Pescadores artesanais são retratados de forma negativa por documentos consultados por técnicos para elaboração da Instrução Normativa Conjunta 2004 sobre pesca no RS
23 de fevereiro de 2024
Highlights
Estudo analisou estereótipos sobre pescadores artesanais em publicações ligadas aos técnicos que participaram da formulação de instrução normativa de pesca no Rio Grande do Sul
Documentos científicos descrevem trabalhadores como resistentes a mudanças e adeptos de práticas de pesca predatórias
Pesquisa reforça a importância de desconstruir estereótipos na formulação de políticas públicas para torná-las mais justas
Ideias preconceituosas sobre pesca e pescadores artesanais influenciaram ato administrativo do Ministério do Meio Ambiente sobre pesca artesanal no estado do Rio Grande do Sul. Constatado por estudo da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade de São Paulo (USP), o uso de estereótipos que retratam pescadores como ignorantes e adeptos de práticas predatórias danosas ao meio ambiente dificulta a criação de propostas eficazes e justas de regulamentação do setor. A análise está publicada em artigo científico da edição de sexta (23) da revista “Ambiente & Sociedade”.
Os pesquisadores investigaram estereótipos sobre pesca artesanal contidos em publicações científicas ligadas a técnicos que participaram da formulação da Instrução Normativa Conjunta de 2004 sobre a atividade de pesca no estuário da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, implementada durante a gestão da ministra do meio ambiente Marina Silva, no governo Lula. Com um levantamento bibliográfico e entrevistas com seis profissionais que participaram da criação da política, eles identificaram 22 documentos científicos ligados aos técnicos participantes, como artigos científicos, teses e livros.
A imagem estereotipada que estes técnicos tinham sobre as comunidades pesqueiras influenciaram a construção da norma. A pesquisa identificou nove tipos de discursos negativos sobre os pescadores artesanais nestes documentos. Eles descrevem esses sujeitos como brancos, totalmente dedicados à pesca, ignorantes, avessos a mudanças, desordeiros, isolados, ineficientes, competitivos e adeptos de práticas predatórias danosas ao meio ambiente.
Para o pesquisador Gustavo Goulart Moreira Moura, da UFPA e autor do estudo, a criação desse perfil negativo sobre pescadores não é uma coincidência isolada e, muito menos, uma prática nova. “A construção de uma imagem depreciativa desses grupos sociais se inicia no século XIX, se consolida ao longo do século XX e continua a vigorar no século XXI, pois é parte de um projeto de destruição de territórios tradicionais, de conquista dos mares por meio da modernização capitalista da pesca”.
O trabalho enfatiza que utilizar discursos baseados em estereótipos negativos sobre a pesca artesanal para a formulação de normas pode levar à reprodução de discursos de ódio contra comunidades pesqueiras e, também, gerar ações que limitam seu acesso a territórios. “Esta lógica vai subsidiar políticas públicas feitas de forma autoritária, violenta e restritiva, porque os povos e comunidades tradicionais de pesca são vistos como ignorantes, marginais e destruidores do meio ambiente”, relata Moura.
De acordo com Moura, a reformulação da INC 2004 vem sendo discutida há algum tempo, mas ainda não foi efetivada. Um dos problemas da norma apontados pelo pesquisador é a sua falta de dinamismo, que não acompanha a rotina da pesca artesanal no estuário da Lagoa dos Patos. “As comunidades tradicionais têm um sistema de manejo da pesca com abertura e fechamento de safras flexível baseada nas condições ambientais e na localidade ano a ano, ao contrário do que propõe a norma”.
O trabalho destaca a importância de se levar em conta os conhecimentos tradicionais de pescadores na elaboração de leis e normas mais equitativas e eficientes. O esforço passa por quebrar estereótipos sobre estas comunidades, o que requer, segundo Moura, uma ação coordenada entre setores da sociedade. “Por exemplo, é preciso sensibilizar a grande mídia para não espalhar preconceitos contra esses grupos sociais e para ajudar a cobrar dos tomadores de decisão a elaboração de leis sejam feitas dentro do marco dos direitos humanos. Os tomadores de decisão deveriam escolher consultores que compartilhem valores compatíveis com o Estado Democrático e de Direito”, conclui.
