edição: Giovana Girardi


Comissão do Senado aprova flexibilização do licenciamento ambiental; “Retrocesso”, alertam ambientalistas (Um Só Planeta/Globo)

Texto permite autolicenciamento para obras de médio porte

Artigo original

Por Lucas Pordeus León, da Ag. Brasil

20/05/2025 15h19  Atualizado há 6 horas

Brasília; Esplanada dos Ministérios
Brasília; Esplanada dos Ministérios — Foto: EBC

A Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou, nesta terça-feira (20), por votação simbólica, o projeto de lei (PL) que cria novo marco para o licenciamento ambiental no Brasil com a flexibilização de regras para empreendimentos com impactos sobre o meio ambiente.

O PL 2.159/2021 é tido como um retrocesso por organizações ambientalistas e pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Os especialistas que o criticam questionam a possibilidade de autolicenciamento por parte das empresas para obras de pequeno e médio portes, além da isenção de licença para determinadas atividades agropecuárias.

Por outro lado, a matéria é apoiada pela bancada ruralista e pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). Os defensores do PL argumentam que as regras atuais são contraditórias e burocráticas, o que paralisa obras e empreendimentos em todo o país, prejudicando desenvolvimento econômico. Ao mesmo tempo, sustentam que a matéria mantém a fiscalização ambiental.

O texto deve ser votado ainda na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária e está na pauta do plenário do Senado nesta quarta-feira (21). Se aprovado, volta para nova análise da Câmara dos Deputados uma vez que o Senado alterou o texto original. Manifestaram-se contra o texto apenas os senadores do PT e a senadora Eliziane Gama (PDS-MA).

Eliziane argumentou que o texto apresentado no Senado é melhor do que o da Câmara, mas que ainda está “muito ruim”. Segundo a senadora, a lei é inconstitucional por liberar autolicenciamentos para obras de médio porte. Eliziane lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já derrubou leis estaduais com esse teor.

“[A barragem que se rompeu] em Brumadinho era de médio porte. Nós temos vários outros empreendimentos, não apenas em Minas Gerais, mas em outros estados, que são de médio porte. Se não considerarmos todo o processo de licenciamento ambiental como tem que ser, nós poderemos, em função do lucro e da competitividade, infelizmente, ceifar novas vidas”, afirmou a parlamentar.

O relator do PL na comissão, senador Confúcio Moura (MDB), disse que fez os ajustes possíveis para reduzir as divergências. Confúcio informou que o projeto, que tinha 80 pontos de discordâncias entre os senadores, ficou com apenas seis divergências ao final.

“Não ficou nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Ficou o que foi possível. Sobre Brumadinho ser médio porte. Nós temos agora as condicionantes que o Poder ambiental vai usar para decidir o porte de cada empreendimento, como localização e natureza do empreendimento. Isso fica a cargo do órgão licenciador”, justificou.

O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), criticou a transferência, para estados e municípios, do poder de definir o porte ou impacto ambiental das obras e empreendimentos no Brasil. Para ele, a mudança é “extremamente arriscada”.

“Nós estamos correndo risco de ter uma guerra ambiental. Quem facilitar mais o formato do licenciamento conseguirá atrair [o empreendimento]. Eu já fui governador, conheço a estrutura de prefeitura. Imagine, por exemplo, uma cidade pequena. A pressão de um grande empresário sobre o prefeito é muito grande. E eu acho que, às vezes, ele não tem estrutura para resistir a isso”, afirmou.

O líder do governo criticou ainda a decisão de desconsiderar órgãos técnicos no processo de licenciamento ambiental. “Desconsiderar órgãos técnicos, como a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], que podem ser ouvidos, mas não são obrigados a ser acompanhados, eu acho que é fragilizar demais esse processo porque são órgãos técnicos, não políticos”, disse.

A relatora do projeto na CAR, senadora Tereza Cristina (PP-MS), disse que o texto não é perfeito, mas que precisa ser aprovado para destravar obras e empreendimentos no Brasil.

“As regulações [atuais] confundem e paralisam os processos e, muitas vezes, sobrepõem competências entre a União, os estados e os municípios. Isso causa insegurança jurídica. O licenciamento precisa ser visto e analisado com calma, só que, às vezes, são demoras sem necessidade, que atravancam o desenvolvimento. É claro que o meio ambiente precisa ser preservado, mas a lei que estamos discutindo não revoga nenhuma punição por crime ambiental”, comentou.

Já o senador Omar Aziz (PSD-AM) disse que o projeto seria um “presente para o presidente Lula” por destravar obras e criticou a legislação ambiental no país.

