O luto e os sentidos da morte

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Renzo Taddei – 20 de abril de 2020

Em um texto anterior, escrito há exatamente um mês, eu calculei que, se a taxa de mortalidade no Brasil se igualasse à da Itália, 166 das minhas amizades no Facebook estariam mortas no final da pandemia; considerando apenas aquela com as quais tenho contato mais frequente ou pessoal, e adicionando indivíduos mais velhos que não usam o Facebook, calculei o tamanho do meu luto previsto: 65 pessoas queridas. E perguntei: quem é que está preparado para perder, em poucas semanas, cinco dúzias de afetos?

Naquele momento, eu não havia recebido a notícia de mortes relacionadas ao COVID-19 de uma das minhas amizades sequer. Percebi que meu texto provocou aversão em alguns conhecidos; outro disseram-me que foi o que fez a ficha cair.

Quinze dias depois, republiquei no meu blogue uma entrevista com David Kessler, um especialista em luto. Na entrevista, ele afirmava que muitas pessoas estavam sentindo-se emocionalmente alteradas, e que tratava-se de uma forma de luto direcionada não a pessoas, mas a contextos e modos de vida. Certamente há muitas variedades de certeza e de segurança que não voltarão jamais. Com relação à estranheza do distanciamento social, ele diz que existem fases que são idênticas às fases típicas do processo psicológico do luto:

Existe a negação, que acontece bastante no início: “este vírus não vai nos afetar”. Existe a raiva: “vocês estão nos fazendo ficar em casa e tirando nossos trabalhos”. Existe a barganha: “ok, se estabelecemos o distanciamento social por duas semanas, tudo vai melhorar, certo?”. Existe a tristeza: “eu não sei quando isto vai terminar”. E, finalmente, a aceitação: “isto está acontecendo; eu tenho que descobrir como seguir adiante”.

Kessler ressalta que as fases podem não ocorrer de forma linear no tempo. Em livro mais recente, ele acresceu uma sexta fase: a descoberta de significado.

Menos de uma semana após a publicação da entrevista, meu sogro faleceu de COVID-19. Tenho a impressão de que, das minhas 2660 amizades no Facebook, os parentes consanguíneos do meu sogro e eu fomos os primeiros a sentir o baque. Poucos dias depois, começaram as postagens, esparsas e discretas, de pais e avós que haviam falecido. Comecei a escutar isso também nas conversas pessoais, fora das redes sociais, de forma crescente.

 No dia 16 de abril, rodou o país notícia de modelo matemático que previa que o sistema de saúde no país entraria em colapso no dia 21 de abril. Amanhã. Ontem, no noticiário da noite, repórteres desorientados informavam que, na maior metrópole do país, o número de leitos disponíveis de UTI se esgotaria em poucos dias.

Estamos afetados por uma quantidade imensa de lutos encavalados. É impossível estar dentro do furacão e não elaborar sentidos e narrativas. A mais imediata e intuitiva é a que afirma que é preciso fazer isso tudo valer, e o faremos se sairmos melhores do que entramos. Frente à imagem prevista dos corpos empilhados em containers refrigerados, produzidos pela tsunami de mortes que nos aguarda, velamos a ideia de que éramos, humanos, o topo da cadeia alimentar e que não tínhamos predadores. Que deste luto emerja a compreensão coletiva de que o futuro só existirá se reconstruirmos nossa relação com ecossistemas e demais seres vivos, como vizinhos e não como patrões (que nunca fomos).

Pelo desgoverno de quem nos dirige, velamos o sentimento de que o progresso, em qualquer de suas variações, ocorreria de qualquer modo, independente de nossas ações e de nossas capacidades. Que deste luto emerja a consciência de que o mundo é resultado das relações que construímos, e portanto só existirá felicidade se os mundos da política e da economia forem construídos sobre bases que a promovam.

Na impossibilidade de sentir fisicamente o calor humano do abraço de tanta gente querida, alguns até o final da pandemia, outro para sempre, velamos nossas ilusões a respeito de vidas vividas com pressa e sem cuidado, com produtividade e sem delicadeza, com metas e sem sentido. Que deste luto emerja a consciência de que ninguém é capaz de constituir-se, como pessoa e mesmo como organismo, sem a troca incessante com os demais; e se queremos um futuro de paz e serenidade, as trocas que nos constituem mutuamente têm que ser pautadas por essas qualidades.

Há, no entanto, o luto mais difícil, o mais literal: o da morte fria, brutal, a um palmo de distância, dilacerando os sentimentos e a capacidade de raciocínio. É também o mais importante dos lutos, porque garante a continuidade da nossa vida psíquica e emocional, se o vivermos bem. É preciso viver o luto, com coragem. Mas não é preciso que se viva o luto sem apoio e ajuda. Como afirmou David Kessler, o significado é parte fundamental da experiência do sofrimento, não apenas no luto, mas em todas as situações difíceis. Ocorre, no entanto, que se sairmos da psicologia e olharmos para a antropologia ou para a história, veremos que a humanidade é riquíssima em tecnologias e ferramentas para lidar com o sofrimento e com o luto, e a ideia de que o sentido emerge apenas no final do processo é, no meu entendimento, desperdiçar oportunidades e sofrer mais do que o necessário. É como ter um problema psicológico e colocar-se a responsabilidade de reinventar a própria psicologia no processo de cura. Obviamente as coisas não precisam ser assim.

