Palavra de Médico (Site de Sonia Zaghetto)

14 de abril de 2020 – publicação original

Palavra de Médico

Dia 1

“O hospital em que eu trabalho, em Paris, está cheio de pacientes infectados pelo coronavírus. Vai se tornar uma referência para a doença. Só hoje eu internei 10 (cinco deles com menos de 50 anos).

Esta semana e na próxima estaremos no pico da infecção. O governo francês está pagando hotéis próximos aos hospitais para que os médicos e demais trabalhadores da saúde não contaminem suas famílias. Eu estou num hotel confortável, a três minutos de carro do hospital.

Os restaurantes da região têm enviado refeições de graça, no almoço e no jantar, para toda a equipe de plantão. Comemos por turnos, juntos: médicos, enfermeiros e soignants – técnicos, maqueiros, secretárias e seguranças.

Aqui na França, muita gente vai morrer. Já estamos enviando pacientes para a Suíça, Alemanha e Luxemburgo, pois faltam leitos de UTI. No nosso hospital há muitos jovens infectados.

Todo mundo aqui está trabalhando a todo vapor. Foram canceladas todas as férias.

Até o fim da semana teremos 400 pacientes POR DIA intubados na Île-de-France (a província onde fica Paris). É muita gente! Nosso hospital tem 120 pacientes com Covid-19. A previsão é que, daqui a 15 dias, os 692 leitos sejam ocupados por pacientes infectados pelo novo coronavírus.

Todos os outros casos (infartos, AVCs, fraturas etc) são encaminhados a clínicas privadas. Cidade vazia. Polícia e exército nas ruas, multando quem não tem permissão de trafegar. Peguei a minha autorização hoje no hospital.

Dia 2

Mais um dia de confinamento em Île-de-France. Talvez o dia mais difícil de todos na minha vida como médico.

No texto anterior eu expliquei que a previsão era que se esgotassem todos os respiradores da província até o fim dessa semana, com uma previsão de 400 pacientes por dia.

Previsão errada.

Hoje praticamente todos os respiradores foram tomados. Em nosso hospital, por volta das 15h30, já não tínhamos como ventilar pacientes que precisavam ser intubados. Conclusão: desabou um desespero em nossas cabeças porque sabíamos que teríamos que escolher a quem salvar e a quem deixar. E foi isso o que automaticamente fizemos. Fui julgado por um grande amigo, de fora da área da saúde, quando lhe contei isso. Mas era isso ou deixar a peteca cair e não salvar ninguém! Ou tomar a decisão errada de salvar quem não teria chance.

Como na Itália (e acredito que na Espanha também), somos obrigados a decidir. O regulador do plantão telefonou para o que chamamos de Proteção Civil e o exército se encarregará de distribuir tendas com respiradores em volta dos hospitais estratégicos localizados ao redor de Paris. Medida de medicina de guerra (e foi este mesmo o termo utilizado aqui). Isso já acontece na Alsácia (leste da França, fronteira com a Alemanha).

Vi colegas com lágrimas nos olhos. Minha chefe ligava de hora em hora para saber o fluxo de pacientes no Pronto-Socorro. Sim, aqui, geralmente, a chefia é mais que um posto. E a chefe se mostrou uma verdadeira líder, compadecendo-se conosco pela situação.

Os mais graves eram encaminhados a unidades de internação Covid-19 para morrer com dignidade. E a cada 15 minutos, em média, recebíamos ligações da enfermagem dessas unidades confirmando que tal ou tal paciente não deveria ser reanimado. Todos eles com máscara facial de oxigênio a 15L/min e dessaturando.

A conduta era sedar e oferecer conforto e dignidade. Fomos tomados por uma sensação de impotência frente a uma doença nova. Esta é a minha primeira pandemia (e de quase todos aqui). Os rostos dos que atendemos à tarde passam por nossos pensamentos. Vimos, um por um, eles descansarem.

Sinto um misto de alegria por participar de um salvamento coordenado e, ao mesmo tempo, uma tristeza imensa por saber que, em muitos casos, estávamos e ainda estamos perdendo a batalha para esse vírus.

Às 20h se ouve o barulho de aplausos nas janelas. Mas só quem estava no front sabia o que estava acontecendo. As mortes se seguiam. O telefone não parava de tocar. A desesperança e as lágrimas eram visíveis nos olhos de todos. Só quem não participava eram os colegas já contaminados pelo vírus, pois estavam fora de combate. Sim, tenho colegas em casa esperando se recuperar pra voltar. Ou não.

No meio do massacre, a solidariedade era sentida como um mexer numa ferida aberta. A realidade sangrava aos nossos olhos. Os pediatras suspenderam o atendimento, uma vez que as crianças têm sido, quase na sua totalidade, poupadas da infecção. E esses pediatras se dispuseram a gerenciar as UTIs recém-criadas em várias unidades no hospital.

Parei no meio do dia, por alguns segundos, para mandar mensagens a familiares e pessoas mais próximas. Tanto pra desabafar como para prevenir de que o pior está por vir.

Os restaurantes continuam a mandar comida de graça para que não percamos tempo em escolher e telefonar. Não falta comida, nem máscaras N-95 (aqui chamadas de Fpp2), nem oxigênio. Nem falta vontade de exercer nossa sagrada vocação de salvar vidas. Mas o avanço da doença está mais rápido que a nossa capacidade de responder à altura.

Nunca me senti tão médico quanto hoje. E também mais ser humano. A experiência nos deixa saber, numa situação dessas, quem vai partir e quem vai lutar por três semanas (esse tem sido o tempo médio) intubado, pronado, sob diálise, para ressuscitar e enfrentar um longo caminho de fisioterapia e reabilitação até uma vida normal.

Agora as pessoas pararam de chegar (são exatamente 04h23). Meu colega, chefe de plantão como eu, foi descansar por volta das 2h30. Daqui a pouco é minha vez. Mas eu disse aos residentes que não consigo descansar. Eles também não. A realidade da medicina já é dura pra quem cai no ritmo de trabalho logo depois da faculdade. Nesse clima de guerra então… Vejo seus olhos assustados e desejo que não tivesse sido assim… Estamos no pico da infecção nesta semana e na próxima. Terei plantões dia sim, dia não – assim como muitos colegas por aqui. É a vida.

Às 10 da manhã a vida recomeça. Inicia com o que chamamos de Reunião Covid-19. Minha chefe reúne todo o pessoal do PS e nos posiciona sobre as últimas notícias, na França e no mundo, quanto à pandemia. Tomamos decisões, discutimos protocolos… e a guerra continua.

Uma enfermeira liga perguntando se pode quebrar o protocolo e deixar uma família entrar no quarto para se despedir do familiar (um pai, marido, avô). Não autorizo. Pela proteção de todos. Desligo o telefone. Lágrimas caem pelo meu rosto. Vou deitar e agradeço a Deus por estar vivo.

Recado aos brasileiros

Vocês, brasileiros, especialmente idosos, terão de ficar em casa por pelo menos dois meses, se quiserem viver. É que o pico aí no Brasil será daqui a um mês e o vírus é mais ativo em temperaturas baixas. Na minha opinião, isso vai se arrastar por aí se não forem respeitadas as medidas de confinamento.

Por favor. Levem isso a sério.