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Elogio da Profanação – Giorgio Agamben (Territórios de Filosofia)

Aurora Baêta

Os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa “profanar”. Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente “sagradas”) ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas “religiosas”). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens. “Profano” — podia escrever o grande jurista Trebácio — “em sentido próprio denomina-se àquilo que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens”. E “puro” era o lugar que havia sido desvinculado da sua destinação aos deuses dos mortos e já não era “nem sagrado, nem santo, nem religioso, libertado de todos os nomes desse gênero” (D. 11, 7, 2).

Puro, profano, livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao uso comum dos homens. Mas o uso aqui não aparece como algo natural; aliás, só se tem acesso ao mesmo através de uma profanação. Entre “usar” e “profanar” parece haver uma relação especial, que é importante esclarecer.

Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício: através de uma série de rituais minuciosos, diferenciados segundo a variedade das culturas, e que Hubert e Mauss inventariaram pacientemente, ele estabelece, em todo caso, a passagem de algo do profano para o sagrado, da esfera humana para a divina. É essencial o corte que separa as duas esferas, o limiar que a vítima deve atravessar, não importando se num sentido ou noutro. O que foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana. Uma das formas mais simples de profanação ocorre através de contato (contagione) no mesmo sacrifício que realiza e regula a passagem da vítima da esfera humana para a divina. Uma parte dela (as entranhas, exta: o fígado, o coração, a vesícula biliar, os pulmões) está reservada aos deuses, enquanto o restante pode ser consumido pelos homens. Basta que os participantes do rito toquem essas carnes para que se tornem profanas e possam ser simplesmente comidas. Há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado.

O termo religio, segundo uma etimologia ao mesmo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas — e as fórmulas — que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos. Por isso, à religião não se opõem a incredulidade e a indiferença com relação ao divino, mas a “negligência”, uma atitude livre e “distraída” — ou seja, desvinculada da religio das normas — diante das coisas e do seu uso, diante das formas da separação e do seu significado. Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.

A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente do sagrado. Trata-se do jogo. Sabe-se que as esferas do sagrado e do jogo estão estreitamente vinculadas. A maioria dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimônias sacras, de rituais e de práticas divinatórias que outrora pertenciam à esfera religiosa em sentido amplo. Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado — escreve ele — reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jacus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito. “Se o sagrado pode ser definido através da unidade consubstanciai entre o mito e o rito, poderíamos dizer que há jogo quando apenas metade da operação sagrada é realizada, traduzindo só o mito em palavras e só o rito em ações.”

Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a “profanação” do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumados a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos. É comum, tanto nesses casos como na profanação do sagrado, a passagem de uma religio, que já é percebida como falsa ou opressora, para a negligência como vera religio. E essa não significa descuido (nenhuma atenção resiste ao confronto com a da criança que brinca), mas uma nova dimensão do uso que crianças e filósofos conferem à humanidade. Trata-se de um uso cujo tipo Benjamin devia ter em mente quando escreveu, em O novo advogado, que o direito não mais aplicado, mas apenas estudado, é a porta da justiça. Da mesma forma que a religio não mais observada, mas jogada, abre a porta para o uso, assim também as potências da economia, do direito e da política, desativadas em jogo, tornam-se a porta de uma nova felicidade.

O jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar. Que o homem moderno já não sabe jogar fica provado precisamente pela multiplicação vertiginosa de novos e velhos jogos. No jogo, nas danças e nas festas, ele procura, de maneira desesperada e obstinada, precisamente o contrário do que ali poderia encontrar: a possibilidade de voltar à festa perdida, um retorno ao sagrado e aos seus ritos, mesmo que fosse na forma das insossas cerimônias da nova religião espetacular ou de uma aula de tango em um salão do interior. Nesse sentido, os jogos televisivos de massa fazem parte de uma nova liturgia, e secularizam uma intenção inconscientemente religiosa. Fazer com que o jogo volte à sua vocação puramente profana é uma tarefa política.

É preciso, nesse sentido, fazer uma distinção entre secularização e profanação. A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder.

A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado.

Os filólogos não cansam de ficar surpreendidos com o dúplice e contraditório significado que o verbo profanare parece ter em latim: por um lado, tornar profano, por outro — em acepção atestada só em poucos casos — sacrificar. Trata-se de uma ambigüidade que parece inerente ao vocabulário do sagrado como tal: o adjetivo sacer, com um contra-senso que Freud já havia percebido, significaria tanto “augusto, consagrado aos deuses”, como “maldito, excluído da comunidade”. A ambigüidade, que aqui está em jogo, não se deve apenas a um equívoco, mas é, por assim dizer, constitutiva da operação profanatória (ou daquela, inversa, da consagração). Enquanto se referem a um mesmo objeto que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, tais operações devem prestar contas, cada vez, a algo parecido com um resíduo de profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente em todo objeto profanado.

Veja-se o termo sacer. Ele designa aquilo que, através do ato solene da sacratio ou da devotio (com que o comandante consagra a sua vida aos deuses do inferno para assegurar a vitória), foi entregue aos deuses, pertence exclusivamente a eles. Contudo, na expressão homo sacer, o adjetivo parece designar um indivíduo que, rendo sido excluído da comunidade, pode ser morto impunemente, mas não pode ser sacrificado aos deuses. O que aconteceu de fato nesse caso? Um homem sagrado, ou seja, pertencente aos deuses, sobreviveu ao rito que o separou dos homens e continua levando uma existência aparentemente profana entre eles. No mundo profano, é inerente ao seu corpo um resíduo irredutível de sacralidade, que o subtrai ao comércio normal com seus semelhantes e o expõe à possibilidade da morte violenta, que o devolve aos deuses aos quais realmente pertence; considerado, porém, na esfera divina, ele não pode ser sacrificado e é excluído do culto, pois sua vida já é propriedade dos deuses e, mesmo assim, enquanto sobrevive, por assim dizer, a si mesma, ela introduz um resto incongruente de profanidade no âmbito do sagrado. Sagrado e profano representam, pois, na máquina do sacrifício, um sistema de dois polos, no qual um significante flutuante transita de um âmbito para outro sem deixar de se referir ao mesmo objeto. Mas é precisamente desse modo que a máquina pode assegurar a partilha do uso entre os humanos e os divinos e pode devolver eventualmente aos homens o que havia sido consagrado aos deuses. Daí nasce a promiscuidade entre as duas operações no sacrifício romano, na qual uma parte da própria vítima consagrada acaba profanada por contágio e consumida pelos homens, enquanto outra é entregue aos deuses.

