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Índios isolados, trabalhadores em fuga: um encontro amazônico (Yahoo Notícias)

Por Ana Aranha | Reportagem 3 por 4 – 18.abr.2013

Os seis trabalhadores da construção civil estavam perdidos em meio à floresta amazônica, no norte de Rondônia. Algumas horas antes, eles tinham corrido mato a dentro para fugir do caos que tomara o canteiro de obras da usina hidrelétrica de Jirau, onde a Polícia Militar reprimia o movimento grevista, em 2011. Depois de andar cerca de seis quilômetros, o grupo tentava encontrar o caminho de volta à obra, ou a estrada, ou qualquer sinal de urbanidade. Sem sucesso.

Ao invés disso, foram encontrados.

Sem perceber que estavam sendo cercados, os trabalhadores uniformizados se viram rodeados por oito índios nus. Eles tinham o rosto e corpo pintados, flechas em punho e “murmuravam” palavras em uma língua que os trabalhadores não conheciam. Mas logo interpretaram o sentido: estavam rendidos.

Índios isolados no Acre, fotografados pela Funai em 2008

Hoje, excepcionalmente, esse espaço não será dedicado a um retrato, mas a um encontro. Encontro que pode servir de pista para compor o retrato dos povos indígenas que habitam o nosso país e os quais temos tanta dificuldade de entender.

Assustados, os trabalhadores da usina se comportaram como prisioneiros dos índios. Seguiram seus passos e pararam quando eles sinalizaram. O coração disparava a cada vez que os índios se reuniam em círculo. Observaram a construção de uma espécie de churrasqueira com gravetos, onde um porco do mato foi assado. Disfarçando o mal estar, comeram cada pedaço de carne que lhes foi oferecido. À noite, um dos trabalhadores foi repreendido pelos colegas por espiar os seios da índia mais nova, a regra era olhar para o chão.

A madrugada avançou, alguns índios deitaram e adormeceram. Os trabalhadores ficaram alertas. Pela manhã, caminharam até chegar a um local onde se ouvia um barulho familiar. Os índios sinalizaram em direção ao som, disseram algumas frases que ninguém entendeu e foram embora. Os trabalhadores correram na direção indicada até que, exaustos, chegaram à rodovia federal BR 364.

Esse relato foi registrado pela historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, da ONG indigenista Kanindé, que entrevistou um dos trabalhadores na presença de um funcionário da Funai (Fundação Nacional do Índio). Ela acredita que os homens e mulheres descritos sejam parte de um grupo que a entidade e a Funai tentam rastrear há anos. “Pela descrição, parecem ser Kawahiba isolados”.

“Isolados” são os índios que não têm contato com a nossa sociedade, ou porque nunca cruzaram com um não-índio (casos cada vez mais raros) ou porque recusam o contato.

Na região que foi alagada pela usina de Jirau, havia rastros de um grupo isolado e nômade. A empresa repassou dinheiro para que a Funai mapeasse esses rastros. Depois de identificados, eles deveriam ganhar uma área de proteção. Mas o investimento não foi suficiente para encontrar ou proteger os índios.

Ao contrário, foram eles que encontraram e salvaram os funcionários da usina. “É difícil entender o que passou na cabeça dos índios quando viram os trabalhadores perdidos”, reflete Ivaneide. “Por que decidiram ajudar? Nunca vamos saber”.

O encontro ocorrido em 2011 é o reflexo oposto do desencontro que se deu na Câmara dos Deputados essa semana. Na terça dia 16, em uma cena inédita, os deputados federais correram pelo plenário como uma manada assustada. Fugiam de homens seminus, pintados de urucum e que balançavam seus chocalhos para protestar contra a mudança da lei que define como as terras indígenas são demarcadas.

Se o comportamento dos índios isolados e dos deputados deixa alguma pista, é que continuamos longe de entender os povos que habitam a nossa terra.

Quando retornaram à usina, os trabalhadores contaram sobre o encontro, mas o supervisor deu risada, chamando-os de mentirosos. Como se fosse impossível haver índios nas proximidades da obra, cravada no meio da floresta amazônica.

Para Ivaneide, a precisão dos detalhes é a maior evidência da veracidade da história. “Os trabalhadores eram de outros estados, uma pessoa sem convivência com indígenas não poderia saber tanto. Ele descreveu a pintura no peito, os traços no rosto dos homens, diferente das mulheres, a pena do gavião real, como tratavam a ponta das flechas. Até os detalhes de como montaram o moquém, que é onde assam a carne”. Segundo ela, o relato bate com hábitos comuns a etnias que vivem ou viveram na região, algumas consideradas extintas.

Existem 82 pistas de grupos indígenas isolados no Brasil, é a maior concentração de povos isolados do mundo. Em março desse ano, os funcionários da Funai fizeram uma carta aberta com um “pedido de socorro”. Nela, escrevem que não há equipe para proteger esses grupos, cujos territórios estão sendo invadidos pelas grandes obras, madeireiros e traficantes.

Como lidar com índios isolados é um dos temas mais complexos dentro da política indigenista. Talvez a pequena mensagem deixada pelo grupo que resgatou os trabalhadores e pelos que invadiram o congresso seja justamente sobre os nossos limites. Os índios tem um modo diferente de ser, nem sempre seremos capazes de entende-los. Talvez esses encontros sejam os momentos para refletir sobre os impactos das nossas escolhas. E fazer um esforço para, a partir dessa nova realidade, respeitar as escolhas deles.

