Arquivo da categoria: Identidade

>SBPC: o jornalismo irresponsável da revista Veja

>
Em nota, SBPC repudia reportagem de ‘Veja’

Jornal da Ciência – JC e-mail 4007, de 11 de Maio de 2010

Reportagem trata da demarcação de terras indígenas e é acusada de distorcer informações

Intitulada “A farra da antropologia oportunista”, a reportagem foi publicada na edição de 5 de maio da revista semanal. O texto já havia sido objeto de nota da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Leia a nota da ABA em http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=70689.

No domingo, a coluna do jornalista Marcelo Leite, no caderno “Mais!”, da “Folha de SP”, também tratou da polêmica reportagem e da reação de membros da comunidade científica da antropologia. Leia a coluna em http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=70771

A reportagem da “Veja” pode ser lida no acervo digital da revista, em http://www.veja.com.br/acervodigital/home.aspx

Leia abaixo a íntegra da nota da SBPC:

“A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vem a público hipotecar inteira solidariedade a sua filiada, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que em notas de sua diretoria e da Comissão de Assuntos Indígenas repudiou cabalmente matéria publicada pela revista ‘Veja’ em sua edição de 5 de maio do corrente, intitulada “Farra da Antropologia Oportunista”.

Registra, também, que a referida matéria vem sendo objeto de repulsa por parte de cientistas e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, os quais inclusive registram precedentes de jornalismo irresponsável por parte da referida revista, caracterizando assim um movimento de indignação que alcança o conjunto da comunidade científica nacional.

Por outro lado, a maneira pela qual foram inventadas declarações, o tratamento irônico e preconceituoso no que diz respeito às populações indígenas e quilombolas e a utilização de dados inverídicos evidenciam o exercício de um jornalismo irresponsável, incitam atitudes preconceituosas, revelam uma falta total de consideração pelos profissionais antropólogos – cuja atuação muito honra o conjunto da comunidade científica brasileira – e mostram profundo e inconcebível desrespeito pelas coletividades subalternizadas e o direito de buscarem os seus próprios caminhos.

Tudo isso indo em direção contrária ao fortalecimento da democracia e da justiça social entre nós e à constituição de uma sociedade que verdadeiramente se nutra e se orgulhe da sua diversidade cultural.

Adicionalmente, a SBPC declara-se pronta a acompanhar a ABA nas medidas que julgar apropriadas no campo jurídico e a levar o seu repúdio ao âmbito da 4ª. Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que se realizará no final deste mês de maio em Brasília.”

>Feijoada: vitória da identidade nacional

>

Débora Motta
Reprodução/Debret
 Transferência da família real marcou a adoção da etiqueta à mesa pelos senhores, que se distanciavam dos escravos

A feijoada é considerada o prato que melhor simboliza a culinária nacional. Além de ser preferência na mesa das famílias brasileiras de todas as classes sociais, a saborosa mistura de feijão e carnes, como toicinho, linguiça e charque, revela aspectos curiosos da história social do país. De acordo com o historiador Almir Chaiban El-Kareh, que foi professor visitante especial junto ao Núcleo de Estudos da Modernidade do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (Nemo/UFF), com bolsa da FAPERJ, entre 2006 e 2008, e hoje é pesquisador visitante do Departamento de Geografia da mesma universidade, também com bolsa da Fundação, nem sempre o feijão, hoje tão democrático, foi visto com bons olhos pelas elites.

Pouco depois da transferência da família real e de sua Corte para o Brasil, em 1808, os feijões eram classificados como “comida de pobre”. O pintor francês Jean-Baptiste Debret, integrante da Missão Artística Francesa (1816-1831) e fundador da pintura acadêmica no Brasil, descreveu em seus relatos de viagem sobre o país os hábitos de uma família rica. Ela costumava comer cozido português, acompanhado de galinha, arroz e farinha de mandioca. “O feijão ainda não aparecia na mesa das elites naquele momento”, diz Almir, que cursou doutorado (1982) e pós-doutorado (1995) em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França.
O consumo de feijão pelas elites, inicialmente, era velado. “Debret escreveu que, na época, um pequeno comerciante comia feijão com um pedaço de carne-seca e farinha, regado com muita pimenta, mas escondido de todos, no fundo da loja”, completa o pesquisador. No entanto, já por volta de 1830, todos os viajantes que escreveram relatos sobre o Brasil, atestaram, em tom de crítica, que ricos e pobres comiam feijão, carne seca e toicinho todos os dias. Essa aceitação gradual do consumo de feijão pelas elites deve-se à força da gastronomia regional popular, que acabou por sobressair à incorporação dos hábitos europeus.
Influência da Corte marca mudanças na etiqueta à mesa
Divulgação 
         