Nessa perspectiva, tornam-se talvez mais compreensíveis o cuidado obsessivo e a implacável seriedade de que, na religião cristã, deviam dar mostras teólogos, pontífices e imperadores, a fim de garantirem, na medida do possível, a coerência e a inteligibilidade da noção de transubstanciação no sacrifício da missa, e das noções de encarnação e omousia no dogma trinitário. Ali estava em jogo nada menos que a sobrevivência de um sistema religioso que havia envolvido o próprio Deus como vítima do sacrifício e, desse modo, havia introduzido nele a separação que, no paganismo, tinha a ver apenas com as coisas humanas. Tratava-se, portanto, de resistir, através da contemporânea presença de duas naturezas numa única pessoa, ou numa só vítima, à confusão entre divino e humano que ameaçava paralisar a máquina sacrificai do cristianismo.

A doutrina da encarnação garantia que a natureza divina e a humana estivessem presentes sem ambigüidade na mesma pessoa, assim como a transubstanciação garantia que as espécies do pão e do vinho se transformassem, sem resíduos, no corpo de Cristo. Acontece assim que, no cristianismo, com a entrada de Deus como vítima do sacrifício e com a forte presença de tendências messiânicas que colocaram em crise a distinção entre o sagrado e o profano, a máquina religiosa parece alcançar um ponto limítrofe ou uma zona de indecidibilidade, em que a esfera divina está sempre prestes a colapsar na esfera humana, e o homem já transpassa sempre para o divino.

O capitalismo como religião é o título de um dos mais profundos fragmentos póstumos de Benjamin. Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas, como em Weber, uma secularização da fé protestante, mas ele próprio é, essencialmente, um fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por três características: 1. É uma religião cultual, talvez a mais extrema e absoluta que jamais tenha existido. Tudo nela tem significado unicamente com referência ao cumprimento de um culto, e não com respeito a um dogma ou a uma ideia. 2. Esse culto é permanente; é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci” . Nesse caso, não é possível distinguir entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa, em que o trabalho coincide com a celebração do culto. 3. O culto capitalista não está voltado para a redenção ou para a expiação de uma culpa, mas para a própria culpa.

O capitalismo é talvez o único caso de um culto não expiador, mas culpabilizante […] Uma monstruosa consciência culpável que não conhece redenção transforma-se em culto, não para expiar com ele a sua culpa, mas para torná-la universal […] e para, ao final, envolver o próprio Deus na culpa […] Deus não está morto, mas foi incorporado ao destino do homem.

Precisamente porque tende com todas as suas forças não para a redenção, mas para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição do mesmo. E o seu domínio é em nosso tempo tão total que também os três grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram com ele, segundo Benjamin, sendo, de algum modo, solidários com a religião do desespero. “Esta passagem do planeta homem, através da casa do desespero, para a absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este homem é o Super-Homem, ou seja, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião capitalista.” Também a teoria freudiana pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o removido, a representação pecaminosa […] é o capital, sobre o qual o inferno do inconsciente paga os juros”. E em Marx, o capitalismo “com os juros simples e compostos, que são função da culpa […] transforma-se imediatamente em socialismo”.

Procuremos continuar as reflexões de Benjamin na perspectiva que aqui nos interessa. Poderíamos dizer então que o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião. Onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/profano, divino/humano. Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar.

Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido — também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem — acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo. Se, conforme foi sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba, como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular. Mas isso significa que se tornou impossível profanar (ou, pelo menos, exige procedimentos especiais). Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de algo absolutamente Improfanável.

O cânone teológico do consumo como impossibilidade do uso foi fixado no século XIII pela Cúria Romana no contexto do conflito em que ela se opôs à Ordem dos Franciscanos. Na sua reivindicação da “altíssima pobreza”, os franciscanos afirmavam a possibilidade de um uso totalmente desvinculado da esfera do direito, que eles, para o distinguir do usufruto e de qualquer outro direito de uso, chamavam de usus facti, uso de fato (ou do fato). Contra eles, João XXII, adversário implacável da Ordem, escreve a sua bula Ad conditorem canonum. Nas coisas que são objeto de consumo — argumenta ele —, como o alimento, as roupas etc., não pode haver um uso diferente daquele da propriedade, porque o mesmo se define integralmente no ato do seu consumo, ou seja, da sua destruição (abusus). O consumo, que destrói necessariamente a coisa, não é senão a impossibilidade ou a negação do uso, que pressupõe que a substância da coisa permaneça intacta (salva rei substantia). Não só isso: um simples uso de fato, distinto da propriedade, não existe naturalmente, não é, de modo algum, algo que se possa “ter”. “O próprio ato do uso não existe naturalmente nem antes de o exercer, nem durante o tempo em que se exerce, nem sequer depois de tê-lo exercido. O consumo, mesmo no ato do seu exercício, sempre é já passado ou futuro e, como tal, não se pode dizer que exista naturalmente, mas apenas na memória ou na expectativa. Portanto, ele não pode ter sido a não ser no instante do seu desaparecimento.”

Dessa maneira, com uma profecia inconsciente, João XXII apresenta o paradigma de uma impossibilidade de usar que iria alcançar seu cumprimento muitos séculos depois na sociedade dos consumos. Essa obstinada negação do USO percebe, porém, a sua natureza mais radicalmente do que eram capazes de fazê-lo os que o reivindicavam dentro da ordem franciscana. Isso porque o puro uso aparece, na sua argumentação, não tanto como algo inexistente — ele existe, de fato, instantaneamente no ato do consumo — quanto, sobretudo, como algo que nunca se pode ter, que nunca pode constituir uma propriedade (dominium). Assim, o uso é sempre relação com o inapropriável, referindo-se às coisas enquanto não se podem tornar objeto de posse. Desse modo, porém, o uso evidencia também a verdadeira natureza da propriedade, que não é mais que o dispositivo que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada, na qual é convertido em direito. Se hoje os consumidores na sociedade de massas são infelizes, não é só porque consomem objetos que incorporaram em si a própria não-usabilidade, mas também e sobretudo porque acreditam que exercem o seu direito de propriedade sobre os mesmos, porque se tornaram incapazes de os profanar.

A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu. A museificação do mundo é atualmente um dado de fato. Uma após outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida dos homens — a arte, a religião, a filosofia, a idéia de natureza, até mesmo a política — retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. O Museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza, declaradas por isso mesmo patrimônio da humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural), e até mesmo com um grupo de indivíduos (enquanto representa uma forma de vida que desapareceu). De forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência.