Otávio Velho defende questionamento do eurocentrismo que marca o pensamento brasileiro (Jornal da Ciência)

Clarissa Vasconcellos – JC e-mail 4550, de 30 de Julho de 2012

Ele cita ideias de Tim Ingold, Aníbal Quijano e Ashis Nandy e aborda novas tendências vistas a partir da antropologia,em conferência realizada no último dia da 64ª Reunião Anual da SBPC.

Uma palestra com cara de aula magna, proferida pelo antropólogo Otávio Velho, foi um dos destaques do último dia da 64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que terminou na sexta-feira (27) em São Luís. Palestrante que se poderia chamar de ‘hors concours’ (se houvesse alguma classificação entre o time de conferencistas), Velho apresentou a mesa ‘Contradição ou complementariedade: novas tendências do pensamento vistas a partir da antropologia’.

Eurocentrismo, descolonização, abertura. Essas foram algumas das palavras chave usadas pelo antropólogo para questionar o pensamento social vigente no País, que ainda vira as costas para o que está acontecendo no campo social e científico de nações do hemisfério Sul.

Velho começou afirmando que a antropologia realizada no Brasil peca por uma “escolarização excessiva, uma tendência repetitiva e talvez uma falta de atenção à pesquisa de campo”. “É preciso tentar abrir horizontes, a pesquisa tem que ser o cerne da atividade”, opina.

Duas tendências – Contudo, a palestra foi estruturada em torno de duas tendências de linhas diferentes da antropologia. A primeira vem sendo redescoberta na figura de Gregory Bateson, antropólogo que atuou entre os anos 1930 e 1960 e apontou em direção à interdisciplinaridade, flertando até com a biologia. Velho se centrou em um dos prolongamentos de sua linha, estabelecido por Tim Ingold.

Ele detalha que, para Bateson, o foco era o agente social, basicamente os indivíduos em comunicação e interação. Ingold desloca esse foco para o campo como um todo, “o agente da vida” e não os individuais. “Isso deixa implícita uma crítica à ideologia individualista que permeia nosso inconsciente teórico; o foco é o sistema como um todo. Passa a ser importante a ideia de movimento e nele a grande unidade da vida entendida em sentido mais holístico e global”, detalha.

A segunda tendência é a crítica ao eurocentrismo, que se pode dar em diversos planos. “Estamos mais apegados a essas referências do que os próprios pesquisadores do primeiro mundo. Esse deslocamento do eurocentrismo funciona de modo quase análogo a uma mudança de paradigma”, afirma, propondo a releitura e contextualização dos pensadores e a abertura a outros. “Referimo-nos a autores europeus e americanos e não conhecemos a produção latino-americana”, pontua, citando o sociólogo peruano Aníbal Quijano.

Diferenças – Ele atenta para o abuso da utilização da ideia de diferença e diversidade, ênfases empregadas comumente na antropologia. E lembra que a disciplina “tem origem no colonialismo europeu” e a que a diferença, entre outras coisas, era usada para “mostrar que outros povos eram incapazes de fazer avanços tecnológicos”.

“Como a América Latina se tornou independente há algum tempo, antes de países da África e Ásia, o colonialismo nos parece algo distante, que nossos quadros de diferenças não contemplam”, sublinha, ressaltando que mesmo no marxismo é possível encontrar um eurocentrismo forte. “Ele quase sugere que o colonizador é uma agente de progresso”, exemplifica.

Velho insiste em retomar a questão como algo que não pertence ao passado, já que tem prolongamentos, e cita outra vez Quijano, que fala do conceito de ‘colonialidade’ para se referir a algo que vai além do fenômeno histórico e se prolonga. “Como acontece nesse certo mimetismo nosso, o eurocentrismo dos intelectuais”, completa. Outro exemplo é a ideia eurocêntrica de dividir o mundo entre povos “com ou sem história”. Ele lamenta que no Brasil ainda seja muito incipiente o estudo do território antes de 1500.

No entanto, relembra que alguns movimentos importantes estão sendo feitos no âmbito da antropologia da América Latina, como as reuniões regionais do Mercosul. Porém, ainda falta intensificar o intercâmbio Sul-Sul. “Estamos mandando bolsistas do Ciências sem Fronteiras para a Índia?”, indaga, apontando a influência eurocêntrica também no desenvolvimento científico técnico.

Novos eixos – Velho pontua que a Índia é um dos lugares onde a discussão sobre as críticas ao eurocentrismo tem avançado mais, destacando o nome de Ashis Nandy. E vai mais longe, afirmando que tampouco é salutar distinguir do contexto mundial as chamadas “populações tradicionais”, termo frequente quando se quer marcar as diferenças regionais.

“A diferença é muito importante, mas a ênfase não deveria estar no conflito, que pode ser paralisante para o movimento”, opina. E ressalta a necessidade de não “hegemonizar”. “Os indianos falam de dominação sem hegemonia, para marcar a força dessas tradições que não são necessariamente hegemonizadas pelo colonizador”, exemplifica.

Ele atenta para a ideia de “acentuar novos eixos e novas articulações”, que “não signifiquem um relativismo cultural exacerbado”. E propõe construir universos a partir de novas perspectivas, que “tampouco se pretendem absolutas ou dominantes”, sem excluir outras possibilidades. “Existe outro Ocidente. Temos que estar abertos a encontros inesperados”, exemplifica.

Velho acredita que o protagonismo econômico de países como os do Bric, impulsionado pela crise na Europa, não levará imediatamente a um protagonismo “do pensamento” também. Ele chama a atenção para o risco de “mimetização” das ideias e que os países emergentes não podem cair na tentação de se transformar em “novos etnocêntricos”. E cita Nandy, que afirma que o antropologismo “não é a cura para o etnocentrismo”, mas sim ajuda a “pluralizar”.