Angélica Kolody Mammana: Quem não recorre aos livros de história para lê-la está fadado a repeti-la

Angélica Kolody Mammana – Facebook, 20 de maio de 2020

Vou contar uma história longa.
Calma, leiam até o fim. Confiem em mim.
Era uma vez uma doença.
Ela surgiu em um país muito, muito distante.
De repente, começou a se alastrar como faísca sobre pólvora.
Pessoas começaram a morrer, em números enormes, aos montes.
Os jornais começaram a noticiar sobre a doença antes que ela chegasse ao nosso país. Informavam a população, mas as pessoas não acreditavam.
Diziam que era algo distante, que era apenas uma gripe comum, que era tudo um grande exagero.

Algumas pessoas que chegavam de viagem da Europa caiam doentes. Algumas morreram. Mas eram velhas. Tinham doenças. Não havia motivo para pânico.

As pessoas liam os jornais e ficavam indignadas com o exagero da imprensa.
Diziam que era uma jogada politica para derrubar o governo, para espalhar o comunismo pelo mundo.

Na tentativa de conter a doença, que a essa altura já se alastrara por várias nações, países começaram a indicar o uso de máscaras, recomendaram que as pessoas ficassem afastadas, em quarentena, em cidades do mundo todo.

– Quarentena? Como assim? O que será da nossa economia?? – gritavam pessoas indignadas.

Faziam piquetes, manifestações, carregavam cartazes dizendo que se recusavam a usar máscara. E, quando eram obrigadas, usavam placas informando que não concordavam com o uso dela.

Escolas foram fechadas, portas de negócios foram baixadas. Apenas farmácias e mercados poderiam permanecer abertos para abastecer a população.

Teatros e cinemas foram lacrados.
Todos os campeonatos de futebol e outros esportes foram cancelados.

O Rio de Janeiro tornou-se um cenário de tragédia. Hospitais lotados, sem vias de saída, pessoas morrendo em casa. Por toda parte, a falta de caixões e pessoas precisando ser enterradas em valas comuns. Em um único dia, chegam a ser registradas mais de 1.000 mortes.

No Congresso, propôs-se que a formatura dos estudantes fosse antecipada, para que fossem logo para o mercado de trabalho.

Cientistas procuravam loucamente a cura ou o tratamento para aquela doença, até que algum jornal anunciou que um medicamento incrível, até então usado para a malária, parecia ser eficiente.

As pessoas ficaram em polvorosa. Todos queriam o medicamento.
Alguns médicos passaram a anunciar o milagre dessa substância em veículos de comunicação, as pessoas se acumulavam na porta das farmácias e consultórios para recebê-la.

Não havia recomendação científica para o tal remédio, mas as pessoas não se importavam. Estavam desesperadas, qualquer coisa serviria.

Milhares de doentes foram medicados, mas a doença não parecia melhorar com o remédio.

Os veículos de comunicação então chegaram a uma conclusão que parecia óbvia: o remédio não funcionava porque estava sendo administrado tarde demais.

O ideal seria prescrevê-lo o quanto antes, até mesmo preventivamente, como garantia, para evitar a contaminação antes que ela acontecesse.

Alguns outros médicos tentaram alertar a população quanto ao risco do medicamento, mas foi em vão.

Estes médicos foram taxados de conspiracionistas, agredidos, xingados, tomados por comunistas, acusados de estarem contra o interesse da população.

As pessoas passaram a se auto administrar o medicamento para malária, como iriam esperar de braços cruzados?

Foi aí que a historia se complicou.
Havia pessoas que não podiam tomar o tal remédio, pois eram portadoras de condições clinicas adversas que eram contra indicação ao uso dele.
Algumas desmaiavam na rua. Correram lendas urbanas de pessoas que chegaram a ser tomadas por mortas e enterradas vivas, em decorrência de paradas cardíacas e arritmias causadas pelo remédio, cuja dose era propagada sem qualquer critério pela própria imprensa.

As pessoas, ao longo do tempo, ao verem que o medicamento não surtia o efeito prometido, passaram a recorrer a soluções populares e caseiras cujos boatos se disseminaram.

Aguardente, associada a limão e mel, seria um tratamento possível. Bares chegaram a ter filas de pessoas em busca de uma dose. O alcoolismo disparou. O preço da fruta atingiu valores jamais vistos e sumiu das prateleiras.

Correu o boato de que hospitais estavam administrando chás envenenados à meia noite, para pacientes terminais, para liberar leitos.

Por quase dois anos, o governo falhou em conseguir implementar um Ministério da Saúde eficiente. As opiniões se dividiam, discutiam o impacto do isolamento sobre o comércio

Da mesma forma que um famoso escritor chegou a descrever:
“Cada médico tinha uma tentativa de explicação diferente; nós não sabíamos no quê e em quem acreditar. Esperávamos por uma explicação que ninguém tinha para dar, como até hoje esperamos para saber o que foi aquela sassânida infernal.”

Enquanto isso, a doença avançava. Em meio a promessas vãs, avançou e avançou.
A única coisa que se provou eficaz para contê-la foram as regiões com alta adesão ao isolamento social e ao uso de máscaras.

Não, não se trata do coronavirus nem da cloroquina.

Trata-se da gripe espanhola e do sal de quinino, medicamento que na época era usado para malária.

O uso indiscriminado do sal de quinino foi promovido pela imprensa na época, a partir de 1918, e levou também inúmeras pessoas à morte. A imprensa em massa passou a prescrever os sais de quinino inicialmente como tratamento, e posteriormente como prevenção à gripe espanhola.

Nunca surtiu efeito.

A gripe espanhola terminou por matar 30 milhões de pessoas, sem que até hoje, 102 anos depois, tenha sido encontrada a cura.

Na época, muitas pessoas acreditavam que ela era uma mentira, um exagero e uma conspiração para alastrar a revolução comunista de 1917 pelo mundo.

A única medida que, retrospectivamente, conteve razoavelmente a doença em algumas regiões, foi o isolamento social.

A economia sobreviveu.

Quem não recorre aos livros de história para lê-la está fadado a repeti-la.

Notas:
1. A gripe espanhola matou o presidente da República brasileiro, recém reeleito, o Conselheiro Rodrigues Alves, em 1918, logo antes de sua posse.

2. O “medicamento caseiro” inventado para o tratamento da gripe espanhola, à base de aguardente, mel e limão, entrou para a cultura brasileira e hoje atende pelo nome de “caipirinha”.

3. O “chá da meia noite” foi um boato que difamou a Santa Casa do Rio de Janeiro em 1918. Foi apelidada na época de “Casa do Diabo”. Após o final da epidemia, o Chá da Meia Noite foi tema do primeiro bloco de carnaval do Rio, em 1919.