“É a solução de continuidade nas obras que não andam nesse país. Lá no meu estado, temos uma mina de potássio, de ureia e temos o fósforo, que fazem os fertilizantes E não querem que a gente aprove isso aqui porque o meio ambiente não permite que a gente trabalhe. Hoje, a gente vive hoje refém de uma política ambientalista que não interessa à nação brasileira”, afirmou Aziz.

Retrocesso

Organizações ambientais sustentam que o projeto representa o maior retrocesso em matéria de legislação ambiental dos últimos 40 anos, desde a Constituição de 1988.

A coordenadora do Observatório do Clima, Suely Araújo, reconhece os problemas do licenciamento, mas avalia que as mudanças propostas pelo Parlamento não resolvem problemas operacionais.

“Temos problemas? Temos. Os processos demoram e poderiam ser mais previsíveis. A gente pode discutir uma série de melhorias procedimentais. No lugar de garantir mais pessoal para realizar os licenciamentos, você começa a transformar o licenciamento em um apertar de botão. Essa é a distorção”, respondeu.

Já o Ministério do Meio Ambiente considera que o projeto viola princípios fundamentais da Constituição, que garante um meio ambiente equilibrado. O secretário executivo do ministério, João Paulo Capobianco, considera a matéria um grande retrocesso.

“O projeto viola, da forma como está, alguns princípios fundamentais que já foram trazidos pelo Supremo para resolver outras inúmeras questões ocorridas, principalmente, no governo anterior. O Supremo adotou o princípio do não retrocesso como um princípio basilar nas suas decisões e esse projeto de lei, evidentemente, traz um conjunto grande de retrocessos”, disse.

De ministra a candidato ao STF: os indígenas estão fazendo história no Brasil (Terra)

terra.com.br

Erisvan Guajajara


O ano de 2023 será profundamente marcado pelo protagonismo dos povos indígenas

4 jan 2023 – 16h19

(atualizado às 18h03)

Uma reparação histórica acontece nesse momento. Pela primeira vez depois de 522 anos, teremos indígenas no alto escalão do governo e nos espaços de poder. 

O inédito Ministério dos Povos Indígenas tem à frente uma mulher indígena, Sônia Guajajara, que desde que assumiu seu cargo já recebeu várias lideranças indígenas para o diálogo e para a construção coletiva de lutar por direitos. Uma conquista do movimento indígena e a certeza de que a luta coletiva sempre trás boas conquistas. 

Presidente Lula e a ministra Sônia Guajajara: nesse início de ano, povos indígenas contabilizam vitórias importantes para a luta coletiva dos povos
Presidente Lula e a ministra Sônia Guajajara: nesse início de ano, povos indígenas contabilizam vitórias importantes para a luta coletiva dos povos. Foto: Divulgação/Ricardo Stuckert

Outro marco na história é ter uma mulher indígena na Presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). Joenia Wapichana é a nossa presidenta, a Funai terá a cara dos nossos povos e a força de uma guerreira indígena. Ela foi a primeira mulher advogada indígena e deputada federal do Brasil. A Funai faz parte do nosso Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Com os dois órgãos e as duas lideranças construiremos para nossos povos proteção e segurança. E para nosso território, demarcação. 

E a luta não para por aqui. Essa semana saiu a nomeação do vereador Weibe Tapeba para a Secretaria Especial de Saúde Indígena, que será o primeiro indígena a comandar o órgão que cuida da saúde dos povos indígenas do Brasil. Weibe Tapeba é Líder do povo indígena Tapeba, do município de Caucaia. Foi coordenador da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará, é integrante do departamento jurídico da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. Vale ressaltar que assim como à Joenia, Weibe foi um dos três nomes sugeridos pela Apib (Associação de Povos Indígenas do Brasil) para ser indicado ministro dos Povos Indígenas, que teve Sônia Guajajara como nomeada. 

As conquistas continuam: o advogado Eloy Terena será o secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas. O anúncio oficial aconteceu nesta quarta-feira (4). Terena é integrante da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e defende a pauta indígena em diversos processos no Supremo Tribunal Federal (STF), como o caso do marco temporal e de demarcação das terras indígenas. A convite da ministra, ele aceitou o cargo e irá compor o ministério.

O movimento indígena, inclusive, vê o nome dele como uma possível indicação para o Supremo. A ideia da direção da Apib é articular para que ele seja um dos cotados nas vagas que serão abertas na corte durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O petista fará ao menos duas indicações. 

Para reforçar mais ainda a presença de indígenas nos espaços de poder, Célia Xacriabá será a nossa voz no congresso. Eleita deputada federal por Minas Gerais, já começou suas articulações para defender os direitos dos povos indígenas do Brasil. Que os encantados guiem nossos parentes e que a luta democrática traga bons frutos de esperança de dias melhores para os povos indígenas.

