Pandemia de coronavírus expõe as fissuras nas religiões (Estadão)

Artigo original em português

The Economist, 12 de abril de 2020

Nos dois mil anos desde que a história de Jesus começou a ser contada em Roma, os seus seguidores nunca viram uma Páscoa como esta. Na sede do catolicismo, o momento mais pungente do drama pascoal ocorre na Sexta-feira Santa, quando o papa conduz os fiéis em uma caminhada, com 14 estações, que representa o caminho percorrido por Jesus até a sua execução.

Este ano, isto se tornou impossível. Foi anunciado que em vez disso, o Papa Francisco andaria pela Praça de São Pedro vazia. Dois dias depois, no dia 12 de abril, em lugar de proclamar a ressurreição de Jesus a uma multidão, ele oficiará praticamente só em sua vasta basílica. Milhões de pessoas poderão observá-lo, mas apenas eletronicamente.

Emergências passadas, desde recessões até guerras, estimularam as pessoas a encontrar um novo significado em antigos rituais. Mas nada preparou os fiéis para o mundo do coronavírus, em que esses rituais, os gestos, a reunião que fazem parte de sua identidade, se tornaram um perigo público. Para as religiões inovadoras que já usam a tecnologia com segurança, a crise simplesmente vai acelerar uma tendência. Mas para os credos mais antigos, as reações variaram do dócil cumprimento ao desafio truculento.

A covid-19 não ampliou em geral as fraturas existentes entre os credos. Mas ampliou as que existem entre os seguidores de todas as grandes religiões. Eles já discutiam até quando durariam as antigas crenças com as modernas visões da origem da Terra. A pandemia exacerba a fratura entre os que desafiam a ciência e os que respeitam o laboratório.

Para alguns, a perplexidade é palpável. O Patriarca Kirilli da Ortodoxia russa, declarou no dia 29 de março: “Rezo há 51 anos… Espero que vocês compreendam como é difícil para mim dizer hoje: não visitem as igrejas”. Entre os seguidores do cristianismo oriental, muitos não o farão: os clérigos da Georgia, por exemplo, continuaram a oferecer aos fiéis o pão e o vinho consagrados, pelos quais, insistem é impossível sermos prejudicados.

O Papa Francisco se mostrou mais seguro: “Uma escuridão profunda se adensou sobre as nossas praças, as nossas ruas, as nossas cidades; levou as nossas vidas, preenchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e de um vazio angustiante”. Mas a resposta da fé ocidental como um todo não chegou a impressionar, afirma Marco Ventura, da Universidade de Siena. “Até mesmo para muitos fiéis, os médicos são os novos profetas”.

Nem todos os cristãos concordam. Alguns evangélicos americanos, como os ruidosos seguidores de Donald Trump, negaram temerariamente a covid-19. Um pregador da Flórida, Rodney Howard-Browne, foi preso por pouco tempo no dia 30 de março por levar pessoas de ônibus para a igreja, insistindo que ele neutralizaria o vírus. Alguns políticos aparentemente mostram até simpatizar com esta atitude. Dois dias mais tarde, o governador do estado, Ron DeSantis, incluiu as atividades religiosas entre “os serviços essenciais” que poderiam continuar (sem multidões) apesar do fechamento. Em pelo menos dez estados, estas atividades foram liberadas.

A revolta dos secularistas aumenta desde que as primeiras ondas da epidemia foram atribuídas à imprudência religiosa, Na Coreia do Sul, centenas de membros da Igreja secreta Shincheonji de Jesus contraíram o vírus em serviços celebrados com multidões de presentes, o espalharam. O governo lamentou que a igreja não tenha cooperado procurando-os. O seu líder posteriormente pediu desculpas. Uma reunião islâmica na Malásia, em fevereiro, ajudou a espalhar o vírus para os países vizinhos.

Em outras partes, clérigos, rabinos e imãs liberais atenderam aos apelos pela suspensão das reuniões. Mas as pessoas comuns, veem a ordem de pararem os seus rituais prediletos como uma obscura conspiração. “Nem os comunistas proibiram os serviços da Páscoa” é o refrão na Europa Oriental.

No judaísmo, muitos reagiram de maneira criativa, aceitando, por exemplo, que um minyan, o quorum de dez pessoas para as orações, possa reunir-se eletronicamente. Os ultra ortodoxos, ou Haredim, entretanto, bateram o pé. Em Israel, a fortaleza haredi de Bnei Brak é um dos pontos chave do covid-19. As pessoas insistiram em reunir-se para as orações, os casamentos e os funerais, desafiando o fechamento e exacerbando as tensões crônicas entre os haredim e o Estado.

