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Opinião – Dirce Waltrick do Amarante: Coleção mostra pioneirismo indígena no teatro brasileiro (Folha de S.Paulo)

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Caixa reúne 11 textos teatrais de representantes de povos de várias partes do Brasil

Dirce Waltrick do Amarante

7 de outubro de 2023


[RESUMO] Pioneiros do teatro feito no Brasil, ainda que suas práticas culturais não se enquadrem nos conceitos da estética ocidental, os indígenas encenaram suas narrativas em espetáculos que fundem, sem distinções, música, dança, religião e ritos, por exemplo. Caixa recém-lançada agrupa e mostra a variedade desses textos, compondo, segundo organizadores dos livros, uma visão descolonizadora a respeito das diferenças culturais entre os povos.

Uma das primeiras perguntas que faço nas minhas aulas no curso de artes cênicas da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) é: “Onde nasceu o teatro?”. A resposta, ainda que titubeante, costuma ser: “Na Grécia”.

Essa provocação me permite citar um trecho de uma aula magna ministrada em 1992 pelo escritor Ariano Suassuna: “Em qualquer manual de teatro escrito no Brasil, vão encontrar que o teatro no Brasil surgiu com os jesuítas, o teatro de Anchieta no século 16. E encontra também que o teatro, em geral, nasceu na Grécia”. Suassuna prossegue: “Ora, o que nasceu na Grécia foi o teatro grego! Acho uma coisa tão lógica, mas o pessoal bota: o teatro nasceu na Grécia. Quer dizer, o teatro brasileiro nasceu na Grécia, o início do teatro chinês foi o teatro grego? O teatro brasileiro, olhe aqui, o teatro brasileiro nasceu […] aqui”.

O teatro brasileiro, concordo com Suassuna, nasceu aqui, e, acrescento, com os indígenas, ainda que as práticas artísticas e culturas indígenas não se encaixem facilmente em conceitos da estética ocidental. A palavra teatro, de origem grega, tem sido usada, porém, para nomear a arte extraocidental.

De acordo com Patrice Pavis, em “Dicionário de Teatro”, o conceito pode ser abrangente: “O teatro é mesmo, na verdade, um ponto de vista sobre um acontecimento: um olhar, um ângulo de visão e raios ópticos o constituem. Tão somente pelo deslocamento da relação entre olhar e objeto olhado é que ocorre a construção onde tem lugar a representação” (tradução de Maria Lúcia Pereira, J. Guinsburg, Rachel Araújo de Baptista Fuser, Eudinyr Fraga e Nanci Fernandes).

Uma das características da cultura indígena seria a não separação entre música, dança, pintura, rito, religião, história, política etc. Se essas práticas são classificadas em gêneros estanques, em espetáculos, exposições e publicações de obras dos povos originários, isso não provém dos próprios autores, mas obedecem à lógica que estrutura as instituições e também o mercado.

O termo mito, assim como o termo teatro, passa atualmente por revisão. No livro “As Línguas da Tradução”, organizado pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC e pela Universidade de Princeton, os pesquisadores Pedro Cesariano e Jamille Pinheiro Dias propõem o conceito de arte verbal na análise das narrativas indígenas. Já Joana Mongelo, doutoranda de etnia guarani, emprega, em outras publicações, a locução história viva no lugar de mito, para enfatizar o vigor e a atualidade dos relatos dos povos originários.

Tanto a arte verbal como a história viva poderiam se encaixar no conceito abrangente de teatro, tal como foi proposto por Pavis.

Pedro Cesarino, ao descrever o processo de tradução de “yawa shõka, canto para amansar os porcos do mato”, lembra que “esses cantos acompanham eventos que não acontecem dentro do corpo-maloca do xamã que os enuncia, mas sim em posições paralelas nas quais interagem as espíritas auxiliares Shoma e os demais agentes antagonistas (espíritos agressivos, por exemplo)”.

Quando Cesarino recolheu o canto, ele havia sido entoado na forma de um rito que poderíamos chamar de teatral e religioso, durante o convalescimento de um jovem caçador: “Enquanto o jovem era rezado, Antonio [Brasil Marubo], por sua vez, cantava outro shõki sozinho sobre um pote contendo fezes, pelos e pedaços de terra com os rastros das queixadas […]. Ao final, o pote seria então pendurado na porta da maloca, a fim de atrair os porcos que, de fato, se aproximaram da aldeia em grande número no dia seguinte, rendendo uma farta caçada”.