Gente do campo: descubra quais são os 28 povos e comunidades tradicionais do Brasil (G1)

Indígenas, quilombolas, caatingueiros e quebradeiras de coco babaçu são alguns dos que integram o grupo. Direito à terra está no centro das lutas destas populações.

Artigo original

Por Vivian Souza, G1

29/01/2022 07h00

Quebradeiras de coco da região de São João do Arraial. — Foto: Divulgação

Você sabe quais são povos e comunidades tradicionais brasileiros? Talvez indígenas e quilombolas sejam os primeiros que passam pela cabeça, mas, na verdade, existem, além deles, 26 reconhecidos oficialmente e muitos outros ainda não foram incluídos na legislação, explicam especialistas do tema.

“Os povos indígenas são os primeiros do Brasil, considerados os donos da terra e fazem parte do arcabouço dos povos tradicionais. A partir da colonização, outros povos vão sendo agregados. Em 1574, tem o registro da entrada do primeiro cigano”, narra Kátia Favilla, antropóloga especialista no assunto e secretária-executiva da Rede Cerrado.

“A gente tem um processo, então, já de uns 400 anos de formação de povos e comunidades tradicionais, que não é um processo finalizado”, completa.

São pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, apanhadores de flores sempre-vivas, caatingueiros, extrativistas, para citar alguns (veja lista completa ao fim da reportagem). Todos considerados culturalmente diferenciados, capazes de se reconhecerem entre si.

Essas comunidades fazem uso dos recursos naturais, não apenas para seu sustento, mas também para reprodução cultural, social e religiosa, define Cristina Adams, uma das coordenadoras do livro “Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil – contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças”.

Parceria com a natureza

Cada uma das comunidades tem uma prática de sistema tradicional de uso, que, de forma generalizada, é conhecida como Sistema Agrícola de Produção (Sat).

“Essas práticas são muito importantes no modo como esses povos se autoidentificam. Muitas dessas comunidades tradicionais se identificam pelas práticas econômicas que são estruturantes do seu modo de vida”, explica Ana Tereza da Silva, professora do Mestrado Profissional em Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Tradicionais da Universidade de Brasília (MESPT/UNB).

Contudo nem todos os povos mantêm apenas um modo de produção. Uma comunidade pesqueira, por exemplo, pode também realizar o extrativismo sustentável, exemplifica Ana. Ou, como acrescenta Kátia, uma comunidade extrativista pode ter uma pequena roça.

Ainda assim, o Sat é fundamental para a manutenção dos povos em seus territórios.

Reportagem do Globo Rural de 2021 mostra quilombo que produz rapadura artesanal e aumenta renda com projeto Pró-Semiárido.
Reportagem do Globo Rural de 2021 mostra quilombo que produz rapadura artesanal e aumenta renda com projeto Pró-Semiárido.

Para Ana, essas populações, essas populações não veem o agro como um negócio. A terra é considerada uma mãe e há uma relação de reciprocidade com a natureza.

Nesta troca, a natureza fornece “alimento, um lugar saudável para habitar, para ter água. E eles se responsabilizam em cuidar dela, a tirar dela apenas o suficiente para viver bem e a respeitar os tempos de auto-organização, de regeneração da própria natureza”, diz.

Na prática, essas populações dependem, muitas vezes, de uma agricultura e tecnologia simples e intensiva mão de obra, ainda que, dentro do território, a densidade populacional seja baixa, descreve Cristina.

Além de terem pouco impacto ambiental, suas atividades contribuem para a manutenção e para a geração de biodiversidade, tanto da natureza quanto da “agrobiodiversidade”, ou seja, de variedade de espécies dentro da atividade agrícola, fundamental para a segurança alimentar.

Chega até sua mesa

As produções dessas populações não ficam apenas para a subsistência. Elas já foram abrangidas por algumas políticas públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), voltado para ajudá-las a escoar os cultivos para as escolas próximas às comunidades.

Atualmente, as feiras locais são importantes para que esses alimentos sejam comercializados.

Algumas comunidades organizadas de maneira mais coletiva, através de associações, por exemplo, conseguem expandir a venda para outros estados e para o exterior.

Kátia, antropóloga especialista no assunto, mora em Lisboa e conta que o açaí é um grande exemplo disso. Boa parte vem de comunidades tradicionais e se tornou comum na capital portuguesa.

No Brasil, o umbu, a castanha do Brasil e o pequi são exemplos de comidas que vêm desses povos e chegam até as cidades.