Por essa razão, no Museu, a analogia entre capitalismo e religião se torna evidente. O Museu ocupa exatamente o espaço e a função em outro tempo reservados ao Templo como lugar do sacrifício. Aos fiéis no Templo — ou aos peregrinos que percorriam a terra de Templo em Templo, de santuário em santuário — correspondem hoje os turistas, que viajam sem trégua num mundo estranhado em Museu. Mas enquanto os fiéis e os peregrinos participavam, no final, de um sacrifício que, separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o humano, os turistas celebram, sobre a sua própria pessoa, um ato sacrifical que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso. Se os cristãos eram “peregrinos”, ou seja, estrangeiros sobre a terra, porque sabiam que tinham no céu a sua pátria, os adeptos do novo culto capitalista não têm pátria alguma, porque residem na forma pura da separação. Aonde quer que vão, eles encontrarão, multiplicada e elevada ao extremo, a própria impossibilidade de habitar, que haviam conhecido nas suas casas e nas suas cidades, a própria incapacidade de usar, que haviam experimentado nos supermercados, nos shopping centers e nos espetáculos televisivos. Por isso, enquanto representa o culto e o altar central da religião capitalista, o turismo é atualmente a primeira indústria do mundo, que atinge anualmente mais de 650 milhões de homens. E nada é mais impressionante do que o fato de milhões de homens comuns conseguirem realizar na própria carne talvez a mais desesperada experiência que a cada um seja permitido realizar: a perda irrevogável de todo uso, a absoluta impossibilidade de profanar.

É possível, porém, que o Improfanável, sobre o qual se funda a religião capitalista, não seja de fato tal, e que atualmente ainda haja formas eficazes de profanação. Por isso, é preciso lembrar que a profanação não restaura simplesmente algo parecido com um uso natural, que preexistia à sua separação na esfera religiosa, econômica ou jurídica. A sua operação — como mostra com clareza o exemplo do jogo — é mais astuta e complexa e não se limita a abolir a forma da separação para voltar a encontrar, além ou aquém dela, um uso não contaminado. Também na natureza acontecem profanações. O gato que brinca com um novelo como se fosse um rato — exatamente como a criança fazia com antigos símbolos religiosos ou com objetos que pertenciam à esfera econômica — usa conscientemente de forma gratuita os comportamentos próprios da atividade predatória (ou, no caso da criança, próprios do culto religioso ou do inundo do trabalho). Estes não são cancelados, mas, graças à substituição do novelo pelo rato (ou do brinquedo pelo objeto sacro), eles acabam desativados e, dessa forma, abertos a um novo e possível uso.

Mas de que uso se trata? Qual é, para o gato, o uso possível do novelo? Ele consiste em libertar um comportamento da sua inscrição genética em uma esfera determinada (a atividade predatória, a caça). O comportamento libertado dessa forma reproduz e ainda expressa gestualmente as formas da atividade de que se emancipou, esvaziando-as, porém, de seu sentido e da relação imposta com uma finalidade, abrindo-as e dispondo-as para um novo uso. O jogo com o novelo representa a libertação do rato do fato de ser uma presa, e é libertação da atividade predatória do fato de estar necessariamente voltada para a captura e a morte do rato; apesar disso, ele apresenta os mesmos comporta-mentos que definiam a caça. A atividade que daí resulta torna-se dessa forma um puro meio, ou seja, uma prática que, embora conserve tenazmente a sua natureza de meio, se emancipou da sua relação com uma finalidade, esqueceu alegremente o seu objetivo, podendo agora exibir-se como tal, como meio sem fim. Assim, a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante.

A separação dá-se também e sobretudo na esfera do corpo, como repressão e separação de determinadas funções fisiológicas. Umas delas é a defecação, que, em nossa sociedade, é isolada e escondida através de uma série de dispositivos e de proibições (que têm a ver tanto com os comportamentos quanto com a linguagem). O que poderia querer dizer: profanar a defecação? Certamente não encontrar nisso uma pretensa naturalidade, nem simplesmente desfrutá-lo como forma de transgressão perversa (o que, aliás, é melhor do que nada). Trata-se, sim, de alcançar arqueologicamente a defecação como campo de tensões polares entre natureza e cultura, privado e público, singular e comum. Ou melhor, trata-se de aprender um novo uso das fezes, assim como as crianças estavam tentando fazer a seu modo antes que interviessem a repressão e a separação. As formas desse uso só poderão ser inventadas de maneira coletiva. Como observou certa vez Italo Calvino, também as fezes são uma produção humana como as outras, só que delas nunca se fez uma história. Por esse motivo, qualquer tentativa individual de profaná-las pode ter apenas valor de paródia, a exemplo da cena da defecação em volta de uma mesa de jantar no filme de Buñuel.

As fezes — é claro — aparecem aqui apenas como símbolo do que foi separado e pode ser restituído ao uso comum. Mas é possível uma sociedade sem separação? A pergunta talvez esteja mal formulada. Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. A sociedade sem classes não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda memória das diferenças de classe, mas uma sociedade que soube desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um novo uso, para transformá-las em meios puros.

Nada é, porém, tão frágil e precário como a esfera dos meios puros. Também o jogo, na nossa sociedade, tem caráter episódico, depois do qual a vida normal deve retomar seu curso (e o gato a sua caça). E ninguém melhor do que as crianças sabe como pode ser atroz e inquietante um brinquedo quando acabou o jogo de que era parte. O instrumento de libertação converte-se então em um pedaço de madeira sem graça, e a boneca para a qual a menina dirigiu seu amor torna-se um gélido e vergonhoso boneco de cera que um mago malvado pode capturar e enfeitiçar para servir-se dele contra nós.

Esse mago malvado é o grande sacerdote da religião capitalista. Se os dispositivos do culto capitalista são tão eficazes é porque agem não apenas e nem sobretudo sobre os comportamentos primários, mas sobre os meios puros, ou seja, sobre comportamentos que foram separados de si mesmos e, assim, separados da sua relação com uma finalidade. Na sua fase extrema, o capitalismo não é senão um gigantesco dispositivo de captura dos meios puros, ou seja, dos comportamentos profanatórios. Os meios puros, que representam a desativação e a ruptura de qualquer separação, acabam por sua vez sendo separados em uma esfera especial. Exemplo disso é a linguagem. Certamente o poder sempre procurou assegurar o controle da comunicação social, servindo-se da linguagem como meio para difundir a própria ideologia e para induzir a obediência voluntária. Hoje, porém, tal função instrumental — ainda eficaz às margens do sistema, quando se verificam situações de perigo e de exceção — deu lugar a um procedimento diferente de controle, que, ao ser separado na esfera espetacular, atinge a linguagem no seu rodar no vazio, ou seja, no seu possível potencial profanatório. Mais essencial do que a função de propaganda, que diz respeito à linguagem como instrumento voltado para um fim, é a captura e a neutralização do meio puro por excelência, isto é, da linguagem que se emancipou dos seus fins comunicativos e assim se prepara para um novo uso.