Por isso, a tradução da arte verbal impõe grandes desafios. Na versão de certos cantos bororos, Sérgio Medeiros propôs, em um de seus livros de poesia, uma recriação pessoal do “Canto de Caça às Antas”, com a seguinte observação: “Não pude traduzir o variado vocabulário bororo, em especial a minuciosa enumeração dos diversos gaviões. Meu ponto de partida é a versão ‘rústica’ de César Albisetti e Ângelo Jayme Venturelli. Os cantos de caça e de pesca, convém lembrar, são entoados sempre na choupana central, na noite que precede uma caçada ou uma pescaria coletiva”.

“Dessa cerimônia participam as mulheres da aldeia, que são então autorizadas a entrar na casa dos homens para louvar a beleza dos animais. Cada canto tem um chefe, o qual é, segundo os autores da enciclopédia bororo, o indivíduo que inicia e guia o ritual, postando-se de pé e marcando o ritmo com um par de pequenos maracás. Outros índios reforçam o ritmo com um tamboril e instrumentos de sopro.”

A pesquisadora Jamille Pinheiro Dias aconselha ser “preciso evitar ao máximo os empobrecimentos na recepção da performance ritual pela escrita alfabética”. É preciso também, diz Pinheiro, “tomar consciência de que muitas vezes se estará lidando com ‘textos-fontes’ que só se tornaram audíveis porque houve um árduo processo de aprendizado físico e intelectual, além de negociações com seres não humanos, donos dos cantos, espíritos mestres de diferentes patamares do cosmos, como nos ensinam os especialistas indígenas da Amazônia.

Por tudo isso, a seguinte afirmação recente do escritor e ator Daniel Munduruku causa consternação: “Eu que inventei a literatura indígena, isso não existia, sou pioneiro“. Não estaria ele reproduzindo o mesmo discurso do Ocidente em relação à “invenção” do teatro?

Nos palcos, os povos indígenas vão aos poucos ganhando protagonismo e canibalizando não só o conceito de teatro ocidental, como também o de dramaturgia, área em que colaboram com autores consagrados.

Zé Celso, por exemplo, trabalhava na adaptação de “A Queda do Céu”, a partir dos relatos de Davi Kopenawa, antes do acidente que o vitimou. A primeira leitura pública da peça foi apresentada em 2023 na terceira edição do TePI (Teatro e os Povos Indígenas), em São Paulo, com curadoria de Ailton Krenak e Andreia Duarte.

Na mesma ocasião foi lançada a “Caixa de Dramaturgias Indígenas“(n-1 edições), organizada por Trudruá Dorrico e Luna Rosa Recaldes. Ela contém 11 textos teatrais, assinados por indígenas de várias partes do Brasil, além de estrangeiros, oriundos do Chile e da Argentina. Algumas dessas peças trazem a colaboração de não indígenas.

Segundo as organizadoras, se trata do “primeiro compilado de dramaturgias dos povos originários publicado no Brasil, até onde sabemos”. Dorrico e Recaldes enfatizam o fato de o projeto ser político, uma vez que “o gênero teatro foi utilizado pelos jesuítas, sob o nome de auto, para moralizar e catequizar os povos indígenas. Sabemos que catequizar foi o mesmo que colonizar”.

Assim, a caixa “propõe uma descolonização acerca das diferenças culturais entre os povos, suas cosmogonias, transmutando a percepção equivocada do ser indígena como único e homogêneo”.

Reunindo pequenos livros muito diversos entre si, a caixa apresenta peças em que o português se mistura com línguas indígenas. A peça “Contra Xawara”, de Juão Nyn, é escrita em português, mas coloca o “português de ponta cabeça, transformando o Y em Oka”.

Uma boa parte das peças, para usar um conceito ocidental, poderia ser considerada pós-dramática, no sentido dado por Hans-Thies Lehmann: “O novo teatro, de acordo com o que ouvimos e lemos, não é isto, não é aquilo e nem é outra coisa: predomina a ausência de categorias e palavras para a determinação positiva e a descrição daquilo que ele é. Pretende-se aqui levar tal teatro um passo além e estimular métodos de trabalho teatrais que escapem da concepção convencional sobre o que o teatro é ou precisa ser” (tradução de Pedro Süssekind).

A segunda cena de “Silêncio do Mundo”, dramaturgia de Ailton Krenak e Andreia Duarte, é quase uma conferência de Krenak, recém-eleito para a academia brasileira de letras.

Ele conta que, com Davi Kopenawa Yanomami, visitou Atenas (o berço do teatro para muitos). Foram à Acrópole, ao Arco de Adriano e ao Templo de Zeus: “Chegamos lá perto do mar Egeu, numa ruína, com aquelas colunas quebradas, com pedra caída para todo lado, restos de antigos templos tombados no chão e um mar lindo à nossa vista”.