Reconhecimento

O primeiro passo para um grupo ser considerado tradicional é a autoidentificação, que ele se declare como tal.

Depois vem a etapa dos processos judiciais, quando são feitos laudos que comprovem a historicidade da comunidade, há quanto tempo ela ocupa determinada área, suas produções sociais, políticas e econômicas, por exemplo.

“O que faz uma comunidade se autoidentificar como tradicional, normalmente, são as ameaças”, diz Ana.

Esses povos, que sempre estiveram em suas terras, quando sentem que podem perdê-las, seja para o grande agronegócio ou para grileiros, buscam esse reconhecimento para tentar manter o seu direito de permanecer no local.

Existem situações, inclusive, em que as vidas das lideranças são ameaçadas ou tiradas por quem visa tomar essas áreas.

Em relação aos indígenas e quilombolas, esse direito à terra está resguardado pela Constituição de 1988, resultado da mobilização dos movimentos sociais.

Com isso, essas pessoas contam com órgãos federais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Cultural Palmares. Ambas têm função institucional e constitucional de reconhecer e demarcar as terras, explica Ana.

Os demais povos têm que recorrer a outros dispositivos jurídicos, como ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Eles também podem recorrer ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e solicitar que a área se torne uma reserva de desenvolvimento sustentável, diz a professora do MESPT.

Há ainda o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CONPCT) – composto majoritariamente por representantes desses povos -, que além de fazer parte deste processo de reconhecimento, também auxilia no diálogo entre comunidades e o Estado brasileiro.

Apesar disso, Kátia diz que, atualmente, esses órgãos estão enfraquecidos e o que realmente tem defendido esses povos são os movimentos sociais, caso da Rede de Comunidades Tradicionais, formada por mais de 30 segmentos, que atua em diálogo com o governo buscando uma legislação mais representativa.

demarcação de terras indígenas é alvo de discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), visando decidir se é preciso seguir o chamado “marco temporal”. Por esse critério, indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988.

Saiba mais sobre a demarcação de terras indígenas com o vídeo:

Joenia Wapichana comenta sobre a demarcação das terras indígenas
Joenia Wapichana comenta sobre a demarcação das terras indígenas

Busca por direitos

A terra, de acordo com as especialistas, é a maior questão para essas comunidades.

“Muitas vezes eles estão em território de interesse para grandes fazendeiros, para mineração ou para madeireiras, de modo que eles são o elo mais fraco da corrente”, explica Cristina.

De acordo com a pesquisadora, há ainda o agravante de que existem comunidades cujo território acabou sendo sobreposto por unidades de conservação, o que também pode gerar muitos conflitos e impedimentos no uso tradicional dos recursos naturais.

Isso porque, nessas situações, a população deveria ser retirada da área e indenizada, mas a escritora disse que nunca soube de um caso em que isso aconteceu.

Porém essa não é a única luta dessas pessoas, há a busca por políticas públicas. Esses povos enfrentam, por exemplo, a dificuldade para acessar créditos agrícolas e para melhoria de moradias, diz Kátia.

Há também obstáculos para a comercialização dos produtos, com estradas em condições ruins para o escoamento ou mesmo sobrando apenas os rios para fazer isso, relata a antropóloga.

Para além do setor agrícola, há falta de acesso a educação e a saúde de qualidade.

“A modernidade chegou a elas (comunidades), mas isso não faz com que elas percam a sua ancestralidade, mas é claro que elas foram se adaptando ao mundo. Elas querem acesso, por exemplo, a educação e a universidades”, diz Kátia.

Veja a lista de povos e comunidades tradicionais:

  • Andirobeiras
  • Apanhadores de Sempre-vivas
  • Caatingueiros
  • Caiçaras
  • Castanheiras
  • Catadores de Mangaba
  • Ciganos
  • Cipozeiros
  • Extrativistas
  • Faxinalenses
  • Fundo e Fecho de Pasto
  • Geraizeiros
  • Ilhéus
  • Indígenas
  • Isqueiros
  • Morroquianos
  • Pantaneiros
  • Pescadores Artesanais
  • Piaçaveiros
  • Pomeranos
  • Povos de Terreiro
  • Quebradeiras de Coco Babaçu
  • Quilombolas
  • Retireiros
  • Ribeirinhos
  • Seringueiros
  • Vazanteiros
  • Veredeiros

Os saberes indígenas, muito além do romantismo (Outras Palavras)

POR  RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL

150513-Reciprocidade

Não se trata de opor um fantasioso “espiritualismo” a um materialismo ocidental. Mas de desafiar nosso regime de sociabilidade com outras ideias, disposições e possibilidades

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel

Houve um tempo em que falar de índios no Brasil era um exercício romântico. Tão romântico quanto fantasioso.

No começo do século XX, alguns doutos paulistas saíram pelo seu estado batizando os lugares com nomes tupi, do Anhangabaú a Araçatuba, movidos por ímpetos eruditos, não necessariamente por remissões mais escrupulosas à realidade. Quando a região de Guaianases, na cidade de São Paulo, foi batizada com esse nome, havia centenas de anos que os Guainá, que ali teriam sido aldeados à força no século XVI, já não mais existiam para contar qualquer coisa a respeito da sua história. Os índios daqueles eruditos paulistas, cultores do “tupi antigo”, eram algo bastante postiço. Realizando com perversa ironia os ideais antropofágicos dos mesmos tupi, que séculos antes iam à guerra, entre outras coisas, para caçar, para seus futuros filhos, os nomes daqueles que comeriam, acabaram eles agora transformados em não mais que nomes, desta feita como que nomes em conserva, para serem usados nessa curiosa salada toponímica.

Enquanto isso, no oeste paulista, a partir de Bauru, travava-se uma guerra pela expansão da fronteira agrária, empurrada pela ferrovia. Era um legítimo cenário de bang-bang, e as principais vítimas do extermínio, operado por “bugreiros” e outros agentes, eram os Kaingang e os Xavante, genericamente chamados de Coroados, gente da família linguística jê (muito diferente da família tupi, portanto); extermínio que a história oficial paulista fez questão de sepultar sob a tampa de concreto do silêncio, escrevendo, em seu lugar, o relato fantasioso de uma simples saga de imigrantes. Assim, Araçatuba, por exemplo, terra kaingang, hoje capital do boi gordo, no extremo-oeste paulista, pôde, também ela, ganhar seu bucólico nome tupi: bosque de araçás.

Note-se: não estamos nos confins selváticos e geograficamente obscuros de uma imensa Amazônia; uma Amazônia quase que alheia e que nem parece ter fim (e que daí, pela “lei” da oferta e da procura, se presuma como tão… barata). Estamos no hoje pujante e urbanizado oeste paulista, há não mais que cem anos atrás, apenas vinte anos antes de São Paulo embarcar em uma aventura militar contra um incipiente governo nacional antioligárquico.

De romantismo em romantismo, chegamos aos anos 80, em que os índios, eternos candidatos a nobres selvagens, passam a ser agora heróis ecológicos. Esses, pelo menos, ainda estavam vivos. É bem verdade que a relação dos índios com aquilo que chamamos “natureza” é muito diferente da que a nossa sociedade tem, a começar pelo fato de que, como nos ensina a antropologia amazonista hoje, eles não a reconhecem como “natureza” ― como objeto exterior e à parte, feito para ser usado, apropriado e apenas eventualmente “preservado” como coisa patrimonializada ―, mas como “gente”, como uma multiplicidade de sujeitos imprescindíveis de uma relação sem a qual o mundo habitado não é compreensível nem poderia existir. No entanto, transformar os índios em heróis da “nossa” natureza, incorporados como parte daquele objeto à parte, e igualmente alheio a nós, pode não ser mais que uma dessas nossas projeções, tão românticas quanto utilitárias, de ver Peri beijar Ceci… e morrer em seguida. Parará tim bum bum bum.

Se o novo romantismo ecológico ao menos chamou os índios para a agenda enquanto eles ainda estão vivos, sua tônica acanhadamente preservacionista os fez equivaler, mais uma vez, ao passado; a um passado de aparente pureza florística e faunística que precisaria ser sempre revivido ― ou “resgatado”, como gosta de usar a terminologia patrimonializadora em voga ― de forma idealmente imutável. Mais uma vez, os índios parecem entrar na (nossa) dança sob a clave do embalsamamento, mesmo que, agora, sob a agenda de uma patrimonialização talvez tão fetichista quanto a toponímia mítica dos velhos eruditos paulistas.

No entanto, nos últimos tempos, os últimos lastros românticos que ainda pareciam nos avalizar a existência dos índios parecem estar ruindo, o que não nos augura necessariamente algo virtuoso, porque ficamos mal-acostumados a depender dos romantismos para assegurar uma (traiçoeira e manhosa) legitimidade simbólica desses Outros Nacionais (como os chamou a antropóloga Alcida Ramos) e, por consequência, garantir as bases institucionais da sua existência enquanto povos acolhidos e protegidos ― não falemos sequer ainda de “respeitados”, porque o respeito à diferença não é algo que se aprenda por meio de projeções românticas.