Indígenas, quilombolas, caatingueiros e quebradeiras de coco babaçu são alguns dos que integram o grupo. Direito à terra está no centro das lutas destas populações.
Quebradeiras de coco da região de São João do Arraial. — Foto: Divulgação
Você sabe quais são povos e comunidades tradicionais brasileiros? Talvez indígenas e quilombolas sejam os primeiros que passam pela cabeça, mas, na verdade, existem, além deles, 26 reconhecidos oficialmente e muitos outros ainda não foram incluídos na legislação, explicam especialistas do tema.
“Os povos indígenas são os primeiros do Brasil, considerados os donos da terra e fazem parte do arcabouço dos povos tradicionais. A partir da colonização, outros povos vão sendo agregados. Em 1574, tem o registro da entrada do primeiro cigano”, narra Kátia Favilla, antropóloga especialista no assunto e secretária-executiva da Rede Cerrado.
“A gente tem um processo, então, já de uns 400 anos de formação de povos e comunidades tradicionais, que não é um processo finalizado”, completa.
São pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, apanhadores de flores sempre-vivas, caatingueiros, extrativistas, para citar alguns (veja lista completa ao fim da reportagem). Todos considerados culturalmente diferenciados, capazes de se reconhecerem entre si.
Essas comunidades fazem uso dos recursos naturais, não apenas para seu sustento, mas também para reprodução cultural, social e religiosa, define Cristina Adams, uma das coordenadoras do livro “Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil – contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças”.
Parceria com a natureza
Cada uma das comunidades tem uma prática de sistema tradicional de uso, que, de forma generalizada, é conhecida como Sistema Agrícola de Produção (Sat).
“Essas práticas são muito importantes no modo como esses povos se autoidentificam. Muitas dessas comunidades tradicionais se identificam pelas práticas econômicas que são estruturantes do seu modo de vida”, explica Ana Tereza da Silva, professora do Mestrado Profissional em Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Tradicionais da Universidade de Brasília (MESPT/UNB).
Contudo nem todos os povos mantêm apenas um modo de produção. Uma comunidade pesqueira, por exemplo, pode também realizar o extrativismo sustentável, exemplifica Ana. Ou, como acrescenta Kátia, uma comunidade extrativista pode ter uma pequena roça.
Ainda assim, o Sat é fundamental para a manutenção dos povos em seus territórios.
Reportagem do Globo Rural de 2021 mostra quilombo que produz rapadura artesanal e aumenta renda com projeto Pró-Semiárido.
Para Ana, essas populações, essas populações não veem o agro como um negócio. A terra é considerada uma mãe e há uma relação de reciprocidade com a natureza.
Nesta troca, a natureza fornece “alimento, um lugar saudável para habitar, para ter água. E eles se responsabilizam em cuidar dela, a tirar dela apenas o suficiente para viver bem e a respeitar os tempos de auto-organização, de regeneração da própria natureza”, diz.
Na prática, essas populações dependem, muitas vezes, de uma agricultura e tecnologia simples e intensiva mão de obra, ainda que, dentro do território, a densidade populacional seja baixa, descreve Cristina.
Além de terem pouco impacto ambiental, suas atividades contribuem para a manutenção e para a geração de biodiversidade, tanto da natureza quanto da “agrobiodiversidade”, ou seja, de variedade de espécies dentro da atividade agrícola, fundamental para a segurança alimentar.
Chega até sua mesa
As produções dessas populações não ficam apenas para a subsistência. Elas já foram abrangidas por algumas políticas públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), voltado para ajudá-las a escoar os cultivos para as escolas próximas às comunidades.
