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Epidemia, empatia e mudança social

Renzo Taddei – 18 de março de 2020

Há uma postagem circulando no Facebook que conta a seguinte história: certa vez alguém perguntou à famosa antropóloga norte-americana Margaret Mead o que ela considerava a primeira evidência da civilização humana. Esse era um debate acalorado em meados do século 20 na antropologia. Alguns autores diziam que a marca de surgimento da civilização era o surgimento da linguagem simbólica (a capacidade do uso de metáforas, por exemplo). Outros diziam que o ponto inicial era o surgimento da percepção de que algumas formas de comportamento – como o incesto – eram inaceitáveis. Outros, a invenção de ferramentas de caça. Outros ainda, a criação de artefatos religiosos. A resposta de Margaret Mead foi surpreendente: ela disse que o início da humanidade estava representado em um fêmur, encontrado em um sítio arqueológico datado em 15 mil anos. O referido osso possuía marca de uma fratura que havia sido curada (esta história está narrada no livro The Best Care Possible: A Physician’s Quest to Transform Care Through the End of Life, Avery, 2012).

A explicação de Mead era a seguinte: nenhum animal, em condições selvagens, é capaz de sobreviver com um osso de fêmur fraturado. Tal animal seria morto por outro animal, ou por provável infecção, antes de que o osso pudesse se refazer. Desta forma, a existência de um fêmur de 15 mil anos curado significa que o indivíduo a quem o osso pertenceu foi ajudado por seus pares, que dele cuidaram, protegeram, e forneceram alimento por um período longo de tempo, de modo que a calcificação do osso fosse possível. O argumento de Mead era, desta forma, que a marca que define a civilização humana é o cuidado para com os que estão doentes ou em situação de vulnerabilidade. Ser humano é ter empatia para com seus pares.

Ocorre, no entanto, que o caminhar da civilização ocidental – a mais materialmente rica e poderosa de toda a história da humanidade – acabou por produzir, a partir do século 19, modos de vida pautados pelo individualismo e pelo hedonismo (que é o pensamento de que a finalidade da existência humana é gozar a vida, ter prazer). Individualismo e hedonismo juntos produzem formas egoístas de entender o mundo e a vida.

Em meio à crise do COVID-19, vemos o mundo ocidental dividido entre tendências egoístas e a capacidade de ter empatia para com quem está em situação de risco. As tendências egoístas se fazem visíveis quando, por exemplo, alguém corre ao supermercado e compra todos os frascos de álcool gel disponíveis, antes que outra pessoa possa fazê-lo; ou quando a pessoa jovem pensa que, por ter altíssima probabilidade de recuperação, caso infectada, não precisa se preocupar tanto se contrai o vírus ou não. O comportamento empático se faz visível quando alguém se oferece para fazer compras para o casal de velhinhos que mora no condomínio, de modo a que estes não precisem sair de casa; ou quando o jovem, em geral saudável, fica em casa quando percebe que tem os sintomas do vírus, de modo que a atenção médica e os kits de exames para a detecção da doença sejam usados em quem realmente está em estado grave. Ou ainda quando alguém percebe que muitas crianças das escolas públicas necessitam da alimentação que ali recebem, e se ficarem em casa irão passar fome, e organiza coleta e distribuição de alimentos para as famílias de tais crianças.

Historicamente falando, as grandes epidemias têm a tendência de virar a balança para o lado da empatia (mesmo que grande parte das pessoas se mantenha em um estado de pânico egoísta). Um artigo publicado em 2018 no jornal britânico The Guardian (https://bit.ly/39Y7L2p) descreveu como a gripe espanhola que matou mais de 10 milhões de pessoas em 1918 foi importante na criação do estado de bem-estar social na Suécia, e resultou no fato de que o país, um dos mais ricos do planeta, tenha desigualdade social muito baixa. A alta mortalidade da gripe espanhola desorganizou a sociedade de tal maneira que injustiças e desigualdades que existiam mas eram invisíveis vieram à tona.