Em outros países, os ortodoxos que costumam discordar do Estado ou dos poderes religiosos encontraram no vírus um novo motivo de enfrentamento. No Iraque, Muqtada al-Sadr, um clérigo inflamado, desafiou  o Grande Ayatollah Ali al-Sistami, o líder xiita que denunciou os que espalharam o vírus como assassinos. No dia 5 de março, Sadr orou na entrada do santuário do Imã Ali, em Najaf, até que os zeladores abriram o portão de teca. Ele permaneceu aberta, e os pranteadores carregam os seus mortos em torno do santuário nos caixões. O pregador radical definiu o coronavírus um castigo por causa do casamento gay, assim como fizeram cristãos fundamentalistas.

Onde o Estado controla amplamente o Islã, como nas monarquias do Golfo, as ordens para suspender as orações da sexta-feira foram obedecidas. Os sauditas disseram aos peregrinos que adiassem os planos de fazer a haj em julho. Mas quando o Ramadan começar, por volta de 23 de abril, as autoridades em todos os países islâmicos terão dificuldade para proibir as refeições comuns para quebrar o jejum.

No Irã, um dos primeiros países e o mais atingido, as autoridades religiosas detêm o poder último. Sua decisão, no dia 16 de março de suspender  as peregrinações aos lugares sagrados, inclusive para a cidade de Qom da qual o contágio se espalhou para outros países, foi criticada como excessivamente tardia  pelos liberais saculares, e demasiado rigorosa pelos ultra devotos.

A Índia é um dos vários países em que os políticos precisam colaborar  com as forças religiosas. Em Ayodhhya, supostamente o lugar de nascimento de Rama, as autoridades tentaram, com resultados desiguais, limitar as celebrações do deus hindu. Os organizadores hindus foram encarregados de encorajar as restrições; mas eles obedeceram com relutância.

Quanto às reações, o católico se destaca pelo respeito à ciência. A Santa Sé dos dias atuais é diferente daquela que nos séculos passados perseguiu os astrônomos. Mas alguns críticos, como os católicos americanos conservadores, consideram sua resposta submissa a grande fraqueza da igreja.

Negação

O contraste entre os cautelosos católicos e os evangélicos entusiastas é agudo no Brasil. Os bispos católicos e os políticos  cooperaram com a suspensão dos serviços, enquanto o presidente Jair Bolsonaro, evangélico, que chamou o vírus “uma gripezinha”, se uniu aos seus correligionários em batalhas legais para manter as igrejas abertas.

No final, a sobrevivência das religiões poderá depender  de descobrirem uma maneira de explicar aos seus seguidores, em seus próprios termos, por que o dever espiritual agora é suspender ritos até agora considerados  vitais. Como observa Shadi Hamid da Brookings Institution, um grupo de pesquisadores, a jurisprudência muçulmana aceitou que a sobrevivência humana pode se sobrepor a outras normas: um muçulmano pode comer a carne de porco, que é proibida, para não morrer de fome. Para os judeus liberais, o ideal do tikkun olam, ou reparação do mundo, é superior às  normas que governam a oração ou a dieta.

A comunhão, durante a qual os cristãos consomem o pão e o vinho que alguns acreditam tenha se transformado no corpo e no sangue de Jesus, introduz desafios particulares. Os cristãos que respeitam as regras consideram a eucaristia eletrônica indefensável: o ritual deve ser físico.

E no entanto, o ensinamento cristão tradicional pode também ter coisas úteis para dizer do ponto de vista da higiene: Ele afirma que misteriosamente o mundo todo é abençoado toda vez em que o pão e o vinho são consagrados, independentemente o número de pessoas presentes. Isto ajuda em parte a explicar a determinação dos bispos da Grécia de, este mês, celebrar “a portas fechadas” os serviços que antecedem a Páscoa Ortodoxa.

James Alison, um sacerdote católico radical, propõe uma solução ao mesmo tempo revolucionária e tradicionalista. Ele encoraja as famílias a praticarem “a adoração eucarística” em casa, abençoando o pão e o vinho e invocando a presença de Jesus.

Segundo ele, a sua abordagem afirma a intimidade e o mistério da adoração clássica, mas desafia a ideia de uma casta de celebrantes. Como ele ressalta, a falta de mão de obra em algumas partes da cristandade já está levando a reconsiderar o papel dos sacerdotes: o vírus poderia ser o golpe de graça. O Papa Francisco definiu a pandemia “uma época para separarmos o que é necessário do que não é”. É possível que alguns creiam plenamente em suas palavras. /TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA