Danielle Kiffer
“Você tem fome de quê?”. A música Comida, da banda Titãs, já colocava há algum tempo o questionamento sobre as inúmeras fomes que sentimos, que vão desde o desejo de consumir arte à necessidade da própria comida. Porém, é a abordagem do sentido literal da palavra que dá forma a um encontro que parecia improvável: entre os escritores brasileiros Josué de Castro e Graciliano Ramos, o cineasta Glauber Rocha e o poeta, ator e diretor teatral francês Antonin Artaud. O projeto “O corpo extremo: da escrita limite ao limite da escrita”, desenvolvido pela professora Ana Paula Veiga Kiffer, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), analisa a questão da fome e da loucura de Antonin Artaud, usando como referência a fundamentação crítica e teórica dos três autores brasileiros.
Para a professora, que é Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, poucas semelhanças unem os quatro escritores, além do foco no tema que os reúne. “Todos retrataram a fome, mas de maneiras diversas. Em termos de estilo, acredito que Glauber Rocha é o que mais se aproxima de Artaud, pois ambos extrapolam a escrita e a vinculam ao traço pictórico, reinventando a gramática em suas obras, o que mostra a necessidade de criar um modo de dizer o que sentiam que ia além das palavras”, detalha. Dos quatro pensadores, por exemplo, o único que realmente vivenciou a fome foi o poeta francês, como explica Ana Paula: “Apesar de vir de uma família com boas condições financeiras, Artaud experimentou a pobreza e a fome em diferentes fases da vida. Ele viveu a decadência e a carência material do período entre a primeira e a segunda guerras mundiais na Europa e durante sua internação em instituições psiquiátricas, onde a alimentação era escassa. Durante a Segunda Guerra, época de sua internação, a fome foi utilizada como forma de extermínio nessas instituições.”
movimento conhecido como mangue beat.
Uma das primeiras teorias de Artaud que tem relação com a fome é o manifesto Teatro da Crueldade, de 1934. Nele, o autor clama por um teatro e uma cultura cujas forças vivas fossem idênticas às da fome. Ainda nos anos 1930, ele escreveu o poema intitulado A fome não espera, em que denuncia a decadência político-econômica da Europa da época. No poema, Artaud incita o leitor a transformar sua fome em seu próprio tesouro. Como destaca Ana Paula, há, no texto, uma grande semelhança com a Estétyka da Fome, de Glauber Rocha, na qual ele também nos desafia a fazer da nossa precariedade a nossa força. “Artaud é um autor radical como Glauber também é radical. O discurso de ambos não tem nada de vitimização, muito pelo contrário. É, sim, transformador, um estímulo à potência, à afirmação de uma diferença e às características que o povo brasileiro possui. Muitas vezes, de onde muito pouco se espera, há grandes movimentos de superação. Um exemplo que podemos citar, aqui mesmo no Rio de Janeiro, é o caso da Coopa-Roca, uma cooperativa de mulheres da favela da Rocinha, que fez do fuxico sua arte, sua forma de sobrevivência. E tudo com muito sucesso.”
Apesar de não ser mais um assunto discutido na intelectualidade, a literatura sobre a fome, no Brasil, gerou frutos que rendem até hoje. Um grande exemplo vem do escritor e médico Josué de Castro. Uma de suas principais obras e seu único romance, Homens e Caranguejos, publicado em 1967, influenciou, quase trinta anos mais tarde, a formulação do movimento musical mangue beat, liderado por Chico Science e Fred Zero Quatro, na década de 1990, em Recife. Se Josué de Castro compara os homens, catadores de caranguejo, aos próprios crustáceos, ambos famintos e mergulhados na lama, Chico Science fala do mangue e sua sociedade marginal de homens-caranguejo, juntando na mesma panela musical, funk, hip hop e influências regionais.
Durante suas pesquisas em obras literárias, Ana Paula observou que a relação entre a loucura e a fome é estreita. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, por exemplo, os personagens centrais da trama que se passa no sertão nordestino brasileiro, sentem tanta fome que passam a delirar. “Pode-se dizer que a fome leva à loucura e a loucura pode levar a um tal estado de abandono e indigência, em que a fome certamente estará presente. Estas duas características estão muito próximas.”
Também a experiência do francês Artaud, durante o período em que ficou internado, tanto no asilo de Rodez quanto em Ivry-Sur-Seine, na França, foi registrada, de forma original e única, em cadernos escolares. “Nestes cadernos, podemos perceber a materialização da fome vivida, que transforma essa experiência em um discurso que traz um novo modo de dizer, que parece tratar a linguagem como algo concreto e material.” Para Ana Paula, a discussão sobre a fome deve ser retomada sob outro ângulo, encarando-a e a outros problemas da nossa sociedade, mas substituindo a vitimização pela superação.