Eles contemplavam a paisagem quando lhes perguntaram o que haviam achado desse lugar. Kopenawa se adiantou e respondeu: “Eu gostei de vir aqui, porque agora eu sei de onde saíram os garimpeiros que vão destruir a minha floresta, fuçar a minha floresta como se ela fosse pó. O pensamento deles está aqui. Eles fizeram isso aqui e foram fazer o mesmo lá onde eu vivo. Eles reviram a terra, eles quebram tudo”.

Krenak então comenta que esse cenário em ruínas oferece “a completa compreensão daquele tempo mítico em que os antigos gregos viveram, quando o Olimpo era um lugar de trânsito de seres divinos, bem como da passagem daquele lugar para um lugar histórico, onde você faz monumentos, constrói templos, constrói cidades e faz guerras. É a transição do tempo do mito —tempo em que é possível tudo, em que é possível que os mundos se intercambiem— para um mundo chapado, com uma história linear”.

Talvez o rito indígena atualize o vigor das origens do teatro cada vez que um mito é encenado numa aldeia, numa praça, num palco.

Desastre de Mariana desemboca no maior processo de todos os tempos (Folha de S.Paulo)

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Ivan Finotti

12 de julho de 2023


O advogado inglês Thomas Goodhead é a face visível de 700 mil brasileiros vítimas do desastre ambiental de Mariana, quando uma barragem se rompeu e 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minérios de ferro se espalharam por Minas Gerais e pelo Espírito Santo.

A empresa responsável era a Samarco, uma joint venture entre as duas maiores mineradoras do mundo, a anglo-australiana BHP e a brasileira Vale. O desastre aconteceu em novembro de 2015.

Representando pessoas, empresas, municípios, estados e comunidades quilombolas e indígenas —krenak, guarani, tupiniquim e pataxó— o escritório inglês Pogust Goodhead entrou com ação contra a BHP na Inglaterra em 2018 e pede indenização de US$ 44 bilhões, cerca de R$ 215 bilhões.

É mais que o dobro do valor de indenizações recentes de grandes empresas, como o escândalo do dieselgate da Volkswagem, de US$ 15 bilhões (R$ 73 bilhões) em 2016, ou o derramamento de óleo da BP Deepwater Horizon em 2015, de US$ 20,8 bilhões (R$ 100 bilhões).

Goodhead, no entanto, disse em entrevista à Folha na última quarta (5), que o valor dificilmente chegará a tanto. “É como qualquer negociação, certo? E uma negociação inevitavelmente leva duas partes para chegar a um valor acordado.”

Em nota, a Vale afirmou que “se trata de questão discutida judicialmente e todos os esclarecimentos vêm sendo oportunamente apresentados no processo”. Procurada, a BHP não respondeu à reportagem.

Nesta semana, o tribunal de Londres vai decidir se inclui a Vale no processo ou mantém apenas a BHP. Quinze indígenas, das quatro etnias, estarão presentes, fazendo manifestação em frente à corte.

“Acho todo esse momento do processo muito nojento, para ser honesto. Você sabe, ver duas maiores mineradoras do mundo lutando entre si no tribunal, em vez de se sentarem com as vítimas para resolver o caso. Acho um espetáculo terrível.” Confira a seguir, a entrevista.

O caso de Mariana é o maior processo coletivo de todos os tempos ou apenas se considerarmos os desastres ambientais?
É o maior de todos os tempos, pelo que tenho conhecimento, tanto pelo número de reclamantes quanto pelo valor.

Vocês estão pedindo US$ 44 bilhões. Mas nesses casos o juiz não chega a um valor intermediário?
Se formos para um julgamento, para uma audiência final, o juiz dirá se esse valor está correto ou não. Esse valor provavelmente ainda aumentará por causa dos juros de 12% ao ano. Mas sim, é claro, a BHP vai dizer que o valor é mais baixo.

Quanto acha que esse valor pode ser no final?
É impossível dizer no momento. Depende de quando. Mas as vítimas estão esperando há quase oito anos. Será o oitavo aniversário da tragédia em novembro. E ninguém quer ver isso continuar por mais dois, três anos. Eu falo com muitos de nossos clientes toda semana, prefeitos, vítimas individuais, pessoas que tinham negócios e eles estariam dispostos, tenho certeza, a reconhecer que talvez não seja tanto quanto pedimos, que pode haver alguma redução. É como qualquer negociação, certo? E uma negociação inevitavelmente leva duas partes para chegar a um valor acordado.