Os dispositivos midiáticos têm como objetivo, precisamente, neutralizar esse poder profanatório da linguagem como meio puro, impedir que o mesmo abra a possibilidade de um novo uso, de uma nova experiência da palavra. A Igreja, depois dos dois primeiros séculos de esperança e de expectativa, já tinha concebido sua função com o objetivo essencial de neutralizar a nova experiência da palavra que Paulo, ao colocá-la no centro do anúncio messiânico, havia denominado pistis, fé. Da mesma maneira, no sistema da religião espetacular, o meio puro, suspenso e exibido na esfera midiática, expõe o próprio vazio, diz apenas o próprio nada, como se nenhum uso novo fosse possível, como se nenhuma outra experiência da palavra ainda fosse possível.

Essa aniquilação dos meios puros evidencia-se no dispositivo que, mais que qualquer outro, parece ter realizado o sonho capitalista da produção de um Improfanável. Trata-se da pornografia. Quem tem alguma familiaridade com a história da fotografia erótica sabe que, no seu início, as modelos mostram uma expressão romântica e quase sonhadora, como se a objetiva as tivesse surpreendido, e não visto, na intimidade do seu boudoir. Às vezes, preguiçosamente estendidas sobre um canapé, fingem estar dormindo ou até mesmo lendo, como acontece em alguns nus de Braquehais e de Camille d’Olivier; outras vezes, o fotógrafo indiscreto flagrou-as precisamente quando, sozinhas consigo mesmas, se estão olhando no espelho (é a mise-en-scène preferida por Auguste Belloc). Muito cedo, no entanto, acompanhando a absolutização capitalista da mercadoria e do valor de troca, a expressão delas se transforma e se torna desavergonhada; as poses ficam complicadas e adquirem movimento, como se as modelos exagerassem intencionalmente a sua indecência, exibindo assim a sua consciência de estarem expostas frente à objetiva. Mas é apenas em nosso tempo que tal processo alcança o seu estágio extremo. Os historiadores do cinema registram como novidade desconcertante a seqüência de Monika (1952) na qual a protagonista Harriet Andersson mantém improvisadamente fixo, por alguns segundos, o seu olhar voltado para a câmara (“aqui, pela primeira vez na história do cinema”, irá comentar retrospectivamente o diretor Ingmar Bergman, “estabelece-se um contato despudorado e direto com o espectador”). Desde então, a pornografia certamente banalizou o procedimento: as pornostars, no preciso momento em que executam suas carícias mais íntimas, olham resolutamente para a objetiva, mostrando maior interesse pelo espectador do que pelos seus partners.

Dessa maneira, realiza-se plenamente o princípio que Benjamin já havia enunciado em 1936, ao escrever o ensaio sobre Fuchs: “o que nestas imagens atua como estímulo sexual não é tanto a visão da nudez quanto a idéia da exibição do corpo nu frente à objetiva”. Um ano antes, a fim de caracterizar a transformação que a obra de arte sofre na época da sua reprodutibilidade técnica, Benjamin havia criado o conceito de “valor de exposição” (Ausstellun­gswert). Nada poderia caracterizar melhor a nova condição dos objetos e até mesmo do corpo humano na idade do capitalismo realizado do que esse conceito. Na oposição marxiana entre valor de uso e valor de troca, o valor de exposição sugere um terceiro termo, que não se deixa reduzir aos dois primeiros. Não se trata de valor de uso, porque o que está exposto é, como tal, subtraído à esfera do uso; nem se trata de valor de troca, porque não mede, de forma alguma, uma força-trabalho.

Mas é talvez só na esfera do rosto humano que o mecanismo do valor de exposição encontra o seu devido lugar. É uma experiência comum que o rosto de uma mulher que se sente olhada se torne inexpressivo. Saber que está exposta ao olhar cria o vazio na consciência e age como um poderoso desagregador dos processos expressivos que costumeiramente animam o rosto. Trata-se aqui da descarada indiferença que, antes de qualquer outra coisa, as manequins, as pornostars e as outras profissionais da exposição devem aprender a conquistar: não dar a ver nada mais que um dar a ver (ou seja, a própria e absoluta medialidade). Dessa forma, o rosto carrega-se até chegar a explodir de valor de exposição. Mas exatamente através dessa aniquilação da expressividade o erotismo penetra ali onde não poderia ter lugar: no rosto humano, que não conhece nudez, porque sempre já está nu. Exibido como puro meio para além de toda expressividade concreta, ele se torna disponível para um novo uso, para uma nova forma de comunicação erótica.

Uma pornostar, que presta seus serviços em performances artísticas, levou recentemente tal procedimento ao extremo. Ela se faz fotografar precisamente no momento de realizar ou sofrer os atos mais obscenos, mas sempre de tal maneira que o seu rosto fique bem visível em primeiro plano. E, em vez de simular o prazer, segundo a convenção comum nesses casos, ela simula e exibe — como as manequins — a mais absoluta indiferença, a mais estóica ataraxia. A quem fica indiferente Chloé des Lysses? Certamente ao seu partner. Mas também aos espectadores, que, com surpresa, se dão conta de que a star, mesmo sabendo perfeitamente estar exposta ao olhar, não tem com eles sequer a mínima cumplicidade. O seu semblante impassível rompe assim toda relação entre o vivido e a esfera expressiva; não exprime mais nada, mas se dá a ver como lugar imaculado da expressão, como puro meio.

O que o dispositivo da pornografia procura neutralizar é esse potencial profanatório. O que nele acaba sendo capturado é a capacidade humana de fazer andar em círculo os comportamentos eróticos, de os profanar, separando-os do seu fim imediato. Mas enquanto, dessa maneira, os mesmos se abriam para um possível uso diferente, que dizia respeito não tanto ao prazer do partner mas a uni novo uso coletivo da sexualidade, a pornografia intervém nessa altura para bloquear e para desviar a intenção profanatória. O consumo solitário e desesperado da imagem pornográfica acaba substituindo a promessa de um novo uso.

Todo dispositivo de poder sempre é duplo: por um lado, isso resulta de um comportamento individual de subjetivação e, por outro, da sua captura numa esfera separada. Em si mesmo, o comportamento individual não traz, muitas vezes, nada de reprovável e até pode expressar uma intenção liberatória; reprovável é eventualmente — quando não foi obrigado pelas circunstâncias ou pela força — apenas o fato de se ter deixado capturar no dispositivo. Não é o gesto impudente da pornostar nem o rosto impassível da manequim, como tais, que devem ser questionados; infames são, isso sim — política e moralmente — o dispositivo da pornografia, o dispositivo do desfile de moda, que os desviaram do seu uso possível.

O Improfanável da pornografia — qualquer improfanável — baseia-se no aprisionamento e na distração de uma intenção autenticamente profanatória. Por isso é importante toda vez arrancar dos dispositivos — de todo dispositivo — a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem.

*Texto originalmente publicado em: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2012.