Não é preciso lembrar, para as pessoas razoavelmente informadas, o estado de coisas em que andam as políticas de governo… e os horizontes obscuros das políticas de Estado… com relação aos povos indígenas. Também já é quase ocioso lembrar o quanto um e outro (políticas de governo e projetos de política de Estado) têm se estimulado mutuamente, para promover o etnocídio indígena por meio do solapamento dos direitos. Seja para quem for, qualquer solapamento de direitos é sempre um sequestro da cidadania. Daria até para lembrar, parafrasticamente, aquele poema de Brecht: “primeiro levaram os índios…”.

O que alenta e justifica essa marcha implacável nós também já sabemos o que é: a velha ideologia desenvolvimentista repaginada pelo avatar inquestionável do consumo como critério, seja de teórica “inclusão” seja de teórico “bem-estar”. Assim, no coração dessa nova ideologia desenvolvimentista encontra-se uma operação utilitarista singela: trocar a cidadania pelo consumo. E, nela, o único lugar para os índios ― uma vez corroídas, por esse realismo neoclássico rasteiro, as amarras românticas que os sustentavam ― é o de se tornarem, eles também, modestíssimos consumidores, apoiados por programas assistenciais do governo, depois de entregarem seus “meios de produção” a quem realmente interessa, como aqueles que, vencidos, entregaram outrora o que são hoje terras de boi gordo.

Claro que os que já se renderam inteiramente à coisificação utilitarista do consumo (e provavelmente se esqueceram até de ser gente) vão dizer: melhor boi gordo do que índio ― e no estado em que chegamos, isso é exatamente o que muitos pensam, sem que tenham a necessidade de pronunciá-lo. No entanto, a troca utilitarista, na sua racionalidade de meios e no seu afã predatório, quer apenas ganhar hoje, para a aventura de uns quantos, o que o bem comum poderia, de outra forma, ganhar multiplicado amanhã, se sobreviver até lá. E é aí que a equação que move as curvas de utilidade se alarga para variáveis e horizontes impensados pelos mecano-economistas.

No atual estado de coisas, entretanto, parece haver apenas duas alternativas para salvar a (potencialmente subversiva) diversidade existencial dos Outros Nacionais da sanha desenvolvimentista de moê-la e transformá-la em salsicha: ou reciclamos as projeções românticas em algum novo (e duvidoso) feitiço encantatório das nossas narrativas nacionais, ou tiramos os índios do alheamento passadista a que sempre foram condenados e os reconhecemos como uma aposta sincera no futuro; num futuro não apenas deles, como também não apenas nosso, mas num futuro de diálogo, para além do alheamento, no qual eles também são, necessariamente, sujeitos de fala ― não “eles” a pessoa x ou y, ou a “representação” w ou z, mas, ainda mais radicalmente, as suas visões de mundo. A primeira alternativa, a da reciclagem das projeções românticas, sempre foi aquela imediatamente sedutora, e, com ela, chega-se até mesmo a lançar mão de alegados exotéricos. A segunda, por sua vez, é a que reclama uma reflexão antiutilitária, mas estratégica, que talvez seja exatamente aquilo pelo qual muitos de nós, antropólogos, trabalhamos.

Em 1952, num texto escrito para a Unesco, Lévi-Strauss defendia que as sociedades só sobrevivem porque aprendem umas com as outras. Uma sociedade que se isola na certeza das suas verdades fenece diante dos problemas para os quais sua visão de mundo não alcança soluções. As “soluções” de grande alcance, portanto, não são meramente tecnológicas, mas conceituais. São as ideias que dimensionam a técnica e que dão uso às ferramentas, ou, segundo a fórmula famosa do epistemólogo Georges Canguilhem: o microscópio não é a extensão da vista, mas a extensão da inteligência. Sem o conceito de micro-organismo, o que se veria pelas lentes de um microscópio seria apenas um conto de fadas.

