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Opinião – Sou Ciência: Onda pró-ciência barra o avanço do negacionismo no Brasil (Folha de S.Paulo)

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Sou Ciência – 14 de janeiro de 2021


Contra expectativas e previsões, mais uma vez o Brasil surpreende. A população brasileira vive nos últimos dois anos um boom de interesse por ciência, ocasionado pela pandemia e seus efeitos. Apesar de sermos uma sociedade desigual e apenas 5% da população ter curso superior concluído, a maioria apoia e quer conhecer mais a ciência. A eleição presidencial de 2018 foi combustível para a indústria de fake news e deu força a discursos que negam ou distorcem a realidade e as evidências científicas e históricas. Naquele momento, parecia que entraríamos fundo em uma fase de obscurantismo.

Mas a história deu sua volta, diante da tragédia imposta pela gestão do governo federal diante do coronavírus, a mobilização foi em sentido contrário. A sociedade brasileira, majoritariamente, reagiu ao negacionismo, impulsionada pela necessidade de lutar contra a pandemia, procurar informação confiável e defender a vida. Com o auxílio de cientistas, mídia e movimentos pela vida, vimos aumentar o interesse sobre ciência, universidades e institutos que produzem conhecimento.

Foi neste contexto que instituímos o SoU_Ciência. Um centro que congrega pesquisadores e cujas atividades estão voltadas para dialogar com a sociedade sobre a política científica e de educação superior, em especial sobre o que fazem as universidades públicas, que no Brasil são responsáveis por mais de 90% da produção de conhecimento e abrigam 8 entre 10 pesquisadores em nosso país. Em curto período de atuação, fizemos levantamentos de opinião pública, em parceria com o instituto Ideia Big Data, além de análises das mídias sociais, grupos focais e notícias. Descobrimos que o Brasil tem 94,5% da população a favor da vacinação contra Covid-19, e que a campanha antivacina liderada pelo próprio Presidente, tem apoio de apenas 5,5%. O que faz o nosso país ser diferente de países da Europa e dos EUA, onde os movimentos anti-vaxsão muito maiores, ainda podemos estudar. Certamente, a tradição em vacinações obtida pelo Plano Nacional de Imunizações (PNI), além do Sistema Único de Saúde (SUS), são fatores determinantes.

Em nossos levantamentos de opinião pública, 72% da população afirmou que seu interesse pela ciência aumentou com a pandemia. Isso fez 69,7% dos entrevistados declarar ter “muito interesse pela ciência” e apenas 2,2%, “nenhum interesse”. Entre evangélicos e os que consideram o governo ótimo/bom, o elevado interesse pela ciência também é expressivo: 63% e 62% respectivamente. Além disso, 32,1% da população declarou ter o hábito de pesquisar em sites, blogse canais das universidades e institutos de pesquisa na procura de informações confiáveis e, surpreendentemente, 40% gostariam de ler artigos científicos. Comparativamente, apenas 8,8% afirmam confiar no que o Bolsonaro fala sobre a pandemia, num claro distanciamento da população em relação ao presidente eleito em 2018.

A procura por informação confiável na pandemia levou a um fortalecimento do ecossistema que envolve universidades, instituições de pesquisa e cientistas na sua capacidade de comunicação e divulgação científica, com um ampliado espaço na mídia. Dois fenômenos merecem destaque. Em primeiro lugar, a competência que cientistas tiveram para se comunicar e alertar sobre o novo coronavírus e seus efeitos, utilizando redes sociais como o Twitter, e canais do YouTube, como monitorou o Science Pulseda Núcleo e IBPAD com apoio da Fundação Serrapilheira. Adicionalmente, muitos cientistas passaram a falar para a grande mídia, que por sua vez ampliou suas sessões de ciência e saúde e deu espaços para novos colunistas na área. Tem havido rápido aprendizado e maior mobilização de cientistas para utilizar os diferentes meios de comunicação.