Guy Debord e a clandestinidade da vida privada. (Prólogo de “O Uso dos Corpos” de Giorgio Agamben) (Obeissance est morte)

Outubro 13, 2014

Foi este mês lançado em Itália “L’Uso dei Corpi” de Giorgio Agamben. Com este volume Agamben termina a sua série “Homo Sacer”, iniciada em 1995 com a publicação de “Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua”. Deixamos aqui uma tradução apressada do seu prólogo, um olhar extremamente lúcido sobre a figura de Guy Debord. 

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1. É curioso como em Guy Debord uma consciência lúcida da insuficiência da vida privada era acompanhada pela mais ou menos consciente convicção de que existia, na sua própria existência ou na dos seus amigos, algo de único e de exemplar, que exigia ser recordado e comunicado. Já em Critique de La séparation Debord evoca, enquanto algo de certo modo intransmissível, “essa clandestinidade da vida privada sobre a qual nunca temos mais do que documentos derisórios”; E todavia nos seus primeiros filmes e ainda em Panégyrique não cessam de desfilar os rostos dos seus amigos um após outro, o de Asger Jorn, o de Maurice Wyckaert, o de Ivan Chtcheglov, e finalmente a sua própria cara, junto às das mulheres que amou. E não só, em Panégyrique surgem também as casas que habitou, o nº 28 da via delle Caldeie em Florença, a casa de campo em Champot, o Square des missions étrangères em Paris (na verdade o nº 109 da rue du Bac, o seu último endereço parisiense, na sala do qual uma fotografia de 1984 o retrata sentado num divã de couro inglês que parecia agradar-lhe).

Dá-se aqui uma contradição central, que os situacionistas não conseguiram superar e, simultaneamente algo de precioso que exige ser retomado e desenvolvido: talvez a obscura e inconfessada consciência de que o elemento genuinamente político consiste exactamente nesta incomunicável e quase ridícula clandestinidade da vida privada. Já que mesmo essa – a vida clandestina, a nossa foma-de-vida – é tão intima e próxima, que se a tentamos capturar nos deixa nas mãos apenas a impenetrável e tediosa quotidianidade. E todavia talvez seja mesmo esta homónima, promíscua e sombria presença a custodiar o segredo da política. A outra face do arcanum imperii na qual naufraga toda a biografia e toda a revolução. E Guy, que era tão hábil e perspicaz quando tinha de analisar e descrever as formas alienadas da existência na sociedade espectacular, é então assim tão cândido e impotente quando tenta comunicar a forma da sua vida e quando tenta olhar na cara e explodir a clandestinidade com a qual partilhou a viagem até ao último momento.

2. In Girum imus nocte et consumimur igni (1978) abre com uma declaração de guerra contra o seu tempo e prossegue com uma análise inexorável das condições de vida que a sociedade mercantil no estádio supremo do seu desenvolvimento instaurou sobre a totalidade do planeta. Inesperadamente a meio do filme a descrição detalhada e impiedosa cessa para dar lugar à evocação melancólica e quase débil das memórias e eventos pessoais que antecipam a intenção declaradamente autobiográfica dePanégyrique. Guy recorda a Paris da sua juventude, que já não existe, em cujas ruas e cafés tinha partido com os seus amigos em obstinada busca desse “Graal nefasto, que ninguém deseja”. Embora o Graal em questão, “fugazmente vislumbrado”, mas nunca “encontrado”, tivesse indiscutivelmente um significado político, já que os que o procuravam “se encontraram capazes de compreender a vida falsa à luz da verdadeira”, o tom da comemoração, marcado por citações da Eclisiastes, de Omar Khayyan, de Shakespeare e de Bossuet, é no entanto indiscutivelmente nostálgico e sombrio: “a meio do caminho da verdadeira vida, fomos rodeados por uma melancolia escura, expressa por palavras tristes e de escárnio, no café da juventude perdida”. Desta juventude perdida, Guy recorda a desordem, os amigos e os amores (“como não recordar os bandidos charmosos e as prostitutas orgulhosas com quem habitei esses ambientes duvidosos”), enquanto no ecrã surgem imagens de Gil J. Wolman, de Ghislain de Marbaix, de Pinot-Gallizio, de Attila Kotanyi e de Donald Nicholson-Smith. Mas é no fim do filme que o impulso autobiográfico reaparece com mais força e a visão de Florença quando era livre se entrança com as imagens da vida privada de Guy e das mulheres com quem viveu nessa cidade na década de setenta. Veem-se depois passar rapidamente as casas onde Guy viveu, o Impasse de Clairvaux, a rue St Jacques, a rue St. Martin, uma igreja em Chianti, Champot e, mais uma vez, os rostos dos amigos, enquanto se escutam as palavras da canção de Gilles em Les Visiteurs du soir: “Tristes enfants perdus, nous errions dan la nuit…”. E, poucas sequências antes do final, os retratos de Guy aos 19, 25, 27, 31, e 45. O nefasto Graal, do qual os situacionistas partiram em busca, concerne não apenas a política, mas de certo modo também a clandestinidade da vida privada, da qual o filme não hesita em exibir, aparentemente sem pudor, os “documentos ridículos”.

3. A intenção autobiográfica estava, de resto, já presente no palíndromo que dá nome ao filme. Logo após invocar a sua juventude perdida, Guy acrescenta que nada expressa melhor o dispêndio do que esta “antiga frase construída letra após letra como um labirinto sem saída, de modo a recordar perfeitamente a forma e o conteúdo da perda: in girum imus nocte et consumimur igni ‘Andamos em circulo pela noite e somos devorados pelo fogo’”.

A frase, definida por vezes como o “verso do diabo”, provém, na verdade, segundo uma cursiva indicação de Heckscher, da literatura emblemática e refere-se às traças inexoravelmente atraídas pela chama da vela que as consumirá. Um emblema é composto por uma impresa – uma frase ou um mote – e por uma imagem; nos livros que pude consultar, a imagem da traça devorada pelo fogo surge frequentemente, nunca associada ao livro em questão mas sim a frases que se referem à paixão amorosa (“assim o prazer vivo conduz à morte”, “assim de bem amar porto tempestuoso”) ou, em casos mais raros, à imprudência na política ou na guerra (“non temere est cuiquam temptanda potentia regis”, “temere ac periculose”). Nos Amorum emblemata de Otto van Veen (1608), a contemplar as traças que se precipitam em direção à chama da vela está um amor alado e a impresa diz: brevis et damnosa voluptas.