Evidentemente que as tecnologias ajudam, mas o que está sempre por detrás delas são as ideias. De pouco adiantaria, para a expansão europeia dos séculos XV e XVI, o astrolábio que os europeus aprenderam dos árabes, se alguns deles não dispusessem do novo e herético conceito de uma Terra redonda. Descobrir a América, nesse sentido, foi a consagração de uma grande heresia, frente a uma doxa tão potente à sua época quanto os mitos econômicos atuais e suas leis inquestionáveis. E as coisas não pararam por aí, evidentemente, porque, como também nos lembrava Lévi-Strauss, isso é a história, e os europeus, casualmente, não se encontravam na situação dos Mayas em torno do ano 1.000, quando, orgulhosos e isolados, viram suas opulentas cidades colapsarem por conta de uma crise ecológica, por eles mesmo provocada, e para a qual nem o refinamento do conhecimento dos seus astrônomos e sacerdotes tinha uma solução a dar.
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Ainda assim, um milênio após o fim do período Maya Clássico, o muralista Diego Rivera pintaria em uma das paredes do Palácio Nacional do México a lista do que a tradição ameríndia mexicana havia legado ao mundo: uma lista de cultivos alimentares que, além de cacau, tomate e feijão, é encabeçada, evidentemente, pelo milho, cuja notável diversidade genética dos cultivares meso-americanos a Monsanto está tratando hoje de eliminar, por meio de seu milho transgênico com patente “made in USA”. Não apenas o milho, mas sobretudo a batata, levada dos Andes pelos europeus, produzem muito mais calorias por hectare plantado que o trigo, nascido na Mesopotâmia e levado para a Europa. O cultivo desse tubérculo, rapidamente estimulado e expandido no Velho Continente, foi responsável por eliminar a fome endêmica e medieval da Europa, e constituir a base demográfica sem a qual a Revolução Industrial não teria sido possível e, com ela, a nossa arrogante modernidade.Por trás da domesticação dos tubérculos nos Andes há um enorme conjunto de ideias sobre como a mãe-terra gera seus frutos, como o trabalho comum os recolhe, como eles podem ser acumulados e conservados, e como devem ser distribuídos. À época da Conquista, os indígenas dos Andes eram muitíssimo mais bem nutridos e saudáveis que os europeus. Diante dessa diferença evidente, estes últimos aproveitaram apenas um produto específico, o que, para eles, já foi muito. Há quem acredite que o socialismo e o Estado do bem-estar social teriam sido inventados alguns séculos antes se os europeus, além das batatas, tivessem levado as ideias.

Apostar nos índios, e portanto na diversidade cultural, como nosso futuro comum de não-alheamento, não significa meramente apostar que a erva de algum pajé possa trazer a cura para o câncer. Expor nossas ideias ao contato com outras visões de mundo pode nos curar de coisas muito piores: nossos próprios e mesquinhos limites.

Quando comentávamos antes que o militantismo ecologista, ao trazer intuitivamente os índios à baila, acabou descuidando do que eles poderiam pensar a respeito da “nossa” natureza ― apenas para servirem ao que nós continuamos a pensar dela e da sua “preservação” enquanto objeto ―, sugeríamos também que a recusa, por parte dos índios, à sumária objetificação dessa “natureza” corresponde ao reconhecimento dela, por eles, como sujeito de uma relação. Conceitos como animismo, perspectivismo e multinaturalismo (por oposição a multiculturalismo) vêm sendo testados pelos antropólogos para descrever o sentido da socialidade indígena na Amazônia e a sua maneira de reconhecer os agentes das relações. Esse fenômeno, no entanto ― como tentamos demonstrar em nossas pesquisas nos Andes ―, pode, na realidade, se constituir como um traço ameríndio generalizado, continental. E o que ele desafia não é apenas a nossa forma de relação com uma “natureza” dada, mas sim a forma como nós a conceituamos, para, em seguida, nos sentirmos à vontade para subjugá-la, a partir de uma relação sujeito-objeto em que a extensão do uso e da posse (a simples destruição incluída) se define pelos casuísmos de uma racionalidade instrumental.

Se aquele tipo de perspectiva sobre a socialidade tem uma incidência efetivamente ameríndia, continental, e se a dimensão do seu desafio pode e deve ser posta em larga escala, então quem nos manda o recado político é o movimento indígena equatoriano, que inspirou em boa medida a elaboração da última Constituição do país, referendada em 2008. Nela, pela primeira vez no mundo, a Natureza foi reconhecida como sujeito jurídico de direito, para que em seu nome e da sua integridade, seja defendida como parte interessada em qualquer ação judicial visando garantir sua “existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos” (Art. 71). Talvez seja ocioso se prender a emblemas ou ressentimentos étnicos: se essa Natureza corresponde tão somente, ou não, à Pachamama, a mãe-terra dos andinos, tal como explicitamente a nomeia o mesmo artigo 71… Estamos, antes, em um terreno de fecundas heterogeneidades discursivas, no terreno do desafio das ideias. E é aí que se fazem as grandes apostas no futuro, porque é isso que, para o bem ou para o mal, com a lista de Diego Rivera e muitas outras, e também com toda a precariedade das experiências, constituiu o Novo Mundo.

O desafio posto pelo pensamento ameríndio de reconhecer a socialidade como espaço de interação necessária de muitos sujeitos, que faz o mundo girar não por conta de alguma hierarquia natural ou do imperativo de marcas de origem que definem privilégios, mas por conta das diferentes maneiras de vê-lo e de tecer acordos, nos sugere que viver em não-alheamento significa reconhecer que o Outro é, inescapavelmente, parte de qualquer consideração que se faça sobre si mesmo. Como já o enunciava, bela e sinteticamente, o professor Eduardo Viveiros de Castro, “para os ameríndios, o Outro não é apenas pensável, ele é indispensável”. Talvez não tenhamos lição melhor, para começarmos a repensar seriamente o que possamos entender por cidadania, em um contexto flagrado por iniquidades; um contexto que não será reformado se se insistir apenas no polo da objetificação alheadora, no fetiche da mercadoria e, em último termo, na dispensabilidade dos outros.

Não se trata de opor um fantasioso “espiritualismo” indígena a um materialismo ocidental “realista”. Trata-se de desafiar um certo regime de socialidade (o nosso, ocidental e moderno) com outras ideias, disposições e possibilidades. Algumas delas é bem provável que até já tenhamos aprendido inconscientemente, ao longo de nossa história cultural, afinal o território mais largo da cultura, a parte submersa desse iceberg, é, como também dizia Lévi-Strauss, esse inconsciente. Os índios que os portugueses aqui encontraram, com quem conviveram e que permanecem no (apenas aparente) subterrâneo das nossas mestiçagens, não legaram aos brasileiros de hoje simplesmente tapioca, rede de dormir e outras coisas. Legaram-nos também um modo de nos relacionarmos quotidianamente, que, muito diferente dos europeus, não parte do princípio do reconhecimento do lugar social e pertencimento de alguém sempre e necessariamente pelas suas marcas de origem ― algo que tanto prezam nossas elites senhoriais, que se querem mais “europeias”. Se os brasileiros aprenderam a se abrir cordialmente aos outros, digeri-los e abrasileirá-los como parte de um nós possível (ainda que muitas vezes perverso e hierárquico ― mas a hierarquia não é, com certeza, um legado indígena), isso seguramente não foi aprendido dos europeus.

E se se trata ainda de desafiar um certo regime de socialidade com outras ideias, disposições e possibilidades, então, levar a sério o não-alheamento diante da diversidade significa garantir aos muitos da cidadania um lugar ativo, ouvi-los mais detidamente e deixar-se desafiar pela possibilidade da invenção, pela potencial complicação do que parece já estar dado pelas nossas formas institucionais, recusando a simples tentação de domesticá-los às formas prévias, a uns quantos programas assistenciais, quotas e representações de fachada. Afinal de contas, o que é, por exemplo, o ideal político do “Buen Vivir” (ou, em quéchua, “Sumaq Kausay”), alentado pelas novas disposições constitucionais do Equador e da Bolívia, senão uma enorme complicação para a planura desenvolvimentista; uma complicação ainda a reclamar um ou vários Amartya Sen para lhe inventar indicadores por agora imponderáveis? Mas, e o que é também o ideal político do “Buen Vivir” senão um desafio em nome da “imanência da suficiência”, dos índios, contra a voraz e predatória “transcendência da necessidade”, do Ocidente capitalista, de que nos falava Eduardo Viveiros de Castro [1]?

Talvez seja também preciso dizer que encarar seriamente a opção do não-alheamento significa, com bastante probabilidade, molestar alguns lugares comuns tidos hoje como “politicamente corretos”, e que são aqueles tributários do multiculturalismo neoliberal, quais sejam, suas obsessões com fronteiras bem acabadas, identidades amuralhadas e os contratos de patrimonialização. Os verdadeiros diálogos não se realizam sobre a prévia domesticação dos seus termos por gramáticas unilaterais ― ou uma pretensa universalidade habermasiana. Eles não são uma mera exibição de emblemas, para marcar posição dentro de um mercado contratualista ― ou uma economia contratualista da alteridade. Os verdadeiros diálogos são aqueles em que nos “contaminamos” e nos arriscamos com as razões de ser dos outros. Os pós-estruturalistas talvez tenham nisso razão ao usarem o termo “devir”.

A Constituição brasileira de 88 consagrou os direitos coletivos indígenas como base positiva do direito à reprodução cultural. Sequestrar os primeiros é também sequestrar este último. O que perdemos todos com isso é mais do que uma diversidade meramente nominal, a diversidade passiva do multiculturalismo objetificador. Estaremos perdendo possibilidades de cidadania. E estaremos perdendo possibilidades de futuro. Pois é aí, e não num passado romântico ou instrumentalmente ecológico, que os índios deveriam sobretudo ser vistos.

[1] http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/o-brasil-e-grande-mas-o-mundo-e-pequeno