Como esse dinheiro será dividido?
Será dividido entre diferentes tipos de vítimas. Para os indivíduos, é em torno de 60% desse valor. Eles ficariam com cerca de US$ 26 bilhões (R$ 126 bilhões). Os municípios ficam com cerca de 20%, ou US$ 9 bilhões (R$ 44 bilhões). As empresas prejudicadas ficam com cerca de 10% desse valor, cerca de US$ 4,5 bilhões (R$ 22 bilhões), e outros 10% ficarão para as comunidades indígenas.

Como calculou esses números?
Coletamos dados de centenas de milhares de nossos clientes. Mais de meio milhão de nossos clientes nos forneceram informações completas sobre suas perdas, incluindo todos os municípios, todas as empresas de serviços públicos, a maioria das empresas. E então trabalhamos com a Kroll, umas das maiores empresas de contabilidade forense do mundo. Trabalhamos com especialistas da Universidade de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas e também consultamos valores da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Depois aplicamos juros de 12% que incidem sobre os danos. Então, cerca de metade do número, cerca de US$ 22 bilhões, são danos, cerca da outra metade são juros.

E quanto, mais ou menos, um indivíduo vai coletar?
É difícil dizer porque as perdas são completamente diferentes, certo? Alguns indivíduos perderam uma casa, outros perderam seus negócios, talvez um membro da família tenha morrido na catástrofe, enquanto outros talvez tenham apenas ficado sem água por um período de tempo. Mas, em média, se isso ajudar, estamos buscando cerca de US$ 25 mil dólares (R$ 121 mil), algo em torno disso.

Quanto a BHP está disposta a pagar?
No Brasil, eles pagaram muito pouco por meio da Renova, que é a fundação que criaram com a Vale e a Samarco. Darei um exemplo de alguém que não teve acesso à água por 19 dias. E eles estavam originalmente pagando R$ 1.000, mais ou menos US$ 200. Depois, houve algumas ordens judiciais que ordenavam pagamentos de cerca de US$ 7.000 (R$ 34 mil) por pessoa. Muito, muito, muito mais alto. Mas não é justo com as pessoas que pegaram os US$ 200, certo? De repente, algumas pessoas pegaram US$ 200 seis, sete anos atrás e então, há três anos, pessoas que esperaram mais receberam US$ 6.000 ou US$ 7.000. Não há igualdade nisso.

Quanto seu escritório ganha? É uma porcentagem?
Se fôssemos para um julgamento final, então a porcentagem poderia chegar, para os municípios, em torno de 20%. E, para pessoas físicas, pode chegar a 30%. Mas a maioria desses casos não vai a julgamento final, como aconteceu nos da Volkswagen, da BP Deepwater Horizon, da British Airways, todos os grandes casos em que estive envolvido. Assim, os honorários do escritório de advocacia são negociados com o réu. Então, as vítimas ficam com 100% de sua indenização e nosso escritório de advocacia negocia separadamente seus honorários. É isso que convidamos a BHP a fazer neste caso.

Qual é o próximo passo no processo? Haverá uma audiência nos próximos dias, certo?
Sim, nesta semana, nos dias 12 e 13 de julho, haverá uma audiência entre a BHP e a Vale. Eles estão lutando entre si no tribunal em Londres. A BHP tem falado “olha, se nós somos culpados, a Vale também é culpada, e a Vale deveria pagar 50% da conta”. E a Vale diz que não quer ir ao tribunal na Inglaterra, dizendo que ali não é o lugar certo para ser determinada a responsabilidade.

O que acha que vai acontecer?
Os argumentos legais são muito equilibrados. Eu não poderia prever. Mas, para ser honesto, como advogados das vítimas nós não nos importamos. Não nos importamos se a BHP paga ou se Vale paga. Queremos justiça para as vítimas e que elas sejam pagas. Eu acho todo esse momento do processo muito nojento, para ser honesto. Você sabe, ver duas maiores mineradoras do mundo lutando entre si no tribunal, em vez de se sentarem com as vítimas para resolver o caso. Acho um espetáculo terrível.

E quando acontecerá o julgamento final?
O julgamento da inclusão ou não da Vale, achamos que provavelmente será em setembro deste ano. Mas o julgamento do caso em si, se o caso não for resolvido antes, será em outubro de 2024.


Raio-X

Thomas Goodhead, 40

Advogado com 15 anos de atuação, graduado nas Universidades de Londres, Cambridge e Oxford. Em 2018, fundou o escritório Pogust Goodhead, especializado em ações coletivas em direito ambiental e direitos humanos contra grandes conglomerados em todo o mundo. Em janeiro de 2023, foi escolhido como um dos 100 Melhores Advogados do Reino Unido pela publicação especializada The Lawye