É provável, então, que Guy, escolhendo o palíndromo enquanto título, paragonasse a si próprio e aos seus companheiros às traças, que amorosamente e temerariamente atraídas pela luz estão destinadas a perder-se e a consumir-se no fogo. Na Ideologia Alemã – uma obra que Guy conhecia perfeitamente – Marx evoca criticamente a mesma imagem: “e é assim que as borboletas noturnas, quando o sol do universal se põe, procuram a luz de lâmpada do particular”. Tanto mais singular é que, apesar desta advertência, Guy tenha continuado a seguir esta luz, a espiar obstinadamente a chama da existência singular e privada.

4. No final dos anos noventa, nas bancas de uma livraria parisiense, o segundo volume dePanégyrique, contendo a iconografia, estava exposto – por acaso ou por intenção irónica do livreiro – ao lado da autobiografia de Paul Ricouer. Nada é mais instrutivo do que comparar o uso das imagens em ambos os casos. Enquanto as fotografias do livro de Ricoeur retratam o filósofo exclusivamente no decurso de convénios académicos, como se ele não tivesse tido outra vida fora deles, as imagens de Panégyrique pretendiam um estatuto de verdade biográfica que observava a existência do autor em todos os seus aspectos. “A ilustração autêntica”, adverte a curta promessa, “ilumina o discurso verdadeiro… saberemos finalmente então qual a minha aparência em diferentes idades; e que tipo de rostos sempre me rodearam; e que lugares habitei…”. Uma vez mais, não obstante a evidente insuficiência e banalidade dos seus documentos, a vida – a vida clandestina – está em primeiro plano.

5. Uma noite, em Paris, Alice, quando lhe disse que muitos jovens em Itália continuavam interessados nos escritos de Guy e que esperavam dele uma palavra, repondeu: “Existimos, deveria ser-lhes suficiente”. Que queria dizer “existimos”? Nesses anos viviam isolados e sem telefone entre Paris e Champot, de certo modo com os olhos postos no passado, e a sua “existência” estava, por assim dizer, totalmente achatada na “clandestinidade da vida privada”.

No entanto, ainda um pouco antes do seu suicídio em novembro de 1994, o titulo do seu último filme preparado para o Canal Plus: Guy Debord, son art, son temps não parece – apesar do esse son art realmente inesperado – de todo irónico na sua intenção biográfica e, antes de se concentrar com extraordinária veemência no horror do “seu tempo”, esta espécie de testamento espiritual reitera com o mesmo candor e as mesmas velhas fotografias a evocação nostálgica da vida transcorrida.

O que significa então “existimos”? A existência – este conceito fundamental na primeira filosofia do ocidente – terá talvez constituitivamente a ver com a vida. “Ser”, escreve Aristóteles, “para os vivos significa viver”. E, alguns séculos depois, Nietzsche precisa: “ser: não temos outra representação que viver”. Trazer à luz – fora de qualquer vitalismo – o intimo cruzamente de ser e existir: esta é certamente hoje a tarefa do pensamento (e da política)

6. A Sociedade do Espectáculo abre com a palavra “vida” (“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos) e até ao último momento as análises do livro não cessam de pôr em causa a vida. O espectáculo, onde “tudo o que era directamente vivido se distancia numa representação”, é definido enquanto uma “inversão concreta da vida”. “Quanto mais a vida do homem se torna no seu produto, tanto mais ele é separado da sua vida”. A vida nas condições espectaculares é uma “falsa vida”, uma “sobrevivência” ou um “pseudo-uso da vida”. Contra esta vida alienada e separada, é postulado algo que Guy chama “vida histórica”, que surge logo no renascimento como uma “ruptura alegre com a eternidade”: “na vida exuberante das cidades italianas… a vida é conhecida enquanto um disfrute da passagem do tempo”. Anos antes, em Sur le passage de qualques personnes e em Critique de la séparation, Guy afirma de si e dos seus companheiros que “queriam reinventar tudo todos os dias, tornar-se patrões e donos da sua própria vida”, e que os seus encontros eram como “sinais provenientes de uma vida mais intensa, que nunca foi verdadeiramente encontrada”.

O que fosse esta vida “mais intensa”, o que era arruinado ou falsificado no espectáculo ou simplesmente o que deve ser entendido por “vida na sociedade” não é esclarecido em qualquer momento; e no entanto seria demasiado fácil censurar ao autor incoerência ou imprecisão terminológica. Guy não faz que repetir uma postura constante na nossa cultura, na qual a vida não é nunca definida enquanto tal, mas é recorrentemente dividida em Bios e Zoè, vida politicamente qualificada e vida nua, vida pública e vida privada, vida vegetativa e vida de relação, num modo em que nenhuma das partições é determinável senão na sua relação com a outra. E é talvez em última análise exactamente o indecidível da vida que faz com que ela seja sempre de novo decidida singular e politicamente. E a indecisão de Guy entre a clandestinidade da sua vida privada – que, com o passar do tempo, devia parecer-lhe mais fugidia e indocumentável – e a vida histórica, entre a sua vida individual e a época obscura e irrenunciável na qual ela esteve inscrita, traduz uma dificuldade que, pelo menos nas condições presentes, ninguém se pode iludir de ter resolvido de uma vez por todas. De qualquer modo, o Graal obstinadamente procurado, a vida que inutilmente se consome na chama, não era reduzível a nenhum dos termos opostos, nem à idiotez da vida privada nem ao incerto prestígio da vida pública, revogando assim a questão da própria possibilidade de as distinguir.

Ivan Illich observou que a noção corrente de vida (não “uma vida”, mas “a vida” em geral) é percecionada enquanto “facto científico”, que não tem já qualquer relação com a experiência do vivente singular. A vida é algo anónimo e genérico, que pode designar tanto um espermatozoide, uma pessoa, uma abelha, um urso ou um embrião. Deste “facto científico”, tão genérico que a ciência renunciou a procurar-lhe uma definição, a Igreja fez o último recetáculo do sagrado, e a bioética o termo chave da sua impotente absurdez.

Assim como nessa vida se insinuou um resíduo sacro, a outra, a clandestina, que Guy seguia, tornou-se ainda mais indescritível. A tentativa situacionista de restituir a vida à política esbarra com uma dificuldade posterior, mas não é por isso menos urgente.

O que significa que a vida privada nos acompanhe enquanto uma vida clandestina? Acima de tudo, que está separada de nós como está um clandestino, e do mesmo modo que é de nós inseparável no modo como, enquanto clandestino, partilha subrepticiamente a vida connosco. Esta cisão e inseparabilidade definem tenazmente o estatuto da vida na nossa cultura. A vida é algo que pode ser dividido – e no entanto sempre articulado e reunido numa máquina médica, filosófico-teológica ou biopolítica. Assim não é apenas a vida privada que nos acompanha enquanto clandestina na nossa breve ou longa viagem, mas a própria vida corpórea e tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera da chamada “intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos o procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar ainda que lhe dilacere atrozmente a carne.

É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.

E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.

E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.