Atualmente, as feiras locais são importantes para que esses alimentos sejam comercializados.
Algumas comunidades organizadas de maneira mais coletiva, através de associações, por exemplo, conseguem expandir a venda para outros estados e para o exterior.
Kátia, antropóloga especialista no assunto, mora em Lisboa e conta que o açaí é um grande exemplo disso. Boa parte vem de comunidades tradicionais e se tornou comum na capital portuguesa.
No Brasil, o umbu, a castanha do Brasil e o pequi são exemplos de comidas que vêm desses povos e chegam até as cidades.
Reconhecimento
O primeiro passo para um grupo ser considerado tradicional é a autoidentificação, que ele se declare como tal.
Depois vem a etapa dos processos judiciais, quando são feitos laudos que comprovem a historicidade da comunidade, há quanto tempo ela ocupa determinada área, suas produções sociais, políticas e econômicas, por exemplo.
“O que faz uma comunidade se autoidentificar como tradicional, normalmente, são as ameaças”, diz Ana.
Esses povos, que sempre estiveram em suas terras, quando sentem que podem perdê-las, seja para o grande agronegócio ou para grileiros, buscam esse reconhecimento para tentar manter o seu direito de permanecer no local.
Existem situações, inclusive, em que as vidas das lideranças são ameaçadas ou tiradas por quem visa tomar essas áreas.
Em relação aos indígenas e quilombolas, esse direito à terra está resguardado pela Constituição de 1988, resultado da mobilização dos movimentos sociais.
Com isso, essas pessoas contam com órgãos federais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Cultural Palmares. Ambas têm função institucional e constitucional de reconhecer e demarcar as terras, explica Ana.
Os demais povos têm que recorrer a outros dispositivos jurídicos, como ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Eles também podem recorrer ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e solicitar que a área se torne uma reserva de desenvolvimento sustentável, diz a professora do MESPT.
Há ainda o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CONPCT) – composto majoritariamente por representantes desses povos -, que além de fazer parte deste processo de reconhecimento, também auxilia no diálogo entre comunidades e o Estado brasileiro.
Apesar disso, Kátia diz que, atualmente, esses órgãos estão enfraquecidos e o que realmente tem defendido esses povos são os movimentos sociais, caso da Rede de Comunidades Tradicionais, formada por mais de 30 segmentos, que atua em diálogo com o governo buscando uma legislação mais representativa.
Saiba mais sobre a demarcação de terras indígenas com o vídeo:
Joenia Wapichana comenta sobre a demarcação das terras indígenas
Busca por direitos
A terra, de acordo com as especialistas, é a maior questão para essas comunidades.
“Muitas vezes eles estão em território de interesse para grandes fazendeiros, para mineração ou para madeireiras, de modo que eles são o elo mais fraco da corrente”, explica Cristina.
De acordo com a pesquisadora, há ainda o agravante de que existem comunidades cujo território acabou sendo sobreposto por unidades de conservação, o que também pode gerar muitos conflitos e impedimentos no uso tradicional dos recursos naturais.
Isso porque, nessas situações, a população deveria ser retirada da área e indenizada, mas a escritora disse que nunca soube de um caso em que isso aconteceu.
Porém essa não é a única luta dessas pessoas, há a busca por políticas públicas. Esses povos enfrentam, por exemplo, a dificuldade para acessar créditos agrícolas e para melhoria de moradias, diz Kátia.
Há também obstáculos para a comercialização dos produtos, com estradas em condições ruins para o escoamento ou mesmo sobrando apenas os rios para fazer isso, relata a antropóloga.
Para além do setor agrícola, há falta de acesso a educação e a saúde de qualidade.
“A modernidade chegou a elas (comunidades), mas isso não faz com que elas percam a sua ancestralidade, mas é claro que elas foram se adaptando ao mundo. Elas querem acesso, por exemplo, a educação e a universidades”, diz Kátia.
Você precisa fazer login para comentar.