No caso do Brasil contemporâneo, podemos dizer que a crise epidemiológica pode ser entendida, dentro muitas outras coisas mais dramáticas, como um grande experimento sociológico. Ou seja, é possível observar coisas e comportamentos que, em situações mais “normais”, não seriam visíveis. Nesse experimento, podemos observar este embate entre egoísmo individualista e comportamentos empáticos. Há uma virada para o lado da empatia, ou o que caracteriza mais os comportamentos coletivos é o egoísmo individualista? Será que as pessoas que se sentem mais estimuladas a serem solidárias e comportarem-se de forma empática continuarão se comportando desta forma depois do final da crise? Ou seja, a epidemia produzirá mudanças reais na sociedade, como ocorreu na Suécia em 1918?

Outra coisa interessante que nos ajuda a entender o contexto atual em uma chave diferente é o fato de que as epidemias tiveram papéis importante na formação da civilização contemporânea. Yuval Harari menciona isso no capítulo 5 (“A maior fraude de história”) do seu livro Sapiens. As epidemias começaram a fazer parte da vida humana no momento em que as plantas e animais foram domesticados, e a maioria dos agrupamentos humanos passou a viver na mesma terra, praticando agricultura. Surgiram as cidades, ao longo da história sem conhecimento nem infraestrutura sanitária, e isso favoreceu que microrganismos que viviam de forma mais ou menos equilibrada com a ecologia local começassem a causar epidemias. Da invenção da agricultura no oriente médio até a invasão das Américas pelos europeus, passaram-se 10 mil anos. Nestes 10 mil anos, epidemias de todos os tipos avassalaram as populações da Eurásia (Europa+Ásia). Qual o resultado disso? Seleção natural: o ser humano europeu do século 15 possuía imunidade a uma grande quantidade de microrganismos para os quais as populações indígenas das Américas não era imunes. Essa é uma das razões (não a única) pela qual foi a Europa que invadiu as Américas, e não as Américas que invadiram a Europa. Mais de 90% de toda população indígena das Américas morreu nos 150 anos seguintes, quase toda em razão de epidemias trazidas pelos europeus. Há autores que sugerem que a carnificina que vitimou os povos originários foi tão intensa que, quando as florestas cresceram sobre os escombros das civilizações dizimadas, elas sequestraram tanto carbono da atmosfera que isso provocou o resfriamento do planeta (evento que ficou conhecido como pequena era do gelo medieval – ver https://bit.ly/38TeoBC). 

O ponto interessante e delicado, aqui, é a ideia de que as epidemias podem ter outros efeitos sobre as populações além de simplesmente fazer com que uma parte dela morra. Aliás, essa é uma questão pouco entendida da seleção natural de Darwin: o “avanço” de uma espécie, através da adaptação a um ecossistema, depende da morte de um grande número de indivíduos. Harari coloca a questão de forma brusca, no seu livro: a evolução trabalha em favor da espécie, e não do indivíduo. Naturalmente, quase todos os esforços da humanidade desde que esta surgiu se concentraram em desativar os mecanismos da seleção natural. Se voltarmos àquele nosso ancestral de 15 mil anos, com o fêmur partido, cujo colega decidiu que, ao invés de deixar o amigo morrer e ficar com a sua comida, ele iria doar sua energia, tempo e recursos (comida, água, fogo) para que o companheiro pudesse se recuperar, veremos que, naquele exato momento, a humanidade começava a caminhar para longe da seleção natural pura e simples, em direção à empatia. Na verdade, o próprio Darwin afirmou que a empatia é qualidade humana que maximiza a sobrevivência da espécie (hoje sabemos que muitos animais também experimentam sentimentos de empatia).

Há muitas coisas interessantes a serem debatidas aqui. Uma delas é que, mesmo para que se entenda as coisas de forma científica, não se pode abordar o mundo pelo ponto de vista do umbigo dos humanos preocupados apenas com eles mesmos.