Feijoada é símbolo da resistência da culinária regional frente aos novos 
hábitos europeus

A transferência da família real foi um fato inédito. Nunca um rei europeu havia colocado os pés em uma colônia para visitá-la, quanto mais decidir morar em uma. O súdito colonial da véspera havia se tornado cidadão da capital do vasto império português. Essa reviravolta política teve desdobramentos sociais, que resultaram na aquisição de novos hábitos pelos habitantes da colônia.

A etiqueta à mesa foi um dos alvos dessa mudança de costumes. Almir assinala que houve uma transformação gradual no uso do espaço na sala de refeições pelos integrantes da família do senhor e pelos escravos. “No início do século XIX, toda a família do senhor comia com as mãos, sem uso de talheres, no chão, em cima de esteiras. Os escravos também comiam com as mãos, no chão, em cima de esteiras, no mesmo local do senhor. Mais tarde, a senhora já ficava sentada num canapé, enquanto os escravos continuavam nas esteiras no chão. Anos mais tarde, aparecem gravuras de famílias brasileiras seguindo a etiqueta européia, sentadas à mesa, utilizando talheres e sem escravos no local das refeições”, conta Almir.
Ele ressalta que a disposição espacial entre senhores e escravos, durante as refeições, passou aos poucos de uma separação simbólica, de uma parede invisível, no nível horizontal – pois só os escravos favoritos podiam se aproximar da esteira da senhora –, a uma separação vertical, quando a senhora muda de nível, até ocorrer uma segregação espacial total. Segundo Almir, a elite carioca foi capaz de assimilar a etiqueta e as boas maneiras europeias, bem como os artigos finos importados da Europa, mas manteve-se fiel aos seus costumes alimentares.
“A alimentação é o ponto de maiores resistências à mudança porque são hábitos adquiridos na infância. A elite mudou de roupa, copiando especialmente a moda francesa, mas não mudou de gosto alimentar”, explica. “Essa foi a vitória da feijoada. Na verdade, a feijoada, que era o ‘prato nacional’, acabou sendo identificado como o ‘prato carioca’ por excelência. Esse rapto ideológico serviu para reafirmar a identidade carioca e fortalecer a supremacia da Corte imperial sobre o conjunto da nação. Era a culinária servindo aos propósitos políticos de concentração do poder monárquico.”
Para Almir, a hipótese de que a feijoada surgiu nas senzalas, a partir dos restos de carnes aproveitados pelos escravos, não tem fundamento em fontes históricas. “Minha teoria é que a feijoada, como a conhecemos, surgiu nas famílias ricas, porque os miúdos eram valorizados pelas elites. Os ricos deviam comer uma feijoada mais incrementada, com diversas carnes e miúdos. Os pobres comiam feijão ralo, com pequenos pedaços de carne-seca ou toicinho, ou sem”, afirma Almir, acrescentando que os cariocas ainda não comiam diariamente feijão com arroz, como atualmente, só feijão com farinha de mandioca.  
Outro prato popular muito consumido por pobre e ricos era o angu. Debret relatou que as famílias abastadas comiam angu, mas, por se tratar de um prato menos nobre, sempre se esquivavam com piadas para salvar as aparências e o amor-próprio. Sua receita, mais elaborada, apresentava elementos da cozinha baiana, como o azeite de dendê e o quiabo, diversos pedaços de carne, coração, fígado, bofe, língua, amídalas e outras partes da cabeça do boi, com exceção do miolo. “Parti, pois, da hipótese de que, se uma cozinheira de família rica preparava um angu incrementado, por que não incrementaria a feijoada da mesma forma?”, indaga o historiador. “Se havia um angu de rico, era natural que houvesse uma feijoada de rico”, conclui.

 
© FAPERJ