Agamben: o pensamento como coragem (Outras Palavras)

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Filósofo italiano contesta quem o vê como pessimista, cita Marx e sustenta: “condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”

Entrevista a Juliette Cerf, na Verso | Tradução Pedro Lucas Dulci

Como os sinos da igreja tocam em Trastevere, onde marcamos nosso encontro, seu rosto vem à mente… Giorgio Agamben apareceu como o apóstolo Filipe em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) de Pier Paolo Pasolini. Naquela época, o jovem estudante de Direito, nascido em Roma em 1942, andava com os artistas e intelectuais agrupados em torno da autora Elsa Morante.  Uma Dolce Vita? Um momento de amizades intensas, em todo caso. Pouco a pouco, o jurista virou-se para a filosofia, após seminário de Heidegger em Thor-en-Provence. Então ele lançou-se sobre a edição das obras de Walter Benjamin, um pensador que nunca esteve longe de seu pensamento, bem como Guy Debord e Michel Foucault. Giorgio Agamben tornou-se, assim, familiarizado com um sentido messiânico da História, uma crítica à sociedade do espetáculo, e uma resistência ao biopoder, o controle que as autoridades exercem sobre a vida – mais propriamente dos corpos dos cidadãos. Poético, tal como político, seu pensamento escava as camadas em busca de evidências arqueológicas, fazendo o seu caminho de volta através do turbilhão do tempo, até as origens das palavras. Autor de uma série de obras reunidas sob o título latino Homo sacer, Agamben percorre a terra da lei, da religião e da literatura, mas agora se recusa a ir… para os Estados Unidos, para evitar ser submetido a seus controles biométricos. Em oposição a essa redução de um homem aos seus dados biológicos, Agamben propõe uma exploração do campo de possibilidades.

Berlusconi caiu, como vários outros líderes europeus. Tendo escrito sobre a soberania, quais os pensamentos que esta situação sem precedentes provocar em você? 

O poder público está perdendo legitimidade. A suspeita mútua se desenvolveu entre as autoridades e os cidadãos. Essa desconfiança crescente tem derrubado alguns regimes. As democracias são muito preocupadas: de que outra forma se poderia explicar que elas têm uma política de segurança duas vezes pior do que o fascismo italiano teve? Aos olhos do poder, cada cidadão é um terrorista em potencial. Nunca se esqueça de que o dispositivo biométrico, que em breve será inserido na carteira de identidade de cada cidadão, em primeiro lugar, foi criado para controlar os criminosos reincidentes.

Para usar o vocabulário da medicina antiga, a crise marca o momento decisivo da enfermidade. Mas hoje, a crise não é mais temporária: é a própria condução do capitalismo, seu motor interno. A crise está continuamente em curso, uma vez que, assim como outros mecanismos de exceção, permite que as autoridades imponham medidas que nunca seriam capazes de fazer funcionar em um período normal. A crise corresponde perfeitamente – por mais engraçado que possa parecer – ao que as pessoas na União Soviética costumavam chamar de “a revolução permanente”.Essa crise está ligada ao fato de que a economia tem roubado um caminho na política? 

CAPA FINAL PROFANAÇÕES.indd

A teologia desempenha um papel muito importante em sua reflexão de hoje. Por que isso? 

Os projetos de pesquisa que eu tenho recentemente realizado mostraram-me que as nossas sociedades modernas, que afirmam ser seculares, são, pelo contrário, regidas por conceitos teológicos secularizados, que agem de forma muito mais poderosa, uma vez que não estamos conscientes de sua existência. Nós nunca vamos entender o que está acontecendo hoje, se não entendermos que o capitalismo é, na realidade, uma religião. E, como disse Walter Benjamin, é a mais feroz de todas as religiões, porque não permite a expiação… Tome a palavra “fé”, geralmente reservado à esfera religiosa. O termo grego correspondente a este nos Evangelhos é pistis. Um historiador da religião, tentando entender o significado desta palavra, foi dar um passeio em Atenas um dia quando de repente ele viu uma placa com as palavras “Trapeza tes pisteos”. Ele foi até a placa, e percebeu que esta era de um banco: Trapeza tes pisteos significa: “banco de crédito”. Isto foi esclarecedor o suficiente.

O que essa história nos diz? 

Pistis, fé, é o crédito que temos com Deus e que a palavra de Deus tem conosco. E há uma grande esfera em nossa sociedade que gira inteiramente em torno do crédito. Esta esfera é o dinheiro, e o banco é o seu templo. Como você sabe, o dinheiro nada mais é que um crédito: em notas em dólares e libras (mas não sobre o euro, e que deveriam ter levantado as sobrancelhas…), você ainda pode ler que o banco central vai pagar ao portador o equivalente a este crédito. A crise foi desencadeada por uma série de operações com créditos que foram dezenas de vezes re-vendidos antes que pudessem ser realizados. Na gestão de crédito, o Banco – que tomou o lugar da Igreja e dos seus sacerdotes – manipula-se a fé e a confiança do homem. Se a política está hoje em retirada, é porque o poder financeiro, substituindo a religião, raptou toda a fé e toda a esperança. É por isso que eu estou realizando uma pesquisa sobre a religião e a lei: a arqueologia parece-me ser a melhor maneira de acessar o presente. Os europeus não podem acessar o seu presente sem julgarem o seu passado.

O que é este método arqueológico? 

É uma pesquisa sobre a archè, que em grego significa “início” e “mandamento”. Em nossa tradição, o início é tanto o que dá origem a algo como também é o que comanda sua história. Mas essa origem não pode ser datada ou cronologicamente situada: é uma força que continua a agir no presente, assim como a infância que, de acordo com a psicanálise, determina a atividade mental do adulto, ou como a forma com que o big bang, de acordo com os astrofísicos, deu origem ao Universo e continua em expansão até hoje. O exemplo que tipifica esse método seria a transformação do animal para o humano (antropogênese), ou seja, um evento que se imagina, necessariamente, deve ter ocorrido, mas não terminou de uma vez por todas: o homem é sempre tornar-se humano, e, portanto, também continua a ser inumano, animal. A filosofia não é uma disciplina acadêmica, mas uma forma de medir-se em direção a este evento, que nunca deixa de ter lugar e que determina a humanidade e a desumanidade da humanidade: perguntas muito importantes, na minha opinião.

Essa visão de tornar-se humano, em suas obras, não é bastante pessimista? 

Estou muito feliz que você me fez essa pergunta, já que muitas vezes eu encontro com pessoas que me chamam de pessimista. Em primeiro lugar, em um nível pessoal, isto não é verdade em todos os casos. Em segundo lugar, os conceitos de pessimismo e de otimismo não têm nada a ver com o pensamento. Debord citou muitas vezes uma carta de Marx, dizendo que “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Qualquer pensamento radical sempre adota a posição mais extrema de desespero. Simone Weil disse: “Eu não gosto daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias”. Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem de desesperança. E isso não está na altura do otimismo?

De acordo com você, ser contemporâneo significa perceber a escuridão de sua época e não a sua luz. Como devemos entender essa ideia? 

Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, em meio à escuridão, esta luz que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.

Quem é o supremo contemporâneo – o poeta? Ou o filósofo? 

Minha tendência é não opor a poesia à filosofia, no sentido de que essas duas experiências tem lugar dentro da linguagem. A casa de verdade é a linguagem, e eu desconfiaria de qualquer filósofo que iria deixá-la para outros – filólogos ou poetas – cuidarem desta casa. Devemos cuidar da linguagem, e eu acredito que um dos problemas essenciais com os meios de comunicação é que eles não mostram tanta preocupação. O jornalista também é responsável pela linguagem, e será por ela julgado.

Como é o seu mais recente trabalho sobre a liturgia nos dá uma chave para o presente? 

Analisar liturgia é colocar o dedo sobre uma imensa mudança em nossa maneira de representar existência. No mundo antigo, a existência estava ali – algo presente.  Na liturgia cristã, o homem é o que ele deve ser e deve ser o que ele é. Hoje, não temos outra representação da realidade do que a operacional, o efetivo. Nós já não concebemos uma existência sem sentido. O que não é eficaz – viável, governável – não é real. A próxima tarefa da filosofia é pensar em uma política e uma ética que são liberados dos conceitos do dever e da eficácia.

Pensando na inoperosidade, por exemplo?

A insistência no trabalho e na produção é uma maldição. A esquerda foi para o caminho errado quando adotou estas categorias, que estão no centro do capitalismo. Mas devemos especificar que inoperosidade, da forma como a concebo, não é nem inércia, nem uma marcha lenta. Precisamos nos libertar do trabalho, em um sentido ativo – eu gosto muito da palavra em francês désoeuvrer. Esta é uma atividade que faz todas as tarefas sociais da economia, do direito e da religião inoperosas, libertando-os, assim, para outros usos possíveis. Precisamente por isso é apropriado para a humanidade: escrever um poema que escapa a função comunicativa da linguagem; ou falar ou dar um beijo, alterando, assim, a função da boca, que serve em primeiro lugar para comer. Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles perguntou a si mesmo se a humanidade tem uma tarefa. O trabalho do flautista é tocar a flauta, e o trabalho do sapateiro é fazer sapatos, mas há um trabalho do homem como tal? Ele então desenvolveu a sua hipótese segundo a qual o homem, talvez, nasce sem qualquer tarefa, mas ele logo abandona este estado. No entanto, esta hipótese nos leva ao cerne do que é ser humano. O ser humano é o animal que não tem trabalho: ele não tem tarefa biológica, não tem uma função claramente prescrita. Só um ser poderoso tem a capacidade de não ser poderoso. O homem pode fazer tudo, mas não tem que fazer nada.

Você estudou Direito, mas toda a sua filosofia procura, de certa forma, se libertar da lei. 

Saindo da escola secundária, eu tinha apenas um desejo – escrever. Mas o que isso significa? Para escrever – o que? Este foi, creio eu, um desejo de possibilidade na minha vida. O que eu queria não era a “escrever”, mas “ser capaz de” escrever. É um gesto inconscientemente filosófico: a busca de possibilidades em sua vida, o que é uma boa definição de filosofia. A lei é, aparentemente, o contrário: é uma questão de necessidade, não de possibilidade. Mas quando eu estudei direito, era porque eu não poderia, é claro, ter sido capaz de acessar o possível sem passar no teste do necessário. Em qualquer caso, os meus estudos de direito tornaram-se muito úteis para mim. Poder desencadeou conceitos políticos em favor dos conceitos jurídicos. A esfera jurídica não pára de expandir-se: eles fazem leis sobre tudo, em domínios onde isto teria sido inconcebível. Esta proliferação de lei é perigosa: nas nossas sociedades democráticas, não há nada que não é regulamentado. Juristas árabes me ensinaram algo que eu gostei muito. Eles representam a lei como uma espécie de árvore, em que em um extremo está o que é proibido e, no outro, o que é obrigatório. Para eles, o papel do jurista situa-se entre estes dois extremos: ou seja, abordando tudo o que se pode fazer sem sanção jurídica. Esta zona de liberdade nunca para de estreitar-se, enquanto que deveria ser expandida.

Em 1997, no primeiro volume de sua série Homo Sacer, você disse que o campo de concentração é a norma do nosso espaço político. De Atenas a Auschwitz… 

Tenho sido muito criticado por essa idéia, que o campo tem substituído a cidade como o nomos (norma, lei) da modernidade. Eu não estava olhando para o campo como um fato histórico, mas como a matriz oculta da nossa sociedade. O que é um campo? É uma parte do território que existe fora da ordem jurídico-política, a materialização do estado de exceção. Hoje, o estado de exceção e a despolitização penetraram tudo. É o espaço sob vigilância CCTV [circuito interno de monitoramento] nas cidades de hoje, públicas ou privadas, interiores ou exteriores? Novos espaços estão sendo criados: o modelo israelense de território ocupado, composto por todas essas barreiras, excluindo os palestinos, foi transposto para Dubai para criar ilhas hiper-seguras de turismo…

Em que fase está o Homo sacer? 

Quando comecei esta série, o que me interessou foi a relação entre a lei e a vida. Em nossa cultura, a noção de vida nunca é definida, mas é incessantemente dividida: há a vida como ela é caracterizada politicamente (bios), a vida natural comum a todos os animais (zoé), a vida vegetativa, a vida social, etc. Talvez pudéssemos chegar a uma forma de vida que resiste a tais divisões? Atualmente, estou escrevendo o último volume de Homo sacer. Giacometti disse uma coisa que eu realmente gostei: você nunca termina uma pintura, você a abandona. Suas pinturas não estão acabadas, seu potencial nunca se esgota. Gostaria que o mesmo fosse verdade sobre Homo sacer, para ser abandonado, mas nunca terminado. Além disso, eu acho que a filosofia não deve consistir-se demais em afirmações teóricas – a teoria deve, por vezes, mostrar a sua insuficiência.

É esta a razão pela qual em seus ensaios teóricos você tem sempre escrito textos mais curtos, mais poéticos?

Sim, exatamente isso. Estes dois registros de escrita não ficam em contradição, e espero que muitas vezes até mesmo se cruzem. Foi a partir de um grande livro, O Reino e a Glória, uma genealogia do governo e da economia, que eu fui fortemente atingido por essa noção de inoperosidade, o que eu tentei desenvolver de forma mais concreta em outros textos. Esses caminhos cruzados são todos o prazer de escrever e de pensar.