O segundo fenômeno decorre do grande interesse da mídia e grande parte da população sobre os estudos clínicos das diversas vacinas que estavam sendo desenvolvidas em tempo recorde. Os estudos geraram grande audiência e expectativa. As universidades públicas, como a USP e a Unifesp, atuaram na coordenação dos estudos das duas primeiras vacinas licenciadas no País, ganharam enorme destaque. O Instituto Butantan e a Fiocruz, além das pesquisas, se tornaram mais conhecidos pelas pesquisas e produção dos imunizantes.

Diante de todos estes elementos, nos parece que, 120 anos depois da Revolta da Vacina, a revolta agora ocorre contra um governo que se recusou a comprar vacinas para sua população e propôs falsas alternativas, como apontou a CPI da Pandemia. A revolta em 2021, dado o enorme contingente a favor da vacina e em defesa da ciência, direcionou-se contra o governo federal e faz derreter a popularidade do presidente, passando a aprovação (ótimo/bom) de 37%, em dezembro de 2020, para 22% em dezembro de 2021, segundo o Datafolha; enquanto a rejeição (ruim/péssimo) passou de 32% para 53% no mesmo período. Dentre os fatores dessa virada de popularidade no “ano da vacina” esteve o contínuo embate presidencial contra a ciência, a partir da negação dos benefícios da vacina e da distorção nos dados. Isto vem ocorrendo de maneira renovada agora, na batalha da vacinação infantil e na fraca reação contra a variante Ômicron. Sem dúvida, em 2021 a maior oposição a Bolsonaro veio pela conscientização por meio da ciência e da aproximação dos cientistas junto à sociedade, mídia e redes sociais.

Tentando reagir nesse embate, o governo federal escalou alguns médicos e outros apoiadores para fazer o contraponto e distorcer dados científicos, criando novas interpretações fantasiosas. E atuou e segue atuando para o desmanche acelerado do sistema de ciência e pesquisa no Brasil, com ataques ao CNPq, CAPES e Finep, e cortes brutais de orçamento, cuja dimensão e impacto discutiremos noutros artigos deste blog. Ataques estes que não se reproduziram na opinião pública, já que levantamento do SoU_Ciência mostrou que somente 9% da população apoiam os cortes impostos.

Temos pela frente um grande desafio: consolidar a onda pró-ciência, para além da pandemia, e para tanto é necessária a recuperação do sistema nacional de ciência e pesquisa, com a recomposição efetiva de seu financiamento. Estamos diante da oportunidade de alcançarmos um novo patamar na relação sociedade-ciência com a formulação de políticas públicas baseadas em evidências científicas. Para isso, buscamos um “letramento científico” que colabore no combate às fake news e amplie a capacidade da população em tomar decisões racionais e fundamentadas. Os sinais são de esperança, mas nos pedem atenção e muito trabalho. A criação do Centro SoU_Ciência que terá neste blog uma voz, faz parte desse momento e pretende colaborar para fortalecer as conexões com a sociedade, na defesa da democracia, e na garantia de direitos para um novo momento da história de nosso país.

Soraya Smaili, farmacologista, professora titular da Escola Paulista de Medicina, Reitora da Unifesp (2013-2021). Atualmente é Coordenadora Adjunta do Centro de Saúde Global e Coordenadora Geral do SoU_Ciência;

Maria Angélica Minhoto, pedagoga e economista, professora da EFLCH-Unifesp, Pró- Reitora de Graduação (2013-2017) e Coordenadora Adjunta do SoU_Ciência;

Pedro Arantes, arquiteto e urbanista, professor da EFLCH-Unifesp, Pró-Reitor de Planejamento (2017-2021) e Coordenador Adjunto do SoU_Ciência.

‘O movimento antivacina é também um efeito da hiperinformação’ (Nexo)

Entrevista

João Paulo Charleaux – 13 de out de 2021 (atualizado 13/10/2021 às 00h26)

Laurent-Henri Vignaud, historiador da ciência na Universidade de Bourgogne, fala ao ‘Nexo’ sobre as ideias, à direita e à esquerda, por trás do movimento antivacina nos últimos 300 anos

Homem com boné de Trump e máscara rasgada marcha contra medidas sanitárias adotadas na Holanda durante a pandemia da covid-19
Manifestante com máscara rasgada em marcha contra a imposição de um passaporte sanitário na Holanda

A resistência à vacinação é um fenômeno antigo e persistente, que encontra adeptos à esquerda e à direita – sempre nas franjas mais extremas desses setores –, e não está ligado à falta de educação, mas ao excesso de informação e à dificuldade de saber em que acreditar, de acordo com o historiador da ciência Laurent-Henri Vignaud, da Universidade de Bourgogne, na França.

O autor do livro “Antivax: Resistência às vacinas, do século 18 aos Nossos Dias” esmiuça, nesta entrevista concedida por escrito ao Nexo nesta quarta-feira (6), os argumentos dos que ainda resistem a se vacinar contra a covid-19 em todo mundo, e faz um retrospecto desse movimento antivacinal ao longo da história.

Vignaud fará uma conferência virtual sobre o tema no dia 14 de outubro, no ciclo de palestras sobre a Covid promovido pelo Consulado da França em São Paulo em parceria com a Unesco, órgão das Nações Unidas para educação e cultura, e com os Blogs de Ciência da Unicamp. A transmissão é ao vivo e os vídeos ficam disponíveis nos canais do Consulado da França na internet.

Quais são os argumentos daqueles que se opõem à vacinação? Como esses argumentos variaram nos últimos 300 anos?

Laurent-Henri Vignaud Esses argumentos são muito diversos, assim como os perfis “antivax”. Muitos têm dúvidas simples sobre a qualidade das vacinas ou sobre os conflitos de interesse de quem as promove. Outros desenvolvem teorias extremas de conspiração, dizendo que as vacinas são feitas para adoecer, para esterilizar, matar ou escravizar. No meio, há aqueles que “hesitam” por tal ou tal motivo.

Aqueles que recusam explicitamente uma ou mais vacinas – quando falamos estritamente dos “antivax” – o fazem por motivos religiosos, políticos ou alternativos e naturalistas. Há certas correntes rigorosas, em todas as religiões, que recusam a vacinação em nome de um princípio fatalista e providencialista, numa afirmação da ideia de que o homem não é senhor de seu próprio destino.

Já os que se opõem às vacinas por razões políticas atacam as leis impositivas em nome da livre disposição de seus corpos e das liberdades individuais, no discurso do “meu corpo me pertence”.

Outros, muito numerosos hoje, contestam a eficácia das vacinas e defendem outras terapias que vão desde regimes de saúde a fitoterápicos e homeopatia – o que aparece em discursos como “a imunidade natural é superior à imunidade a vacinas” e “as doenças nos fortalecem”. A maioria desses argumentos está presente desde o início da polêmica vacinal no final do século 18, mas se atualizam de maneira diferente em cada época.

Historicamente, o movimento antivacinação é de direita ou de esquerda? Isso é algo que mudou ao longo do tempo ou permanece o mesmo?

Laurent-Henri Vignaud Atualmente, as duas tendências existem: há uma postura “ecológica” antivacina que é bastante esquerdista e burguesa – um modelo muito difundido por exemplo na Califórnia entre funcionários de empresas digitais. E há uma postura “libertária” ou “confessional” antivacina, que é de direita, presente sobretudo na América, em círculos religiosos conservadores e partidários de líderes populistas como [o ex-presidente dos EUA Donald] Trump ou [o presidente do Brasil, Jair] Bolsonaro.

Em meio a um grupo, um manifestante levanta uma placa com a frase "não queremos a vacina chinesa"
Manifestante exibe cartaz contra vacina em protesto na Avenida Paulista

Historicamente, a inoculação, técnica que antecedeu as vacinas no século 18, foi promovida por filósofos como Voltaire [iluminista francês, 1694-1778] e contrariada por homens da Igreja. Portanto, podemos classificar essa oposição como uma oposição à direita. No século 19, a dureza das medidas de vacinação obrigatória levou à revolta de setores mais pobres que não podiam escapar da injeção. O vacinismo aparece aí como higiene social e o antivacinismo, como algo protagonizado por movimentos operários, feministas e de defesa dos animais, mais marcadamente à esquerda, portanto.

A Revolta da Vacina, de 1904, no Brasil, foi desencadeada por uma campanha de vacinação forçada pretendida pela jovem República, que gerou motins na classe trabalhadora. No século 20, o antivacinismo está representado à direita e à esquerda, mas quase sempre nos extremos.

O que explica por que a França, país desenvolvido, rico, cientificamente avançado, onde não faltam fontes confiáveis de informação, tenha hoje uma resistência tão elevada à vacinação, mesmo entre os profissionais de saúde?

Laurent-Henri Vignaud Esse é um fenômeno recente. A França não está isenta da tradição antivacinal. Na verdade, essa era uma tradição até bastante virulenta na época de Pasteur [século 19], a ponto de atrasar o estabelecimento de uma obrigação de vacinar contra a varíola, mas esta não é uma opinião muito difundida até o início do anos 2000.

Por exemplo, nossa primeira liga “antivax” apareceu em 1954 após a entrada em vigor da obrigação do BCG, mas, à época, os ingleses e os americanos já tinha ligas “antivax” há quase um século.

Duas pessoas estendem os braços mostrando a tela de seus celulares, com o passe sanitário instituído pelo governo, diante das mesas de um café em Paris
Clientes exibem passe sanitário em seus celulares num café de Paris

Durante a última epidemia de varíola na Bretanha em 1954-1955, na altura em que o prefeito decretou o reforço da vacinação obrigatória, mais de 90% dos habitantes concernidos já tinham sido vacinados voluntariamente.

Essa confiança foi abalada durante o debate sobre a vacina contra a hepatite B em meados da década de 1990, até porque os políticos se contradiziam sobre sua possível periculosidade. E, na crise do do influenza A em 2009, a campanha de vacinação falhou. Os franceses não acreditavam na possibilidade de uma pandemia e não entendiam por que deveriam ter sido vacinados contra uma doença na qual não viam perigo. Talvez o choque da pandemia de covid reverta essa tendência.

Como você explica o fato de que os boatos, o misticismo e a irracionalidade persistam, mesmo em uma época em que a ciência se desenvolveu tanto, mesmo em uma época em que a educação formal alcançou tantos? Essa adesão às teorias da conspiração seria uma característica humana inextinguível?

Laurent-Henri Vignaud A suspeita de riscos tecnológicos – porque a vacina é um produto manufaturado – não se alimenta da falta de informação, mas de seu transbordamento. É por sermos inundados com informações e por não podermos lidar com um décimo delas que nós duvidamos.

Quem de nós pode explicar, ainda que de forma grosseira, como funciona algo tão difundido como um telefone celular? Diante dessa superabundância de quebra-cabeças técnico-científicos e de conhecimentos que não podemos assimilar, os cidadãos 2.0 fazem seu mercado e acreditam no que querem acreditar de acordo com o que consideram ser do seu interesse.

A maioria confia em palavras de autoridade e no pouco que conseguem entender de tudo o que chega a si. Alguns ficam insatisfeitos com as respostas que lhes são dadas e passam a duvidar de tudo, chegando a imaginar universos paralelos e paranóicos. Não é, portanto, na ignorância que estas crenças se baseiam, mas sim num “ônus da prova”, que pesa cada vez mais sobre os ombros dos cidadãos contemporâneos.

Nessa “sociedade de risco”, os cidadãos contemporâneos são cada vez mais instados a assumir a responsabilidade por si próprios e julgar por si próprios o que é verdadeiro e o que é falso. Em alguns, o espírito crítico se empolga e leva a uma forma de ceticismo radical da qual o antivacinismo é um bom exemplo.