Um problema aqui é que, além da própria psicologia e da psiquiatria, boa parte das demais tecnologias é classificada como “religião”, o que afasta muita gente. Isso é, em geral, uma bobagem, e ocorre em função de como nosso pensamento e percepção das coisas são colonizados por realidades culturais que não refletem de forma clara o nosso mundo cotidiano. Estou me referindo ao fato de que a suposta guerra entre “ciência” e “religião” não é sobre ciência, de forma genérica, nem religião, de maneira ampla, mas à ciência que dominavas as atenções do império britânico na época de Darwin (um naturalismo que via no mundo o reflexo do liberalismo individualista que dominava o pensamento inglês) e a religião hegemônica dentro do mesmo império britânico (um protestantismo literalista que se colocava em rota de colisão com outros literalismos, como o científico). Quando nossos cientistas brasileiros bradam a respeito das incompatibilidades entre ciência e religião, estão se referindo a um tipo específico de ciência e à religião que mimetiza o que Darwin tinha no seu tempo, de forma exacerbada: o neopentecostalismo. Com um pouco de imaginação, pesquisa e estudo, facilmente se descobre que, quanto mais o tempo passa, maiores e mais frutíferas são as colaborações entre o budismo e a ciência; o papa Francisco gerou uma volta de cento e oitenta graus na relação entre o Vaticano e a ciência, e tornou-se o primeiro papa declaradamente ambientalista da história; as obras de Alan Kardec, que fundamentam as práticas do Espiritismo Kardecista e de boa parte da Umbanda, dizem repetidamente que a fé só é verdadeira se pautada por pensamento racional e em harmonia com a ciência. Finalmente, há tempos a psiquiatria descobriu que sistemas de crenças que não induzem à culpa têm efeito efetivamente positivos no tratamento de doenças mentais, não sendo apenas “placebos”.

Além disso, dizer que a religião não tem nada a ver com a ciência é um equívoco: a ciência mostra, de forma clara, que a construção de narrativas que promovem coesão social e dão sentido à existência, como as religiões, foram fundamentais no desenvolvimento de todas as sociedades humanas – e continuam sendo. Yuval Harari, em seu livro Sapiens, por exemplo, diz de forma provocadora que o capitalismo e o socialismo (e muitas outras coisas) são formas de religião.

O luto precisa ser vivido, mas pode ser vivido mais fácil e positivamente. Em texto anterior, listei uma longa série de organizações e profissionais das áreas de psicologia e psiquiatria que organizaram-se para ofertar apoio gratuito e virtual às pessoas psicologicamente afetadas pela pandemia. Nas próximas semanas, este tipo de apoio será fundamental. Aqui, listo abaixo organizações religiosas localizadas na cidade de São Paulo que oferecem canal de comunicação e serviços de apoio, com o objetivo de oferecer consolo e ajudar as pessoas a encontrarem sentido e propósito no sofrimento pelo qual estão passando. Como os atendimentos estão sendo feitos de forma remota, por telefone ou internet, não é necessário residir em São Paulo para fazer uso dos serviços.

Se você conhece instituição religiosa que organizou-se para oferecer serviços no contexto presente e não está listada aqui, por favor envie esta informação para o autor ou deixe comentário abaixo.

Em ordem alfabética:

Budismo

– Centro de Estudos Budistas Bodisatva: site: http://www.cebb.org.br/centros/sp/; Facebook: https://www.facebook.com/cebbsp/

Catolicismo

– Marcus Tullius, coordenador nacional da Pastoral da Comunicação, informou que não há atividade centralizada, em função da quantidade e abrangência geográfica de fiéis, e que estes devem entrar em contato com as suas paróquias. As paróquias e os padres locais estão se organizando para atenderem as comunidades. É possível encontrar paróquias na lista de paróquias da Arquidiocese de São Paulo: http://arquisp.org.br/buscar-paroquias

Hare Krishna

– Centro Hare Krishna de Bhakti Yoga: e-mail centroharekrishnasp@gmail.com; Facebook: https://www.facebook.com/harekrishnasp/

– Templo Hare Krishna em São Paulo, Centro Cultural Vrinda: e-mail satyamssdd@gmail.com

– Vrinda São Paulo Templo Hare Krishna: https://www.facebook.com/temploharekrishnaSP/

Igreja Ortodoxa

– Igreja Ortodoxa Antioquina: E-mail catedralortodoxa@uol.com.br; site: http://www.catedralortodoxa.com.br

Judaísmo

– Congregação Israelita Paulista: site cip.org.br; email central.atendimento@cip.org.br;

– União Brasileiro Israelita do Bem Estar Social: email unibes@unibes.org.br; https://www.facebook.com/Unibes/

Kardecismo (Espiritismo)

– Os centros espíritas associados à União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo estão organizando atendimento em suas áreas de atuação. Use o localizador de entidades associadas: https://usesp.org.br/localizar. A USE tem perfil no Facebook: https://www.facebook.com/USESP/

– A Federação Espírita do Estado de São Paulo possui um canal de atendimento telefônico, no número (11) 3106.4403 ou pelo site https://feesp.com.br/telefeesp/; possui também perfil no Facebook: https://www.facebook.com/FEESPoficial/

Umbanda e Candomblé

– O Pai Salun, da Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo, coloca a entidade à disposição através do site https://www.fucesp.com.br; no site é possível encontrar lista de entidades filiadas: https://www.fucesp.com.br/nossos-filiados.